I. Introdução
As dunas continentais do Brasil ocorrem em diferentes contextos climáticos, geológicos, geomorfológicos e pedológicos. Abrangem áreas que vão do semiárido nordestino, passando pelas terras baixas da bacia Amazônica, planícies da bacia sedimentar do Paraná, até à região do leque aluvial do Rio Taquari no Pantanal matogrossense. Os depósitos eólicos representam feições herdadas de climas distintos que evidenciam mudanças ocorridas nos locais, desde o Pleistoceno até o período recente (Lira, 2014; Mescolotti et al., 2021). Em alguns casos, a acumulação de areais eólicos iniciou-se mediante padrões pretéritos de circulação, ainda no Pleistoceno, e segue, em menor escala, até à contemporaneidade dada a existência de áreas fonte, próximas, e ventos fortes, ainda que sazonais.
São escassos os trabalhos que analisam os depósitos eólicos continentais do Brasil, de forma abrangente e integrada. Normalmente, as pesquisas restringem-se à escala local, abordando aspectos sobre a morfologia e a gênese das dunas e paleodunas. Por outro lado, estudos que discutem a ocorrência de dunas continentais na América do Sul, incluindo o Brasil, usam uma escala generalista, tratando apenas alguns depósitos eólicos mais conhecidos (Clapperton, 1993; Giannini et al., 2005; Munyikwa, 2005; Tripaldi & Zárate, 2016).
Os dados a respeito das idades de formação e estabilização das dunas, assim como outras informações, são renovados e atualizados a cada novo ciclo de pesquisa. Por exemplo, no início do século XXI a idade mais antiga obtida para uma duna continental no país era de 32,6±3,1ka, nas proximidades do Rio Negro, no Amazonas (Carneiro Filho et al., 2002). Nos últimos dez anos foram encontrados possíveis depósitos eólicos mais antigos no semiárido brasileiro, com idade de 253,8±19ka (Mescolotti et al., 2023). A expansão de trabalhos de geologia, geomorfologia, geografia física e sedimentologia, com enfoque em diferentes proxies, é de extrema importância para o avanço dos estudos em reconstrução paleoambiental em todo o planeta, e em particular para o Brasil continental, onde os dados sobre a variabilidade climática de longo prazo são poucos e pontuais.
Assim, a presente reflecção tem por objetivo apresentar uma síntese abrangente sobre as pesquisas mais recentes, ajudando a atualizar e a preencher as lacunas existentes sobre a temática, no contexto continental brasileiro. Ao longo do texto serão abordados aspectos físicos (clima, relevo, cobertura pedogenética e geologia) das áreas, dados sedimentológicos, palinológicos e geocronologia absoluta dos sedimentos por meio de datações por Termoluminescência (TL) e Luminescência Opticamente Estimulada (LOE). No final, apresenta-se uma discussão a respeito da evolução paleoambiental e paleoclimática de cada região, resgatando os fatores ambientais envolvidos na gênese dos depósitos.
II. Dunas continentais do Brasil
Os maiores campos de dunas continentais do planeta estão localizados nas antigas áreas de deserto, onde as dunas cobrem cerca de 20% até 45% do setor classificado como árido, e são elas: Sahara, África do Sul, Ásia central, Arábia e Austrália. Na América do Norte e na América do Sul não ocorrem grandes mares de dunas e os depósitos eólicos recobrem menos de 1% da área designada como árida (Lancaster, 2009).
De acordo com Cardinale et al. (2014), as dunas eólicas são depósitos, com formato de cume ou colina, gerados pela deposição de grãos do tamanho de areia, oriundos de sedimentos inconsolados pelo vento.
Os depósitos eólicos podem ser classificados de acordo com as suas dimensões, morfologia e dinâmica de formação. Na classificação que considera as dimensões, o relevo de dunas está divido em três categorias. Para Lancaster (2009), a primeira classe inclui os ripples, que são pequenas ondulações inferiores ou com até um metro de espaçamento entre as cristas. Em seguida, estão as dunas propriamente ditas, que são subdivididas em individuais, compostas e complexas, e podem atingir até algumas centenas de metros de espaçamento entre as cristas. Por último, ocorrem as megadunas, dunas com dimensões enormes, que podem superar os 500m de espaçamento entre cristas e também são subdivididas em individuais, compostas e complexas.
As dunas interiores estão divididas em dunas fixas e móveis. Sobre as dunas fixas predominam a cobertura vegetal, muitas vezes estabilizada, que funciona como um obstáculo para a remobilização dos sedimentos. Em contrapartida, os depósitos eólicos móveis não costumam apresentar vegetação e, geralmente, possuem formação mais recente. A presença da vegetação nos depósitos dunares frequentemente está associada à ocorrência de um clima mais úmido (Suguio, 1998,2003).
Em alguns locais estudados, além das formas clássicas de dunas e paleodunas, verificou-se também a existência de mantos ou lençóis de areia que consistem numa cobertura de sedimentos inconsolidados com baixo grau de declividade (Suguio, 2003). Dependendo do contexto pedológico e paleoambiental da área podem ocorrer tanto no setor que precede quanto no que sucede à faixa de dunas, e há a possibilidade de sua origem ser autóctone ou alóctone.
Embora não haja consenso sobre o tema, alguns lençóis de areia podem estar relacionados com a dissipação de antigos campos de dunas, com perda parcial ou total das estruturas deposicionais originais, e a acumulação de sedimentos finos na parte superior dos depósitos (Paisani, 2002).
