I. Introdução
Neste artigo são apresentados resultados obtidos em uma pesquisa de doutorado sobre as relações de gênero e as estratégias socio-espaciais de associações de trabalhadoras rurais assentadas em distintas regiões do Estado de São Paulo, no Brasil (Paula, 2020). Serão, portanto, expostos, argumentos que afirmam a relevância do papel feminino no desenvolvimento local da região do Pontal do Paranapanema, a partir das estratégias socio-espaciais empreendidas pelas mulheres da Organização das Mulheres Unidas (OMUS) do assentamento rural Gleba XV de Novembro, em Rosana.
O Pontal do Paranapanema compreende a área oeste do Estado de São Paulo, no limítrofe, com os Estados do Mato Grosso do Sul e Paraná (Almeida & Ramiro, 2016). Essa região tornou-se conhecida em fins dos anos 1980 e início dos anos 1990 em virtude da intensificação de confrontos entre latifundiários grileiros e trabalhadores sem-terra. A estrutura fundiária da região, altamente concentrada, baseou-se na grilagem de terras públicas, com a apropriação indevida de enormes porções de terra com documentação falsa, tornando-se um território de disputa entre grileiros e camponeses (Feliciano, 2009). Os sujeitos do território do Pontal são os fazendeiros e os trabalhadores rurais - arrendatários e volantes, meeiros e outros. Esses trabalhadores são oriundos de um processo de migração e imigração que cresceu a partir da década de 1940, quando a área começou a ser mais densamente ocupada (Souza, 1994).
O Assentamento Gleba XV de Novembro (fig. 1) foi o primeiro implantado em São Paulo. É também o maior assentamento, tanto em termos de extensão territorial, quanto em número de famílias. Seu surgimento permeia conflitos sociais por conquista pela terra, moradia e trabalho. É um projeto que afirma a importância e efetividade de políticas de assentamentos rurais (Ribeiro, 2015).
O Pontal é um território marcado pela injustiça social. Segundo Legroux (2022), a injustiça ao ser analisada pela geografia, é caracterizada pela intensa expressão espacial. A discussão sobre a justiça no âmbito geográfico surgiu na década de 1970, com autores como Harvey (1973) e Rawls (1971). De acordo com Pereira e Ramalhete (2017), os conflitos territoriais e as situações de injustiça espacial podem assumir formas diferentes, envolvem distintos protagonistas e as dinâmicas de suas ações, de modo que os atores-chave públicos e privados, devem efetivar ações que amenizem ou erradiquem as desigualdades. Isto perpassa o reconhecimento do problema, a identificação de possíveis causas e a organização de técnicas e estratégias que combatam as injustiças espaciais. Neste sentido, resgatam-se algumas reflexões de Fraser (2006). Para a autora, “a justiça hoje exige tanto redistribuição como reconhecimento”, redistribuição e reconhecimento devem-se sustentar, ao invés de se aniquilarem (Fraser, 2006, p. 1).
Para a autora supracitada, existem duas formas para se entender a injustiça: ela pode ser assimilada como injustiça material (econômica), ou como injustiça cultural (simbólica). Nesta última se insere a dominação cultural, o ocultamento e o desrespeito. As duas abordagens exigem “remédios” e/ou soluções diferentes. No primeiro caso, a solução encontra-se na reestruturação político-econômica (redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho e controles democráticos de investimento). Para superar a injustiça cultural deve haver uma mudança cultural ou simbólica, uma revalorização das identidades desrespeitadas, reconhecimento e valorização positiva da diversidade cultural (Simões & Fraser, 2006).
