I. Introdução
O estabelecimento de áreas protegidas é considerado mundialmente como a principal e mais eficaz estratégia de conservação da biodiversidade (Cuesta et al., 2015). De acordo com as diretrizes da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), áreas protegidas são espaços geográficos claramente definidos que possuem prioridades e meios efetivos para alcançar a conservação de habitats, serviços ecossistêmicos e valores culturais (Borrini-Feyerabend et al., 2017). O Brasil estabelece os critérios e regras para a criação, implantação e gestão das áreas protegidas em território nacional através do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que determina que as áreas naturais relevantes para a conservação sejam denominadas de Unidades de Conservação (UC) e que contribuam para a conservação dos ecossistemas naturais, protegendo espécies ameaçadas, paisagens de beleza cênica notável e seus recursos hídricos (Lei Federal nº 9.985/2000; em República Federativa do Brasil, 2000).
Contudo, são vastos os conflitos existentes para criação, implementação e gestão de uma UC. Dentre eles estão a regularização fundiária, a falta de diálogo com as comunidades e a carência de incentivos das esferas de governo para a elaboração e implementação dos planos de manejo. Este é documento essencial que estabelece os usos e zoneamento de uma Unidade de Conservação sem o qual a equipe gestora da área não possui o direcionamento para atingir os objetivos de conservação da UC.
No litoral paranaense, a criação da primeira UC ocorreu em 1981, com o Parque Florestal do Rio da Onça, seguido pela Estação Ecológica (ESEC) da Ilha do Mel e ESEC de Guaraqueçaba, ambas em 1982 (Decreto nº 3.825/1981 Decreto nº 5.454/1982 e Decreto nº 8636/2012, in Estado do Paraná, 1981, 1982, 2012). A região em questão comporta parte do maior remanescente contínuo da Mata Atlântica do Brasil, é conhecida e muito estudada por possuir um significativo grau de biodiversidade, pertencendo à Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, Patrimônio Natural Mundial e ao Mosaico Lagamar (República Federativa do Brasil, 2006). Desde 2017, duas parcelas de seu território receberam o título de sítios Ramsar, compondo a lista de zonas húmidas de importância internacional (RAMSAR, 2023). A Área de Proteção Ambiental (APA) Federal de Guaraqueçaba (fig. 1) foi criada em 1985 pelo Decreto Federal nº 90.883 e protege uma pluralidade de paisagens compostas pela Serra do Mar, planícies costeiras, ilhas e manguezais (Decreto n° 90.883/1985 in República Federativa do Brasil, 1985). A UC é a maior da região, possuindo 282 446 hectares, abrangendo quatro municípios: Guaraqueçaba, Antonina, Paranaguá e Campina Grande do Sul. Seus principais objetivos são proteger a Mata Atlântica, sítios arqueológicos, complexo estuarino de Paranaguá e o patrimônio cultural (Paraná, 1995).
Em contraste com a conservação, o litoral paranaense é caracterizado por suas atividades econômicas relacionadas aos portos e indústrias que se estabeleceram em conjunto com o desenvolvimento urbano (Paula, 2015). Uma série de grandes projetos de desenvolvimento, como a expansão do porto existente, obras de dragagem e a construção de um novo porto da cidade de Pontal do Paraná podem influenciar as dinâmicas ecológicas das Unidades de Conservação (UCs) (Paula et al., 2018). O litoral do Paraná possui 83% de seu território coberto por Unidades de Conservação, contudo 55% delas possuem um baixo ou muito baixo grau de implementação (Paula et al., 2018).
Em 2015, comemoraram-se 30 anos desde a criação da APA de Guaraqueçaba, que possui dois instrumentos de gestão: o Plano de Gestão Ambiental elaborado em 1995, considerado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) como um plano de manejo sujeito a revisão, e a Zonificação da APA de Guaraqueçaba, publicada em 2001.
