I. Introdução
Nas últimas décadas, tem-se vindo a reconhecer as vantagens de envolver os cidadãos nos processos de planeamento e de decisão tendo em vista a construção de políticas mais integradoras e próximas das necessidades e aspirações das populações (Davidoff, 1965; Davoudi, 2012; Healey, 1997, 2006). Neste âmbito, as agendas académicas (Allmendinger, 2017; Davoudi, 2023; Healey, 2023; Stead & Albrechts, 2023) e políticas (República Portuguesa, 2015, 2019) têm vindo a reforçar o debate em torno das questões da participação pública e do incremento dos processos colaborativos nas práticas de ordenamento do território.
Estas tendências têm contribuído para um progressivo envolvimento dos diversos agentes nos processos de decisão, fomentando mecanismos de partilha de informação e conhecimento, desenvolvendo processos de aprendizagem social e reforçando a capacitação cívica e institucional. Os processos colaborativos, de governança e de auscultação dos cidadãos passam a ser fundamentais na construção de políticas públicas de ordenamento e planeamento territorial (Allmendinger, 2017; Davoudi, 2017; Dumont, 2022; Faludi, 1978, 2002; Nel.lo, 2018; Pereira, 2009; Pereira & Ramalhete, 2017).
Em Portugal, a alteração do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) sustentou-se num sistema colaborativo de participação cívica e institucional (entre 2016 e 2019), tendo em vista envolver e auscultar a sociedade e a administração que, direta ou indiretamente, intervêm nas políticas públicas e na gestão do território. Durante este processo, realizaram-se vários momentos de auscultação cívica e institucional (Maia & Marques, 2019). Esta análise foca-se no questionário aos problemas do ordenamento do território realizado no início do processo de alteração do PNPOT de 2019.
Esta pesquisa está inserida num projeto de investigação mais amplo, onde se pretende analisar as perceções e entendimentos da sociedade relativamente ao território e ao ordenamento do território em Portugal. Designadamente, pretende-se aferir que problemáticas, ideias e convicções se conseguem detetar e que narrativas discursivas são construídas. No fundo, o objetivo é identificar culturas de território e de ordenamento do território predominantes entre os cidadãos e na comunidade técnico-científica.
Com este estudo pretende-se contribuir para a compreensão da prática e política nacional de ordenamento do território, num estudo que incorpore fatores “de natureza subjetiva: as crenças e os valores que, condicionando atitudes e comportamentos, bloqueiam ou facilitam a concretização de uma política de ordenamento mais eficiente e resiliente”, como forma de entender “as culturas de território e de ordenamento do território com influência nas práticas quotidianas dos cidadãos e dos membros da comunidade profissional de ordenamento do território”, tal como Ferrão demonstrou ser pertinente e necessário (2014, pp. 128-129).
O presente artigo foca-se nos contributos recebidos durante a implementação do questionário aos problemas do ordenamento do território, com o intuito de compreender se existe proximidade entre os cidadãos, atendendo às suas perspetivas relativamente aos problemas de ordenamento do território, e se essa proximidade constrói comunidades. Em termos conceptuais, as comunidades representam culturas territoriais próximas, formas relativamente semelhantes de percecionar os problemas (Alves, 2020; Clauset et al., 2004).
Em termos metodológicos, recorreu-se a diferentes funcionalidades da Análise de Redes Sociais (ARS) para identificar os problemas centrais nos discursos dos indivíduos e para reconhecer as proximidades construídas entre eles (comunidades). Reconhece-se que a ARS é uma metodologia ainda pouco explorada no estudo do planeamento e do ordenamento do território. A pesquisa efetuada demonstra a utilidade desta ferramenta para analisar e representar a perceção dos indivíduos face aos problemas do ordenamento do território, em resposta aos objetivos de investigação.
Este artigo pretende também dar contributos para a discussão da importância da cultura territorial dos cidadãos na construção de uma política pública de ordenamento do território mais robusta e efetiva a nível nacional.
II. Cultura territorial: teorizar o conceito
Cultura é um conceito abrangente, de natureza complexa e de ampla definição, com uma vasta variedade de significados, definições e interpretações (Gullestrup, 2006, 2009; Knieling & Othengrafen, 2009a). Compreende um conjunto de ideias, ideologias e valores que derivam das vivências e experiências individuais e coletivas, bem como de imagens, interpretações, discursos e significados, contemporâneos ou memorizados do passado (Knieling & Othengrafen, 2009a; Mourato, 2011a). Gullestrup (2006, p. 57) acrescenta que “a cultura é uma conceção de valores, normas morais, de comportamentos e resultados (materiais, imateriais e simbólicos)” que os indivíduos assumem e transmitem (à sua geração e às gerações futuras). Assim, as comunidades diferenciam-se através da cultura. Por consequência, entende-se que cultura territorial é um conceito heterogéneo e altamente complexo. Caracteriza-se por um conjunto de múltiplos comportamentos sociais e quadros culturais que moldam as práticas e as políticas territoriais (Knieling & Othengrafen, 2009a, 2009b).
