I. Introdução
A descarbonização dos sistemas energéticos, por via da transição para formas de produção de energia renovável, desempenha um papel fundamental para o desenvolvimento sustentável (Pan et al., 2023). Nas últimas décadas, a transição energética tem sido promovida e orientada por políticas numa ótica de redução das emissões de gases com efeito de estufa (Jaforullah & King, 2014) e mitigação das alterações climáticas (Olabi & Abdelkareem, 2022). Esta transição global é considerada essencial para limitar as alterações climáticas de origem antropogénica (Intergovernmental Panel on Climate Change [IPCC], 2022) a um aquecimento médio global inferior a 2°C até 2050 (Gardiner et al., 2023).
Neste sentido, o aumento da produção de energia a partir de fontes renováveis revela-se um objetivo de política a diferentes escalas e promovido por vários atores de forma multisetorial. A nível global, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, promovidos pela Organização das Nações Unidas, constituem um dos quadros de referência comum para a integração nas políticas e regulamentações nacionais para uma crescente produção de energia limpa e garantia de acesso universal (Pan et al., 2023). Anteriormente, o desafio de descarbonização e a promoção de transformações nos sistemas energéticos tinha sido impulsionada pelo Protocolo de Quioto (1997). Recentemente, em 2015, a ambição de sistemas energéticos de baixo carbono foi significativamente reiterada e os compromissos reforçados num conjunto de ações globais, como os Acordos de Paris (United Nations Framework Convention on Climate Change [UNFCCC], 2018), e posteriormente na COP22, em 2016, com um conjunto de restrições à geração de energia a carvão e gás e o comprometimento de cerca de duas centenas de países com a neutralidade carbónica nas próximas décadas (Ghezloun et al., 2017).
A nível europeu, salientam-se diversos programas que refletem a transição energética numa perspetiva integrada das políticas climáticas e energéticas (Skjærseth, 2021). Desde a Diretiva Europeia para as Energias Renováveis (2018/2011/EU), que estabelece o enquadramento jurídico aplicável aos Estados-membros e que foi alvo de sucessivas revisões com o propósito de incrementar as metas de produção renovável, ao Pacto Verde Europeu (COM/2019/640), uma iniciativa de descarbonização estruturalmente transformadora das economias europeias (Wolf et al., 2021), passando por estratégias e pacotes mais específicos, as políticas energéticas europeias têm-se pautado por um crescimento de ambição e abrangência.
Ultimamente, a invasão da Ucrânia, em 2022, gerou um aumento do preço dos produtos energéticos de origem fóssil no continente europeu (Osička & Černoch, 2022). A histórica relação de dependência energética da União Europeia (UE) face à Rússia (Dannreuther, 2016) levou à reemergência da incorporação de renováveis no consumo de energia como uma questão vital para a segurança energética (Kuzemko et al., 2022). A conjuntura de crise energética (Liu et al., 2023) marcou uma alteração de postura das instituições políticas europeias com uma revisão em alta das principais metas, salientando-se a proposta de revisão da Diretiva Energias Renováveis, com o intuito de impulsionar a implementação de novos centros electroprodutores renováveis. Para acelerar ainda mais a concretização da transição energética, a Comissão Europeia propôs, em 2022, o programa REPowerEU (Vezzoni, 2023), com vista a reduzir rapidamente a dependência excessiva da UE em relação às importações russas de gás, petróleo e carvão. Associado ao REPowerEU, surgiu a Estratégia da UE para a Energia Solar que visa atingir os 320GW de potência instalada de energia solar fotovoltaica até 2025 (mais do dobro da capacidade instalada acumulada na UE até 2020) e quase 600 GW até 2030, prevendo-se que estas capacidades adicionais antecipadas substituam o consumo anual de 9 mil milhões de m3 de gás natural até 2027 (COM/2022/221).
Nesta sequência, é incontestável que a transição energética para as renováveis é, predominantemente, orientada por uma abordagem baseada em políticas (policy-driven), representando uma visão ancorada na sustentabilidade. No entanto, o progresso e inovação tecnológica em termos de eficiência de uso do solo podem ainda não ser suficientes para uma rápida descarbonização (Al-Mulali et al., 2016; Fouquet, 2010). Por isso, a densidade de potência (W/m2) das energias renováveis é significativamente menor do que as fontes de energia fóssil (Nøland et al., 2022). Esta diferença de magnitude leva a que o consumo de solo das infraestruturas renováveis seja superior, colocando importantes desafios à gestão territorial no contexto de transição energética.
Dado que a descarbonização do sistema energético gerará uma crescente procura por solo, competindo com outros usos e impactando ecossistemas, este estudo propõe o desenvolvimento de um modelo de localização com base no nexo território-energia. O seu propósito é a otimização da localização de parque solares numa perspetiva de sustentabilidade, garantindo maior coerência entre a organização espacial do sistema elétrico e o desenvolvimento territorial sustentável. Identificaram-se para este efeito, com base nas narrativas bibliográficas discutidas na secção teórica deste artigo, quatro pressupostos: (i) otimização do potencial de produção; (ii) minimização da transformação do território; (iii) proteção de áreas naturais e usos/ocupações do solo relevantes; e (iv) restrição à concentração espacial. Em termos metodológicos, numa primeira fase desenvolveu-se um índice espacial para classificar o território continental português num gradiente de acordo com a sustentabilidade para a implantação de parques solares. Numa segunda fase, o índice obtido foi utilizado numa perspetiva de monitorização ex-ante dos projetos planeados (≥ 1 MW).
O artigo organiza-se em seis secções. A primeira é a presente introdução, seguindo-se o enquadramento teórico e uma terceira secção com a apresentação da realidade nacional. A quarta secção corresponde à componente metodológica. Posteriormente, na quinta secção os resultados são sumarizados. Na sexta e última secção são discutidos os resultados à luz das suas implicações para o planeamento territorial, sendo rematados por breves parágrafos conclusivos.