Considerando a relevância da região, as dinâmicas econômicas, a importância de identificação dos impactos para a gestão do território e a necessidae de atualização dos instrumentos de gestão, o Manejo Adaptativo de Risco em Sítios de Conservação, conhecido por MARISCO, é um método desenvolvido por Ibish e Hobson (2014) do Center for Econics and Ecosystem Management da Universidade de Eberswalde para o desenvolvimento sustentável na Alemanha, que visa, de forma colaborativa com os stakeholders da região, a determinação dos estresses e das ameaças que podem ocorrer no território. A partir desta perspectiva, propõe-se a aplicação das duas primeiras fases do método MARISCO como uma ferramenta de planejamento e implementação que poderá auxiliar os analistas ambientais e conselheiros da APA de Guaraqueçaba no processo de planejamento do plano de manejo.
II. Procedimentos metodológicos
1. Método MARISCO
O Manejo Adaptativo de Risco e Vulnerabilidade em Sítios de Conservação (MARISCO) é composto por quatro etapas e possui abordagem multidisciplinar para análise robusta da situação da área de estudo, assim como para o planejamento estratégico, que permita a gestão adaptativa, focando na ampliação da participação dos atores locais e dando suporte às tomadas de decisão voltadas à conservação (Ibisch & Hobson, 2014).
O método é inovador e sua aplicação no Brasil é uma novidade, uma vez que havia sido apenas demonstrado em uma oficina de capacitação na Bahia, na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), Estação Veracel, e contou com 19 participantes reunidos em apenas um momento (Oliveira et al., 2015).
O MARISCO possui quatro fases divididas em 29 etapas (fig. 2). A primeira fase, "preparação e conceitualização inicial" tem como objetivo identificar o escopo geográfico que engloba os objetos de conservação locais ou regionais. Essa fase se dá do passo 0 - Análise de Diagnósticos Ecossistêmicos (EDA) ao 4 - Visão Inicial de Gestão. Nesta fase o modelo conceitual começa a ser construído por meio da lista dos objetos de conservação, sendo esses contemplados pela biodiversidade, serviços ecossitêmicos e bem-estar humano.
Na segunda fase, o objetivo é refletir adequadamente sobre a situação dos sistemas complexos e das relações dinâmicas de causa-efeito entre as ameaçadas e a vulnerabilidade dos objetos no escopo predeterminado. É o momento de se determinar a criticidade dos fatores, ameaças e estresses aos fatores contribuintes identificados, a fim de facilitar a estratégia de formulação e priorização.
A terceira fase é uma revisão das abordagens existentes e uma oportunidade de desenvolver novas estratégias para melhorar a funcionalidade dos objetos de conservação selecionados na etapa anterior. Da mesma forma, uma "teia de resultados" é formada (Oliveira et al., 2015). Por fim, a quarta fase consiste na implementação do plano estratégico selecionado nas fases anteriores, na avaliação e revisão dos conceitos subjacentes.
2. Oficinas participativas
As oficinas participativas, dinâmicas essenciais para a realização do método MARISCO, são ferramentas que visam o intercâmbio de conhecimentos entre os participantes, promovendo o pensamento crítico sobre os impactos causados aos ecossistemas por meio de brainstormings entre os integrantes. Essa prática pode ser empregada no auxílio da produção de planos de manejo, como foram nos casos do Parque Natural Morro do Osso (Sestren-Bastos, 2006), Parque Nacional da Serra do Cipó, APA da Várzea do Rio Tietê (Da Silva et al., 2014) e Floresta Nacional do Purus (Paim, 2014).
Em função do prazo e agenda de alguns participantes, as oficinas foram desenvolvidas em diferentes momentos ao longo do ano de 2016 e contaram com públicos diversos (quadro I). O que poderia se apresentar como um obstáculo na acurácia da aplicação do método, se mostrou interessante, uma vez que o exercício de revisão e explicação dos argumentos elencados para os diferentes públicos, suscitou um olhar aprofundado sobre as escolhas dos elementos adicionados no modelo. A construção culminou na produção do modelo conceitual, que permite diversas análises e subsídios para os gestores do território, na listagem dos objetos de conservação, ameaças, estresses e no estabelecimento das relações de causa-efeito.
