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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0870-8967versão On-line ISSN 2183-9174

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

Para além dos contos de fada – Jacob Grimm, o gramático

Beyond fairy tales Jacob Grimm, the grammarian

Bernhard Sylla*

*Universidade do Minho, Departamento de Filosofia, Braga, Portugal

bernhard@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Este artigo pretende informar e refletir sobre outros contributos dos irmãos Grimm, para além da sua talvez mais conhecida obra em Portugal, os Kinder-und Hausmärchen, para a filologia, literatura e linguística alemãs, focando especialmente o papel de Jacob Grimm no nascimento da linguística alemã. Neste âmbito, é feita uma síntese do método histórico-empírico da linguística de Jacob Grimm, contrastando-o com e demarcando-o de outras correntes linguísticas do seu tempo. De seguida, é analisado o impacto sociopolítico dos estudos linguísticos de então, particularmente a questão da ligação entre Ciência da Linguagem e ideologia nacional.

Palavras-chave: Irmãos Grimm, linguística alemã, método histórico-empírico, filologia, ideologia nacional.

 

ABSTRACT

This article aims at informing and reflecting on other contributions of the brothers Grimm – besides their probably best known work in Portugal, the Kinder-und Hausmärchen – to philology, linguistics and German literature, focusing on the role of Jacob Grimm for the birth of German linguistic. The article starts with an overview of the method of Grimm’s historical-empirical linguistics, contrasting it with and demarcating it from other linguistic approaches of his time, and proceeds to an analysis of the sociopolitical impact of these linguistic studies, particularly considering the link between linguistics and national ideology.

Keywords: Brothers Grimm, German studies, historical-empirical method, philology, nacional ideology.

 

1.

Celebra-se, este ano, o bicentenário da primeira edição do primeiro volume dos contos de fada, i.e. dos Kinder- und Hausmärchen dos irmãos Wilhelm e Jacob Grimm. Se a fama dos irmãos em praticamente todos os países do mundo se deve, talvez, em primeiro lugar a este seu trabalho, o mesmo já não se poderá dizer com tanta segurança com respeito à sua receção na Alemanha, pois é aí que se valoriza talvez ainda mais o papel protagonista que os dois autores tiveram no âmbito do nascimento da Ciência da Linguagem. Destacam-se, neste âmbito, três áreas específicas diferentes, fazendo todas elas, ainda hoje, parte dos Estudos Germanísticos e para as quais o contributo dos irmãos Grimm foi importante ou até decisivo:

  • no âmbito da Filologia: a edição e interpretação de textos escritos em alto alemão e médio alto alemão (este trabalho começou já em anos anteriores a 1812);
  • no âmbito da Gramática: a edição da Deutsche Grammatik [Gramática do Alemão] por Jacob Grimm, cujo primeiro volume saiu em 1819;
  • e no âmbito da Lexicografia: a edição do Deutsches Wörterbuch [Dicionário alemão], projeto que foi iniciado em 1838. O primeiro volume saiu em 1852, mas o projeto em si foi terminado apenas após a morte dos irmãos.

Debruçar-me-ei, neste artigo, sobre o segundo destes trabalhos, a Deutsche Grammatik da autoria de Jacob Grimm, com o objetivo de familiarizar o leitor com o papel e o impacto que este contributo da autoria grimmiana teve e que valeu a Jacob Grimm o título de pai da linguística alemã.

2.

Perante a diversidade à primeira vista bastante dispersa dos trabalhos dos irmãos Grimm, poder-se-á pensar que as áreas acima mencionadas não terão nada em comum. Nada no entanto seria mais falso que este juízo. Ao invés, há três denominadores comuns que nos fornecem, enquanto combinados, as causas tanto para o protagonismo dos Grimm como também para o seu sucesso. Segundo Hermand (1994: 29s.) e Schmidt (1985: 178), estes três denominadores comuns residem

  • numa atitude investigativa que, com um rigor e uma persistência altamente evoluídos, se entrega à coleção de dados empíricos, relativamente a tudo que seja pertencente ao domínio do património linguístico alemão, quer sejam documentos literários, mitos, lendas, literatura oral (p. ex. os contos de fadas), ou documentos na área do Direito, ou dados referentes à própria língua alemã.
  • Esta coleção considera como valiosos não só a atualidade, mas ainda mais e até prioritariamente o passado. Daí que o aspeto da historicidade seja o segundo princípio metodológico intrinsecamente relacionado com a atitude investigativa dos Grimm.
  • Para além disso, nota-se particularmente na atitude dos Grimm uma sobrevalorização do germânico, i.e. do património nacional frente ao não-nacional, que se deve a uma decisão deliberadamente tomada e que teve tanto um impacto metodológico como também repercussões a nível político.