A OMUS nasceu a partir da busca por justiça material e cultural, foi criada em 1987 e oficializada no ano de 1990, sendo a primeira experiência de trabalho organizado em assentamentos do Pontal, um coletivo pioneiro de mulheres assentadas (Almeida & Ramiro, 2016). A associação foi formada a partir da indignação das mulheres que não eram incluídas nas reuniões do grupo liderado por homens, a “associação do trator”. Elas chegaram a participar de algumas reuniões deste grupo, mas não podiam votar e nem expressar suas opiniões. Assim, passaram a buscar melhorias para si e para o assentamento como um todo (Almeida & Ramiro, 2016). Após algumas reuniões nas quais discutiam seus problemas e possíveis soluções, um grupo de assentadas decidiu solicitar ao ITESP uma área do assentamento para trabalharem coletivamente, inicialmente, com a pecuária. A criação de bovinos não vingou, mas a associação permaneceu (Botelho, 2006).
A formação deste grupo de mulheres não surge apenas visando à criação de formas de produção, mas também como uma possibilidade de dialogar e discutir, trazendo à tona outras necessidades e busca por soluções. As mulheres lutaram por melhorias para todos, como saúde, educação e acesso à água. Estas mulheres imprimiram sua luta por meio da negação, resistência e reinterpretação de suas condições como trabalhadoras rurais e agentes de transformação. Ao criarem um espaço próprio, elas negam a submissão às opressões machistas, cristalizadas no território rural, gerando um espaço que se coloca como enfrentamento à lógica hegemônica masculina.
A princípio, essas mulheres se uniram sob o objetivo de obterem a sua própria fonte de renda e ajudar financeiramente suas famílias, mas isso tomou uma proporção maior ao se integrarem ao movimento de mulheres assentadas. Elas passaram a questionar as relações de gênero no espaço rural, assumiram representação nos Conselhos Municipais e em instâncias políticas do assentamento (Botelho, 2006).
Apesar de todas as dificuldades, as mulheres da OMUS conseguiram levar adiante a produção coletiva, se capacitaram em termos de produção e administração, ganharam visibilidade e puderam (re)construir sua identidade. As mulheres possuíam um alto nível de organização, conseguindo assim, dividir as tarefas e responsabilidades em todas as etapas de produção, desde a criação do gado, produção do leite, comercialização e administração dos recursos (Botelho, 2006).
Essas mulheres obtiveram visibilidade política dentro do assentamento, conseguiram conciliar os interesses pessoais e os coletivos, indo além do âmbito econômico, lutando por melhorias de toda a comunidade, recriando assim, a ação coletiva. A OMUS é um exemplo da efetiva participação feminina nas esferas públicas, demonstrando como o associativismo pode empoderar as mulheres rurais (Botelho, 2006).
Após anos de luta, elas conquistaram a construção de uma padaria sediada no assentamento, onde produzem itens que são vendidos no assentamento e comercializados com programas de compras institucionais (Botelho, 2006). Essas mulheres já possuíam algum vínculo com o trabalho no campo, geralmente atividades em fazendas, por meio de arrendamento, parceria ou ainda como trabalhadoras volantes; apesar de que, parte significativa das atividades são não-agrícolas, oriundas de um saber-fazer que elas já dominavam, antes mesmo de passarem a produzir coletivamente (Almeida & Ramiro, 2016).
Entre as principais atividades das associadas estão: a panificação - produção de pães, roscas, panetones -, doces, compotas, pães de queijo, salgados, e o cultivo de verduras e frutas, que são vendidos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além do aprimoramento produtivo e administrativo através de cursos de capacitação. Além de melhores condições de vida e de trabalho para si e suas famílias, as associadas também promoveram mudanças em níveis local e regional, levando as demandas básicas das famílias assentadas para outras instâncias, reverberando na construção de escolas, unidades de saúde, polo de acesso à informática, instalação dos Correios, acesso a projetos de construção e reforma de residências. Por isso, as estratégias socioespaciais individuais e coletivas adotadas por elas, além de promoverem o desenvolvimento de toda a comunidade, atuam na redução das desigualdades de gênero e na promoção de uma maior justiça espacial.
II. Procedimentos metodológicos da pesquisa
Os procedimentos metodológicos mais relevantes da pesquisa foram as entrevistas e as cartografias alternativas. Além de nove associadas da OMUS, também foram entrevistados um técnico agrícola da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) e uma assistente social, ambos trabalham no município de Rosana. As pesquisas de campo ocorreram predominantemente no ano de 2018 e a tese foi defendida em 2020.