3. Etapas metodológicas
A partir do desenho geral do método, houve uma adaptação das fases iniciais que levariam à determinação das ameaças. Para tanto, a preparação e realização das oficinas participativas foram os primeiros passos metodológicos desde a escolha dos espaços, seleção dos participantes, estipulação de duração e datas, bem como das adaptações pertinentes para a aplicação nesse contexto. Para a elaboração do modelo conceitual foram utilizados sete tipos de cartões, marcadores, adesivos, material gráfico de acompanhamento e apresentações em PowerPoint (fig. 3). Também se fez uso de estratégias de gravação e documentação para que as revisões pudessem ser criteriosas a partir das linhas argumentativas apresentadas pelos presentes.
Iniciou-se pela preparação e a conceituação inicial, que delimitou a influência geográfica da gestão da área protegida de Guaraqueçaba. Na primeira oficina os participantes consideraram o mapa de cobertura vegetal e o uso da terra para traçar um polígono, mostrando as principais áreas que precisam de proteção efetiva à conservação. Além disso, os participantes estabeleceram os objetos de biodiversidade utilizando cartões verdes, serviços ecossistêmicos em verde claro e bem-estar humano em azul. Os participantes chegaram ao quarto passo da metodologia, debatendo sobre a visão inicial da gestão. Na sequência, os participantes listaram os "atributos chave" que permitem a análise das funcionalidades dos sistemas ecológicos e dos estresses.
Segundo o MARISCO (Ibisch & Hobson, 2014, p. 74), os estresses são os sintomas das manifestações das ameaças, já os fatores contribuintes são reações do sistema ou seus componentes a uma força antropogênica, às ameaças. Determinar estresses, ameaças e fatores contribuintes chaves são passos fundamentais, tanto que cada cartão inserido no modelo que se referisse a essas categorias, receberam critérios que qualificaram a criticidade e o conhecimento a respeito de cada um deles.
Na etapa seguinte, os participantes analisaram a distribuição espacial das ameaças, que funcionou como uma revisão das áreas previamente escolhidas. Mostraram-se os fatores contribuintes para as análises de estresse e ameaças. Os cartões classificaram a gravidade e a irreversibilidade das ameaças e estresses em três categorias: criticidade passada, mudança da tendência e criticidade futura. Esses resultados permitem uma avaliação do grau de impacto e a relação entre a situação atual de cada item selecionado com o que será esperado daqui a 20 anos.
As prioridades desses critérios são: avaliar o nível percebido de importância desses elementos para o estado de vulnerabilidade das metas de biodiversidade, indicar a capacidade de gestão e avaliar o nível de conhecimento que o grupo tem sobre as características, dinâmicas e relevância de cada elemento no modelo conceitual. O material de apoio estabeleceu os escores de critério (figs. 4a e 4b).
Após as oficinas, foram sistematizados os resultados por meio do software Microsoft Excel, a partir do qual se elaborou um modelo conceitual usando o Microsoft Visio® 2010. Outro produto foi uma matriz de classificação, que mostra as relações causa-efeito entre fatores contribuintes e ameaças.
III. Resultados e discussão
A análise da situação de conservação da APA de Guaraqueçaba se deu através da aplicação das fases I e II do método MARISCO por meio de três oficinas participativas que ocorreu em abril, maio e outubro de 2016, as quais permitiram o entendimento das relações dinâmicas e sistêmicas de causa e efeito entre elementos que contribuem para a vulnerabilidade dos objetos de conservação dentro da Unidade de Conservação. Além disso, o MARISCO propõe que, para entender essas relações dinâmicas é preciso, primeiro, entender as pressões externas aos limites legalmente definidos da APA, que estariam influenciando direta ou indiretamente a conservação dos ecossistemas que protege.
A área de escopo foi definida pelos participantes das oficinas participativas, tendo sido considerado: as bacias hidrográficas que drenam o Complexo Estuário de Paranaguá (CEP), o limite nordeste da APA, no qual está inserida uma parcela do município de Cananéia - SP e a planície costeira de Pontal do Paraná. Também foram consideradas as mudanças de forma e usos na ocupação da terra, obras de engenharia realizadas nessas áreas que afetam ativamente o sistema estuarino, a drenagem, as estradas que dão acesso ao território, como PR-405, antigo caminho denominado de “via do telégrafo” e estradas vicinais, planície costeira e a expansão portuária.