No que se seguirá, tentarei elucidar primordialmente os primeiros dois aspetos aqui mencionados, que se referem ao método histórico e empírico da linguística de Jacob Grimm. Porém tanto o alcance do seu trabalho, como também o seu sucesso e a diferença específica face a outros linguistas do seu tempo não se entendem se não for considerado o aspeto da ideologia nacional subjacente aos estudos linguísticos, ou melhor, a combinação específica entre os três aspetos de empiricidade, historicidade e ideologia nacional.

3.

Como já mencionado acima, é sobretudo a primeira edição do primeiro volume da Deutsche Grammatik de Jacob Grimm que é considerada como a obra que deu início à Ciência da Linguagem propriamente dita. A novidade desta obra, porém, não é uma novidade absoluta que não tivesse nada em comum com o tipo de investigações que a precederam. Qualquer mudança assenta, sempre, em algo que é comum à tradição. Como fundo comum que o trabalho de Jacob Grimm partilha com autores de então poderão destacar-se sobretudo três aspetos:

  • a descoberta do sânscrito e das suas semelhanças com o grego, o latim e as mais tarde assim chamadas línguas indo-europeias (precisamente por causa deste seu parentesco com o sânscrito) por William Jones e a divulgação desta descoberta pelos irmãos Schlegel, em inícios de século XIX;
  • a apreciação do património da literatura medieval ‘germânica’ e da Volkspoesie, da poesia vulgar ou ‘poesia do povo’ com as suas alegadas caraterísticas de ingenuidade e pureza, que deu origem à sua imagem de incorruptibilidade e ao seu testemunho de uma era onde ainda havia felicidade, sinceridade e justeza, particularmente promulgada pelos românticos da corrente da Frühromantik (F. Schlegel, Novalis) e da Heidelberger Romantik (A. von Arnim, C. Brentano etc.);
  • a conceção, muito divulgada em fins de século XVIII, da linguagem e das línguas como organismos, ou seja entidades autónomas que possuem uma dinâmica própria de desenvolvimento e que estão intimamente ligadas à individualidade e ao caráter de um povo (i.e. dos respetivos falantes da língua), conceção que deve muito às ideias de Herder. Para além disso, a comparação com a anatomia sugere que se possa, ao investigar o funcionamento do organismo ‘língua’, chegar à descoberta de regras gerais responsáveis pelo seu funcionamento e pelo funcionamento da linguagem em geral.

Para avaliar o inédito da obra de Jacob Grimm será então necessário que se entenda em que medida ele partilhava estes saberes e perspetivas comuns com outros autores do seu tempo e quais os aspetos onde acrescentava algo de facto realmente novo. A descoberta do sânscrito, e nomeadamente a obra do grande indo-europeísta Franz Bopp sobre o sistema das conjugações das línguas sânscrito, persa, grega, latim e germânica, de 1816, despertou a comunidade dos estudiosos das línguas para a imprescindibilidade da perspetiva histórica para um qualquer estudo das línguas.

Jacob Grimm aplicou esta descoberta com particular ênfase e quase que exclusivamente ao estudo dos estratos remotos da língua alemã, nunca entendendo a sua vocação no âmbito da linguística comparativa. Esta renúncia ao desafio de estudos comparatistas teve, no entanto, um efeito positivo, pois a concentração na história da língua alemã fez com que a investigação se tornasse mais eficaz, porque baseada num conhecimento aprofundado da base do material desta língua.

No que concerne à grande apreciação da literatura germânica e da Volkspoesie, a atitude dos Grimm nas suas primeiras obras não se afasta, pelo menos não nitida e conscientemente, da dos românticos. Os Grimm participaram no projeto romântico de Arnim e de Brentano da edição de canções tradicionais em Des Knaben Wunderhorn em 1805, e as edições de textos antigos em Altdeutsche Wälder, em 1811, ainda não se alicerçam em conhecimentos fundamentados sobre o desenvolvimento da língua alemã. Terá sido de influência decisiva a recensão crítica da autoria de A. W. Schlegel dos Altdeutsche Wälder dos Grimm que os terá incentivado a mudar radicalmente a sua metodologia de trabalho.[1] Schlegel contestara que as etimologias dos Grimm seguiriam o mau exemplo da tradição, pois seriam conjeturas feitas com base em meras associações subjetivas, fundadas em semelhanças fonéticas ou semânticas, mas sem serem legitimadas com base em conhecimentos sobre a verdadeira formação e o verdadeiro parentesco das palavras. A crítica era dura, e o seu efeito foi muito mais rápido do que se poderia esperar. Com a sua Deutsche Grammatik de 1819, Jacob Grimm não só pôs em prática o conselho de Schlegel, mas fê-lo com tanta excelência que a obra se tornou modelo paradigmático para a Ciência da Linguagem do século XIX.