A pesquisa pautou-se sobretudo na realização de procedimentos de cunho qualitativo. Foram realizadas entrevistas temáticas (Colognese & Melo, 1998; Thiollent, 1982) e de história oral (Hall, 1997; Meihy, 2002), com roteiros semiestruturados e previamente agendadas com as participantes da pesquisa. Ao todo, fizemos 24 entrevistas em profundidade, com as mulheres integrantes da OMUS e também com funcionários(as) de órgãos que prestam serviços aos assentamentos, técnicos agrícolas da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), assistente social, professora, etc. Tais entrevistas foram gravadas em áudio, com a permissão registrada de todas(os) as(os) envolvidas(os), e posteriormente, transcritas, analisadas e categorizadas (Gibbs, 2009).
Além das entrevistas, também adotamos outros procedimentos qualitativos (cartografias alternativas e grupos focais). A multiplicidade de procedimentos metodológicos nos permitiu abranger a complexidade das várias dimensões de vida destas mulheres e, portanto, compreender como as estratégias socioespaciais as têm direcionado a um propósito coletivo de crescimento pessoal, autonomia financeira, vivências de novas espacialidades e ganhos culturais, além do estabelecimento de relações de gênero mais igualitárias, e isso está presente desde as grandes ações até às mais sutis.
No que se refere às cartografias alternativas, temos a cartografia social, que provém das pessoas de uma comunidade, na busca por reivindicar suas lutas e delimitar suas conquistas; a cartografia afetiva, tão utilizada por psicólogos na tentativa de oferecer uma técnica para a exposição de traumas; a cartografia embasada nos mapas mentais, utilizados desde uma sistematização de estudos por temas até como uma forma de representação espacial dos lugares sobre os quais se projetam as práticas espaciais e valores das pessoas. Estes são exemplos de como os mapas podem subverter uma ordem hegemônica, pré-estabelecida, hierárquica e institucionalizada. O que se circunscreve, muitas vezes, nessas tentativas não é uma cartografia propriamente dita, mas uma linguagem cartográfica, de narrativas cartográficas, de metáforas espaciais (Seeman, 2012).
III. A fluidez como condição: da situação geográfica às relações de gênero
Para Santos (2002), o espaço geográfico consiste num sistema de ações e objetos, sendo que cada subespaço inclui uma fração desses sistemas, resultando na totalidade do mundo tal qual o conhecemos. O subespaço define-se pela tecnosfera (mundo dos objetos) e a psicosfera (mundo da ação). Assim, cada lugar possui uma existência física, corpórea, e uma existência relacional, sendo isto o que propicia a diferenciação dos lugares.
Em relação à situação geográfica, pode-se defini-la como:
(…) um conjunto de forças em ação presente, organizada segundo feixes de variáveis, que se juntam numa combinação única e inédita, num dado momento e num dado subespaço. Ela resulta da interação de variáveis, ao sabor de eventos nacionais ou globais, que escapam ao controle do lugar, surgem situações geográficas inéditas, que redefinem a vida de relações local. (Cataia & Ribeiro, 2015, p. 18)
Todos os elementos de um local, sejam os aspectos físicos (geológicos, geomorfológicos, hidrográficos, climatológicos), ou de cunho humano (social, cultural, econômico, político), aglomerados em formas materiais, jurídicas, discursivas e simbólicas se entrecruzam num variado feixe de relações que projetam condições específicas para os(as) habitantes de uma determinada localidade. Em outras palavras:
A situação é um resultado do impacto de um feixe de eventos sobre um lugar e contém existências materiais e organizacionais. Inovações técnicas e novas ações de empresas de força diversa, dos segmentos do Estado, de grupos e corporações, difundem-se num pedaço do planeta, modificando o dinamismo preexistente e criando uma nova organização das variáveis (...). É a ordem, sempre diversa, com que os objetos técnicos e as formas de organização chegam a cada lugar e nele criam um arranjo singular, que define as situações, permitindo entender as tendências e as singularidades do espaço geográfico. (Silveira, 1999, p. 25)
Cataia e Ribeiro (2015) explicam que a situação geográfica envolve um conjunto de forças e ações que podem assumir diferentes caracteres: concorrentes, competitivas, contraditórias e complementares; de maneira que as situações geográficas podem ser sintetizadas pelas seguintes combinações de variáveis: relações entre a vida econômica e social; presença de recursos naturais; densidade e estrutura etária da população; condições jurídicas; dimensões quantitativa e qualitativa da produtividade, do capital e do trabalho (densidade econômica); balanços migratórios; esquemas das vias de circulação e transportes; e rede urbana.