1. Objetos de Conservação e Atributos Ecológicos Chave
Como objetos de conservação define-se aqueles que necessitam de medidas de conservação para manter sua funcionalidade e reduzir as ameaças que os deixam mais vulneráveis a possíveis mudanças. (Ibisch & Hobson, 2014). A separação dos objetos de conservação em três categorias, biodiversidade, serviços ecossistêmicos e bem-estar humano, permitiu que os participantes tivessem uma melhor visualização dos elementos. Os objetos da biodiversidade presentes na região foram separados em quatro áreas com características singulares denominadas complexos para uma melhor visualização. Nesse estudo, foram identificados 26 objetos de conservação (quadro II).
No complexo “Serra”, as três tipologias de vegetação selecionadas são altamente representativas, cobrindo mais da metade da área da APA de Guaraqueçaba (Paraná, 1995). O grupo também selecionou a Palmeira Jussara (Euterpe edulis), espécie ameaçada de extinção, assim como as cavernas naturais, embora não haja estudos específicos, apenas a menção de sua existência pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação (CEVAV) (Portaria nº531/2021 in República Federativa do Brasil, 2021).
No grupo “Planície”, as vegetações selecionadas cobrem 18,26% da APA, constando como objetos da biodiversidade a caxeta (Tabebuia cassinoides), madeira primordial para a elaboração de instrumentos musicais como viola e rabeca, a Cataia (Pimenta pseudocaryophyllus), espécie utilizada na produção de bebidas tradicionais, e o Guanandi (Calophyllum brasiliense), que está diretamente relacionado com os hábitos de vida do papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis), animal endêmico da Mata Atlântica (Eisfeld, et al., 2018; Sipinski, et al., 2014). Mico-leão-de-cara-preta (Leontopithecus caissara), espécie priorizada pelos participantes, é o último primata do gênero Leontopithecus descrito pela ciência, cujo habitat restringe-se a aproximadamente 300km² e sofre intensa pressão antrópica (Nascimento et al., 2014).
O manguezal, listado no complexo marinho costeiro, cobre 6,40% da APA de Guaraqueçaba e é tido como um depósito sedimentar natural que previne a erosão costeira, assim como possui alto valor econômico e cultural devido a atividades em seu ambiente como a captura do caranguejo uçá (Ucides cordatus) (Gonçalves et al., 2022). Nesta área, é encontrada a Eudocimos ruber, espécie ameaçada de extinção e que já foi tida como extinta no Paraná, até serem vistas novamente em 2005 (Colasante et al., 2022).
O complexo marinho costeiro contempla o Complexo Estuarino de Paranaguá (CEP), área essencial para a conversação de diferentes grupos animais que o utilizam como local de alimentação e reprodução. O golfinho (Sotalia guianensis), espécie emblemática encontrada na região e classificada como quase ameaçada, tem como suas principais ameaças a colisão com embarcações e captura por redes de pesca (UICN, 2021a, 2021b; Santos et al., 2010).
O grupo paisagístico histórico-cultural inclui as comunidades tradicionais, a cultura Caiçara, os sambaquis e os sítios históricos. Foram considerados prédios de interesse público relacionados a eventos históricos, como a Igreja da Vila de Ararapira e o antigo prédio municipal de Guaraqueçaba.
Os objetos de conservação previamente listados foram relacionados aos serviços ecossistêmicos, os quais foram separados em quatro categorias - serviços de abastecimento, serviços de regulação, serviços culturais e serviços de suporte - seguindo as recomendações da Avaliação Ecossistêmica do Milênio (AEM) (quadro III). Os objetos do bem-estar humano, determinados de acordo com as necessidades das populações locais, as dinâmicas econômicas e sociais diferenciadas dentro da área de abrangência geográfica, obtiveram 17 elementos, divididos em quatro grupos (quadro IV).
Na sequência, os atributos ecológicos chaves foram determinados seguindo o critério de divisão por complexos utilizados para os objetos de biodiversidade. Os participantes determinaram 21 atributos ecológicos, físicos, biológicos e culturais considerando as chaves para garantir a funcionalidade dos objetos inseridos na área do escopo, bem como sua adaptação e resiliência a possíveis distúrbios.
