I. Introdução
Já antes da pandemia de COVID-19, a habitação havia entrado na agenda política e mediática portuguesa pelas piores razões: tornava-se cada vez mais difícil aceder a uma habitação acessível e condigna, sobretudo nas áreas metropolitanas (Seixas & Antunes, 2019; Travasso et al., 2020). A forte dinâmica imobiliária e os processos de financeirização, gentrificação e turistificação em que assenta fizeram disparar o preço da habitação, afetando, pela primeira vez em muito tempo, a classe média (Mendes, 2020; Santos et al., 2017). Abaixo desta, estavam desde há muito numa situação particularmente vulnerável e precária os grupos de menores recursos, incapazes de aceder ao mercado formal de habitação (Alves, 2021; Ascensão, 2015; Viegas, 2019).
A pandemia acabou, no entanto, por tornar o tema incontornável. Não só o mercado de habitação não se ressentiu com a pandemia, mantendo valores incomportáveis para uma parte da população, como trouxe à tona problemas graves, como, por exemplo, de sobrelotação - onde o distanciamento e isolamento profilático são impossíveis de cumprir - ou de falta de infraestruturas básicas - onde, sem água corrente, lavar as mãos deixa de ser uma medida simples de combate ao vírus (Lages & Jorge, 2020). Precisamente 45 anos após a aprovação da Constituição da República Portuguesa (Diário da República n.º 86/1976, de 10 de abril; República Portuguesa, 1976), o direito à habitação, consagrado no artigo 65.º, não é uma garantia para todas e todos.
Em 2018, o Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional, realizado pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) a partir de um inquérito aplicado aos municípios, apontava para cerca de 26 000 famílias em carência habitacional1. Embora aquém da realidade (Jorge & Viegas, 2020), este levantamento serviu de base à preparação e implementação do 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação (Decreto-Lei n.º 37/2018, de 4 de junho; República Portuguesa, 2018a), lançado no âmbito da Nova Geração de Políticas de Habitação (Resolução do Conselho de Ministros n.º 50-A/2018, de 2 de maio; República Portuguesa 2018b), e, mais recentemente, à definição das metas traçadas no Plano de Recuperação e Resiliência (2021) - um instrumento comunitário estratégico de mitigação do impacto económico e social da crise decorrente da pandemia -, que financia a fundo perdido soluções propostas ao abrigo deste programa.
Tendo em conta o forte investimento público previsto na habitação, e as condições reunidas para suprir parte do atual défice habitacional, analisamos a principal alavanca do 1.º Direito: as Estratégias Locais de Habitação (ELH), instrumentos de planeamento de iniciativa municipal que visam conhecer as necessidades habitacionais existentes, projetar o futuro, planear e monitorizar a intervenção pública e comunicar com as cidadãs e cidadãos, o terceiro setor e demais agentes envolvidos na sua execução (IHRU, 2018). Por um lado, de forma a restituir o processo associado à elaboração destes instrumentos, centramo-nos nos documentos estratégicos a que tivemos acesso e no conhecimento trazido pelos coordenadores, responsáveis pela sua elaboração, entrevistados - oito no total2 -, cobrindo doze municípios de Portugal continental, distribuídos por vários distritos (Braga, Porto, Santarém, Lisboa, Setúbal, Portalegre, Évora e Faro). Por outro lado, exploramos o “campo das políticas públicas” trabalhado por Bourdieu (2006, 2008c), ou seja, o espaço social onde estas se produzem e materializam, com vista a identificar as possibilidades e limitações existentes face à diversidade de situações e à estrutura de distribuição do poder e dos interesses em presença.
Finda a introdução, enquadram-se as ELH no atual quadro legal, dialogando entre a Nova Geração de Políticas de Habitação, o 1.º Direito e a Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro; República Portuguesa, 2019a). Na terceira parte, entra-se no universo de situações identificadas nos diagnósticos e no desenho das soluções propostas nas ELH. Na quarta parte, analisam-se os primeiros passos da sua operacionalização, em particular a instrução de candidaturas, identificando limitações e possibilidades em aberto, que podem impedir ou viabilizar as metas traçadas. Por fim, faz-se um balanço do caminho percorrido e do que ainda falta percorrer, retomando alguns pontos para a discussão.