No total, foram descritos nove lugares de ocorrência de dunas interiores em quatro bacias hidrográficas, sob contextos ambientais distintos e com morfologias diversas, apesar da predominância de dunas parabólicas (fig. 1). No que diz respeito às orientações de vento existentes nos períodos de formação dos depósitos, prevaleceram os alísios de sudeste, na região Nordeste, e os alísios de nordeste, na região Norte (quadro I).
III. Metodologia
Para atender ao objetivo, realizou-se um extenso trabalho de pesquisa. Primeiro, foram identificadas as regiões do país onde incidem estudos sobre dunas continentais. Depois, foi feita uma procura por trabalhos acadêmicos (artigos nacionais e internacionais, teses e dissertações), para cada região em separado, aplicando critérios e preferências. A margem temporal estabelecida abrange o transcurso dos últimos 30 anos, sendo pontuais as referências mais antigas. Da mesma forma, procuraram-se estudos que apresentam idades dos depósitos eólicos, sobretudo pelo método da LOE, além de uma discussão sobre a possível origem das feições. Por fim, foram retratadas quatro regiões brasileiras compondo um total de nove locais com depósitos eólicos, variando entre dunas ativas e paleodunas (quadro II).
IV. Resultados
1. Bacia Amazônica
Na região Norte do Brasil as dunas continentais foram identificadas próximo a dois rios que fazem parte da bacia Amazônica, o rio Branco e o rio Negro. Os depósitos nas planícies do rio Negro e dos seus tributários foram estudados por Carneiro Filho et al. (2002). De acordo com os autores, os dados obtidos apontam para oscilações nas condições climáticas na escala local e regional durante parte do Pleistoceno tardio e do Holoceno. As feições, em sua maioria, correspondem a dunas longitudinais compostas, desde aproximadamente algumas centenas de metros até 1km de comprimento, e altura variando entre 10 e 35 metros, cobrindo uma área de 300km² (1ºS-3ºN, 61º-63ºW). A direção predominante do vento nesta região é de ENE. Os sistemas atmosféricos atuantes e que influenciam na direção dos ventos são a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) e o anticiclone subtropical do Atlântico Norte. Quando à ZCIT, mais ao sul da região entre os meses de dezembro e fevereiro, os alísios de nordeste são predominantes. Já quando à oscilação da ZCIT, para o norte entre julho e agosto, prevalecem ventos mais fracos do quadrante leste (Carneiro Filho et al., 2002).
A área de estudo engloba dois tipos climáticos: Af e Am. A porção que abrange o estado do Amazonas e a parte sul do estado de Roraima, estudada por Carneiro Filho et al. (2002), é classificada como clima equatorial úmido (Af) e precipitação média superior a 2000mm anuais. Já a porção norte do estado de Roraima, analisada por Latrubesse e Nelson (2001), está classificada como clima de monção (Am), onde a precipitação do mês mais seco é inferior a 60mm (Alvares et al., 2014; Mcknight & Hess, 2000).
As dunas da região estão cobertas por uma vegetação denominada como campinarana (shrublands), na qual predominam arbustos com gramíneas e um estrato herbáceo. A vegetação de campinarana é classificada como uma paisagem de exceção no contexto amazônico, dominado por formações florestais. É importante destacar que este tipo de cobertura vegetal está associado às condições climáticas mais úmidas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2012; Mendonça, 2011). No trabalho de Carneiro Filho et al. (2002) foram coletadas quatorze amostras de sedimentos para datação por termoluminescência (TL) em dois pontos de amostragem. Seis amostras provêm do primeiro ponto (00º35’N, 63º14’W) e mais seis são do segundo (00º23’S, 64º33’W). (quadro III).
Ponto de coleta | Profundidade (cm) | 50 | 100 | 150 | 200 | 250 | 300 |
01 | idade (ka) | 7,8 ± 0,9 | 8,7 ± 0,8 | 9,5 ± 1,6 | 10,4 ± 1,2 | 12,7 ± 1,8 | 15 ± 3,2 |
02 | 12,6 ± 1,6 | 12,8 ± 1,2 | 16,4 ± 1,7 | 17,2 ± 1,8 | 22 ± 1,9 | 22,8 ± 2,1 |
Outras duas amostras coletadas nos pontos 00º26N, 63º20’W e 00º24N, 63º23’W, a uma profundidade de dois metros, resultaram em idades de 8,8±1,1ka e 32,6±3,1ka, respectivamente. As idades abrangem desde o Pleniglacial médio até o Holoceno médio. Períodos longos sem atividade eólica expressiva apresentaram temporalidades distintas entre os pontos, variando de 7,8±0.9ka a 32,6±3,1ka, o que sugere uma considerável variabilidade local das condições de acumulação entre as áreas.
A inatividade da fase mais recente pode estar relacionada com o aumento da umidade na região a partir do Holoceno médio. Ocorreram também alguns intervalos de atividade mais intensa, em especial durante as fases: do Pleniglacial tardio, abarcando o Último Máximo Glacial (UMG) de 22,8±2,1ka a 15±3,2ka; ao longo da transição Pleistoceno/Holoceno correspondente ao Younger Dryas, de 12,8±1,2 até 10,4±1,2ka; e no Holoceno inferior, de 10,4±1,2 a 8,7±0,8ka (Carneiro et al., 2002).
A pesquisa de Latrubesse e Nelson (2001) analisou dunas reliquiais localizadas em afluentes do rio Branco, próximas aos rios Cauamé e Tacutu, no estado de Roraima, incluindo uma pequena parte da República da Guiana (2°-4ºN, 60°30’-61ºW). A área mais ao norte daquela estudada por Carneiro et al. (2002), apresenta clima Am i, tropical monçônico, com temperatura média em torno de 25ºC e precipitação média anual acima dos 1500mm (Alvares et al., 2014). A direção predominante do vento é de ENE, nos meses mais secos, dezembro a fevereiro, e corresponde à orientação das dunas observada em campo (50ºN-60ºE).