2. Estresses
Considerando as etapas previamente realizadas, foram determinados 24 estresses que possivelmente modificariam a funcionalidade dos atributos chaves. Os estresses foram representados por cartões lilás e as ameaças por cartões vermelhos. Os estresses foram agrupados em categorias distintas para uma melhor compreensão. Os diferentes usos dos recursos biológicos na área influenciaram nos estresses relacionados à perda de biodiversidade, como: a redução da riqueza de fauna e flora, perda de fluxo genético, perda de cobertura vegetal e perda de conectividade. Outro estresse mencionado refere-se ao atropelamento de fauna, o qual se deve principalmente pela possibilidade da pavimentação da rodovia PR-405, o que poderá exercer pressão adicional sobre a redução da população de animais. A relação completa dos estresses pode ser observada no quadro IV.
De acordo com Rittenhouse (2017), a análise é geralmente acompanhada de processo de avaliação e priorização, a fim de garantir que as ameaças mais significativas sejam apontadas ao considerar as ações de gestão de conservação da área. Especificamente, a avaliação feita pelos participantes determinou que os estresses são relevantes e estão gerando mudanças negativas aos objetos de conservação, sendo elas: a alteração do comportamento e ciclo biológico dos animais, contaminação do solo e da água, alteração do regime de umidade e temperatura.
Considera-se também que esses estresses podem se tornar mais críticos nos próximos vinte anos, bem como as relacionadas às mudanças climáticas, como tempestades e deslizamentos de terra. A equipe considerou difícil a gerenciabilidade direta de grande parte dos estresses, porém, o nível de conhecimento sobre as características, relevância e dinâmica desses estresses foi considerado alto.
A análise da situação de conservação permitiu aos participantes identificar 28 ameaças onde algumas estão relacionadas às atividades de caça, tráfico de flora e fauna, corte seletivo de palmito e madeira e desmatamento para agricultura. Assim como os estresses, as ameaças foram agrupadas em grupos distintos para uma melhor visualização (quadro IV).
As ameaças relacionadas à modificação dos sistemas naturais, destacaram-se devido à interação entre a porção continental e a porção estuarina, uma vez que a ocupação e o uso do solo no continente afetam ativamente o estuário, por meio de canais de drenagem. Entre essas ameaças está a compactação do solo, devido à atividade pecuária (com destaque para a criação de búfalos), o que causa a alteração do regime hídrico do solo, aumentando o escoamento superficial.
3. Fatores contribuintes
A análise dos fatores contribuintes foi construída pela determinação e agrupamento das ameaças. Foram identificados 55 fatores contribuintes, sendo 13 selecionados como relevantes para a priorização de estratégias de conservação, nos quais três estão relacionados com as dinâmicas portuárias da região
Os portos de Paranaguá e Antonina estão inseridos no escopo geográfico delimitado nas oficinas. Juntos, movimentaram 3 599 435 toneladas de frutos em janeiro de 2021, sendo 1 027 598 de grãos (Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina [APPA], 2021). Com o alto número de empreendimentos em processo de licenciamento ambiental no litoral (Pigosso, 2022), a expansão portuária foi considerada como fator contribuinte relevante. A expansão implicaria em um aumento no fluxo de embarcações de maior profundidade, promovendo assim a necessidade de dragagem na baía de Paranaguá e as tensões físicas, biológicas e culturais relacionadas a isso (Belleghen, 2022). Da mesma forma, a expansão das atividades portuárias também prevê a construção de um novo complexo portuário em uma área coberta por vegetação nativa em Pontal do Paraná, o que leva a uma demanda por infraestrutura, como novas estradas de acesso para cobrir o fluxo de caminhões para esses locais.