II. O lugar das estratégias locais de habitação nas políticas públicas
O lançamento da Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) em 2018, ano que se celebraram cem anos de políticas públicas (Agarez, 2018), representa um momento de viragem (Allegra & Colombo, 2019; Mendes, 2020). Face a um problema cada vez mais transversal à sociedade, a NGPH trouxe consigo um amplo pacote programático, dirigido, tanto à classe média, como o Programa de Arrendamento Acessível (ver Travasso et al., 2020), como aos grupos mais desfavorecidos, através especificamente do 1.º Direito, aqui em enfoque, e do Porta de Entrada (Decreto-Lei n.º 29/2018, de 4 de maio; República Portuguesa, 2018d), de apoio ao alojamento urgente. No lugar de olhar para as carências habitacionais do ponto de vista sobretudo quantitativo, seguindo iniciativas anteriores - nomeadamente o Programa Especial de Realojamento (Decreto-Lei n.º 163/93, de 07 de maio; República Portuguesa, 1993), cingido ao universo das áreas metropolitanas e alvo de críticas pelos processos de segregação sócio-espacial que aí gerou (e.g., Alves, 2021; Cachado, 2013; Carreiras, 2018; Guerra, 1994, 1999; Tulumello et al., 2017) -, sublinha-se a necessidade de assumir uma abordagem integrada ao nível das políticas setoriais, das escalas territoriais e dos agentes envolvidos. Neste sentido, anuncia-se uma reorientação da política de habitação centrada no objeto - a “casa” - para o objetivo - o “acesso à habitação” - (ver Ascensão et al., 2019), a partir de instrumentos mais flexíveis e adaptáveis às diferentes necessidades, públicos-alvo e territórios, de uma maior proximidade às cidadãs e cidadãos, bem como do reforço da cooperação horizontal - entre políticas e organismos setoriais -, vertical - entre níveis de governo - e entre os setores público e privado. Para garantir a coerência entre as várias áreas de ação governativa, a NGPH preconiza uma articulação com os instrumentos orientados para os grupos mais vulneráveis, como a Estratégia de Integração das Comunidades Ciganas (Resolução do Conselho de Ministros n.º 154/2018, de 29 de novembro; República Portuguesa, 2018c), a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo (Resolução do Conselho de Ministros nº 107/2017, de 25 de julho; República Portuguesa, 2017) e medidas de apoio às vítimas de violência doméstica (Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro; República Portuguesa, 2009).
O 1.º Direito, dirigido a estes e outros grupos vulneráveis, assenta na concessão de apoio financeiro a entidades diversas, como municípios, empresas municipais e instituições de solidariedade social, associações de moradores e cooperativas de habitação e construção, para disponibilização de soluções habitacionais - entidades beneficiárias (artigo 26.º) -, mas também diretamente aos agregados - beneficiários diretos (artigo 25.º). São considerados elegíveis os agregados ou pessoas que, cumulativamente, vivam em condições indignas, estejam em situação de carência financeira e tenham nacionalidade portuguesa ou se encontrem em situação regular no país (artigo 6.º). A situação de carência financeira é determinada pelo próprio diploma (artigos 8.º e 9.º), tendo em conta o rendimento mensal e o teto máximo estabelecido3, enquanto o conceito de indignidade habitacional (artigo 5.º) assume um caráter mais amplo, abrangendo situações de: precariedade (pessoas em situação de sem abrigo e vítimas de violência doméstica, por exemplo); insalubridade e insegurança (sem condições mínimas de habitabilidade); sobrelotação (número de divisões insuficiente face à composição do agregado); e inadequação (habitações desajustadas às características ou limitações de quem as habita, em caso de comprovada incapacidade ou deficiência). Ao nível da vulnerabilidade social (artigo 10.º), para além das pessoas vítimas de violência doméstica e em situação de sem abrigo, dá-se oportunidade de resposta aos requerentes e beneficiários de proteção internacional, podendo-se, para o efeito, solicitar a colaboração da Comissão para a Cidadania, a Igualdade de Género ou do Alto Comissariado para as Migrações, por exemplo. Do ponto de vista territorial, destacam-se os denominados “núcleos precários” - compostos por construções não licenciadas, acampamentos ou outras formas de alojamento precário ou improvisado (artigo 11.º) - e os “núcleos degradados” - áreas degradadas cujas edificações e configuração urbana assumem uma identidade própria, designadas geralmente por ilha, pátio ou vila (artigo 12.º).
Tendo em conta este leque de situações, cada município define, se necessário com apoio técnico externo4, a sua ELH para um período máximo de seis anos, priorizando e enquadrando as soluções habitacionais a desenvolver e os pedidos de apoio a candidatar (artigo 30.º). Ao contrário do seu congénere - o Programa Especial de Realojamento -, que assentou na “erradicação” e construção de edifícios habitacionais para realojamento e renda apoiada, bem como na periferização e fragmentação urbana (Ascensão & Leal, 2019), o 1.º Direito amplia as soluções habitacionais até à autopromoção (no caso dos beneficiários diretos), à reabilitação e à aquisição, permitindo combinar diferentes tipos de intervenção (artigo 29.º). Cada solução habitacional está, por sua vez, associada a valores de referência, despesas, tetos máximos e majorações específicos, compondo uma geometria de financiamento complexa a partir da qual se determina e calcula o apoio financeiro a atribuir.
Como sublinham Allegra e Colombo (2019), a figura da ELH - condição de acesso a financiamento ao abrigo do 1.º Direito -, representa não só um instrumento de diagnóstico e gestão territorial, como também de governança, enquanto principal suporte de parceria entre os agentes locais e de avaliação por parte da administração central, mais precisamente do IHRU (figs. 1 e 2). Após a aprovação da ELH, a operacionalização do programa inicia com a celebração de acordos de colaboração e/ou de financiamento e a submissão de candidaturas, que, quando validadas pelo IHRU, viabilizam a execução das soluções habitacionais propostas (IHRU, 2020).