II. Enquadramento teórico
A energia solar fotovoltaica é antecipada, de acordo com a Internacional Renewable Energy Agency ([IRENA], 2023), como a fonte que terá o maior crescimento previsto para os próximos anos e, por conseguinte, pode emergir como a principal origem de desafios e conflitos. Os conflitos que emergem da transição energética são variados e a ambição de acelerar esta mudança gera maior procura e pressão no território. Retirando da análise as questões extrativistas e de ciclo de vida (Granovsky-Larsen & Larreátegui Benavides, 2023), destacam-se os conflitos institucionais/políticos e de uso do solo relativos à materialização das infraestruturas no território (Farinós-Dasí, 2022; Koelman et al., 2018, 2022). Os primeiros, decorrentes da insuficiente articulação dos diferentes níveis de gestão territorial e da deficiente integração do planeamento setorial da energia no ordenamento do território, agravam os segundos. São notórios exemplos na literatura de externalidades ao nível de alterações controversas no uso e ocupação do solo. Por exemplo, Hernandez et al. (2015) identificaram que no estado da Califórnia (Estados Unidos da América), cerca de 30% dos parques solares foram construídos em áreas de agricultura e pastagem. Além disso, os autores verificaram impactes nas proximidades a áreas protegidas. Poggi et al. (2018), numa análise ao município de Loures (Portugal), assinalaram alguns projetos solares e eólicos que levaram também à conversão de áreas agrícolas e florestais. Os autores sugerem a emergência de uma dicotomia funcional entre a preservação de solos com forte potencial agrícola e a expansão da produção de energias renováveis nas áreas rurais. À escala global, a investigação de Rehbein et al. (2020) sugere que a extensão da sobreposição, atual e futura, de instalações de energias renováveis com áreas de conservação, irá comprometer objetivos de conservação da biodiversidade. Cole et al. (2022), num diagnóstico extensivo às alterações no uso do solo no Reino Unido, reportaram dinâmicas significativas de conversão de áreas agrícolas em infraestruturas de produção de energia renovável. Os autores estimam que 72% das áreas correspondentes a transição de agricultura para a classe “Indústria, comércio e equipamentos gerais” da carta CORINE Land Cover se deveram à implantação de parques solares. Barral et al. (2023) evidenciaram, numa análise às regiões do sul da Península Ibérica, que o crescimento da superfície ocupada por centrais solares levou a importantes transformações nas paisagens. Até 2020, os autores contabilizaram que, dos mais de 8 mil ha de área de parques solares, 77% tinha um aproveitamento agrícola anteriormente. Além disso, os potenciais impactes ambientais destas infraestruturas são abrangentes (Abbasi & Abbasi, 2012; Hernandez et al., 2014), muitas vezes com prejuízos que extravasam a área de implantação (Niebuhr et al., 2022).
Perante a corrida à neutralidade carbónica, é expectável que os padrões futuros de ocupação do solo com um crescimento significativo da área dedicada a parques solares, venha a intensificar alguns destes efeitos negativos na biodiversidade (Levin et al., 2023). No entanto, a literatura científica também destaca exemplos de impactes positivos, co-benefícios (Blaydes et al., 2021; Guoqing et al., 2021) e oportunidades de compatibilização com outros usos e funções produtivas (Weselek et al., 2019), sinalizando uma perspetiva mais otimista e até de coexistência benéfica resultante das implicações territoriais da produção de energia renovável.
Perante esta ambivalência relativamente ao tópico e numa tentativa de balancear diferentes interesses que se desenvolvem no espaço geográfico, torna-se imperativo conceber estratégias que assegurem padrões de localização coerentes com outros objetivos de planeamento, visando minimizar os impactes ambientais e maximizar os benefícios sociais. Também a avaliação de impactes e de políticas públicas, nas suas diferentes fases, ganham relevância. Isso só é possível com a melhor informação técnico-científica disponível. É neste campo que a modelação espacial em Sistemas de Informação Geográfica (SIG) pode auxiliar com o desenvolvimento de sistemas espaciais de apoio à decisão, análise geográfica e indicadores de monitorização para garantir escolhas estratégicas de localização (Guaita-Pradas et al., 2019; Zardo et al., 2023).
A identificação de localizações para a produção de energia solar de modo a minimizar os impactes associados emerge como uma questão relevante no contexto de um planeamento territorial focado na sustentabilidade. Se o termo sustentabilidade tem sido considerado como indissociável da produção de energia renovável - utilizando-se, por vezes, a expressão “sistemas energéticos sustentáveis” como sinónimo a sistemas energéticos renováveis/baixo carbono -, assumindo que a descarbonização da produção de energia representava inequivocamente o percurso para a sustentabilidade (Kabeyi & Olanrewaju, 2022), tem surgido na literatura um conjunto de interpretações mais cuidadosas e complexas doravante dos impactes destes modos de produção e a necessidade de equilibrar perspetivas em conflito (Eichhorn et al., 2019; Moore-O’Leary et al., 2017; Valera et al., 2022). A sustentabilidade enquanto conceito de políticas definido no relatório de Brundtland como aquele que “permite satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades” (World Commission on Environment and Development [WCED], 1987) não tem uma tradução territorial facilmente mensurável (Böhringer & Jochem, 2007). A sua definição requer a convergência de um conjunto de premissas e a literatura não é ainda consensual sobre os indicadores de base territorial indispensáveis a uma solução que compatibilize a produção de energia renovável com as dimensões económicas, ambientais e sociais da sustentabilidade.
No entanto, há um conjunto de elementos e características sob os quais existe concordância. Há um consenso alargado do potencial existente em áreas urbanizadas, degradadas e improdutivas (Hernandez et al., 2019), com o objetivo de minimizar o consumo de solo e restringir a ocupação de áreas com elevada aptidão agrícola (Hermoso et al., 2023). No campo da ecologia, é recomendada a ocupação de áreas caracterizadas por um baixo valor ecológico, de forma a priorizar a compatibilização com a preservação da biodiversidade (Cameron et al., 2012). As áreas designadas como protegidas, de reserva e com classificação semelhante devem ser especialmente consideradas (Hernandez et al., 2015). Além disso, destaca-se a importância de minimizar os impactes ecológicos cumulativos decorrentes da concentração espacial de infraestruturas (Moore-O’Leary et al., 2017). Numa orientação mais técnica, e com o propósito de minimizar as transformações no território, é crucial a proximidade das redes de transporte e distribuição de eletricidade, bem como a proximidade entre as áreas de produção e consumo (Hernandez et al., 2015).
Contudo, como demonstrado por Stremke & Dobbelsteen (2013), este tipo de análises não se confinam a uma única escala, pelo que o tipo de abordagens e variáveis a considerar é influenciado pelo detalhe que se pretende. Além disso, diferentes atores e disciplinas têm conceções diferenciadas sobre o que constitui a sustentabilidade no contexto da produção de energia. Desta forma, encontram-se na literatura diferentes níveis de análise, variando desde estudos pormenorizados em que o conceito é definido de forma precisa e mensurável, até abordagens mais simplificadas numa conceção mais aberta e difusa.