Esta multiplicidade dificulta a análise sistemática das influências culturalmente incorporadas nos exercícios de planeamento e nas práticas sociais. Existem práticas de planeamento institucionalizadas ou partilhadas, formais ou informais, exercidas por estruturas institucionais e de poder, e existem também atitudes sociais, estruturas cognitivas, valores, regras, tradições familiares, políticas, jurídicas e diferentes práticas de governo (Berisha et al., 2021; Cotella et al., 2021; Healey, 1999, 2006). Estas dimensões têm influência direta na forma como o planeamento é interpretado, como os problemas são reconhecidos e resolvidos, como determinadas regras, procedimentos e instrumentos são utilizados ou dinamizados, e como pode decorrer a participação pública (Ferrão, 2014; Kahn, 2010; Knieling & Othengrafen, 2009b; Wolff, 2020).
Como refere Mourato (2011b), os cidadãos não são um grupo uniforme e não representam uma realidade homogénea, pois incorporam uma variedade de perceções, entendimentos e significados. Podem ter diferentes perceções, motivações e razões, e estarem inseridos em contextos muito diversificados em termos espaciais, condições sociais, vivências pessoais e profissionais, entre outros (Bourdieu, 1989; Hall, 2003; Santos et al., 2014). Pode-se afirmar que existem diferentes culturas territoriais, suportadas nas formas individuais de percecionar o espaço, de o vivenciar fisicamente e de o perspetivar socialmente (Lefebvre, 1981; Soja, 1996). Esta multiplicidade origina vários entendimentos e discursos sobre o território e o ordenamento do território.
Knieling e Othengrafen (2009a) estruturam estas dimensões em dois âmbitos: o “ambiente societal” e o “ambiente do planeamento”. O ambiente societal incorpora as crenças, as perceções e as formas de pensamento que intervêm na compreensão da prática dos cidadãos em matéria de planeamento e ordenamento do território. O ambiente de planeamento reflete os valores específicos da comunidade técnica e científica, dos que intervêm nas estruturas, nos processos e nos produtos do planeamento e do ordenamento do território.
Em Portugal, o débil enraizamento do ordenamento do território reflete-se num défice de cultura territorial por parte da sociedade, quer ao nível dos cidadãos quer das estruturas institucionais. O PNPOT de 2007 identifica a “ausência de uma cultura cívica valorizadora do ordenamento do território e baseada no conhecimento rigoroso dos problemas, na participação dos cidadãos e na capacitação técnica das instituições e dos agentes mais diretamente envolvidos” (Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional [MAOTDR], 2007, p. 86). Este diagnóstico foi revalidado no PNPOT de 2019, implicando que o “défice de uma cultura de território” fosse novamente identificado como um dos principais problemas do ordenamento do território em Portugal (Carmo & Marques, 2018).
Assim, revela-se, por um lado, um défice de cultura de território (ambiente societal), pois a sociedade portuguesa tem uma cultura cívica insuficientemente informada e pouco conhecedora das diferentes especificidades e problemáticas do território. Dominam perceções territoriais baseadas em leituras tradicionais e dicotómicas (norte-sul; litoral-interior; urbano-rural), carecendo de uma visão coletiva do território, suportada em valores comuns e num reconhecimento da diversidade territorial. Por outro, na comunidade técnico-científica (ambiente do planeamento) também domina uma cultura tradicional de ordenamento do território, caracterizada por práticas racionalistas e rígidas, suportadas em conhecimentos setoriais e com perspetivas territoriais insuficientemente transversais, onde não dominam visões territoriais integradas (Campos & Ferrão, 2018; Carmo, 2014; Ferrão, 2014; Kahn, 2010; Marques, 2002; Marques et al., 2019; Mourato, 2011a; Veneza, 2013).
Esta dupla situação reflete-se na dificuldade em colocar o ordenamento do território no centro das políticas públicas de desenvolvimento do país (Ferrão, 2014; Marques et al., 2019). Desta forma, torna-se pertinente informar, discutir e consciencializar valores focados no território e, simultaneamente, desenvolver competências e práticas mais adequadas à diversidade e especificidade dos territórios. Um projeto de desenvolvimento territorial tem de ser construído coletivamente, pela comunidade técnico-científica, decisores políticos e cidadãos em geral (Davoudi & Strange, 2009; Healey, 2006, 2023; Marques, 2008; Pereira & Ramalhete, 2017).