Paralelamente ao percurso traçado pela NGPH e pelo 1.º Direito, abriu-se outro, o da Lei de Bases da Habitação, publicada por último, mas de particular relevância, pois “estabelece as bases do direito à habitação e as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efetiva garantia desse direito a todos os cidadãos [e cidadãs]” (artigo 1.º). Para além de clarificar a estrutura de governança associada à política de habitação, determina a realização de diagnósticos periódicos das carências habitacionais existentes, que devem integrar: o Programa Nacional de Habitação (artigo 17.º), que estabelece os objetivos, prioridades, programas e medidas da política nacional de habitação; e as cartas municipais de habitação (artigo 22.º), a articular, no quadro dos Planos Diretores Municipais (PMD), com os demais instrumentos de gestão do território e estratégias aprovados ou previstos, com vista à execução das políticas regionais e locais de habitação.
As Cartas Municipais de Habitação (CMH) assumem uma natureza similar à das ELH, mas um olhar mais abrangente. Enquanto as primeiras propõem uma leitura transversal em matéria de habitação, as segundas podem cingir-se às situações consideradas elegíveis ao abrigo do 1.º Direito. Propostas pelas respetivas câmaras, prevê-se que as CMH incluam, para além do diagnóstico das carências habitacionais, a identificação dos recursos e potencialidades locais - nomeadamente o solo urbanizado expetante, urbanizações ou edifícios e fogos devolutos, degradados ou abandonados -, o planeamento e ordenamento prospetivo das carências decorrentes de novas atividades económicas, bem como a definição estratégica dos objetivos, prioridades e metas a alcançar no seu prazo de vigência (n.ºs 1 e 3, artigo 22.º). Através destes instrumentos, pretende-se, tanto identificar os agregados em situação de carência, como definir as ações a desenvolver para inverter situações de perda populacional e processos de gentrificação e identificar os agentes, públicos ou privados, a quem compete concretizar as intervenções previstas (n.º 4, artigo 22.º). No âmbito da CMH, a assembleia municipal pode ainda aprovar uma declaração fundamentada de carência habitacional, que permite ao município reforçar áreas destinadas a uso habitacional nos planos territoriais, exercer o direito de preferência e ter prioridade no acesso a financiamento público (n.ºs 6 e 7, artigo 22.º). Contudo, as CMH tardam em ver a luz do dia, embora alguns municípios, como os de Lisboa (Câmara Municipal de Lisboa [CML], 2009a, 2009b, 2009c) e Évora (Câmara Municipal de Évora [CME], 2019), já tenham desenvolvido, dentro de um espírito similar, programas/planos locais de habitação, de suporte à execução das respetivas políticas.
O atual quadro legal e financeiro - trazido pela NGPH, que integra o ١.º Direito, pela Lei de Bases da Habitação e pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR; Ministério do Planeamento, 2021) - legitima um novo monopólio simbólico do Estado sobre o território, presente nos esquemas de perceção e de pensamento que influenciam, ou determinam, as práticas e abordagens adotadas (Bourdieu, 2008a). O espaço que dele resulta, estruturado a partir de formas de poder, interesses e motivações específicos, é, por sua vez, atravessado pelas clivagens geradas pelos agentes que integram o “campo das políticas de habitação”: desde os que as concebem e validam, até aos que as executam e delas, à partida, beneficiam. Face a este leque alargado de agentes, incidimos nas próximas páginas na relação e interação específicas entre: os técnicos do IHRU, sobre os quais, como vimos, recai a responsabilidade, mas também o poder, de acompanhar e validar as ELH; os técnicos e políticos que integram as estruturas municipais, a quem cabe definir e executar as ELH; e os técnicos que as elaboram, especificamente os que coordenam as equipas que aferem as condições e recursos locais, tendo em conta as metas e objetivos traçados. Esta relação e interação são lidas a partir do olhar e da experiência de oito técnicos-coordenadores entrevistados, cobrindo um universo de doze municípios com realidades distintas e, em alguns casos, distantes entre si.
III. A diversidade de estratégias locais de habitação
A publicação do 1.º Direito e a introdução da figura das ELH - desde há muito considerada essencial para a territorialização das políticas de habitação e articulação com outras políticas setoriais (Guerra, 2008) - geraram expetativas entre os coordenadores entrevistados, responsáveis pela elaboração destes instrumentos. Um deles, relembra a mensagem transmitida nas apresentações oficiais do programa de que, embora as ELH fossem condição para aceder a financiamento ao abrigo do 1.º Direito, não se esgotavam aí, insistindo-se na necessidade de olhar para a habitação de forma transversal (entrevista, 2021). Um diagnóstico desta natureza requeria o acesso a diferentes dados e fontes de informação relativos ao território e às dinâmicas que este encerra, nomeadamente às condições e características habitacionais e respetivos enquadramentos urbanísticos, bem como às pessoas e agregados em situação de carência financeira, de forma a aferir os critérios de elegibilidade considerados.