III. O contexto português
A relevância do contexto português como caso de estudo é fundamentada em múltiplos aspetos. Em particular, quatro aspetos são elencados.
O primeiro resulta da aptidão do território e elevado potencial de produção de energia solar, que leva a que o país seja atrativo a investimentos para parques solares. O seu posicionamento no extremo sudoeste europeu, favorável a uma elevada irradiação solar (~1400-2000 kWh/m2/ano; Silva et al., 2020), destaca Portugal como um dos países da UE com maior potencial de aproveitamento energético do sol (Perpiña Castillo et al., 2016).
O segundo resulta de um “atraso” que o país apresenta em termos de capacidade solar instalada, significativamente inferior a outros países europeus em contextos climáticos menos propícios ao aproveitamento solar. Em Portugal, a trajetória de descarbonização do sistema elétrico tem sido alcançada maioritariamente por meio da produção hidroelétrica e eólica, que apresentavam, em 2022, respetivamente, uma capacidade instalada de 8,1 GW e 5,7 GW (fig. 1). Por sua vez, a potência instalada solar fotovoltaica foi de apenas 2,6 GW, dos quais 1,5 GW foram instalados após 2020. Apesar da localização geográfica privilegiada, Portugal ocupava, em 2022, apenas a 18ª posição em termos de capacidade solar instalada na UE-27 (EUROBSERV’ER, 2023). Neste sentido, não só persiste um vasto potencial de desenvolvimento ainda por explorar, como uma ambição de recuperar este atraso.
O terceiro aspeto deriva da evolução das políticas energéticas e estratégias de descarbonização que se têm pautado por uma tendência de incremento significativo das metas de incorporação de renováveis no consumo final bruto de energia e, como tal, ambiciosas visões para o aumento da capacidade instalada no país. Nos próximos anos a instalação de novos centros eletroprodutores renováveis tem de aumentar de forma consistente para alcançar as metas do Plano Nacional Energia e Clima (PNEC) e do Roteiro Nacional para a Neutralidade Carbónica (RNC). A revisão, em 2023, do PNEC aponta para 20,4 GW de solar fotovoltaica instalada (dos quais 14,9GW centralizado) até 2030 (fig. 2), levando a que a energia fotovoltaica se torne a tecnologia com maior potência instalada no país. Deste modo, a instalação de nova potência terá de crescer cerca de oito vezes face à existente. Assumindo uma intensidade de uso do solo das centrais solares fotovoltaicas centralizadas entre 2,5ha/MW e 7,5ha/MW - valores baseados na análise de Calvert e Mabee (2015) - é possível projetar a área potencialmente ocupada, em 2030, para os 14,9GW antecipados. Com base nestes extremos, podemos estimar que os requisitos de ocupação do solo sejam de 37-111 mil ha. Isto traduz-se em 0,4-1,3% da área de Portugal continental (excluindo os 5,5GW de solar descentralizado). Os resultados deste simples exercício estão em consonância com outras estimativas de maior complexidade. Por exemplo, van de Ven et al. (2021) calcularam que, no contexto europeu, com uma penetração solar estimada entre 25% e 80% da produção de eletricidade em 2050, a ocupação relativa do solo pelas infraestruturas associadas deverá situar-se entre 0,5% e 2,8% da área total da comunidade europeia. Desta forma, ressalta-se a complexidade de implementação da transição energética no território, dadas as rápidas transformações que se avizinham.
O quarto e último aspeto está relacionado com importantes alterações na legislação do setor energético e ambiental, sobretudo no que se refere à simplificação dos processos de licenciamento. Em consequência do REPowerEU, a Comissão Europeia incitou os Estados-membros a acelerar os procedimentos de concessão de licenças para projetos de energia renovável (CE/2022/3219). Em Portugal, isto traduziu-se numa série de alterações de desregulação nos processos de licenciamento, incluindo a criação de isenções a avaliação de impacte ambiental (Decreto-Lei n.º 30-A/2022, de 18 de abril: República Portuguesa, 2022a) e no controlo prévio de operações urbanísticas (Decreto-Lei n.º 72/2022, de 19 de outubro; República Portuguesa, 2022b) e até mesmo simplificação dos processos participativos (Simplex Ambiental: Decreto-Lei n.º 11/2023, de 10 de fevereiro; República Portuguesa, 2023). Estas mudanças têm o potencial de estimular a construção de novas infraestruturas por um lado, enquanto, por outro, levantam preocupações sobre a localização e a sua conformidade com regras de proteção ambiental. Ainda num esforço de assegurar que esta aceleração decorre numa implementação que não comprometa outros valores ambientais e territoriais, promoveu-se a identificação de “go-to areas”, ou seja, áreas de menor sensibilidade (ambiental e patrimonial) que se constituem como prioritárias a um processo de licenciamento mais simplificado para centros electroprodutores do tipo solar e eólica (Simões et al., 2023).
Esta conjugação de fatores torna Portugal um caso de estudo muito relevante face à temática. Antecipando-se uma tendência de expansão significativa do número e área de centros electroprodutores renováveis que impactará diferentes dimensões do território, é de esperar que as transformações territoriais para a concretização da transição energética constituir-se-ão provavelmente como elementos preponderantes na configuração de alterações no uso e ocupação do solo nos próximos anos.
IV. Metodologia
A metodologia adotada compreendeu um conjunto de técnicas de análise espacial em SIG, juntamente com a integração de informação numa AMC.
1. Dados
A partir da literatura apresentada na secção introdutória, foram selecionadas nove variáveis (quadro I), combinando indicadores representativos das narrativas bibliográficas, considerados relevantes para a implantação de projetos de energia renovável.