Nesse sentido, algumas características da situação geográfica incidem sobre as escolhas das estratégias socio-espaciais realizadas pelas associadas. O município de Rosana abrange uma extensão territorial de 744 011km², localizando-se a uma distância de 755km da capital São Paulo e possui cerca de 18 387 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020). Seu Índice de Desenvolvimento Humana Municipal (IDHM) é de 0,764 (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados [SEADE], 2020). O índice de analfabetismo do município é alto, os domicílios cuja renda per capita consiste em até ¼ do salário mínimo (cujo valor vigente é de 1045 reais) representam cerca de 12,72%, uma alta taxa se considerarmos que se trata de um município de pequeno porte. Esse conjunto de índices socioeconômicos justifica a maior inserção das assentadas da Gleba XV de Novembro em estratégias socio-espaciais de políticas públicas como o PAA, o PNAE e também o Bolsa Família.
Sant’Ana (2003) afirma que existe um conjunto complexo e multideterminado de estratégias desenvolvidas pelas famílias que também interferem no destino deste segmento social. As estratégias foram classificadas pelo autor como sendo: ampliação/manutenção da terra e do patrimônio; produção e comercialização; arranjos intrafamiliares de gestão da unidade familiar; e cooperação e outras formas de organização comunitária. Para o autor, o uso combinado destas estratégias permite à maioria das famílias a sua reprodução social, mantendo-as na atividade agropecuária.
A partir da pesquisa realizada na tese compreende-se que as estratégias de reprodução socio-espaciais são aberturas que permitem mudanças significativas nas relações de gênero no espaço rural. As estratégias assim como o espaço, e as relações de gênero, são fluídas, passam por constantes re(construções) e adequações, não se encontram finalizadas e engessadas:
As estratégias estão fundamentadas em um habitus, mas também envolvem projetos, e estes estão em permanente construção, em constante adaptação às condições e possibilidades do campo e ao próprio habitus e experiências dos sujeitos. As estratégias são processos, construções que nunca atingem uma forma definitiva, são fluídas e não estruturas rígidas, pré-concebidas. (Sant’ana, 2003, p. 43)
A fluidez também está presente nas relações de gênero. A discussão sobre tais relações não reconhece nenhuma justificativa biológica, psíquica e econômica que fundamente a desigualdade entre homens e mulheres (Beauvoir, 1970), mas rejeita o determinismo biológico e considera que muitas das funções atribuídas aos homens e às mulheres são socialmente apreendidas e utilizadas de modo a significar relações de poder e hierarquias (Scott, 2017). Por isso, consideramos que a oposição binária entre feminino e masculino não é fixa, nem permanente, por ser influenciada pela subjetividade, linguagem e performatividade do gênero que são fluidas, estão em devir e são, portanto, suscetíveis a alterações, graças às fissuras que tensionam esta estrutura normativa e dicotômica entre os sexos (Butler, 2017).