Contudo, estas informações, quando disponíveis e atualizadas, encontram-se geralmente dispersas por vários departamentos e divisões municipais, implicando uma articulação e gestão interna por vezes difícil ou impossível de conseguir. Nem todos os municípios têm um departamento vocacionado para a habitação, estando geralmente diluída nas políticas de reabilitação urbana ou no setor social, estrita ao parque habitacional público. Simultaneamente, a partilha de dados por parte de algumas entidades, como a Segurança Social - que facilitaria a identificação de situações de precariedade e vulnerabilidade -, esbarra, segundo alguns entrevistados (2021), no Regulamento Geral da Proteção de Dados e na resistência institucional em facultar a informação que detêm. Este desafio exigia recursos técnicos e financeiros de que vários municípios não dispunham, levando parte deles a solicitar ao IHRU o apoio financeiro previsto para a elaboração das ELH5, especificamente para a contratação de equipas externas - dos doze municípios considerados na análise, nove recorreram a este apoio -, sem com isso garantir a adoção da abordagem integrada então preconizada. Em vários casos, colocava-se um dilema: ultrapassar as dificuldades existentes ou redimensionar as expetativas face aos obstáculos identificados?
São várias as circunstâncias que conduzem a esta bifurcação. Por um lado, o apoio financeiro atribuído não é suficiente para constituir uma equipa multidisciplinar e garantir um trabalho de campo aprofundado. Por outro lado, esta abordagem tende a esbarrar em práticas e estruturas locais frágeis, ao mesmo tempo que o PRR incute maior velocidade ao processo: “Senhores autarcas, o financiamento é a 100%! Mãos à obra, todos a construir e a reabilitar” (Pinto, 2021), anunciava em fevereiro de 2021 o ministro das Infraestruturas e da Habitação. Alguns entrevistados referem uma pressão adicional exercida, desde então, sobre as equipas, no sentido das ELH serem aprovadas a tempo de se beneficiar das condições excecionais de financiamento garantidas até 2026, interferindo nos trabalhos em curso. A rapidez, não a qualidade, passou em alguns casos a assumir as rédeas do processo de elaboração das ELH, limitando-o à reunião dos conteúdos definidos na Portaria que regulamenta o 1.º Direito (Portaria n.º 230/2018, de 17 de agosto; República Portuguesa, 2018b): o diagnóstico das carências habitacionais existentes, nomeadamente as características e número de pessoas a viver em condições indignas; a programação e priorização das soluções habitacionais a desenvolver; e a demonstração do enquadramento das ELH nos princípios do programa (artigo 2.º).
1. O preenchimento de espaços em branco
Face à dificuldade de acesso e cruzamento de dados - transversal aos doze municípios analisados -, alguns recorreram a levantamentos complementares, a partir de diferentes metodologias. Destaca-se a aplicação de inquéritos, online e em papel, que permitiram obter um retrato mais próximo da realidade e aferir o nível de carência habitacional, sem chegar necessariamente ao público-alvo do 1.º Direito, por infoexclusão ou, como veremos adiante, por determinação do próprio executivo municipal. Há ainda quem tenha realizado fóruns e sessões públicas dedicadas ao 1.º Direito, sinalizando, sobretudo com o apoio das juntas de freguesia e de entidades do terceiro setor, algumas situações fora do radar, como as de chamada “pobreza envergonhada”, de quem resiste em declarar o contexto de indignidade habitacional em que vive. Contudo, apesar desta aproximação ao terreno, poucos foram os municípios analisados que assumiram uma abordagem participada, permitindo que todas e todos tomassem posição no processo de diagnóstico e de elaboração das ELH. De acordo com as entrevistas realizadas (2021), esta tendência prende-se com a existência ou possibilidade de conflitos entre as câmaras municipais e as comunidades em carência habitacional, com a incapacidade de garantir uma solução a todas as situações identificadas e com a pressão exercida sobre as equipas responsáveis pela elaboração das ELH. A abordagem integrada e participada anunciada na NGPH requer tempo e um sentido de compromisso nem sempre assegurados.
Da mesma forma, a inclusão de grupos particularmente vulneráveis, como as comunidades ciganas e as pessoas vítimas de violência doméstica, em destaque no atual quadro legislativo, acabou por não figurar nos diagnósticos de alguns dos municípios analisados: as primeiras por racismo e descriminação, alegando situações de nomadismo e dificuldades de inserção destas comunidades no território e na sociedade; as segundas por desconhecimento, desarticulação com as entidades que acompanham estes casos ou por não considerarem uma prioridade. Especificamente em relação aos requerentes e beneficiários de proteção internacional, nenhum dos municípios analisados os integrou nas respetivas ELH. Também nem todas as pessoas a residir em núcleos precários e degradados, nomeadamente nas chamadas ilhas, proprietárias ou inquilinas das suas casas, integraram a lista de situações sinalizadas nos diagnósticos, por corresponderem a propriedades privadas e, por essa razão, se considerar estarem fora da responsabilidade do Estado, pela escala do problema ou pela incapacidade ou desinteresse em solucioná-lo ao abrigo do 1.º Direito. Por fim, também situações de carência habitacional identificadas no mercado de arrendamento, formal e informal, decorrentes de taxas de esforço acima de 35%, e de casos de sobrelotação e/ou insalubridade, ficaram de fora, por não cumprirem os critérios de elegibilidade do 1.º Direito ou por o IHRU entender ser da responsabilidade dos proprietários a resolução do problema (entrevistas, 2021).