Dados (período) | Tipo | Fonte |
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Centrais solares (dezembro 2022) | Vetorial (pontos e polígonos) | Direção-Geral de Energia e Geologia |
Centrais hídrica (dezembro 2022) | Vetorial (pontos) | |
Centrais eólicas (dezembro 2022) | Vetorial (pontos) | |
Áreas urbanas da Carta de Uso e Ocupação do Solo (2018) | Vetorial (polígonos) | Direção-Geral do Território |
Serviços de ecossistema do uso e ocupação do solo (2018) | Matricial | Cabral et al. (2021) |
Modelo digital de terreno (2011) | Matricial | Copernicus - EU DEM |
Rede NATURA 2000 (2023) | Vetorial (polígonos) | Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas |
Rede Nacional de Áreas Protegidas - RNAP (2023) | Vetorial (polígonos) | |
Linhas da rede de transporte de eletricidade de média, alta e muito alta tensão (2023) | Imagem não georreferenciada | Redes Energéticas Nacionais |
Estas variáveis foram transformadas em sete fatores de aptidão, ou seja, indicadores quantitativos (normalizados linearmente para a escala 0-100) que classificam as unidades de análise pela sua aptidão: (i) distância a centros eletroprodutores (solar, hídrica e eólica); (ii) distância a áreas urbanas; (iii) adequação do declive; (iv) distância à rede de transporte de eletricidade; (v) distância a áreas ecologicamente sensíveis; (vi) valor de serviços de ecossistema do uso e ocupação do solo; e (vii) potencial de produção de energia fotovoltaica.
4.1.1 Distância a centros electroprodutores (solar, hídrica e eólica)
Os dados geográficos correspondentes às unidades de produção de eletricidade renovável foram obtidos a partir da Direção Geral de Energia e Geologia (https://www.dgeg.gov.pt/pt/servicos-online/informacao-geografica/energia/energia-eletrica/). A informação sobre as centrais solares fotovoltaicas foi validada por fotointerpretação, e classificada como “em operação” ou “prevista”. A análise com recurso a imagens de satélite Sentinel-2, de dezembro de 2022, permitiu identificar 192 polígonos correspondentes a 110 números de processo de centrais solares previstas (licenciadas ou a aguardar licenciamento). As infraestruturas eólicas e hidroelétricas, disponibilizadas apenas em formato pontual, foram delimitadas de forma a abranger a sua área de implantação à semelhança da abordagem de Simões et al., (2023). A metodologia adotou um raio de 120 metros em torno das unidades eólicas, o que equivale a 1,5 vezes o diâmetro médio das pás (que, em Portugal, possui uma média de 80 metros de diâmetro), bem como um raio de 50 metros ao redor das centrais hidroelétricas, com o intuito de abranger unicamente a infraestrutura, excluindo a área da albufeira (Simões et al., 2023).
Este fator é relevante para a análise da geografia de produção de energia renovável visto que a concentração espacial de infraestruturas renováveis está associada a impactes cumulativos (Moore-O’Leary et al., 2017) e à capacidade de carga dos ecossistemas, sendo um dos fatores impulsionadores de movimentos locais de oposição (Kontogianni et al., 2014).
O escalonamento deste indicador considerou aptidão nula até uma distância de 2km entre centros electroprodutores (o referencial de 2km surge no Decreto-Lei n.º 11/2023 de 10 de fevereiro como um dos critérios para a isenção de alguns procedimentos de avaliação de impacte ambiental), crescendo de forma linear a partir deste limiar até ao máximo de distância. As centrais em operação (n=196 polígonos, ∑ 2828ha) foram utilizadas para o indicador, enquanto as centrais previstas (n=192 polígonos, ∑ 6843ha) foram excluídas da análise atual, sendo reservadas para a monitorização subsequente.
4.1.2 Distância a áreas urbanas
A proximidade das infraestruturas de produção às áreas de consumo constitui uma mais-valia na distribuição e consumo de eletricidade minimizando perdas na transmissão e menor necessidade de transformações territoriais no desenvolvimento da rede (Aly et al., 2017). Porém, a proximidade excessiva a áreas urbanas pode gerar externalidades, tais como a desvalorização no preço do solo (Elmallah et al., 2023), impactes visuais na paisagem (Ioannidis & Koutsoyiannis, 2020) e competição com outros usos e funções.
Os polígonos de áreas urbanas foram extraídos da Carta de Uso e Ocupação do Solo (COS) de 2018 produzida pela Direção-Geral do Território (DGT). Tendo em conta as classes de “Territórios artificializados” da COS 2018, excluíram-se instalações agrícolas, parques e jardins, assim como infraestruturas viárias e ferroviárias. No caso das duas primeiras por não serem áreas de elevado consumo de eletricidade, enquanto no segundo porque levariam a uma sobrestimação da proximidade a aglomerações urbanas. Face à unidade mínima cartográfica de 1ha da COS (DGT, 2019), apenas polígonos com dimensão igual ou superior são identificados estando excluídos perímetros de áreas urbanas com dimensão inferior a esse limiar.
A normalização desta variável foi realizada considerando maior aptidão em áreas próximas às áreas urbanas, exceto numa faixa imediata de 2km (distância a partir da qual a área de influência visual dos parques solares deixa de ser elevada (Diego et al., 2022) ao redor dos polígonos urbanos onde a aptidão foi definida como 0, decrescendo à medida que a distância aumenta até ao seu máximo (12km).
4.1.3 Adequação do declive
Os aspetos topográficos assumem um papel crucial na alocação do espaço necessário para a produção de energia fotovoltaica (Aly et al., 2017). Áreas aplanadas são um requisito que não só reduz a ocorrência de sombreamentos como permite conter custos infraestruturais devido ao risco de erosão e instabilidade de vertentes. No entanto, na literatura não existe concordância sobre um valor ideal. Enquanto algumas abordagens mais conservadoras consideram um declive superior a 5% como restritivo (Cameron et al., 2012), a IRENA propôs um limite máximo de 45° (IRENA, 2014). Neste contexto, esta proposta metodológica estabeleceu um limiar de 20°. No entanto, contrastando com a generalidade dos estudos, que impõem limites baixos como restrição, a nossa proposta metodológica assume um gradiente decrescente. Assim, a aptidão é máxima em áreas planas (com declive de 0°) e diminui linearmente até atingir 20°, a partir do qual a aptidão é nula.
4.1.4 Distância à rede de transporte de eletricidade
A distribuição de eletricidade desempenha um papel crucial na cadeia de fornecimento de energia elétrica, situando-se como uma etapa intermédia entre a produção e o consumo. A distância entre os pontos de geração e consumo relaciona-se com perdas de energia no transporte e implica transformações territoriais para garantir uma transmissão adequada. No contexto europeu, as expansões das redes de infraestruturas de transporte de eletricidade têm sido catalisadores de conflitos pelos impactes na paisagem e alterações no uso do solo (Dunlap, 2023). De forma a minimizar as transformações territoriais, é preferível que novos centros eletroprodutores se localizem o mais próximos possível de linhas da rede com capacidade. Por questões de disponibilidade de informação (https://datahub.ren.pt/pt/redes/) utilizaram-se apenas as linhas elétricas de média, alta e muito alta tensão. Neste contexto, considerou-se aptidão máxima (100) a mínima distância à rede e aptidão mínima (0) ao máximo de distância (55 km).