Apesar da dificuldade de identificar a morfologia das dunas devido à elevada erosão, Latrubesse e Nelson (2001) concluíram tratar-se de dunas parabólicas e longitudinais, mais a cobertura de lençol de areia. Mesmo a pesquisa não abordando a cronologia dos depósitos, acredita-se, com base nas análises texturais e mineralógicas dos sedimentos, além da comparação com outras dunas da região, que a formação das feições remonta ao final do Pleistoceno e parte do Holoceno.
Trabalhando numa área próxima à estudada por Latrubesse e Nelson (2001), na margem oriental das savanas do Rio Branco-Rupunini, fronteira entre o estado de Roraima, Brasil, e a região de Lethem, na República da Guiana (3º12’N, 59º53’W), Teeuw e Rhodes (2004) propuseram uma primeira cronologia, baseada em Luminescência Opticamente Estimulada (LOE), para as dunas do setor norte da Amazônia. Os autores estudaram um campo de paleodunas lineares, no qual as formas atingiam até 500m de extensão por 200m de largura, com direção NE a ENE, elevando-se por cerca de 10m acima das áreas alagadas adjacentes. Os topos das dunas apresentaram cobertura herbácea por gramíneas, com savanas arbóreas e arbustivas ao sopé das encostas. Os ventos predominantes na área, atualmente, são de NE a ENE, atingindo velocidades máximas na estação seca de setembro a março.
Teeuw e Rhodes (2004) fizeram coletas em dois pontos de amostragem sobre uma crista de duna, a profundidades a partir de 30cm da superfície. As idades obtidas por LOE apontam que o início da atividade eólica na região se deu entre 17ka e 15ka, portanto imediatamente após o UMG. Observou-se que os eixos das paleodunas apresentam direção concordante com os ventos atuais, de NE a ENE, o que indica uma manutenção dos padrões de circulação atmosférica desde o Pleistoceno final. Os autores identificaram ainda que a deposição continuou até os dias atuais, com taxas de acresção gradual em torno de 0,13m/kyr-1. No entanto, não conseguiram determinar se essa taxa constante de sedimentação resulta de controles climáticos regionais ou dos padrões geomorfológicos e bioclimáticos locais (quadro IV).
Ponto 01 | Profundidade (cm) | 30 | 60 | 90 | 120 | 150 | 180 |
idade (ka) | 1,32 ± 0,14 | 3,96 ± 0,38 | 6,13 ± 0,60 | 8,1 ± 0,85 | 11,4 ± 1,2 | 15,1 ± 1,9 | |
Ponto 02 | Profundidade (cm) | 30 | 40 | - | - | - | - |
idade (ka) | 1,34 ± 0,23 | 2,33 ± 0,25 | - | - | - | - |
Estudando o maior enclave de vegetação savânica da bacia Amazônica, Zular et al. (2019) propuseram uma interpretação paleoclimática para a evolução dos substratos arenosos sobre os quais se desenvolvem essas formações vegetais abertas. Os autores estudaram uma seção com 8,7m de profundidade de sedimentos fluviais e eólicos nas proximidades do Rio Branco, estabelecendo cronologias deposicionais e de estabilização dos materiais por meio das técnicas da LOE e do C¹⁴ (fig. 2). Com vista a analisar especificamente as fases de atividade eólica e a estabilização das dunas, foi utilizada uma abordagem multi-proxy baseada em ensaios granulométricos, susceptibilidade magnética e reflectância dos sedimentos. Os autores identificaram três unidades deposicionais por meio da LOE e do C¹⁴. A unidade basal corresponde a um depósito fluvial siltoso com idade de formação entre 53 e 28ka. Sobre essa unidade jaz discordantemente um depósito com cinco metros de espessura, formado por areias eólicas finas com idades que se estendem desde o UMG (23 a 19ka) ao evento HS1 (18,1 a 14,7ka). De acordo com os autores, esta fase seca corresponderia a um momento em que a posição média da ZCIT esteve ao sul do Equador, deixando o norte da América do Sul sob o domínio de condições anticiclônicas com ventos fortes de NE. A unidade de topo, também de origem eólica, com dois metros de espessura, é posterior ao evento HS1 (de 13,6 a 1,1ka), e foi depositada sob condições mais úmidas e com redução das áreas fonte de areia ao longo do leito do Rio Branco, devido à expansão da cobertura vegetal. A ação da pedogênese sobre esse depósito também corrobora a vigência de condições mais úmidas, estando os episódios de acumulação de areia restritos a momentos curtos (milenares) de seca e retomada da velocidade dos ventos.
Por fim, a alta resolução temporal dos dados obtidos por Zular et al. (2019), permitiu-lhes definir a influência de variações milenares na umidade de aporte de areia para as dunas, e sua resposta sobre a cobertura vegetal da região norte da Amazônia. Em termos biogeográficos, as fases secas sugerem não apenas uma expansão das coberturas arenosas, eólicas e fluviais de sistemas distributários, mas também a expansão das formações vegetais abertas dentro de uma matriz dominada pela floresta tropical densa.
2. Dunas do médio e submédio São Francisco
As primeiras referências aos depósitos eólicos do médio São Francisco na literatura científica datam da década de 1920, com os trabalhos de Moraes Rêgo (1926) e Williams (1925). Ao longo do séc. XX, as pesquisas foram aprofundadas e entre elas destacam-se as de Ab’Sáber (2006), Barreto (1993 e 1996), Costa (1984), Goudie (1983), Mescolotti et al. (2021 e 2023) e Tricart (1974). Já no setor do submédio evidenciam-se as pesquisas de Cabral (2014), Ferreira (2010), Ferreira et al. (2013), Lira (2014) e Lyra (2017).