Relativamente à abordagem multissetorial igualmente preconizada, destaca-se, quer na fase de diagnóstico, quer na de definição das soluções habitacionais, a importância do perfil técnico e político de quem integra os municípios. A existência de departamentos, divisões e/ou empresas municipais focados na habitação garante, à partida, uma estrutura técnica e política disponível para, com ou sem o apoio de equipas externas, identificar carências, encontrar soluções, definir prioridades e gerir a prossecução dos trabalhos. No entanto, para além da estrutura e orgânica municipal, identificam-se outros fatores de peso, nomeadamente: (1) o envolvimento e visão do executivo (presidência e vereações), que pode determinar, como vimos, a inclusão ou exclusão de grupos específicos dos diagnósticos e as abordagens de intervenção a adotar; (2) o conhecimento técnico, dedicação e capacidade de mediação das equipas que elaboram as ELH, tendo em conta a complexidade do diploma e do desafio que assumem, bem como a articulação interna (entre departamentos e serviços municipais) e externa (com as populações, juntas de freguesia e terceiro setor, potenciais entidades beneficiárias e o IHRU) exigidas no processo; e (3) a escala do problema e os recursos e potencialidades locais, existentes e mobilizados, para o suprir.
Com efeito, os recursos e as especificidades de cada território também condicionam as escolhas tomadas. O ponto de partida dos municípios é muito variável: a Amadora - um dos mais pequenos do país, com apenas cerca de 24km², mas o mais densamente povoado, com um parque habitacional público a rondar os 3090 fogos (INE, 2013) e um défice habitacional, de acordo com o Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (IHRU, 2018a), na ordem das 2839 famílias - encontrará dificuldades acrescidas comparando, por exemplo, com a Póvoa do Varzim - com cerca de 82km², menor densidade populacional, um parque habitacional público aproximado de 480 fogos (INE, 2013) e, segundo o mesmo Levantamento, 11 famílias em carência habitacional (IHRU, 2018a). O número de agregados em situação de indignidade habitacional apresentado nas ELH já aprovadas, que entre os municípios analisados varia, aproximadamente, entre 80 e 4500, reitera esta forte variação. A dimensão do parque habitacional público existente e os problemas e dificuldades de gestão que coloca aos municípios - nomeadamente os recursos técnicos e financeiros que consome e os fenómenos de exclusão e segregação que lhe estão muitas vezes associados - influenciam igualmente as abordagens de intervenção propostas nas ELH analisadas. Alguns executivos municipais oferecem resistência em ampliar o seu parque habitacional, alegando estarem acima dos 2% do total nacional e não terem capacidade de o gerir e manter sozinhos (entrevistas, 2021). Outros, em menor número, encaram a sua ampliação como a única solução possível para superar o atual défice habitacional.
2. A definição condicionada de respostas habitacionais
Ao colocar os dois pratos na balança - sinalização de situações de carência e criação de respostas habitacionais condignas -, a escolha recai mais numas abordagens de intervenção, do que noutras. Entre os municípios analisados, a aposta na reabilitação incide sobretudo no parque habitacional público existente - parte dele em mau estado de conservação (IHRU, 2018a) -, implicando uma articulação entre os próprios municípios, o IHRU e os proprietários das frações alienadas, parte deles elegíveis ao 1.º Direito enquanto beneficiários diretos. Para além do arrendamento de fogos públicos, o apoio ao arrendamento tem pouca expressão: a modalidade de arrendamento para subarrendamento é pontualmente equacionada e o mecanismo de compensação, que cobre a diferença entre a renda mensal paga pelo morador da fração ou prédio reabilitado e o valor do reembolso mensal do empréstimo contraído para a intervenção, restringe-se aos núcleos degradados e, face às condições dadas pelo PRR - 100% a fundo perdido -, deixa de se justificar. A autopromoção de soluções habitacionais no parque privado, através do apoio financeiro direto aos agregados em carência habitacional, apenas abrange os proprietários, prevendo-se a realização de obras que resolvam as situações de insalubridade e insegurança, sobrelotação ou inadequação sinalizadas. A aquisição de habitações ou de terrenos nem sempre é considerada, tendo em conta os elevados valores de mercado, a resistência ou dificuldade, por parte das entidades beneficiárias, em gerir um património disperso - sobretudo nos municípios com maior número de agregados sinalizados -, mas também as condições impostas pelo próprio diploma, que limita, por exemplo, o financiamento desta solução por parte dos beneficiários diretos6. A construção de novas unidades habitacionais, sobretudo nos municípios com maior número de situações de carência, permanece uma das principais respostas encontradas para fazer face ao problema, embora o solo livre e urbanizado tenda a escassear e a estar reservado para o mercado imobiliário, podendo levar à reprodução de erros do passado: construção de grandes conjuntos em altura e em áreas periféricas, sem uma boa rede de serviços e equipamentos, e com reduzida diversidade socioeconómica. Face a esta herança, há municípios a procurar assegurar uma mistura social e residencial, prevendo integrar num mesmo conjunto habitacional diferentes grupos-alvo e tipos de renda (apoiada, condicionada, acessível).