4.1.5 Distância a áreas ecologicamente sensíveis
Os impactes ambientais da produção de energia renovável representam o antagonismo de uma estratégia de descarbonização em prol da sustentabilidade. A literatura aponta para impactes da produção solar centralizada em áreas protegidas e nas suas proximidades (Hernandez et al., 2015). A implantação de um parque solar terá um impacto ambiental mais significativo ao ser instalado numa área de preservação natural. Considerando as áreas da rede NATURA 2000 e da Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP) como ecologicamente sensíveis, determinou-se aptidão nula no perímetro destas áreas. Além disso, de forma a considerar a sua envolvência numa perspetiva descrente de aptidão optou-se pela utilização de distâncias, pelo que a aptidão cresce linearmente até 100 ao máximo de distância a estas áreas (30 km).
4.1.6 Valor de serviços de ecossistema do uso e ocupação do solo
As alterações de uso e ocupação do solo provocadas pela transição energética são uma das principais consequências diretas da sua implementação. Assumir que se pode discriminar o tipo de uso/ocupação que pode ser convertido ou que devem ser conservados numa perspetiva discreta é um exercício relativo. Análises que se baseiam na distinção entre alterações controversas ou não controversas (Kiesecker et al., 2020; Simões et al., 2023) podem ser interpretadas como cientificamente subjetivas. Neste sentido, ao invés de dicotomias, é preferível uma classificação assente num gradiente quantitativo. Desde análises económicas com base na rentabilidade (Havrysh et al., 2022) até abordagens mais complexas custo-benefício, relacionando ecossistemas-alimentação-energia (Kim et al., 2022), é possível associar a cada classe um valor quantitativo que pode ser escalonado para um valor de aptidão. Para associar um valor de aptidão a cada classe de uso e ocupação do solo em linha com princípios de sustentabilidade, optou-se por uma abordagem baseada em serviços de ecossistema. Utilizou-se o valor de serviços de ecossistema através do índice Assessment of Ecosystem Services and Biodiversity in Portugal (ASEBIO) desenvolvido por Cabral et al. (2021), que tem como base as classes da CORINE Land Cover. Criou-se um indicador composto pela média aritmética dos oito serviços de ecossistema determinados pelos autores: regulação climática, purificação da água, qualidade de habitat, regulação da seca, recreação, fornecimento de alimentos, prevenção da erosão e, por fim, polinização. Valores mais elevados de serviços de ecossistema, ou seja, áreas com um potencial elevado de fornecer serviços ecossistémicos, foram convertidos numa aptidão baixa, associando, assim, a sustentabilidade dos parques solares às modificações no uso do solo em ecossistemas de menor valor.
4.1.7 Potencial de produção de energia fotovoltaica
A incidência de radiação solar é o principal fator de viabilidade de um projeto de exploração de energia solar. Para esta análise, utilizou-se a informação do Global Solar Atlas (https://solargis.com/maps-and-gis-data/download/portugal) correspondente ao potencial de produção de energia solar fotovoltaica (1994-2018). Este indicador, calculado a partir dos algoritmos Solar GIS Data, representam espacialmente o potencial teórico de produção de eletricidade fotovoltaica anual assumindo uma inclinação ótima dos módulos. Valores mais elevados foram interpretados como indicativos de aptidão máxima, com uma diminuição linear correspondente.
5. Métodos
A abordagem metodológica em SIG decorreu em diferentes fases (fig. 3). Recorreu-se a um conjunto de técnicas de análise espacial para a preparação da informação. O tratamento da informação e transformação em fatores de aptidão decorreu pelo cálculo de distâncias euclidianas e normalização da informação numa escala comum (0-100) por via de funções lineares. A transformação recorrendo a algoritmos lineares é a abordagem mais comum em AMC (Ozturk & Batuk, 2011) e, neste caso, quanto maior o valor, maior a aptidão. Posteriormente foi realizada uma análise de multicolinearidade dos fatores de aptidão recorrendo ao fator de inflação da variância (VIF), de forma a despistar potencias redundâncias nos dados.
Posteriormente, a integração dos fatores de aptidão num índice composto decorreu por via de uma combinação linear ponderada (CLP). A integração SIG-AMC responde essencialmente a problemas de decisão espacial que envolvem normalmente um grande conjunto de alternativas viáveis e critérios de avaliação múltiplos, contraditórios e incomensuráveis (Malczewski, 2006). Na AMC, as variáveis são assumidas como uma condição que se pretende avaliar e influenciam a tomada de decisão, existindo fatores de aptidão e critérios de exclusão. Os fatores, por via de atribuição de pesos e importâncias diferenciadas, permitem avaliar um gradiente de aptidão, enquanto os critérios de exclusão são entendidos como restrições que limitam as alternativas em consideração. Este tipo de abordagem SIG-AMC tem sido aplicado a diferentes tipos de energia renovável (Aly et al., 2017; Janke, 2010; Moradi et al., 2020), permitindo identificar soluções quantificadas para apoio à decisão.
Todos os fatores foram considerados com igual grau de importância na composição do índice através de CLP, assumindo uma abordagem abrangente e holística. A utilização de diferentes ponderações, neste contexto, carece de apoio bibliográfico e revela-se complexa, especialmente pela dificuldade em isolar dimensões específicas, como a económica, ambiental e social, uma vez que cada fator pode abranger questões que transcendem uma única dimensão. Não se consideraram critérios de exclusão, já que o objetivo do índice composto não é resultar em localizações específicas nem restringir soluções, mas sim de explorar a existência de um gradiente em Portugal continental mais ou menos sustentável. Todo o processamento analítico decorreu em formato matricial com uma resolução de 100 m no sistema de referenciação recomendado para Portugal continental (PT-TM06/ETRS89).
Por fim, o resultado obtido foi cruzado com o inventário de centrais solares futuras para a componente de monitorização. A interseção permitiu contabilizar a correspondência entre os locais onde se espera a implantação dos centros electroprodutores e as áreas com os diferentes níveis do índice. Além disso, extraiu-se, para um conjunto de projetos (os dez maiores em área por número de processo), estatísticas zonais correspondentes à média dos vários fatores de aptidão.