As pesquisas de Barreto (1996) e Mescolotti et al. (2021,2023) compreendem à mesma área de estudo, abrangendo os municípios de Barra, Xique-Xique e Pilão Arcado, situadas no noroeste do estado da Bahia. Trata-se de uma planície estruturada em coberturas superficiais cenozoicas, constituídas por depósitos aluvionares e eólicos. Morfologicamente, a área de acumulação de depósitos eólicos encontra-se delimitada por relevos mais elevados - a leste está o Planalto da Diamantina e a oeste a Serra do Estreito (Mescolotti et al., 2021; Souza et al., 2003).
As feições eólicas estão depositadas sob a depressão do médio São Francisco as cotas altimétricas em torno dos 400m. A área é caracterizada pela cobertura de um extenso lençol de areia, mais contínuo sobre a margem oeste da planície fluvial do Rio São Francisco. Além das dunas, divididas em megadunas parabólicas simples, compostas com até 30m de altura, e pequenas dunas parabólicas, compostas com até 20m de altura, um trecho com dunas menores apresenta sinais recentes de reativação, por vezes recobrindo as megadunas. As dunas de maior dimensão estão normalmente estabilizadas pela vegetação de caatinga. A direção predominante dos depósitos dunares acompanha o sentido predominante dos ventos atuais da região, de SE e E, este último com maior intensidade durante a estação seca (Barreto, 1996; Mescolotti et al., 2021). (fig. 3b).
O clima predominante neste setor do noroeste da Bahia é o Bshw i, caracterizado por baixos índices pluviométricos em torno de 600mm/ano e temperaturas anuais elevadas. Quanto aos sistemas atmosféricos que atuam na área de estudo, no presente, ressalta-se a ação de dois sistemas principais, a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) e os Vórtices Convectivos de Altos Níveis (VCAN), ambos relacionados à ocorrência de precipitações, sobretudo mais ao sul da área (Alvares et al., 2014; Mescolotti et al., 2021). Acerca da vegetação, predomina na área a caatinga hiperxerófila (caatinga arbustiva) e hipoxerófila (caatinga arbórea), com cactos, formações espinhosas e bromélias (Barreto, 1996; de Oliveira et al., 1999).
Os sedimentos analisados nos trabalhos de Mescolotti et al. (2021) e Barreto (1996) foram classificados na sua maioria como moderadamente a bem selecionados, sendo compostos principalmente por grãos de quartzo na fração de areia fina e média. Barreto observou que o aumento no grau de seleção dos grãos na área ocorre de leste para oeste. Assim, os grãos que estão mais distantes do rio São Francisco, e mais próximos à Serra do Estreito, tendem a ser mais bem selecionados. No geral, a pedogênese apresenta-se como incipiente nos depósitos, e algumas camadas possuem bioturbação por raízes.
Na pesquisa de Barreto (1996), a datação dos depósitos eólicos foi realizada pelo método da TL, enquanto nos trabalhos de Mescolotti et al. (2021, 2023), os sedimentos foram datados por meio da LOE. Na pesquisa de Barreto foram datadas 43 amostras de dunas e lençóis de areia, resultando em idades que oscilaram entre 28ka e 900 anos. Já a profundidade das coletas variou de 30cm a 3,9m em relação à superfície do solo. As idades abrangem desde o Pleistoceno superior até o Holoceno superior e estão bem distribuídas no eixo temporal. Verificou-se a ocorrência de apenas um hiato deposicional entre 27ka e 14,4ka.
No trabalho de Mescolotti et al. (2021), foram realizadas 10 datações de depósitos eólicos, sendo obtidas idades entre 45,1±5,2 até 5,2±1,4ka, a partir de amostras coletadas em profundidades que oscilaram de 30cm até 3,1m. Os autores perceberam que os períodos de intensa deposição eólica na área ocorreram em momentos com predominância de clima árido (Pleistoceno superior, Holoceno inferior e Holoceno médio), imediatamente após uma fase de agradação fluvial, quando aumentou a oferta de sedimento nas margens do Rio São Francisco. Apesar da longa abrangência temporal das idades, os autores também relataram a ocorrência de um intervalo de tempo com menor deposição eólica, entre 25,5±4,4ka e 14,3±2,6ka. A estabilização das dunas parece estar associada a um clima mais úmido, com maior precipitação, e expansão da cobertura vegetal. Esse período pode ainda estar relacionado aos eventos HS1 e HS2.
Segundo Barreto (1996) os dados de turfeira do Saquinho, médio São Francisco, podem ser correlacionados às evidências paleoclimáticas da região sudeste, entre o Pleistoceno superior e o Holoceno médio. Após esta fase, os dados apontam para um aumento da aridez no submédio São Francisco, contribuindo para a expansão da caatinga e do cerrado, principalmente nos últimos 4ka anos. A autora ainda acredita que essas mudanças podem estar relacionadas à maior influência do fenômeno El Niño na região, a partir do Holoceno médio.