São sobretudo os municípios e empresas municipais a tomar a dianteira na promoção das soluções habitacionais previstas, assumindo a concretização da maioria delas ou, no caso dos beneficiários diretos, a intermediação do processo. O envolvimento de entidades externas, nomeadamente do terceiro setor, revela-se, segundo as entrevistas realizadas (2021), mais fácil de assegurar durante o diagnóstico do que nesta fase subsequente, embora se tenham conseguido estabelecer acordos neste sentido em alguns municípios, nomeadamente com a Santa Casa da Misericórdia. Outras potenciais entidades beneficiárias, como cooperativas e instituições de solidariedade social, nem sempre dispõem de recursos suficientes para assumir esse compromisso. Simultaneamente, existe uma desconfiança relativamente ao Estado, especificamente à máquina burocrática em que assenta, consumidora de tempo e de recursos, e às condições de financiamento e pagamento que oferece, em contra fatura (entrevistas, 2021).
A desconfiança recai sobre a administração local e central, esta última personificada no IHRU, mas também se verifica no seio de alguns municípios, sobretudo quando as cores dos executivos não coincidem com as do governo central. Divergências políticas à parte, a relação entre os municípios, as equipas que elaboram as ELH e o IHRU - nomeadamente com o Gabinete de Programas de Apoio à Habitação (GPAH), com um departamento em Lisboa e outro no Porto - varia, de acordo com as entrevistas realizadas (2021), em função da dinâmica interna das equipas e da sua resistência ou cedência relativamente aos critérios estabelecidos pela entidade financiadora. Tratando-se de um programa recente e complexo, sujeito a várias alterações desde a sua publicação7, estes intervenientes estão a percorrer este caminho pela primeira vez, o que coloca desafios a todas as partes. Do lado das equipas, há quem ressalte a disponibilidade do IHRU em reunir e acompanhar os trabalhos, apesar da sua falta de recursos, centralizando-se em poucos técnicos todo o universo de ELH a nível nacional - exemplo disso é o facto do diretor do GPAH estar presente em praticamente todas as reuniões realizadas (entrevistas, 2021). No entanto, alguns entrevistados identificam, por parte do IHRU, uma rigidez e inflexibilidade características de quem está longe do terreno e desvaloriza o conhecimento e experiência das equipas ou encara as carências habitacionais de um ponto de vista sobretudo quantitativo - o quadro resumo que quantifica os requisitos do 1.º Direito e, a par do documento escrito, serve de base para avaliar e validar as ELH é um exemplo recorrente.
IV. A operacionalização das estratégias locais de habitação
Após a aprovação da ELH, inicia um novo ciclo marcado pela instrução e submissão de candidaturas, onde o município deve informar o IHRU dos processos a promover em cada solução habitacional - diretamente, através de outras entidades beneficiárias ou dos beneficiários diretos, em sua substituição ou representação -, com vista a se candidatarem a financiamento. Contudo, a operacionalização das ELH, segundo as entrevistas realizadas (2021), está longe de se revelar, por diferentes razões, um processo fácil e célere.
Primeiro, alguns municípios têm dificuldade em localizar pessoas e agregados que se enquadrem nos perfis determinados nos diagnósticos, baseados parcialmente em estimativas, o que requer nestes casos um trabalho adicional: reunir com as juntas de freguesia e entidades do terceiro setor, mais próximas do terreno, e/ou realizar levantamentos complementares para ultrapassar esta fragilidade. Por outro lado, verifica-se um desconhecimento generalizado em torno das candidaturas, nomeadamente em relação aos tramites a seguir e ao funcionamento da plataforma eletrónica que lhes dá suporte8, em parte ultrapassado com a apresentação dos requisitos solicitados ao abrigo do PRR, mais claros e específicos que os anteriores e divulgados abertamente no Portal da Habitação (https://www.portaldahabitacao.pt/prr). Alguns municípios na linha da frente, com o processo mais avançado, sentem estar, a par do IHRU, a desbravar um caminho inóspito, caracterizado por avanços e recuos, decorrentes, em parte, das flutuações e limitações da própria entidade financiadora.