Seguindo esta perspetiva conceptual, a motivação desta investigação sustenta-se no interesse e na utilidade de um maior conhecimento sobre as diferentes perceções territoriais (Bourdieu, 1989; Hall, 2003). É importante identificar discursos, atitudes e significados partilhados (Duin & Snel, 2013; Guerra, 2010; Gullestrup, 2006, 2009; Mourato, 2011b) que ajudem a identificar os valores e os comportamentos territoriais dominantes nos cidadãos. O foco desta pesquisa dirige-se para os problemas do ordenamento do território identificados no PNPOT de 2019, pois valoriza-se a importância de produzir conhecimento sobre a forma como os cidadãos avaliam e percecionam as problemáticas do ordenamento do território em Portugal.
III. Contextualização da análise e abordagem metodológica
Reconhecida a importância do envolvimento da sociedade portuguesa no processo de alteração do PNPOT e dada a necessidade de tecer algumas considerações acerca dos níveis de perceção da comunidade técnico-científica e dos cidadãos sobre os problemas do ordenamento do território em Portugal, a alteração do PNPOT considerou pertinente a realização de uma ação que permitisse abrir a reflexão aos cidadãos (Maia & Marques, 2019). Logo no início do processo, foi criado um questionário dirigido à população relativamente à perceção dos problemas do ordenamento do território com o objetivo de identificar as mudanças ocorridas entre 2007 e 20171.
O questionário teve uma ampla divulgação online, com uma expressiva disseminação junto da comunidade técnico-científica e de um número significativo de elementos da sociedade civil. Responderam ao questionário 7298 indivíduos, com particular representatividade dos trabalhadores da administração pública e dos membros das universidades e/ou centros de investigação (docentes e investigadores), dominando os indivíduos com os níveis de escolaridade superiores e com ligações ao ordenamento do território (Carmo & Marques, 2018; Marques et al., 2019).
No questionário, num primeiro momento, em formato de questões de resposta fechada, a população foi questionada sobre o nível de resolução ou agravamento de cada um dos problemas identificados no PNPOT de 2007. Os resultados obtidos, já publicados anteriormente (Carmo & Marques, 2018; Marques et al., 2019), demonstram que a maioria dos respondentes considerou que a gravidade dos problemas de ordenamento do território se manteve ou agravou-se entre 2007 e 2017. As dinâmicas mais negativas (de maior agravamento) são percecionadas sobretudo relativamente ao reforço da degradação do solo e dos riscos de desertificação, e ao contínuo despovoamento e fragilidade demográfica e socioeconómica de uma parte significativa do território.
Num segundo momento, em questões de resposta aberta, os inquiridos foram convidados a fazer reflexões sobre os problemas de ordenamento do território, podendo explicitar novas dimensões dos problemas identificados em 2007 ou identificar novos problemas. Responderam a este desafio 948 indivíduos, dando contributos escritos significativos. Este é o foco deste artigo.
Partindo das respostas abertas, desenvolveu-se um conjunto de tratamentos e análises por forma a construir um entendimento das tipologias discursivas, tendo em vista:
identificar os problemas mais centrais e mais percecionados pelos indivíduos, e os problemas mais periféricos e para os quais se mostra menor sensibilidade;
analisar se existe proximidade entre os respondentes (semelhança entre as respostas), considerando as suas narrativas escritas e perceber se essa proximidade constrói comunidades, ou seja, estrutura grupos de indivíduos que são diferenciados pelas suas culturas territoriais (grupos que internamente têm formas relativamente semelhantes de percecionar as problemáticas territoriais) e pelas suas características individuais (idade, escolaridade, região de residência).
Dado o “caráter aberto e flexível” da questão (Coutinho, 2018), a análise vai focar-se nos “discursos escritos” que são extremamente diversificados. Como instrumento de análise recorreu-se, por isso, à análise de conteúdo (Bardin, 1977), de forma a possibilitar uma melhor descrição e interpretação da informação proveniente das respostas. Seguindo os pressupostos da análise de conteúdo, o trabalho estruturou-se em três momentos sucessivos: i) pré-análise; ii) exploração do material; iii) tratamento dos resultados e interpretações (Bardin, 1977; Coutinho, 2018).