O aumento da demanda portuária pode contribuir para a deterioração dos manguezais (Krug et al., 2007). Assim, esse aumento pode estar relacionado com a perda de vegetação e alterações nos canais de drenagem. Com o passar do tempo, o processo de dragagem, atividade comum em portos, intensificaria os processos de erosão costeira nas baías de Paranaguá e Guaratuba, na Ilha do Mel, e na extremidade norte do Arco Praial Pontal do Sul-Ponta de Matinhos, sendo extremamente prejudicial à biodiversidade (Leite, 2022; Paraná, 2019). Segundo os participantes, a dragagem, por sua vez, poderia causar alteração de habitat e redução dos recursos naturais economicamente explorados, afetando populações locais que dependem da pesca (Belleghen, 2022). Além disso, os portos contribuem para a poluição do ar, poluição sonora (causada pelos navios), poluição química (principalmente devido às atividades portuárias, uso de agrotóxicos e fertilizantes), poluição orgânica (fertilizantes que causam perda de qualidade da água e eutrofização) e poluição de resíduos sólidos (descarte irregular de resíduos), ameaças selecionadas pelos participantes.
Na área analisada, o município de Guaraqueçaba possui 65,95% de sua população na zona rural em comparação com a dinâmica dos demais municípios que concentram sua população na área urbana (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021), de modo que a população depende de atividades de subsistência ou de pequena produção agrícola como fonte de renda. A pouca diversidade econômica na área pode levar às comunidades a buscarem alternativas como caça, pesca e extrativismo vegetal (Andriguetto-Filho et al., 1998). Um dos fatores que contribuíram para as tensões selecionadas pelos participantes foram o uso de agrotóxicos e fertilizantes, fontes de poluição química que causam a perda da qualidade da água e a eutrofização.
Associado com a pecuária estão a compactação do solo e introdução de espécies exóticas como a Braquiária, espécie do gênero Poales considerada invasora na região, uma vez que sua expansão tem sido descontrolada devido ao abandono de pastagens (Paula, 2015). Fatores como posse de terra podem influenciar em uma possível especulação imobiliária. Da mesma forma, a expansão da urbanização nesse território levaria à ocupação de áreas de preservação permanente, como possivelmente o manguezal. Esses fatores são agravados pela baixa capacidade das instituições ambientais e municipais de coordenar e controlar essas dinâmicas de ocupação, aumentando a falta de coordenação interinstitucional.
Com a análise dos fatores contribuintes, conclui-se a construção do modelo conceitual, o qual se focou na compreensão das relações dinâmicas e complexas entre as ameaças e seus fatores contribuintes que contribuem para a vulnerabilidade dos objetos de conservação. Este modelo fornece a base para que nas próximas fases do método MARISCO possam ser formuladas estratégias de gestão que considerem as causas fundamentais dos problemas (Ibisch & Hobson, 2014, p. 91). O modelo conceitual completo poderá ser consultado em https://lageamb.ufpr.br/wp-content/uploads/2019/05/MARISCO_APA_GUARAQUECABA_REV_POR.pdf
IV. Considerações finais
A adaptação do método MARISCO, não só permitiu identificar os objetos de conservação, como possibilitou o estabelecimento das cadeias de causa e efeito, nas quais se determinou as complexas relações entre os fatores contribuintes. Tal pesquisa também permitiu a análise dos estresses e ameaças que estão provocando ou poderiam causar danos aos objetos de conservação e que consequentemente acarretam a falta de prestação de serviços ecossistêmicos como o suporte para o bem-estar das comunidades que vivem inseridas na APA.
Em relação às oficinas do MARISCO, a maneira como foram conduzidas com diferentes grupos de participantes que trabalham no litoral norte do Paraná levou a um processo iterativo de revisão e validação que permitiu a articulação e complementação do conhecimento e experiência desses atores, tanto para o modelo conceitual quanto para contribuições para esta pesquisa. Dessa forma, as oficinas do MARISCO se tornaram espaços de aprendizado. Além disso, vê-se como uma oportunidade a participação ativa e o acompanhamento dos gestores da Área de Proteção Ambiental nesse processo, os quais já manifestaram interesse em realizar oficinas para serem aplicadas junto às comunidades na construção do Plano de Manejo, que está em processo de atualização. Durante as oficinas, identificaram-se as lacunas de conhecimento referentes à biodiversidade local e sua capacidade de se adaptar às mudanças incertas e imprevisíveis geradas pelas ameaças de grande, média e pequena escala. Expressou-se preocupação referente aos fatores contribuintes, que indicam a importância percebida de cada elemento para a vulnerabilidade das metas de conservação apontaram a expansão do porto, fluxo de navios e urbanização como os principais fatores causadores de ameaças. Os resultados são apresentados através dos quadros de classificação, que foram ordenadas de acordo com a relevância estratégica de cada elemento do modelo conceitual.