Segundo, o atual contexto coloca dificuldades e desafios acrescidos. O modelo e os elementos requeridos, no âmbito das candidaturas a apoio financeiro não reembolsável (Portaria n.º 138-C/2021, de 30 de junho; República Portuguesa, 2021b), disponibilizado pelo PRR, introduzem novas exigências técnicas e construtivas visando um melhor desempenho energético. Estas exigências são relativamente fáceis de cumprir ao nível da reabilitação, conduzindo a soluções e práticas apoiadas na sustentabilidade construtiva e ambiental, mas difíceis de assegurar na construção de raiz. Os novos edifícios estão dependentes do cumprimento de critérios de eficiência energética e de procura de energia primária inferior em, pelo menos, 20% dos requisitos designados por NZEB (edifícios com necessidades quase nulas de energia), particularmente desafiantes do ponto de vista técnico e difíceis de assegurar num momento em que existem vários constrangimentos na área da construção civil. Referimo-nos especificamente à pequena escala do setor em Portugal, mas também à subida em flecha dos materiais de construção e dos custos de mão de obra nos últimos anos (INE, 2020, 2021), que alterou os preços-base da construção - o principal critério de seleção de propostas -, deixando vários concursos públicos desertos - sem qualquer empresa a manifestar interesse na execução - e a validade de orçamentos de obras e empreitadas cada vez mais reduzida. Apesar do Decreto-Lei n.º 73/2021 (República Portuguesa, 2021c), de 18 de agosto, atualizar o regime da revisão de preços das empreitadas de obras públicas, obras particulares e aquisição de bens e serviços, a imprevisibilidade do setor da construção não permite dar o problema por encerrado. O investimento na habitação previsto no âmbito do PRR, apoiado na execução de concursos públicos lançados pelos municípios - sujeitos ao cumprimento do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas - e, simultaneamente, em obras particulares dependentes da apresentação e execução de orçamentos difíceis de garantir, no caso dos beneficiários diretos, traz grandes desafios pela frente.
Terceiro, as fortes clivagens que estruturam a nova configuração do “campo das políticas de habitação” induzida sobretudo pelo 1º Direito e pela sua inclusão no PRR alteram parte das peças e regras do jogo. A carência habitacional e financeira, sobre a qual recai a elegibilidade ao programa, passa de um fator estruturante de degradação e precarização sócio-espacial a garantia de acesso a verbas comunitárias a fundo perdido para a reabilitação - e revalorização - do património. Contudo, apesar desta transição, as características e condições de parte do território e das pessoas que o habitam permanecerão inalteradas. Por outras palavras, a existência de um novo quadro financeiro, mesmo que transversal, não se traduz na alocação efetiva dos recursos necessários para o mobilizar, precisamente porque o lugar de partida é, necessariamente, diferente. A título de exemplo, nos municípios analisados, os acordos de colaboração celebrados com IHRU apenas incluem as soluções promovidas pelos municípios e empresas municipais, com recursos técnicos próprios, mesmo que diminutos, afastando outras entidades beneficiárias e os beneficiários diretos, dependentes de outro tipo de suporte técnico.
Quarto, os recursos afetos à fase de instrução de candidaturas são muito variáveis. Tirando casos pontuais, em que as equipas externas contratadas para a elaboração das ELH transitaram para este novo ciclo - entre os doze municípios analisados, apenas um o fez -, os municípios contam agora sobretudo com os seus próprios recursos. Lisboa, com um número de técnicos superior ao do quadro nacional do IHRU9, reunirá à partida melhores condições para instruir e apoiar a fase das candidaturas, comparativamente às restantes câmaras municipais do país. Na maioria dos casos, os técnicos municipais têm dificuldade em transpor as etapas associadas à instrução de candidaturas, nomeadamente de produzir os elementos que permitem quantificar as intervenções e atestar a sua viabilidade urbanística, sendo muito poucos os que, entre os municípios analisados, conseguem chegar à validação do IHRU. Do lado das entidades beneficiárias e, ainda mais, dos beneficiários diretos, o fosso entre eles e as respostas delineadas agiganta-se, gerando novos espaços interditos ao acesso a financiamento, não necessariamente cobertos pela estrutura e apoio institucionais. Conscientes das dificuldades, alguns municípios preveem a criação de gabinetes locais, unidades específicas de suporte e, no caso de um dos municípios analisados, de uma linha telefónica para esclarecimento de dúvidas. Dependendo do número de situações de carência habitacional identificadas nas ELH, dos recursos municipais alocados e das especificidades de cada território, a instrução de uma candidatura pode demorar vários meses, se não anos.
V. Um possível balanço
A combinação tempo e recursos, técnicos e financeiros, destaca-se nesta análise ao processo de elaboração e operacionalização da primeira geração de ELH. A escala e a gravidade do problema habitacional em Portugal colocam-no em destaque na execução do PRR, que prevê responder a pelo menos 26 000 famílias em situação de precariedade habitacional até 2026 - um número aquém da realidade, mas que representa um grande desafio, tanto para quem conduz a operação a nível nacional, o IHRU, como para quem a implementa localmente, os municípios. Por parte das equipas técnicas envolvidas, trata-se de uma corrida contra o tempo, na qual se procura, com os recursos disponíveis e os constrangimentos existentes, alcançar as condições ímpares de financiamento apresentadas e executar as propostas previstas nas ELH. Do lado de quem vive ou acompanha de perto situações de precariedade e vulnerabilidade habitacional e aguarda uma solução, o tempo das políticas e das instituições é desesperadamente longo. Dependendo do lugar que cada um(a) ocupa e da distância a que está do terreno, mas também da leitura que faz do problema, os fatores tempo e recursos podem ser percecionados, vivenciados e ultrapassados de forma diferente e, inclusive, diametralmente oposta.