No que concerne à ideia da linguagem e das línguas como organismos, o importante é que se encarou a entidade de língua / linguagem como uma entidade autónoma que se desenvolve segundo regras próprias. Contudo, se esta ideia se pôde fazer valer em toda uma gama de especulações filosóficas de então sobre a função e dignidade da linguagem, é apenas com Jacob Grimm que a ideia de organismo encontrará uma base empírica muito forte. Tanto o parentesco como o desenvolvimento das línguas se tornarão, a partir de agora, questões empiricamente escrutáveis e verificáveis, porque assentes nas mudanças fonéticas ao longo da história de uma língua e na descoberta das regras e dos mecanismos destas mudanças.

E é precisamente aí, na descoberta das leis e regras de mudanças fonéticas que reside a nova metodologia de Jacob Grimm que se tornou modelo exemplar para a Ciência da Linguagem. Grimm descobriu toda uma série de regularidades de mudanças fonéticas supostamente ocorridas em tempos primordiais da formação das línguas indo-germânicas, que hoje em dia se designam como teoria standard da assim chamada 1. Lautverschiebung [primeira fase de mudanças fonéticas].[2] Esta teoria ficou para sempre ligada ao nome de Jacob Grimm pela designação de Grimm’s law.

Um efeito colateral do método de Grimm e da sua concentração no desenvolvimento da língua alemã foi a sensibilização para a variedade dos diferentes dialetos, negligenciada ou até totalmente ignorada[3] na investigação linguística de então, tendo portanto impulsionado também o trabalho investigativo neste campo de estudos.

A obra Deutsche Grammatik de Jacob Grimm teve quase de imediato um eco forte (cfr. Storost, 1985: 302-328). Praticamente todas as recensões reconheceram o grande mérito de Jacob Grimm, num tom de grande afirmação ou até de entusiasmo. Daí parecer legítima a atribuição do título de ‘pai da linguística alem㒠a Jacob Grimm.

4.

Se se apelidar Jacob Grimm como o pai da linguística alemã, convirá no entanto ter em consideração a especificidade da sua linguística como linguística histórico-empírica. Usa-se geralmente o termo linguística histórico-comparatista para classificar o intuito investigativo geral da linguística do século XIX, mas, como já se mencionou, o objetivo da comparação entre as línguas da grande família das línguas indo-europeias não fez parte dos objetivos primários dos estudos dos irmãos Grimm. Daí advir a classificação das obras e estudos grimmianos como fundamentalmente ‘nacionais’. Se, por um lado, é certo que o aspeto ‘nacionalista’ não se pode dissociar dos aspetos científicos da obra dos Grimm, seria, por outro lado, falso entender este ‘nacionalismo’ anacronicamente a partir das aceções ligadas às conjunturas políticas dos séculos XX e XXI. A etiqueta ‘nacionalismo’ não apenas sinaliza a concentração científica no património linguístico alemão, mas implica antes um conjunto de tendências, acontecimentos e atitudes que, devido à conjuntura política e sociocultural do início do século XIX, revelam um entrelaçamento complexo entre ciência e política que se fez notar também e sobretudo nos trabalhos e na vida dos Grimm. A ‘Germanística’ estava na altura carregada de significância política e tinha uma repercussão direta na política, o mesmo se podendo dizer em sentido inverso, a política teve um impacto direto e inquestionável sobre o rumo da Germanística. Tentarei resumir as linhas mais importantes deste entrelaçamento particularmente no que concerne às obras dos Grimm e ao seu papel enquanto personagens de destaque na vida política do seu tempo.