A primeira etapa (pré-análise) consistiu numa leitura “flutuante” de todos os contributos (Coutinho, 2018; Esteves, 2006), tendo em vista fazer a identificação das unidades de análise e preparar o material analítico. Aqui, verificou-se que alguns contributos não podiam ser considerados (correspondiam, por exemplo, a comentários, opiniões descontextualizadas e repetições). Depois de se excluírem vários contributos, foram consideradas válidas as respostas de 716 inquiridos.
A segunda etapa (exploração do material) desenvolve o processo de categorização dos contributos. Tendo como objetivo analisar a perceção dos indivíduos relativamente aos problemas do ordenamento do território, e tendo sido definidos novos problemas durante a alteração do PNPOT, agora em vigência, considerou-se como categorias de análise os 18 problemas de ordenamento do território identificados pelo PNPOT de 2019 (fig. 1). A cada contributo (ou unidade de análise) atribui-se um problema (uma categoria), permitindo assim efetuar uma clara distinção entre as narrativas construídas pelos inquiridos (Bardin, 1977; Krippendorff, 2004). Como todos os contributos vieram a enquadrar-se nos 18 problemas não foi necessário definir novas categorias.
A terceira etapa (tratamento dos resultados e interpretações) iniciou-se com a realização de provas de validação dos resultados por uma equipa de peritos. A categorização foi discutida e revista por um conjunto de doze especialistas de diferentes áreas académicas e profissionais. Atendendo à sua especialização, cada perito fez a verificação e validação de um conjunto de categorias. No final desta etapa, obtivemos um corpus de trabalho correspondente a 1868 contributos escritos, provenientes dos 716 inquiridos.
Findo este processo, recorreu-se à Análise de Redes Sociais (ARS), que envolveu a utilização de um conjunto de técnicas e métricas estatísticas de análise e representação (através de software R e Gephi), para responder aos objetivos da investigação. Por forma a identificar os elementos centrais da análise, ou seja, os problemas mais percecionados e presentes nos discursos dos indivíduos, partiu-se da projeção da rede bipartida (two-mode) (Borgatti et al., 2013; Latapy et al., 2008), que representa as interações entre os indivíduos e os problemas e calcularam-se duas das medidas de centralidade mais frequentes na ARS: grau (degree) e intermediação (betweenness)2. A análise da centralidade permite aferir a posição de cada problema do ordenamento do território relativamente aos restantes problemas, identificando-se assim quais são os elementos mais centrais (“mais importantes”) nos discursos dos indivíduos (Alves, 2020; Bonacich, 1972; Borgatti & Everett, 1997; Freeman, 1978; Freeman et al., 1991; Newman, 2001; Santos, 2022).
Para a identificação das semelhanças entre os inquiridos converteu-se a rede bipartida em duas redes unimodais (one-mode) - uma para os inquiridos e outra para os problemas - por forma a focar a análise apenas nos inquiridos (Borgatti & Everett, 1997). Esta conversão teve por base o método de dicotomização “Simple matching”, tornando possível construir comunidades de indivíduos. A extração de comunidades e o valor de modularidade foram obtidos através do Método de Louvain (Blondel et al., 2008; Lancichinetti & Fortunato, 2009). A modularidade é um critério que permite avaliar o nível de robustez e de qualidade explicativa das comunidades construídas. Valores superiores a 0,3 indicam que há significância na análise (Clauset et al., 2004; Newman & Girvan, 2004).
Os resultados obtidos da ARS foram cruzados com métricas estatísticas calculadas com base nos dados obtidos da análise ao questionário. A partir daqui, construiu-se um conjunto de inferências que permitiram desenvolver as interpretações apresentadas neste estudo.
IV. Identificação de culturas territoriais a partir da auscultação aos problemas do ordenamento do território em Portugal
1. Caracterização geral dos inquiridos
Reconhece-se que a amostra em análise não é representativa da sociedade portuguesa, uma vez que se trata de um questionário que, de uma forma criterial (Coutinho, 2018), acabou por ser sobretudo divulgado junto da comunidade técnico-científica. Assim, não se pretende apresentar resultados estatisticamente representativos dos agentes sociais, mas sim analisar um conjunto de discursos produzidos (1868 contributos escritos) sobre os problemas do ordenamento do território em Portugal, construídos por um número significativo de indivíduos (716).
Verifica-se que a representação dos inquiridos (quadro I) com e sem atividade profissional no ordenamento do território é praticamente idêntica (representação 50/50). A maioria dos inquiridos tem uma escolaridade superior (cerca de 90%), 55% tem entre os 45 e os 64 anos e 42,5% entre os 18 e os 45 anos. Em termos de contexto territorial, concentram-se sobretudo na Região Norte (36,2%) e na Região de Lisboa e Vale do Tejo (28,1%). É, assim, uma amostra que não é estatisticamente representativa dos diferentes agentes sociais, como referido, mas que tem uma dimensão significativa e uma segmentação que privilegia os mais escolarizados, os que têm mais idade (com mais vivências e maior experiência profissional) e os que residem em regiões mais povoadas.