Num trabalho recente, Mescolotti et al. (2023) analisaram as fases de estabilidade e ativação do campo de dunas localizado em Xique-Xique. A datação dos sedimentos pelo método de LOE permitiu encontrar dois depósitos com idades que remontam ao Pleistoceno Médio, 253,8±19ka e 170,4±23,1ka. Esses depósitos foram classificados como indefinidos, apesar dos autores interpretarem como possíveis paleodunas, devido à existência de uma camada com quatro metros de espessura de estratificação cruzada planar, típica de depósitos eólicos. A maior parte das idades analisadas abrangem o intervalo de tempo entre 60 e 18ka, além de idades do Pleistoceno Tardio e do Holoceno Médio. Numa avaliação conjunta, os autores inferiram que, por volta de 34ka, ou antes disso, as megadunas simples estavam sendo depositadas até o momento da fase de estabilização, que teria ocorrido por volta de 18ka. Essa idade está relacionada a um depósito com raízes, que marcaria a ocorrência de um clima mais úmido. Posteriormente, teria ocorrido a reativação dos depósitos, por volta de 16ka, e a consequente estabilização em torno dos 5ka. Após esse período não foram encontradas evidências de um retorno de ativação dos depósitos, exceto pela ocorrência de dunas suspensas (perched dunes) e dunas parabólicas, localizadas na margem oeste do rio São Francisco, representada pela idade referente ao Holoceno Superior (1,2±0,1ka).
Um pouco mais ao norte da bacia do Rio São Francisco, Lira (2014) estudou os locais com ocorrência de latossolos no extremo oeste do estado de Pernambuco (PE), abrangendo os municípios de Petrolina, Afrânio, Dormentes e Lagoa Grande. Em parte da área de estudo, mais especificamente no município de Petrolina, foram encontrados depósitos eólicos semelhantes aos que ocorrem no médio São Francisco. Além de Lira (2014), Cabral (2014) também estudou os depósitos eólicos presentes no município homônimo, a partir de análises sedimentológicas e da datação por LOE (fig. 3c). A unidade geomorfológica da área é a depressão sertaneja, uma depressão interplanáltica, aplainada, limitada por relevos mais altos. As unidades de relevo com depósitos eólicos são a planície fluvial com mantos de areia e a planície fluvial com dunas. Quanto às feições eólicas, predominam as dunas parabólicas e nebkhas, além da existência das bacias de deflação (blowouts). (Casseti, 2005).
Ainda na região de Petrolina, PE, Lira (2014) descreveu a vegetação predominante na área como a caatinga hiperxerófila e hipoxerófila, com composição árboreo-arbustiva e espécies como o xiquexique (Pilocereus), coroa de frade (Melocactus), pinhão verde (Euphorbia) e macambira (Bromelia sp).
O clima da região, assim como do médio São Francisco, está classificado como Bshw i, com precipitação média anual em torno dos 500mm. Durante os períodos de formação das dunas prevaleceram ventos do quadrante SE (Alvares et al., 2014; Cabral, 2014).
Na pesquisa de Lira (2014) foram coletadas quatro amostras para as análises sedimentológicas, geoquímica e para a datação por LOE. As amostras P3793 e P3792 (a um e 3,7m de profundidade, respetivamente) provém do lençol de areia. A amostra do topo apresentou idade de 1,7±0,2ka e a da base 12,7±1,6ka. Já as amostras P3794 e P3795 (1,5m e 3,5m de profundidade, respetivamente) são de um perfil vertical de duna - a amostra P3794 resultou na idade de 3,8±0,5ka, enquanto a P3795 data de 5±0,75ka.
No trabalho de Cabral (2014) também foram coletadas quatro amostras para a datação por LOE. As idades encontradas foram: 30,4±3,5ka (DBE01), 11,4±1,4ka (D1B), 0,41±0,08ka (D1M) e 0,165±0,025ka (D1T). Nas análises sedimentológicas prevaleceram os grãos de quartzo na fração areia muito fina e areia fina, moderadamente selecionados e com predominância de grãos aproximadamente simétricos. No que diz respeito à esfericidade, sobressaem as classes sub-discoidais e os discoidais. Quanto ao arredondamento, prevalecem os grãos arredondados e sub-arredondados. O grau de assimetria dos grãos, assim como a esfericidade e o arredondamento, refletem o transporte fluvial sofrido pelos sedimentos, por longas distâncias, antes de serem depositados nos terraços e barras fluviais, e posteriormente incorporados às planícies eólicas.
Depósitos eólicos localizados às margens do rio São Francisco, no lago da represa de Itaparica, no município de Floresta, em Pernambuco, foram estudados por Ferreira (2010) e Ferreira et al. (2013). Trata-se de uma área de 8km² com dunas reliquiais, de morfologia parabólica, com média de 40m de altitude (fig. 3A), (8º17’15”-8º53’14”S e 38º17’16”-38º40’45”O). As coberturas predominantes originam neossolos quartzarênicos oriundos do intemperismo dos arenitos das Formações Tacaratú, Inajá e Sergi, do paleozoico e mesozóico. O clima do município de Floresta também está classificado como Bshw’ e apresenta características semelhantes às de Petrolina. Um dos sistemas atmosféricos que mais contribuem para as chuvas na região é a ZCIT durante a sua oscilação mais ao sul. As chuvas torrenciais são comuns na área e contribuem para a dissecação dos depósitos eólicos. Os ventos predominantes são os alísios de sudeste. O relevo da área é marcado pela ocorrência de pedimentos recobertos por pavimentos detríticos, e pelo lençol de areia estabilizado pela vegetação. A vegetação da região é a caatinga hiperxerófila com cobertura arbustiva bem-adaptada ao clima. (Alvares et al., 2014; Ferreira, 2010; Ferreira et al., 2013).