V. Resultados
A integração dos vários fatores considerados (fig. 4) permitiu obter um gradiente que classifica o território nacional de acordo com o potencial de implantação de centrais solares fotovoltaicas em linha com princípios de sustentabilidade (fig. 5).
Importa salientar que a correlação entre os fatores é mínima, pelo que se verifica ausência de multicolinearidade no modelo (quadro II). A distribuição espacial do índice (fig. 5) apresenta valores mais elevados no sul do país, onde se encontra prevista uma porção significativa dos projetos programados. A partir da figura 4 compreende-se que nesta área de Portugal continental a aptidão física do território (radiação solar elevada e topografia aplanada), condições técnicas (elevada densidade da rede de transporte de eletricidade) e outros dos restantes fatores conjugam-se numa situação próxima de ótima. No entanto, o valor máximo do índice é de 82,63, o que indica que não ocorre uma sobreposição total das condições ótimas nos diversos fatores, na medida em que a proximidade de áreas ecologicamente sensíveis e ecossistemas importantes, como o montado, afeta negativamente a elevada aptidão apresentada na generalidade dos fatores em algumas áreas do Alentejo. Apesar disso, é possível identificar áreas com elevado score em praticamente todas as regiões do território continental. Neste sentido, a valência do território para a produção de energia solar permite uma distribuição geograficamente mais equilibrada para a descarbonização da produção de eletricidade.
Num exercício exploratório das áreas com maior potencial de sustentabilidade (índice ≥70, correspondendo à metade superior do 10.º decil) e pelo menos 100ha contíguos identificaram-se cerca de 34 mil ha (0,38 % de Portugal continental). Se considerarmos uma estratégia mais descentralizada, com a promoção de centrais de menor dimensão, com o critério de 50ha contíguos, a área disponível aproxima-se dos 40 mil ha. Estes valores são à partida, suficientes para cobrir os projetos licenciados e em processo de licenciamento (cerca de 6800ha) de centrais solares fotovoltaicas com potência ≥ 1MW. Não obstante, tal extensão territorial revela-se insuficiente para responder às metas de 2030 unicamente pela produção centralizada, o que implica a necessidade de instalação de centros eletroprodutores em locais com tendência para conflitos com os princípios de sustentabilidade.
Fator | Fator de inflação da variância (VIF) | |
---|---|---|
Distância a centros eletroprodutores (solar, hídrica e eólica) | 1,303 | |
Distância a áreas urbanas | 1,394 | |
Adequação do declive | 1,315 | |
Distância à rede de transporte de eletricidade | 1,169 | |
Distância a áreas ecologicamente sensíveis | 1,202 | |
Valor de serviços de ecossistema do uso e ocupação do solo | 1,209 | |
Potencial de produção de energia fotovoltaica | 1,434 |
Neste contexto, observam-se já potenciais desconformidades entre o potencial avaliado pelo índice e a realidade, uma vez que a distribuição dos projetos planeados indica que uma parte significativa dos projetos se sobrepõe com baixos valores do índice (fig. 6). Por sua vez, verifica-se uma reduzida sobreposição dos projetos com territórios com o índice nos decis 8 e 9, pelo que se pode afirmar que existe potencialidade para explorar localizações mais sustentáveis. A análise da figura permite compreender que as regiões Centro e Norte serão as que terão maiores desafios na territorialização da energia solar de acordo com os parâmetros considerados, já que apresentam, em geral, menor aptidão.
Numa análise mais detalhada, é possível compreender os fatores subjacentes aos resultados obtidos. Considerando os dez maiores projetos planeados (quadro III) de acordo com os dados da DGEG, que correspondem a aproximadamente 50% do total da área prevista, torna-se evidente que a localização destes parques solares depende, predominantemente, de critérios técnico-económicos. Isso é notório, sobretudo, devido à elevada aptidão em termos de potencial de produção de energia, proximidade às redes de transporte de eletricidade e adequação do relevo (conforme ilustrado na fig. 7).
Estatística | Todos os polígonos | 10 maiores (por número de processo) |
---|---|---|
Mínimo | 1,5 | 157 |
Média | 62 | 307 |
Máximo | 620 | 620 |
Desvio-padrão | 920 | 132 |
Total | 6843 | 3375 |
Fonte: DGEG
A proximidade às áreas urbanas também parece ser um fator relevante para os promotores, uma vez que alguns dos projetos analisados apresentam uma pontuação mais baixa devido à sua excessiva proximidade a aglomerações urbanas, com distâncias inferiores a 2km. Por outro lado, os serviços de ecossistema associados às classes de uso e ocupação do solo e a distância a áreas ecologicamente sensíveis constituem alguns dos exemplos em que estes projetos apresentam scores muito baixos. Da mesma forma, é evidente uma tendência para a concentração espacial dos parques solares relativamente aos centros electroprodutores existentes, o que se traduziu numa baixa aptidão.
Em síntese, os resultados evidenciam um paradoxo relevante. Embora se constate o potencial, em termos de extensão territorial, para que novos projetos adotem critérios de localização mais coerentes com princípios de sustentabilidade, observa-se a predominância de uma lógica de decisão orientada por fatores técnico-económicos. Isto ocorre mesmo quando se verifica uma parcial correspondência entre as regiões com maior aptidão no índice e as regiões nas quais estão previstas superiores afetações de território para produção fotovoltaica. Esta dualidade de resultados constitui uma base sólida para a discussão de como as estratégias e políticas de implementação de parques solares em Portugal requerem uma dimensão territorial, alinhando-se os objetivos de descarbonização do país com o uso do solo.
VI. Discussão
Os parques solares desempenharão um papel fundamental na transição para um sistema de eletricidade com menores emissões de carbono. No entanto, apesar do contexto favorável das políticas energéticas para a expansão destes centros electroprodutores, a sua natureza intensiva em termos de ocupação territorial implica potenciais conflitos de localização.
Este estudo apresentou uma proposta de modelo de apoio à decisão que também revelou algumas das implicações territoriais da descarbonização do sistema elétrico, demonstrando que o equilíbrio de perspetivas concorrentes sobre o uso do solo beneficia da utilização de abordagens de modelação espacial. O potencial de implementação das áreas que cumprem um conjunto de parâmetros para uma transição energética sustentável foi cartografado utilizando uma AMC. Apesar da adoção de metodologias de AMC aplicadas ao desenvolvimento de energias renováveis estar tradicionalmente associado ao planeamento energético orientado para a racionalização e maximização do potencial de produção, existe uma significativa capacidade para a avaliação de sustentabilidade (Bączkiewicz et al., 2021; Cinelli et al., 2014).