André (1990) remonta a história do diálogo entre geografia e gênero desde a geografia tradicional, quando este ramo do saber ainda se consolidava institucionalmente como ciência. Segundo a autora, somente, a partir dos anos 1980, no Reino Unido, o conceito de gênero passou a ser inserido nas investigações geográficas. Segundo ela:
alguns geógrafos (geógrafas, na quase totalidade dos casos) alertaram para a necessidade de incorporar na Geografia Humana a componente gênero, procurando evidenciar que a organização social e territorial engloba diferenças consideráveis entre homens e mulheres e que as relações entre ambos são um elemento estruturador importante da sociedade, não devendo ser entendidos apenas nas vertentes da privacidade, da intimidade ou da afectividade. (André, 1990, p. 334)
Compreende-se que as estratégias de reprodução socio-espaciais são fissuras, e seus efeitos refletem no âmbito cotidiano e familiar, ao constatarmos que os companheiros das participantes da pesquisa passaram a realizar atividades antes somente delegadas às suas esposas, tais como cozinhar, limpar a casa, cuidar dos filhos. Tal fato, além de propiciar a reconfiguração da divisão do trabalho entre membros da família, gera a possibilidade de espaços paradoxais no campo.
Esse conceito geográfico, elaborado por Rose (1993), complexifica as relações de poder, demonstrando que elas presumem contraditoriedade e complementaridade, de modo a romper com os binarismos e demonstra que, mesmo entre segmentos que estão na ala socialmente considerada mais fraca, não são passivos, pois são dotados de poder, e se há poder, há resistência. Essa dinâmica de transferência de poder se estabelece constantemente entre os outsiders (margem) e insiders (centro), ou seja, elas não são fixas, são plurilocalizadas, e seus movimentos propiciam transformações. Assim, as mulheres conseguem subverter a lógica estrutural das relações de gênero no espaço rural.
IV. As mulheres da OMUS como promotoras do desenvolvimento local
Dentre as estratégias socio-espaciais da OMUS identificadas na pesquisa, temos a participação no Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), e também observamos como um conjunto de políticas públicas as auxiliaram na dotação de maior infraestrutura e conforto para suas casas e lotes. Rover e Munarini (2010) explicam que o PNHR foi criado em 2003, tendo como objetivo reduzir o histórico déficit habitacional dos espaços rurais brasileiros. As famílias rurais quando têm algum recurso monetário extra, geralmente optam em investir na produção agropecuária, adiando os investimentos em seu bem-estar e infraestrutura domiciliar que, muitas vezes, está em condições precárias. Logo, esta política previa o acesso facilitado ao projeto da construção ou reforma de casas das famílias rurais mais vulneráveis, promovendo o desenvolvimento rural social integrado e sustentável, impactando diretamente na autoestima das famílias beneficiadas, fortalecendo o desejo de permanecerem no espaço rural.
A necessidade de melhorar as condições de moradia, a perspetiva de continuar vivendo no espaço rural e o objetivo de incentivar os filhos a permanecerem na agricultura são os principais pontos que levam as famílias a valorizarem a política de habitação rural (Rover & Munarini, 2010). A OMUS propiciou o acesso ao programa não apenas para as associadas, mas para as demais famílias assentadas. Durante os trabalhos de campo foi possível acompanhar o empenho da liderança em incluir o máximo de famílias no projeto para a reforma das casas. Em princípio, o projeto aprovado excluiu muitas famílias e, segunda ela, eram as que mais necessitavam, pois estavam com suas casas em situação de precariedade. Após muita insistência, o projeto foi aprovado com a inclusão de todos.
Uma das associadas, Lavanda (nome fictício de uma das entrevistadas) revelou reconhecer que essa foi mais uma conquista da OMUS para o assentamento como um todo e não apenas para as integrantes da associação:
A associação ajuda muito os assentados, só de ter reunião pra falar o que vai acontecer... Que nem, essas casinhas mesmo que vai vir, né? Pra construção e reforma, essas casinhas mesmo foi a associação que correu atrás, que tá arrumando. Só que as casinhas ainda não estão fazendo. Mas está em andamento. Está tendo reunião, a engenheira veio aqui, olhou as casas, para avaliar quem tinha direito. E isso foi através da associação porque a associação que tá por dentro dos assuntos, né? (Lavanda, associada à OMUS, 25/04/2018)
Um conjunto de políticas públicas, incluindo, sobretudo o PNHR, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o PAA, demonstram as melhorias de infraestrutura e investimentos nas casas e lotes, visíveis nas ilustrações das associadas. As mulheres representaram seus lotes por meio de dois desenhos, o primeiro, antes e o segundo, depois de participarem dos programas (fig. 2).