O resultado das análises sedimentológicas do trabalho de Ferreira (2010) aponta a prevalência da classe areia fina, com sedimentos moderadamente selecionados, e assimetria que oscila entre aproximadamente simétrica a positiva. Mais uma vez, assim como no trabalho Lira (2014), os dados retratam a assimetria do transporte fluvial. Ainda no que diz respeito a área do lago de Itaparica, os grãos com arredondamento anguloso, em decorrência do transporte mais curto, estão mais próximos das margens do rio, no setor leste da área, enquanto no setor oeste, predominam os grãos subarredondados que sofreram um pouco mais de transporte, corroborando a ideia de que o transporte ocorreu no sentido sudeste-noroeste, sendo o material proveniente da planície e dos terraços fluviais do Rio São Francisco (Ferreira, 2010; Ferreira et al., 2013).
Para a datação, Ferreira (2010) coletou duas amostras de um mesmo perfil com 12m de profundidade, resultando nas idades de 57±6,5 e 52±6ka (a 9,5m e 8,5m de profundidade, respectivamente). Enquanto a amostra localizada a um metro de profundidade do perfil adjacente apresentou idade de 11,6±2,5ka. Segundo o autor, os resultados demonstram que a atividade eólica foi intensa na área durante o Pleistoceno tardio e que teria cessado no limiar Pleistoceno/Holoceno. O aumento da umidade, nessa época, e uma possível mudança na taxa de suprimento de sedimentos do rio São Francisco, estão associados como os fatores que levaram ao termo da deposição.
3. Bacia do rio Paraná
Os depósitos eólicos presentes no alto curso do rio Paraná estão localizados no município de Taquaruçu ou Taquarussu, no sudeste do estado de Mato Grosso do Sul (MS). O clima da área está classificado como Aw i, com uma temperatura média anual em torno dos 22ºC e com precipitação média anual superior a 1400mm (Alvares et al., 2014).
As paleodunas pertencem à unidade geomorfológica Fazenda Boa Vista Alta, no limite com a planície de inundação do rio Paraná. As areias são cortadas por pequenas drenagens que demandam a planície. Trata-se de uma área de aproximadamente 15km de comprimento por cinco quilômetros de largura, onde os depósitos estão localizados em pequenas colinas de cinco a dez metros de altura. Em geral apresentam estrutura maciça, com exceção de duas trincheiras onde se observou bioturbação por raízes. A intensa erosão hídrica obliterou a morfologia dunar, impossibilitando também a aferição da direção predominante do vento durante a fase de deposição. Também foi observada a ausência de estratificações cruzadas (fig. 4). (Parolin & Stevaux, 2002).
No trabalho de Parolin e Stevaux (2002) foram realizadas sondagens com trado manual, a profundidades de até 6,8m, além de sondagens vibratórias, análise granulométrica (44 amostras) e datação dos sedimentos por TL e C¹⁴. O resultado das análises sedimentológicas apontou que a maior parte dos sedimentos é composta por grãos de quartzo na fração areia fina a muito fina, com predominância de grãos bem selecionados, muito leptocúrticos, e leptocúrticos com assimetria positiva. Na análise morfoscópica a maior parte dos grãos apresentam alta esfericidade e o arredondamento oscilou entre subarredondado (40%) e arredondado (45%).
As idades obtidas por TL são oriundas de quatro trados: trado-1: 2,1±0,2ka (0,7m) e 8,2±0,6ka (6,8m); trado-2: 3,7±0,37ka (1,2m) e 10,1±1ka (3,7m); trado-4: 5,48±0,3 (1,6m) e 6,1±0,36ka (3.2 m) e trado-6: 4,8±0,6 e 20,6± ,5ka. Os dados demonstram que ocorreu remobilização dos sedimentos, principalmente durante as fases mais recentes do Holoceno médio ao Holoceno superior. A ocorrência de dois hiatos de sedimentação foi observada nos trados-1 e 2 e no trado-6, o que pode indicar que a sedimentação pode ter sido menor durante esse período ou ausente nessa fase.
Os dados paleoclimáticos de Taquaruçu foram comparados com as idades obtidas em pesquisas na região de Porto Rico, também no alto curso do rio Paraná. Após analisar os dados, os autores concluíram que o período que compreende o final do Holoceno Médio até 3ka foi marcado por uma fase de semiaridez, com possível redução da cobertura vegetal na área. Em contrapartida, o período correspondente ao Holoceno Inferior parece ter sido marcado por maior umidade, com base em duas idades, 11,5±0,08ka e 9,7±0,08ka (sondagem três e dois, a profundidades de 2,2m e 2,4m, respectivamente), obtidas por meio da técnica do C¹⁴ em dois depósitos turfosos na planície de inundação do córrego Esperança (Parolin & Stevaux, 2002).
4. Bacia do Alto Paraguai
As dunas do Pantanal, no estado do Mato Grosso do Sul (MS), foram reportadas ao setor meridional do mega-leque aluvial do Taquari, numa região localmente conhecida como Nhecolândia, caraterizada por uma grande quantidade de lagoas salinas e de água doce (fig. 5). A área corresponde a uma depressão tectônica do tipo gráben com orientação N-S. A cobertura sedimentar é composta por arenitos grossos, conglomerados, e areia quartzosa com intervalos de lateritas (Assine, 2003; Assine & Soares, 2004).
A vegetação que predomina na região do Pantanal é diversificada e apresenta plantas originárias do Cerrado, Amazônia, Chaco e da Mata Atlântica, além de espécies endêmicas. Algumas espécies encontradas são forrageiras, apícolas, frutíferas e madeireiras. O clima está definido como Aw i. A temperatura média é de 24,8ºC e a precipitação média é superior aos 1000mm anuais (Alvares et al., 2014; Embrapa, 2022).