O índice composto demonstrou à escala do território continental português um potencial assimétrico para a implantação de parques solares num contexto de desenvolvimento sustentável. Verificou-se também que a localização das centrais previstas nem sempre era espacialmente coincidente com as áreas classificadas com maior aptidão, exibindo conflitos com algumas das dimensões consideradas. Particularmente, inferiu-se que o padrão de localização dos maiores projetos foi principalmente orientado por considerações técnicas e económicas. As dimensões ambientais têm sido menos relevantes na seleção das áreas de implantação. Evidenciou-se uma crescente tendência de concentração espacial dos futuros centros electroprodutores, possivelmente pelo interesse em beneficiar de economias de aglomeração associados à proximidade a infraestruturas da rede elétrica. Assim, a implementação das centrais previstas parece revelar um paradigma de racionalização e otimização que está a considerar, em menor grau, outros elementos relevantes do território.
1. Implicações para o planeamento
Dado este diagnóstico, é crucial considerar uma revisão das políticas para uma transição energética que se materialize numa ocupação sustentável do território. Em Portugal, as estratégias como o PNEC e o RNC, e outras indiretamente relacionadas com a energia (e.g., Plano de Ação para a Economia Circular, Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas, etc.), constituem referenciais setoriais sem uma visão espacialmente explícita. Embora muitos dos seus desígnios estejam representados nos instrumentos de ordenamento do território, não existe uma visão territorial para a transição energética, considerando diferentes fontes, tecnologias e valências dos territórios.
Uma proposta de territorialização da produção de energia renovável emergiu a partir do estudo de Simões et al. (2023). Os autores identificaram áreas de menor sensibilidade ambiental para a implementação de centros electroprodutores solares e eólicos onde os procedimentos de licenciamento ambiental poderiam decorrer de forma simplificada. Esta proposta surge na sequência da recomendação da Comissão Europeia para a identificação das “go-to areas” (Joint Research Centre, 2022). Uma versão revista desta proposta está presente no Relatório de Estado de Ordenamento do Território de 2022 (DGT, 2023). Contudo, até ao momento, esta identificação não se materializou num enquadramento legal pelo que a proposta não tem, à data de redação deste artigo, validade normativa.
Além disto, este estudo assentou num conjunto de premissas desprovidas de suporte teórico quando aplicadas ao contexto português, especialmente devido às condicionantes do uso e ocupação do solo numa classificação dicotómica e simplista. Não obstante, constitui um importante marco para uma consciência da necessidade de planear de forma eficiente e estruturada a implementação das políticas energéticas no território.
A presente proposta de índice espacial não tem a intenção de substituir a análise anterior, uma vez que é menos abrangente em termos de dados. Porém, oferece uma perspetiva baseada em dados contínuos (fatores unicamente quantitativos), e, portanto, o resultado baseado em gradiente, em vez de dicotomias, permite a análise e monitorização prévia dos futuros centros electroprodutores com base num score. Consideramos que esta é a principal inovação desta análise, pois ajuda a compreender, de certa forma, os fatores de localização que justificam os padrões das futuras paisagens de geração de energia fotovoltaica.
Independentemente da metodologia, a identificação de áreas que possam traduzir-se na territorialização das políticas de energia e clima deve ser integrada nos instrumentos do sistema de gestão territorial, em particular naqueles que procedem explicitamente ao zonamento do uso do solo.
2. Recomendações para ação
A eficácia da conciliação das dimensões energia e território estará dependente de mudanças paradigmáticas nos instrumentos de política. A tendência de planeamento estratégico setorial tem aumentado o número de estratégias, políticas e iniciativas, sem que isso signifique uma direta integração e coerência.
Para uma crescente integração das políticas de energia com o uso do solo, e considerando a recente reforma de flexibilização dos processos de licenciamento, parece-nos relevante repensar alguns aspetos. Ascensão et al. (2023) estimaram na Península Ibérica cerca de 8700km2 com elevado valor de biodiversidade e cujo atual enquadramento legal não previne a instalação de centros electroprodutores fotovoltaicos. Assim, considera-se relevante repensar as condicionantes ambientais e patrimoniais em vigor. Isto será importante para minimizar os impactes nos serviços de ecossistemas.
Noutra perspetiva, há que repensar o quadro normativo de forma a tirar partido das potenciais sinergias, favorecendo licenciamentos em áreas improdutivas, degradadas e com baixo valor ecológico (Hernandez et al., 2019). A integração de vários atores neste processo será determinante para que se reformule a relação da produção de energia com o território.
3. Limitações
O propósito deste estudo não é a procura por respostas absolutas ou soluções definitivas, mas sim explorar e propor opções que visem a implementação da transição energética partindo de uma contextualização geográfica alinhada com o desenvolvimento sustentável. Identificam-se, de seguida, algumas limitações no quadro metodológico que devem ser consideradas em investigações futuras, mas principalmente na interpretação dos resultados para evitar extrapolações incorretas.
Em primeiro lugar, todos os fatores de aptidão tiveram uma contribuição igualitária para o índice final. Embora esta decisão se tenha baseado na premissa de evitar um viés injustificado que favorecesse alguns elementos em detrimento de outros, refletindo um compromisso com a objetividade na avaliação, é relevante reconhecer que não há uma garantia irrefutável de que essa seja a abordagem mais apropriada. Há fatores que podem ser mais importantes face a outros, mas a escolha de ponderações necessita de uma base fundamentada. Neste sentido, os resultados podem alterar-se consoante as assunções nos quais o modelo se baseia, nomeadamente a influência associada a cada fator.