Esta assimetria, resultante de habitus diferenciados e, simultaneamente, diferenciadores por parte dos vários agentes em presença (Bourdieu, 2008a), reflete-se na forma como se definem, interpretam e executam as políticas públicas de habitação, como se gere e olha para o território e para quem o habita, mas também como se medem e avaliam os resultados a curto, médio e longo prazos. Num momento em que se prevê um forte investimento público, esta primeira geração de ELH traz à tona várias questões e desafios para lá dos financeiros. Contrariando os preâmbulos da NGPH, do 1.º Direito e da Lei de Bases da Habitação, que preconizam uma abordagem integrada e multissetorial, apoiada numa visão ampla em torno do problema habitacional, persiste, entre técnicos e políticos, uma cultura e forma de operar contrárias ou resistentes a esta mudança de paradigma, que lhes atribui um poder arbitrário (Bourdieu, 2008c). Reticentes à participação, articulação e partilha de informação e conhecimento, tendem a manter os beneficiários e destinatários distantes do processo de elaboração das ELH - lidos como uma perda de tempo e o epicentro de conflitos - e a limitar a solução ao acesso a uma habitação, a que na prática nem todas e todos têm direito - como é o caso dos requerentes e beneficiários de proteção internacional, das pessoas vítimas de violência doméstica e, sobretudo, das comunidades ciganas, excluídas de algumas ELH analisadas, denunciando a persistência de um racismo estrutural e institucional ao nível das relações e práticas políticas e administrativas vigentes (Alves, 2021). Integrados nos quadros, quer dos municípios, quer do IHRU, caracteriza-os, no geral, um olhar estritamente quantitativo sobre o problema e solução habitacional: agregados em situação de carência, fogos em falta e dinheiro alocado a respostas habitacionais tipo. Embora contrária à narrativa do atual quadro legal, esta racionalidade ganha espaço e domínio por via da crescente “regularização” e “burocratização” características do próprio Estado (Bourdieu, 2008c), onde as especificidades de cada território e de cada caso perdem lugar.
As ausências e permanências destacadas ao longo do artigo apontam para a importância de incluir e aprofundar um olhar qualitativo sobre o processo de elaboração e operacionalização das ELH, que permita avaliar a qualidade dos diagnósticos, das soluções propostas, dos projetos e das intervenções, sob o risco de se reproduzirem erros do passado, como os cometidos no âmbito do Programa Especial de Realojamento, ou de se cometerem novos, em resultado de um alheamento progressivo da realidade e da transformação que nela se opera. É este olhar que, graças à figura das ELH e à sua cobertura nacional, permite reconhecer um país plural e diverso, onde o problema da habitação, quando lido a partir do contexto territorial e social em que se insere, extravasa em muito as áreas metropolitanas. É igualmente este olhar que subjaz algumas ELH analisadas, elaboradas, tanto por equipas internas, integradas nos quadros dos municípios, como por equipas externas contratadas, onde a experiência e conhecimento adquiridos se vinculam a um sentido de serviço público muito presente, partilhados e entrecruzados com outros. Em comum, têm o recurso a diferentes metodologias de levantamento, análise e cruzamento de dados, que permitem a elaboração de diagnósticos alargados e mais aprofundados. Para além de sinalizarem situações elegíveis ao 1.º Direito, identificam dinâmicas e tendências de mercado e de ocupação que tornam possível conciliar este programa com outros - o acesso à habitação com a qualificação do espaço público, por exemplo - aproximando-se do preconizado nas CMH. As soluções habitacionais que daí resultam, quando apresentadas e discutidas de forma fundamentada com os respetivos executivos municipais, tendem a ser incluídas nos documentos finais das ELH, embora a ordem de prioridades na fase de execução possa sofrer alterações em função das orientações políticas de cada um. Neste sentido, o “campo das políticas públicas”, com as suas divisões e conflitos, dá igualmente lugar à construção, individual e coletiva, de tomadas de posição e de pontos de vista distintos dos dominantes, valorizando um espaço social e relacional, naturalmente heterogéneo (Bourdieu, 2008a), que não se esgota em determinações regulamentares, processuais e financeiras universais.
Finda a aprovação das ELH, inicia a instrução e submissão de candidaturas, onde se destaca a necessidade de orientações e procedimentos técnicos claros por parte do IHRU, bem como o contorno das adversidades trazidas por um mercado de construção desregulado e um cenário de incerteza e vulnerabilidade decorrente de uma pandemia prolongada. Esta fase, ainda em curso, determinará a taxa de execução das ELH, mas também a qualidade dos processos e das intervenções, associada ao que Bourdieu (2008b) define como um espaço de possíveis, que, ao transcender a singularidade dos agentes, os situa uns em relação aos outros.