A atribuição do caráter eólico a esses sedimentos, além da presunção do aspecto morfológico na paisagem, com formas que sugerem antigas dunas do tipo lunnettes, também se deveu ao fato das coberturas arenosas apresentarem uma distribuição granulométrica bimodal, entre areia fina e média, aspecto que foi associado ao retrabalhamento de sedimentos mais antigos pela ação do vento (Guerreiro, 2016). Klammer (1982) sugeriu uma fase de transporte eólico dessas coberturas superficiais sob condições de aridez extrema, posteriormente suplantadas pelo ambiente úmido/sub-úmido atual, o qual estaria associado à inundação de antigas depressões de deflação e formação das lagunas.
Nesta mesma linha de raciocínio, Tricart (1982) optou por uma interpretação cíclica dos processos de acumulação associados à gênese das planícies lagunares do Pantanal. Desta feita, o autor acrescentou a ocorrência de momentos úmidos com deposição dos areais comandada pela deposição fluvial, seguidos de fases secas com retomada do transporte eólico e acumulação de dunas, formando as “cordilheiras” alongadas entre as depressões, com elevação modesta sobre o nível de base dessas, em geral não superior a quatro metros. Em sua extensa revisão sobre o Quaternário da América do Sul, Clapperton (1993) criticou as propostas de Klammer (1982) e Tricart (1982), ao alegar que faltavam dados estratigráficos, faciológicos, que corroborassem na alternância entre fases eólicas e fluviais de deposição sobre as planuras arenosas da região.
A despeito da falta de dados de campo e morfoestratigráficos sobre essas feições do Pantanal brasileiro, no leste da Bolívia, a cerca de 500km de distância da Nhecolândia, May (2013) identifica um vasto campo de dunas parabólicas em diversos estágios de conservação, e mantos de areia, cuja reativação remonta ao Pleistoceno superior. Os achados do autor corroboram a ideia de existência de condições climáticas regionais secas e de ventos constantes e com energia suficiente para acumular um campo de dunas continental, não muito distante da área de ocorrência das formações arenosas que estruturam as “cordilheiras” que separam as lagoas do setor sudoeste do leque do Taquari.
Tratando das dunas reliquiais conhecidas como “cordilheiras”, Assine (2003) e Soares et al. (2003) argumentaram que a sua gênese não poderia ser atribuída à ciclicidade entre fases de inundação e posterior ressecamento, com formação de pequenas bacias de deflação, como postulado por Tricart (1982). Da mesma forma a ocorrência de areais finas e muito finas foi considerada como uma herança de arenitos eólicos paleozóicos erodidos, dos terrenos mais elevados da bacia do Paraná, a leste. Não obstante, os autores não descartaram completamente a participação do componente eólico na elaboração das formas estruturadas em coberturas superficiais arenosas, embora ressaltem não restar na paisagem morfologias dunares plenamente discerníveis.
Mais recentemente, Taioli et al. (2021) utilizaram o radar de penetração do solo (GPR) no extremo sul da região da Nhecolância para investigar e caracterizar a estratigrafia subsuperficial da área. Nos dois locais analisados, os perfis de radagrama apresentaram duas desconformidades e três sequências deposicionais. As duas últimas sequências, mais profundas, são semelhantes e foram interpretadas como tendo sido formadas por depósitos fluviais, ligados a canais de migração lateral e depósitos em forma de barra. Já a sequência mais recente teria sido formada por depósitos de enchente e/ou depósitos eólicos. Essa camada apresenta deposição em formato plano, não canalizado, e está relacionada às formas deposicionais presentes na superfície, nas margens dos lagos.
Além disso, Guerreiro et al. (2018) analisaram testemunhos estratigráficos de lagoas salinas na região da Nhecolância, demonstrando que a acumulação de sedimentos foi relativamente contínua no transcurso de todo o Holoceno. Os autores identificaram uma transição de condições alagadas de água doce para salinas por volta de 3ka, associada também à acumulação de uma litofácies argilosa. Abaixo dessa unidade resta uma camada arenosa cuja evolução ter-se-ia dado pelo retrabalhamento eólico de um lobo abondonado do mega-leque aluvial no Holoceno inferior, sob climas áridos. Assim, embora retomem a ideia de que as depressões originais onde se instalaram as lagoas evoluíram por deflação e acúmulo de cristas arenosas, em seu entorno, pode-se afirmar que os padrões geomórficos de origem eólica do Pantanal estão entre os mais elusivos no contexto continental brasileiro, restando os elementos processuais envolvidos, em sua origem e sua cronologia absoluta ainda por serem decifrados.
V. Discussão
Os resultados das pesquisas que tiveram como foco depósitos eólicos continentais no Brasil, ao longo das últimas três décadas, apontam para a ocorrência de dinâmicas paleoclimáticas distintas entre as regiões do país. Dentre as idades de dunas examinadas e localizadas na região Norte, ainda não foram encontrados vestígios de deposição eólica anterior ao período de 32,6±3,1 (Carneiro Filho et al., 2002), já que a idade de 51ka está relacionada a um depósito fluvial (Zular et al., 2019), diferentemente do que foi reportado para a região Nordeste, onde no “paleodeserto” de Xique-Xique e no município de Floresta, momentos de ativação dos campos de dunas remontam ao período entre 60ka e 43ka (Ferreira et al., 2013; Mescolotti et al., 2021, 2023).
Ainda sobre a região Nordeste, apesar do que apontam os dados de Mescolotti et al. (2023) e Ferreira et al. (2013), o período referente ao Holoceno Superior demonstra a ativação dos campos dunares na região, com a ocorrência de diversas idades (Barreto, 1996; Cabral, 2014; Lira, 2014). Condições mais secas se estabeleceram desde o início do Holoceno superior, após 5ka, com queda acentuada da precipitação e maior oscilação da temperatura, resultando na diminuição da sedimentação em ambientes de encosta, onde há maior concentração de registros dos episódios pluviais (Corrêa, 2001; Gurgel et al., 2013).