Nível de escolaridade | Nº | % | Grupo etário | Nº | % | Região | Nº | % | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Ensino Básico | 13 | 1,8 | 18-24 anos | 30 | 4,2 | Região Norte | 259 | 36,2 | ||
Ensino Secundário | 60 | 8,4 | 25-44 anos | 274 | 38,3 | Região Centro | 144 | 20,1 | ||
Licenciatura ou Mestrado | 512 | 71,5 | 45-64 anos | 366 | 51,1 | Região de LVT | 201 | 28,1 | ||
Doutoramento | 130 | 18,2 | 65 ou mais anos | 46 | 6,4 | Região do Algarve | 49 | 6,8 | ||
Sem resposta | 1 | 0,1 | Total | 716 | 100 | Região do Alentejo | 51 | 7,1 | ||
Total | 716 | 100 | Regiões Autónomas | 12 | 1,7 | |||||
Total | 716 | 100 |
2. A perceção dos inquiridos face aos problemas do ordenamento do território
Com a inferência e interpretação dos resultados obtidos, através de um conjunto de análises, pretende-se procurar entender e sistematizar os discursos dos cidadãos (Coutinho, 2018). Desta forma, parte-se de uma exploração inicial dos problemas mais e menos percecionados, para depois se avançar para uma reflexão mais robusta dos relacionamentos estabelecidos entre os inquiridos e os problemas. A visualização da rede bipartida (fig. 2), que organiza a informação e revela as interações múltiplas estabelecidas entre os inquiridos e os problemas do ordenamento do território, reflete a intensidade e as geometrias variáveis das ligações.
Recorrendo ao cálculo das medidas de centralidade da ARS, é possível identificar que problemas são mais ou menos centrais (“importantes”) na análise ou, por outras palavras, que problemas são mais ou menos percecionados pelos inquiridos. Como forma de ilustrar a maior ou menor importância dos diferentes problemas nos discursos dos indivíduos apresentam-se os valores referentes à centralidade de grau (degree) e à intermediação (betweenness) (quadro II e fig. 3). Complementarmente, expõem-se os valores relativos à proporção de contributos recebidos para cada um dos problemas (fig. 4). Assim, no que respeita aos resultados obtidos, verifica-se que há três problemas que claramente sobressaem nos discursos:
O problema 2: degradação e perda de recursos naturais (corresponde a 20,8% dos contributos). É o problema mais central de toda a análise: o mais percecionado pelos indivíduos e o que está relacionado com um maior número de outros problemas;
O problema 17: insuficiente cultura de cooperação e de trabalho em rede (corresponde a 12,7% dos contributos);
O problema 11: desajustes no sistema de transportes (corresponde a 10,3% dos contributos).
As medidas de centralidade evidenciam que são problemas transversais às perceções dos diferentes grupos de indivíduos (independentemente do grupo etário, nível de escolaridade, contexto de residência) e que assumem significativa importância relativamente a todos os outros problemas. Em conjunto, receberam mais de 40% dos contributos escritos validados.
Existe também um conjunto de problemas que foram pouco valorizados pelos inquiridos, e cujas interligações estabelecidas são menos intensas e percetíveis (quadro II, fig. 3 e fig. 4):
O problema 3: ineficiente utilização dos recursos e produtos (apenas com 1,3% dos contributos);
O problema 10: bolsas de pobreza, de segregação e exclusão social (apenas com 1,4% dos contributos);
O problema 12: assimetrias territoriais no acesso e uso das novas tecnologias (apenas com 0,4% dos contributos). É o problema menos percecionado pelos indivíduos e o menos central na análise.
Em conjunto, estes três problemas receberam menos de 60 contributos e representam pouco mais de 3% do total de participações.
Problemas do ordenamento do território | Grau (degree) | Intermediação (betweenness) |
---|---|---|
Problema 2 | 306 | 119 929,090 |
Problema 17 | 176 | 52 683,572 |
Problema 11 | 167 | 46 592,199 |
Problema 7 | 136 | 40 667,700 |
Problema 4 | 103 | 20 676,037 |
Problema 1 | 123 | 37 976,391 |
Problema 15 | 98 | 20 890,227 |
Problema 5 | 95 | 21 359,573 |
Problema 18 | 76 | 17 558,495 |
Problema 8 | 52 | 11 797,655 |
Problema 14 | 51 | 6 694,519 |
Problema 6 | 45 | 8 514,236 |
Problema 13 | 35 | 5 112,950 |
Problema 9 | 29 | 2 169,455 |
Problema 16 | 34 | 6 243,644 |
Problema 3 | 25 | 3 793,262 |
Problema 10 | 23 | 3 035,943 |
Problema 12 | 7 | 102,052 |
Nota: Valores ordenados por ordem decrescente da centralidade de grau (degree).