Nas cartografias elaboradas pela participante Gardênia, podemos notar alterações espaciais em seu lote, como a construção de um poço artesiano, a ampliação da residência, a construção de um barracão e de uma nova casa, onde reside a sua filha, além da inserção de cultivos alimentares como mandioca, banana e hortaliças.
Dona Margarida, a liderança do grupo, afirmou em entrevista que a sua vida e de outras assentadas mudou consideravelmente, após participarem das políticas públicas como o que permitiu investimentos e melhorias nas condições de vida e de trabalho:
A nossa vida com esses programas (PAA e PNAE) melhorou muito, porque a gente tinha o nosso dinheiro, mesmo que atrasasse, a gente tinha nosso dinheiro. As mulheres buscam mais sua independência, a fim de trabalhar sem estar dependendo de homem, então foi muito importante. A gente começou a comprar coisas para dentro de casa, comprar cama, que antes era muito ruim, melhorou tudo, principalmente depois do PAA. Eu melhorei a minha casa, temos mais conforto. Teve gente que comprou gado com o Pronaf, ou fez horta. (Margarida, associada à OMUS, 24/04/2018)
As ilustrações elaboradas por Margarida (fig. 3) revelam diversos investimentos no lote, tais como a construção de uma casa em alvenaria, a elaboração de um poço artesiano, o plantio de eucaliptos, o cultivo de horta e pomar e a aquisição de bovinos. É interessante destacar que ela fez questão de registrar as antenas para a televisão para internet, elementos que ela avalia como importantes para uma vida mais confortável em seu lote. Na primeira ilustração, ela desenhou uma carroça, que segundo ela, era o único veículo que possuíam, até que tivessem condições de comprar um automóvel.
Outro aspecto observado diz respeito à ampliação das capacidades femininas, nos âmbitos econômico, social e cultural. Costa (2011) e Bonumá (2015) realizaram um levantamento das características de empreendimentos de economia solidária no Brasil e verificaram que quanto menor o empreendimento, maior o número de mulheres engajadas no projeto. A participação delas é majoritária nos projetos com menos de dez integrantes, enquanto os homens têm participação predominante nos grupos com mais de 20 pessoas. Ou seja, a participação feminina é maior em empreendimentos informais e menores, e os homens são maioria em cooperativas e projetos formais.
Outra informação preciosa revelada pela pesquisa de Bonumá (2015) é a de que em empreendimentos de economia solidária nos espaços urbanos, há uma participação mais equilibrada entre homens e mulheres, já nos espaços rurais, a presença feminina é predominante. Isso coloca os projetos de economia solidária como estratégias socio-espaciais importantes para as famílias rurais e, sobretudo, para a emancipação da trabalhadora rural.
A Economia Solidária, assim concebida, propõe uma nova forma de organizar a produção, as relações de trabalho, as finanças, a comercialização, a distribuição e o consumo, se definindo como alternativa ao mercado capitalista, cuja lógica subordina os interesses dos trabalhadores, dos consumidores e dos cidadãos aos interesses do mercado e ao lucro de poucos. A Economia Solidária é considerada a atividade econômica e produtiva que visa a geração de trabalho e renda de forma associativa, cooperativa e autogestionária, buscando - mais do que o lucro - a sustentabilidade, a inclusão social, o desenvolvimento comunitário, o bem-estar e a dignidade humana, e a solidariedade. (Bonumá, 2015, pp. 39-40)
Os trabalhos inseridos nas estratégias de reprodução socioespaciais das mulheres são, em geral, complementações às tarefas domésticas e atividades para produção de autoconsumo; e portanto, conforme demonstra Varanda (2019) em pesquisa realizada com agricultoras da Zona da Mata, em Minas Gerais, Brasil, são secundarizadas. Mas a partir da organização das mulheres, essas atividades crescem, ganhando novos canais de comercialização.