Essa tendência tem sido interpretada como consequência do surgimento de teleconexões entre os controles climáticos da região e fenômenos registrados nos oceanos Pacífico tropical e Atlântico Norte, o que teria levado à formação de eventos do tipo Paleo-EL Niño, de Oscilação Sul (ENOS), como o episódio de 3,5 a 2,8ka (Dang et al., 2020; Utida et al., 2023). Esses são eventos climáticos de alta frequência que podem estar vinculados a longos períodos mais secos no Nordeste dentro de um momento climático em geral mais úmido.
As condições climáticas mais secas foram responsáveis pela expansão da caatinga arbustiva aberta (Oliveira et al., 1999), substituindo a caatinga arbórea/cerrado do Holoceno Médio (Melo & Marengo, 2008). Além disso, neste mesmo intervalo de tempo, no trecho sub-médio do rio São Francisco, Lira (2014) registrou um aumento na atividade eólica ligada à reativação de dunas continentais e ausência de depósitos coluviais nas encostas dos inserlbergs. Em setores mais úmidos e altos do Planalto da Borborema, Tavares (2015) e Corrêa e Monteiro (2020) também identificaram uma mudança para condições semiáridas e falta de colúvios nas encostas.
Os dados da bacia Amazônica apontam para atividade eólica de 32,6±3,1 a 1,1±0,1ka, com oscilação entre fases de maior e menor atividade. Embora as áreas do Rio Negro estudadas por Carneiro Filho et al. (2002) estejam mais ao sul daquelas do Rio Branco, há ainda coincidências de idade dos sedimentos que apontam para fases de maior atividade eólica, presumivelmente mais secas, coincidentes com o UMG e o episódio Heinrich Stadial 1. No entanto, no Rio Negro, a atividade eólica continua apenas até o Holoceno inferior, e não há registro das retomadas milenares a partir deste momento, como ocorre na área do Rio Branco na fronteira com a Guiana.
Por outro lado, o trabalho de Teeuw e Rhodes (2004), no lado guianense da savana do Rio Branco-Rupununi, aponta para que ao norte da Amazônia a atividade eólica permaneceu contínua desde o final do UMG, atravessando todo o Holoceno, fato que, diante da resolução temporal das amostras, também pode indicar a ação de mais de um mecanismo de regulação atmosférica, sendo um mais efetivo e regional, e outro, de maior recursividade, durante o Holoceno, provavelmente associado às alternâncias milenares sob condições gerais mais úmidas, como apontadas por Zular et al. (2019), em área situada também na bacia do Rio Branco.
VI. Considerações finais
Os dados dos trabalhos analisados refletem a dinâmica de deposição eólica continental que demonstra ter ocorrido desde o Pleistoceno Médio até o presente. De uma maneira geral, os depósitos eólicos interiores analisados ocorrem associados às planícies de importantes cursos de água e beneficiam dos sedimentos depositados pela ação fluvial para a sua formação. Pode-se dizer ainda que os regimes de ativação e de estabilização dos campos de dunas refletem as alterações sofridas, tanto pela dinâmica fluvial como pelas oscilações climáticas locais e regionais (Lira, 2014; Mescolotti et al., 2021).
Na bacia do São Francisco foram encontradas as idades mais antiga e mais recente de deposição eólica continental entre as regiões estudadas, sendo também a que apresenta o maior número de dunas ativas, como relatado nos trabalhos de Cabral (2014), Ferreira (2010) e Mescolotti et al. (2021,2023).
As sondagens realizadas nos depósitos da bacia do rio Paraná demonstram que as dunas estiveram ativas na região desde pelo menos 20,6±1,5ka e permaneceram ativas durante o Holoceno até pelo menos 2,1±0,2ka. As dunas desta área já estão bastante degradadas, o que torna difícil a análise de suas morfologias. Nessa região também são escassos os estudos sobre as condições paleoambientais de formação das dunas.
Não obstante, verificou-se alguns momentos de sobreposição das idades dos depósitos eólicos nas diferentes regiões analisadas, alguns ocorrendo concomitantemente em todas elas, tais como: Pleistoceno Superior (entre 20 e 18ka), Holoceno Médio e Holoceno Superior. Porém, não é possível afirmar que todos esses ambientes estivessem passando por condições climáticas homogeneamente secas durante essas fases, já que as evidências indicam que alguns depósitos podem-se ter formado durante a curta transição entre condições mais secas e úmidas, como é o caso do depósito de 18ka em Xique-Xique no noroeste da Bahia.
Diante das pesquisas analisadas percebe-se que algumas regiões apresentam mais dados que ajudam a compreender os momentos de formação dos depósitos dunares continentais, assim como a ligação existente entre o sistema fluvial e as dunas, como é o caso dos trabalhos do setor médio e submédio da bacia do Rio São Francisco. Constata-se que as dunas continentais brasileiras funcionam como importante geocronômetros e geoarquivos paleoambientais, podendo indicar a retomada de condições propícias à deposição eólica, mesmo ao longo de intervalos curtos de tempo, o que se torna especialmente favorável à compreensão dos mecanismos cíclicos e anômalos envolvidos na circulação atmosférica das áreas, em escalas temporais de média e curta duração.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) pelo financiamento desse trabalho.
Contributos dos autores
Maria Luísa Gomes da Silva: Conceptualização; Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão; Administração do projeto. Antônio Carlos de Barros Corrêa: Conceptualização, Metodologia; Validação; Análise formal; Investigação; Curadoria dos dados; Redação - revisão e edição; Visualização; Supervisão; Administração do projeto.