Identificados os problemas centrais e os menos percecionados, importa agora perceber se existem semelhanças de resposta entre os respondentes, e se essa proximidade constrói comunidades, no que respeita às perceções face aos problemas e às características individuais dos próprios inquiridos (fig. 5 e quadro III).
Assim, verifica-se que, atendendo às respostas, há efetivamente semelhanças e proximidades que se constroem entre os respondentes, originando que os indivíduos se organizem em grupos de acordo com os problemas que percecionam e as suas características individuais (grupo etário, níveis de escolaridade, contexto de residência). Identificaram-se cinco comunidades de indivíduos, que variam em número e em forma: por um lado, comunidades que são mais heterogéneas e abrangentes; por outro, comunidades que são mais uniformes e distintas
O quadro III apresenta uma compilação sintetizada das caraterísticas individuais presentes em cada comunidade de inquiridos e os problemas mais percecionados por esses indivíduos.
Em primeiro lugar, observa-se um grupo abrangente (comunidade 1, com 45,5% dos indivíduos), que conjuga uma diversidade de cidadãos, ligados ou não ao ordenamento do território, com diferentes idades e escolaridades, e vários contextos urbanos residenciais. Depois surgem três grupos (comunidades 2, 3 e 4), que em conjunto incluem 47,9% dos inquiridos, refletindo as estruturas de pensamento mais relacionadas com os indivíduos associados à prática do planeamento e ordenamento do território. Estas três comunidades exibem indivíduos com características diferenciadas. E, por fim, identifica-se um grupo (comunidade 5) que agrega as perceções das populações mais jovens e em início de atividade profissional, com 6,6% dos indivíduos.
A comunidade 1 (C1), que absorve os contributos de quase metade dos indivíduos (45,5%), é muito estruturada pelas problemáticas ambientais, sobretudo relacionadas com a degradação e perda de recursos naturais (36,4%) e os riscos e as alterações climáticas (9,1%), e pela insuficiente oferta de sistemas de transportes (14,4%). Assim, trata-se de uma comunidade alargada e heterogénea integrando uma diversidade de indivíduos (de diferentes idades e níveis de escolaridade), onde profissionais do ordenamento do território convivem com os cidadãos em geral (designadamente população mais jovem). É uma comunidade que está focada num número reduzido de preocupações, pois os restantes problemas têm participações dispersas e muito menos representativas. São discursos comuns, sobretudo generalistas, e pouco aprofundados.
As comunidades 2, 3 e 4, onde a presença dos ativos do ordenamento do território é mais elevada, são as mais ricas nas problemáticas de ordenamento de território identificadas.
A comunidade 2 (C2) enquadra profissionais do ordenamento do território com idades médias mais avançadas, evidenciando carreiras profissionais mais longas. As preocupações territoriais dirigem-se para um conjunto diversificado de problemas, que vão desde a insuficiente cultura de cooperação e trabalho em rede (14%) e o défice de racionalidade territorial no investimento público (7,8%), passando pelas problemáticas ambientais, da degradação e perda de recursos naturais (9%), a ineficiência energética e intensidade carbónica na economia (8,7%), mas também pelos problemas da mobilidade, associados à fraca disponibilidade de transportes (9,4%). Estes cinco problemas incorporam perto de 50% das preocupações, o que significa que as perceções são ainda mais variadas.
A comunidade 3 (C3) inclui 15,1% dos indivíduos, com profissionais com idades mais jovens residentes na Região do Norte ou de Lisboa e Vale do Tejo (cerca de 70%) com uma significativa expressão das duas áreas metropolitanas. Aqui, desenvolvem-se narrativas sobretudo refletindo grandes preocupações relativamente à incipiente cultura de cooperação (30,6% dos indivíduos). O centralismo, a carga burocrática dos sistemas públicos e a falta de cooperação interinstitucional são narrativas aqui evidenciadas. A desqualificação urbana e o insuficiente planeamento e gestão urbana também se evidenciam claramente (29,2%). O défice de cultura do território (11,8%) e os problemas de ineficiência energética e intensidade carbónica (9%) completam as preocupações mais manifestadas. Nestes quatro problemas concentram-se mais de 80% das narrativas, mostrando uma cultura territorial focada nos desafios relacionados com as problemáticas urbanas e com questões atualmente estruturantes no planeamento territorial (a cultura territorial e as redes de cooperação multiescalares e multinível).