O Bolsa Família é um programa que somado às iniciativas da família, ajuda a diminuir as vulnerabilidades, constituindo assim uma das estratégias socio espaciais. O programa foi criado em 2004, inserido no rol de políticas do Programa Fome Zero (PFZ) e consiste em uma política de transferência de renda para famílias cuja renda per capita mensal é inferior a R$ 77,00. Tem como principal objetivo a redução da vulnerabilidade de famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza. O cartão para recebimento do recurso é disponibilizado para a mulher, que deve seguir uma série de condicionalidades quanto à saúde, à alimentação e a educação dos filhos (Silva, 2014).
O Bolsa Família me ajudava, comprava as coisas para as crianças, ajudava bastante. O que necessitava eu comprava. Aquele tempo eu não trabalhava, não tinha renda nenhuma. Hoje eu trabalho na padaria, faço meus artesanatos. Mas naquele tempo eu não trabalhava com nada, então me ajudava bastante. (Prímula, associada à OMUS, 25/05/2018)
No que tange à comercialização, a realidade das famílias que vivem no campo brasileiro é ainda mais difícil em virtude da dificuldade de venda de seus produtos, o que as impele a realizarem negociações com atravessadores, negociando seus itens a preços irrisórios. A OMUS possui uma intensa participação em políticas públicas de comercialização, os chamados canais de compras institucionalizadas. Bezerra e Schneider (2012) afirmam que as políticas públicas de compras institucionais consistem em estímulos aos circuitos locais de produção e circuitos curtos de consumo, em especial o PAA e o PNAE. Estes programas possibilitam a articulação entre as práticas de consumo condizentes com as realidades locais e regionais, valorizando a cultura alimentar.
Além de promoverem a reconexão entre as famílias de agricultores e os consumidores, opondo-se ao modo hegemônico imposto pelo mercado agropecuário, que privilegia a intervenção do atravessador, tais políticas também incentivam a produção de alimentos orgânicos e agroecológicos (Bezerra & Schneider, 2012).
O PAA foi instituído pela Lei Federal nº 10.696 (República Federativa do Brasil, 2003), e prevê a comercialização de alimentos produzidos pela agricultura familiar, com isenção de licitação pública; articulando-os com as demandas locais de segurança alimentar, através da doação destes alimentos a hospitais, asilos, abrigos públicos, projetos socias locais e famílias em situação de vulnerabilidade (Mielitz Neto, 2013).
Já o PNAE também é um programa de apoio à comercialização de pequenos agricultores e tem como objetivo propiciar a alimentação saudável aos alunos de escolas públicas. Foi criado em 1955, conhecido como Campanha de Merenda Escolar. Desde então, o programa passou por várias alterações. Em 2009 (através da Lei nº 11.947, in República Federativa do Brasil, 2009), tornou-se obrigatório que, pelo menos, 30% dos recursos financeiros repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), sejam utilizados na aquisição de gêneros alimentícios produzidos por pequenos agricultores (Bezerra & Schneider, 2012).
Almeida e Ramiro (2016) afirmam que a produção de alimentos nos quintais, somados aos programas de compras institucionais (PAA e PNAE) e à representatividade política das agricultoras, têm gerado uma alteração da visão que a sociedade possui sobre o trabalho feminino no campo.