Relativamente à informação geográfica utilizada, a seleção e utilização de determinados indicadores decorreu de um compromisso entre a conveniência da informação disponível e o potencial enriquecimento do modelo. Salientam-se neste campo quatro aspetos que constrangem a interpretação dos resultados. O primeiro é o caso do valor dos serviços de ecossistema. Já anteriormente se justificou a escolha por uma variável contínua, porém este indicador não foi concebido particularmente para questões de produção de energia renovável, pelo que necessariamente os impactes gerados pela implantação de parques solares não resultará em consequências negativas iguais em todas as tipologias de serviços de ecossistemas. Neste sentido, destaca-se a emergência da discussão referente à multifuncionalidade de parques solares e potenciais benefícios para a polinização (Dolezal et al., 2021; Semeraro et al., 2018). O segundo aspeto é uma característica técnica. Assumiu-se a partir da distância à rede de transporte de eletricidade que existe capacidade do operador em injetar e transportar novos volumes de eletricidade, o que pode, em algumas situações, não ser tecnicamente viável. A terceira limitação dos dados resulta da não utilização de áreas de reserva, como a Reserva Agrícola Nacional (RAN) e Reserva Ecológica Nacional (REN). A indisponibilidade desta informação para a totalidade dos municípios de Portugal continental à data de aplicação da metodologia resultou na sua não inclusão no modelo. Porém, estas áreas de reserva constituem também ecossistemas sensíveis que devem ser considerados na implementação de grandes infraestruturas solares. Efetivamente, a RAN e algumas tipologias da REN apresentam limitações regulamentadas na lei à instalação de centros eletroprodutores. Por fim, o quarto aspeto resulta de se ter assumido um potencial elevado máximo nas áreas urbanas. Na realidade o potencial das áreas urbanizadas depende fortemente do contexto local do tecido construído. Estratégias de produção descentralizadas serão mais exequíveis na impossibilidade de alocar o espaço necessário para uma produção em larga escala.
Termina-se esta secção alertando que a conceção de sustentabilidade nos processos de implementação da transição energética revela-se distintamente complexa, variando conforme a escala de análise (Picchi et al., 2023). Este estudo propôs uma abordagem para os parques solares tradicionais de aplicação à escala nacional e regional com possível aplicação a outros territórios. A abordagem adotada penaliza a instalação em áreas aquáticas próximas a centrais hidroelétricas, embora o inventário utilizado não incluísse projetos desta tipologia. É importante esclarecer que normalmente este tipo de projetos têm uma área muito reduzida. Dado que o índice de sustentabilidade foi pensado numa ótica de grandes infraestruturas, não é o instrumento ideal para estes casos específicos. De modo similar, é relevante salientar que o índice não favorece estratégias de hibridização, como o desenvolvimento de parques híbridos eólica-solar a partir de parques eólicos já existentes. Portanto, pode inferir-se que, apesar dos resultados refletirem variações no índice de sustentabilidade em termos de localização, este critério singular não se mostra suficiente para estabelecer a validação das práticas de implementação como eficazes ou inadequadas.
Não obstante a necessidade de inclusão de mais fatores, especialmente para abranger mais elementos associados à sustentabilidade e lidar com questões específicas que vão além dos parques solares tradicionais, é importante frisar que esta proposta de índice espacial pode não ter uma tradução direta à escala local. Por isso, pressupõe-se que mesmo em localizações com aptidão elevada, não existe garantia de conformidade de implementação com os instrumentos de gestão territorial de nível municipal. Além disso, um índice elevado não isenta a necessidade de adotar planos integrados na paisagem e de respeitar processos participativos envolvendo as comunidades locais e ativar mecanismos de compensação para lidar com os impactes gerados.
4. Pistas para investigações futuras
Para além das limitações identificadas, que podem servir como fundamentos para investigações futuras, os autores propõem três questões de reflexão destinadas a orientar futuros estudos:
No contexto dos impactes da produção de energia renovável, e à luz do potencial de garantir ocupações mais consentâneas com o desenvolvimento sustentável, verifica-se uma clivagem entre a retórica dos benefícios de descarbonização e a sua efetiva implementação no território?
Como é que se pode integrar a consideração dos diferentes interesses sociais, económicos e ambientais no ordenamento território para as grandes infraestruturas de produção de energia renovável?
Como podem os instrumentos de planeamento responder às aspirações das comunidades locais e movimentos de contestação em contextos de conflitos com a preservação da biodiversidade?
VII. Considerações finais
Como considerações finais podemos afirmar que a concretização da transição energética implicará extensas transformações territoriais num curto prazo. Nos próximos anos, a produção de energia renovável poderá emergir como um dos principais impulsionadores de alterações no uso do solo em Portugal.
Este estudo apresentou uma proposta metodológica para mensurar e avaliar a seleção de localizações para a implementação de projetos de energia solar fotovoltaica, com base em princípios de sustentabilidade. O índice desenvolvido representa um protótipo de um sistema espacial de apoio à decisão, com o potencial de contribuir para uma implementação mais equilibrada das transformações territoriais associadas à produção de energia.
A composição do índice, derivada da combinação de sete fatores de aptidão, revelou que a capacidade de cumprir os parâmetros definidos é espacialmente assimétrica. Localizações com aptidão elevada foram identificadas em várias regiões do território, sugerindo a possibilidade de uma repartição geográfica mais equilibrada para a descarbonização da produção de energia. No entanto, também se identificou que a localização das centrais solares previstas nem sempre coincide com as áreas onde se estimou maior sustentabilidade. Constatou-se que a escolha de localização tem sido predominantemente baseada em critérios técnicos e económicos, em alguns casos negligenciando as implicações ambientais resultantes da instalação dessas infraestruturas. Dada a complexidade da avaliação de sustentabilidade na transição energética, torna-se imperativo aprimorar abordagens semelhantes, considerando a inclusão de critérios adicionais, a fim de obter um índice mais robusto que, em última instância, poderá servir como uma primeira análise ao processo de licenciamento de projetos.
Contributos dos/as autores/as
André Alves: Conceptualização; Metodologia; Software; Validação; Análise formal; Investigação; Recursos; Curadoria dos dados; Escrita - preparação do esboço original; Redação - revisão e edição; Visualização. Eduarda Marques da Costa: Conceptualização; Metodologia; Validação; Investigação; Redação - revisão e edição; Supervisão. Eduardo Gomes: Conceptualização; Metodologia; Validação; Investigação; Redação - revisão e edição; Supervisão. Samuel Niza: Conceptualização; Metodologia; Validação; Investigação; Redação - revisão e edição; Supervisão.
Agradecimentos
Esta investigação foi apoiada pela bolsa de doutoramento do autor André Alves, financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e com fundos do Orçamento de Estado, no âmbito do Programa MIT Portugal (PRT/BD/154418/2023). Agradece-se simultaneamente o apoio do Grupo de Investigação MOPT (Modelação, Ordenamento e Planeamento Territorial) do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (UIDB/00295/2020 e UIDP/00295/2020).