A análise da situação de conservação permitiu a identificação de 24 estresses, 28 ameaças e 55 fatores contribuintes que influenciam a vulnerabilidade dos objetos de conservação da APA, e que, por sua vez, foram avaliados através dos critérios de relevância estratégica, conhecimento e gerenciabilidade proposta por MARISCO.
Ao construir um modelo conceitual, foi focada na compreensão das relações complexas e dinâmicas entre a biodiversidade, o bem-estar, as ameaças e os fatores que ajudam a alcançar as metas de conservação. Desse modo, os produtos obtidos durante esta pesquisa, como o modelo conceitual e as tabelas de classificação de estresses, ameaças e fatores contribuintes, poderão servir como base tanto para a continuidade da aplicação da metodologia MARISCO quanto para as oficinas com as comunidades. Por fim, considera-se que a continuidade na aplicação da metodologia MARISCO permitirá avançar discutindo a inclusão de questões relacionadas à adaptação às ameaças no planejamento da APA e não a deixar em fase de diagnóstico; já que, na terceira fase do MARISCO, são analisadas as estratégias existentes ou formuladas novas estratégias visando reduzir as ameaças obtidas na análise da situação e na prevenção ou adaptação
Contributos dos/as autores/as
Ana Maria Gonçaves Chaves: Conceptualização; Metodologia; Investigação; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização. Arianne Maria Basilio Pigosso: Conceptualização; Metodologia; Análise formal; Investigação; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição. Delia Maria Fiallos Gordon: Conceptualização; Metodologia; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original. Eduado Vedor de Paula: Conceptualização; Validação; Análise formal; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão.
Documentos legais
Estado do Paraná. (2012). Decreto nº 8636 de 23/01/2012. Adequação de categorias de manejo de unidades de conservação à Lei Federal n° 9.985/2000 - Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC [Decree nº8626 of 23/01/2012. Adjustment of management categories of conservation units to Federal Law No. 9.985/2000 - National System of Conservation Units of Brazil - SNUC].
Estado do Paraná. (1982). Decreto nº 5.454 de 21/09/1982. Cria a Estação Ecológica da Ilha do Mel [Decree nº5.545 of 21/09/1982. Establish the Ecological Station of Ilha do Mel, Paraná].
Estado do Paraná. (1981). Decreto nº 3.825 de 05/06/1981. Cria Parque Florestal do rio da onça, com área de 118,5052 ha do imóvel rio da onça, situado no município de Matinhos [Decree nº .825 of 05/06/1981. Create the Rio da Onça Forest Park, comprising an area of 118.5052 hectares of the Rio da Onça property, located in the municipality of Matinhos, Paraná].
República Federativa do Brasil. (2021). Portaria n° 561, de 15/12/2021. Institui a lista de espécies nativas ameaçadas de extinção, como incentivo ao uso em métodos de recomposição de vegetação nativa em áreas degradadas ou alteradas [Ordinance nº561 of 15/12/2021. Institutes the list of endangered native species, as an incentive for their use in methods of restoring native vegetation in degraded or altered areas].
República Federativa do Brasil. (2006) Portaria n°150, de 08/05/2006. Criar o mosaico de unidades de conservação abrangendo as seguintes unidades de conservação e suas zonas de amortecimento localizadas no litoral do estado do Paraná e São Paulo [Ordinance nº150 of 08/05/2006. Create a mosaic of conservation units encompassing the following conservation units and their buffer zones located on the coast of the states of Paraná and São Paulo].
República Federativa do Brasil. (2000). Lei Federal n° 9.985, de 18/07/2000. Institui a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação [Law nº 9.985 of 18/07/2000. Institute the creation of the National System of Conservation Units].
República Federativa do Brasil. (1985) Decreto n° 90.883, de 31/01/1985. Dispõe sobre a implantação da Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba, no Estado do Paraná, e dá outras providências [Decree nº90.883 of 31/01/19985. Provides for the implementation of the Guaraqueçaba Environmental Protection Area in the State of Paraná, and other provisions].