Essa valorização dos trabalhos das agricultoras, realizados individualmente ou em grupo, afirmam socialmente a capacidade produtiva e de geração de renda pelas mulheres. Assim, hoje as mulheres, após muita luta, conquistaram o reconhecimento e respeito pelo Estado e pela sociedade civil, quando são indicadas para cargos de liderança, tonando-se, deste modo, “cidadãs no universo de vida que participam”. (Almeida & Ramiro, 2016, p. 159)
O PAA é a única política em que todas as mulheres da OMUS estavam inseridas na ocasião da pesquisa de campo, mas algumas delas também participavam do PNAE (figs. 4a e 4b). As associadas da OMUS elencaram inúmeros benefícios advindos da participação no programa, como destacado na fala de Gardênia, que afirma como ponto mais positivo, poder colaborar nos estudos da filha:
Olha, para mim essas políticas de compras são muito boas. Não só pra mim, como eu acho que pra todos aqui. Porque é um meio de complementar o nosso salário, então isso resolveu muito a nossa vida, porque a gente pode fazer muitas coisas que a gente não podia. Até mesmo para os filhos, igual a minha filha estudou, fez faculdade e a gente ajudava no que podia. Coisa que se não tivesse esse recurso a gente não poderia fazer. (Gardênia, associada à AMA, 25/04/2018)
Do ponto de vista cultural, a própria união entre estas assentadas, o trabalho coletivo realizado num espaço de mulheres e para mulheres, a possibilidade de conversarem entre si e com pessoas externas ao assentamento, em eventos sociais, reuniões com órgãos prestadores de serviços e o reconhecimento social da comunidade do assentamento, dos moradores de Rosana e de municípios do entorno; têm propiciado a autonomia, o desenvolvimento pessoal e a autoestima das associadas. Como demonstra a fala a seguir:
Acho que nós mais melhoramos foi a independência, né? A gente adquire em saber falar, “Eu posso, eu vou”. O povo respeita, até os próprios homens, tem um homem aqui que tem uma associação, ele falou assim: “Ah! Eu não contava que essa associação da OMUS, ia seguir não, mas vocês estão firmes”, eu falei: “É, nos trancos e barrancos a gente vai seguindo”. A gente ganhou assim, um respeito, antes não havia isso. (Violeta, associada à OMUS, 26/04/2018)
Os resultados da pesquisa permitem afirmar que as mulheres da OMUS, apesar de enfrentarem muitas adversidades, como problemas de escoamento da produção, em virtude da distância do assentamento dos centros de comercialização; do preconceito e do machismo, têm conseguido progressivamente, além da autonomia financeira, a conquista do reconhecimento de seu trabalho, demonstrando que não são meras coadjuvantes ou ajudantes nas dinâmicas do espaço rural, mas verdadeiras protagonistas de suas vidas e condutoras do desenvolvimento local.
V. Considerações finais
A pesquisa realizada possibilitou um conhecimento mais profundo do universo das trabalhadoras rurais assentadas. Longe de se resignarem às condições de desvalorização, que infelizmente ainda são bastante presentes no espaço rural brasileiro, permeado pelo machismo e demais formas de opressões e violências, as integrantes da OMUS travam, há décadas, lutas que reverberam benefícios não apenas para si mesmas e suas famílias, mas para todo o assentamento Gleba XV de Novembro, promovendo maior justiça espacial, igualdade de gênero e desenvolvimento local.
As diversas estratégias socio espaciais, envolvendo a panificação, artesanatos, cursos de capacitação e o uso de diferentes políticas públicas transformaram a realidade dessas mulheres em variadas dimensões: espacial, social, econômica e cultural. Ao se empenharem na realização de seus projetos, elas vivenciam novas espacialidades, interagem com pessoas de perfis diversos, contribuindo para uma visão de mundo mais ampliada; constroem novos conhecimentos que agregam valores aos produtos e serviços oferecidos pela associação à sociedade.
Isso reforça a importância do estímulo à criação de grupos de trabalho entre a população assentada, sobretudo envolvendo mulheres, que por longo tempo têm sido silenciadas, oprimidas e relegadas a uma condição secundária, mas que diante de oportunidades como as que foram apresentadas neste artigo, conseguem ressignificar espaços, relações e trabalho.
Documentos legais
República Federativa do Brasil. (2003). Lei nº 10.696, de 2 de fevereiro de 2003 - Lei de Criação do PAA [Law no. 10,696, of February 2, 2003 - Law for the Creation of the PAA]. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.696.htm
República Federativa do Brasil. (2009). Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009 - Lei de Criação do PNAE [Law no. 11,947, of June 16, 2009 - PNAE Creation Law]. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11947.htm