A comunidade 4 (C4) integra 9,5% dos indivíduos, com idades ativas intermédias, existindo uma representatividade regional mais equilibrada. Aqui as narrativas dirigem-se sobretudo para a degradação e perda de recursos naturais (37%), para o envelhecimento da população e o abandono dos territórios (9,3%), focando-se também na desqualificação urbana e nas ineficiências energéticas e a intensidade carbónica. É uma comunidade que concentra cerca de 69% dos seus contributos nestes quatro problemas, refletindo preocupações territoriais transversais aos contextos urbanos e rurais.
A comunidade 5 (C5) evidencia-se pela sua juventude, marcada pela presença de estudantes e profissionais em início de carreira, concentrando 6,6% dos indivíduos. Os contributos dispersam-se por várias problemáticas, que vão desde os transportes (20%), os riscos e as alterações climáticas (14,2%), a desqualificação urbana (13,3%), o envelhecimento populacional e o abandono territorial (7,5%), até ao défice de racionalidade territorial no investimento público (7,5%). São narrativas transversais, que refletem os processos de aprendizagem ainda em curso.
Para a identificação dos problemas mais percecionados, selecionaram-se os problemas com valores acima de 7,5%.
De fora dos principais discursos fica claramente um conjunto de problemas que os indivíduos percecionam com menor frequência. Poderá ser porque não têm informação suficiente que lhes permita desenvolver essas problemáticas, ou poderá significar menores níveis de sensibilidade a alguns problemas do ordenamento do território. De qualquer forma, entende-se que, na maioria das situações, o número pouco significativo de contributos poderá estar relacionado com o facto de os indivíduos considerarem que não possuem informações ou conhecimentos a acrescentar à reflexão.
Os problemas relacionados com o tecido económico e a atratividade socioeconómica, as problemáticas sociais (designadamente, a habitação e a oferta de serviços), o desperdício de solo urbanizado e infraestruturado e os constrangimentos à disponibilização de informação geográfica têm pouca representatividade nos discursos. Embora ausentes nos contributos, são problemáticas que se agudizaram nos últimos anos, e que hoje dominam os debates e a comunicação social.
V. Discussão dos resultados e considerações finais
O ordenamento do território tem de passar a ser uma cocriação, fruto da articulação entre o Estado, a sociedade civil, o setor privado e o terceiro setor, num processo de governança mais colaborativo e construtivo (Allmendinger, 2017; Dumont, 2022; Nel.lo, 2018; Pereira, 2009). A sociedade tem de se articular e colaborar em torno de valores e consensos territoriais. O desenvolvimento de políticas e de tomadas de decisão coletivas exigem novas formas de produção de informação e conhecimento e novos processos de tomada de decisão (Davoudi, 2023). É preciso conciliar valores e preferências, bem como criar uma compreensão comum dos problemas e das oportunidades (Davoudi, 2012, 2017). O papel dos cidadãos é fundamental, não só para a identificação dos problemas, mas também das causas e das possíveis soluções (Marques et al., 2019; Veneza & Marques, 2013).
Em termos de objetivos da investigação, o estudo que aqui se apresenta pretende dar contributos para a produção de conhecimento sobre a cultura do território e do ordenamento do território. Reconhecendo que, tal como afirma Ferrão (2014, pp. 115-116), “escasseiam em Portugal estudos sobre as culturas de território e de ordenamento do território”.
As técnicas de análise selecionadas (análise de conteúdo e análise de redes sociais) demonstraram ser adequadas para sistematizar e representar, de forma compreensível e comunicativa, as perceções dos indivíduos e o grau de proximidade entre eles, atendendo à semelhança em matéria de perceções dos problemas de ordenamento do território. A análise de redes sociais é uma técnica muito utilizada na investigação sobre interações entre indivíduos, instituições, etc., e tem vindo a ser implementada em diversos âmbitos. Exploramos aqui uma nova abordagem metodológica, de caráter experimental: a utilização da ARS no estudo das culturas territoriais. Esta abordagem demonstrou ser relevante ao permitir, não só, avaliar as diferentes interações estabelecidas entre os indivíduos e os problemas do ordenamento do território (identificando os problemas de maior centralidade e importância), mas ao possibilitar também a organização de grupos de indivíduos (comunidades) em função do grau de proximidade ou semelhança entre os diferentes contributos individuais (perceções e discursos relativos aos problemas).
Os resultados obtidos identificaram os problemas de ordenamento do território com maior centralidade nas perceções dos indivíduos e os problemas que são mais periféricos. Os que têm maior centralidade são: a degradação e perda de recursos naturais (problema 2), a insuficiente cultura de cooperação e de trabalho em rede (problema 17) e os desajustes no sistema de transportes (problema 11). Os que têm menor centralidade são: as bolsas de pobreza, de segregação e exclusão social (problema 10), a ineficiente utilização dos recursos e produtos (problema 3) e as assimetrias territoriais no acesso e uso das novas tecnologias (problema 12). Isto significa que, no conjunto dos 18 problemas identificados no PNPOT, existem alguns que precisam de ser mais difundidos, pois as populações têm uma insuficiente informação sobre os mesmos, e isto tem implicações nas suas perceções relativamente ao território e aos problemas do ordenamento do território.
Os resultados evidenciam também a existência de comunidades, de geometrias variáveis, que agrupam uma heterogeneidade de indivíduos que partilham formas semelhantes de percecionar as problemáticas territoriais. Isto significa que os respondentes têm visões diferenciadas relativamente à intensidade dos problemas do território, o que evidencia a diversidade de culturas territoriais existentes. As comunidades identificadas refletem diferentes perceções dos problemas, vinculadas pelo relacionamento dos indivíduos com o ordenamento do território e pelas suas características individuais (idades, escolaridade e locais de residência). Deste modo, entende-se que as vivências, as aprendizagens, os modos e os momentos de vida interferem na forma como os indivíduos encaram o território e percecionam os problemas do ordenamento do território. Isto reflete-se em termos de cultura territorial (Ferrão & Mourato, 2010; Mourato, 2011a). Os discursos fazem evidenciar diferentes valores, crenças e perceções pessoais dos cidadãos (ambiente societal), mas também importantes diferenças na comunidade técnica e científica (ambiente do planeamento) (Knieling & Othengrafen, 2009a, 2009b), conforme discutido no ponto II.
O facto de persistirem visões muito generalistas e focadas sobretudo num número reduzido de problemas demonstra o longo caminho a percorrer em matéria de reforço do conhecimento sobre o ordenamento do território e da perceção dos atuais valores ou princípios territoriais inscritos no PNPOT (Carmo & Marques, 2019, p. 50). Para se desenvolver uma nova cultura de território e de ordenamento do território é preciso refletir o processo de mudança: como se constrói um processo de aprendizagem em torno dos princípios territoriais (Davoudi, 2023; Ferrão, 2014; Ferrão & Mourato, 2010; Marques et al., 2019).
Um maior envolvimento dos cidadãos no ordenamento do território poderia contribuir para reforçar trocas de experiências e diferentes pontos de vista, de forma a disseminarem-se os novos valores territoriais e a desenvolverem-se práticas de planeamento mais consensualizadas coletivamente (Ascher & Apel-Müller, 2007; Nel.lo, 2018). Entende-se que mobilizar a sociedade em torno de compromissos territoriais exige tempo, quer para assimilar informação e conhecimento, quer para estimular processos coletivos de envolvimento e mudança cultural (Bina & Pereira, 2021; Habermas, 1987; Healey, 2023; Matos, 2012; Pereira, 2009). Atendendo a isto, é preciso dinamizar ações que possam acelerar estas mudanças culturais, pois atualmente, as perceções estão ainda muito enraizadas em visões e práxis tradicionais, a ação política e administrativa é ainda pouco favorável à coordenação intersectorial de base territorial e a comunidade técnico-profissional e científica é disciplinarmente fragmentada e geradora de conflitos. Isto repercute-se numa fraca valorização e afirmação da política de ordenamento do território (Ferrão, 2014; Marques et al., 2019). Como referem vários autores (Berisha et al., 2021; Cotella et al., 2021; Davoudi, 2023; Healey, 2023), é preciso garantir um conjunto de mecanismos (condições institucionais e comportamentais) que assegurem a implementação de uma nova estratégia de ordenamento territorial.
Contributos das autoras
Catarina Maia: Conceptualização; Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Investigação; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição. Teresa Sá Marques: Conceptualização; Metodologia; Validação; Análise formal; Redação - revisão e edição; Supervisão.
Agradecimentos
As autoras agradecem ao Prof. Dr. Hélder Alves e ao Dr. Diogo Ribeiro o apoio à conceção do modelo metodológico suportado na Análise de Redes Sociais (ARS). Catarina Maia agradece o suporte da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), SFRH/BD/124458/2016, no âmbito do qual se enquadra este projeto de investigação.