A constatação com a qual Theodor Heinsius (apud Neumann, 1985b: 66) resume, em 1848, a situação relativamente ao uso e ao estatuto da língua alemã em fins de século XVIII é reveladora: “Diferenciavam-se, na altura, três castas, conforme a língua que falavam: a corte e os aristocratas falavam francês, os eruditos e cultos latim, os burgueses e camponeses um alemão mosaico”. Esta constatação é significativa, pois alude a uma realidade em que se começava a sentir a falta de uma língua una e o desejo de elevar a língua alemã ao estatuto de uma língua culta. No âmbito da literatura, poesia e filosofia, com os textos de Kant, Fichte, Schelling, Hegel, com Schiller e Goethe etc., ocorreu uma rápida ascensão dos textos em alemão ao cânone dos textos mais eruditos. O que, no entanto, faltava, era antes uma base prática e sólida que se preocupasse com o ensino, a aprendizagem e o estudo da língua. Se bem que já antes de 1807/08 tenha havido várias iniciativas, entre outras também estatais[4], de colmatar três grandes lacunas, uma gramática, um dicionário e uma História da língua alemã, apenas após a experiência desoladora da derrota frente a Napoleão e a consecutiva ocupação francesa dos países de língua alemã se começaram a pôr em prática toda uma série de reformas que incluíram também as reformas nas áreas do ensino e das ciências. O sentimento de oposição à ocupação e à hegemonia francesas acolheu o topos da Sprachnation, da nação unida pela língua falada, como símbolo e ao mesmo tempo projeto concreto de resistência e desejo de reconquistar a autonomia, o poder e a dignidade política. Compilar um dicionário, escrever uma gramática, editar textos do património cultural alemão (destacam-se, neste sentido, as várias edições e a onda dos comentários científicos do Nibelungenlied, do epos medieval que se deixava ler como história lendária de uma Alemanha heroica) tornaram-se questões de importância nacional no sentido sociopolítico. A maior parte dos intelectuais e eruditos, como demonstram vários estudos acerca desta questão (cf. Schmidt, 1985: 235-248), eram liberais, apoiando a ideia da monarquia constitucional e uma maior participação dos burgueses no poder político, alimentando o sonho democrático dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da revolução francesa que segundo eles teriam sido traídas pela rumo que os acontecimentos políticos tomaram na França e que poderiam ser reavivadas numa Alemanha unida e politicamente mais progressiva. A elevação dos grandes eruditos, como Arndt, Fichte, Jahn e os Grimm que se preocupavam com o património cultural alemão, ao estatuto de figuras simbólicas e de heróis nacionais (cf. Neumann, 1985a: 38) demonstra a estreita ligação entre a política e os estudos germanísticos e filosóficos nesta fase histórica.

No entanto, após a restauração do equilíbrio dos grandes poderes políticos de então no congresso de Viena, em 1815, e nomeadamente após os decretos de Karlsbad em 1819, a situação para os ‘cientistas nacionais’ mudou fundamentalmente. O patriotismo, nomeadamente o promulgado pelos professores universitários e ligado às corporações estudantis, foi visto com cada vez maior suspeita. Vários acontecimentos, entre outros o assassinato do poeta Kotzebue, a manifestação estudantil no castelo de Hambach que teve uma afluência que superou todas as expectativas, e as revoltas de 1830 na França, levaram a perseguições, expulsões do país, penas de prisão de muitos académicos (cf. H. Schmidt, 1985: 243ss.) e a uma censura cada vez mais rigorosa que se estendeu também às universidades e academias. Cursava até o preconceito que os estudos do sânscrito eram, naturalmente, democráticos.[5] Quem evocava publicamente o patriotismo arriscava-se a ser visto e tratado como demagogo e a sofrer consequências drásticas. Os poderes políticos tentavam suprimir todo o patriotismo que sonhava com uma nação una e unida alemã, e o único patriotismo permitido foi a atitude de submissão e lealdade total perante os respetivos soberanos dos numerosos estados territoriais. Sob estas circunstâncias, o protesto que os irmãos Grimm, na altura professores da Universidade de Göttingen, publicaram na imprensa, em 1837, juntamente com mais cinco professores da mesma universidade, contra a abolição da constituição pelo novo Rei do Reinado de Hannover, foi um ato de coragem elevada. Teve como consequência previsível a expulsão dos Grimm da universidade e do reinado, mas ao mesmo tempo transformou os irmãos em heróis nacionais. Três anos mais tarde, em 1840, foram convidados a integrar a Akademie der Wissenschaften em Berlim, por despacho do próprio Rei Friedrich Wilhelm IV. da Prússia. Motivo deste convite foi o seu trabalho no Dicionário Alemão, iniciado em 1837 e apoiado e subvencionado por muitas pessoas ilustres da sociedade alemã. Se bem que desta vez o projeto explicitamente declarado por Jacob Grimm como ‘nacionalista’ (cf. Neumann, 1985: 141) tenha sido acolhido favoravelmente pelas autoridades políticas, o perigo de ultrapassar os limites do tolerado continuava a ser iminente. Prova disto é um acontecimento do ano 1842, em que a celebração do aniversário de Wilhelm Grimm com uma marcha noturna de estudantes à casa dos Grimm se transformou numa manifestação de protesto contra a demissão e expulsão do professor e poeta Hoffmann von Fallersleben, devido ao conteúdo considerado demagógico dos seus Unpolitische Lieder. Desta vez, os Grimm não tardaram em distanciar-se pública e explicitamente desta manifestação. Este recuo, face ao ato de coragem em Göttingen, não lhes manchou muito a fama já conquistada. Poder-se-ia até alegar que este último acontecimento contribuiu para confirmar a imagem dos Grimm como pessoas conciliantes e prudentes, politicamente ‘neutras’, enfim como liberais ‘sensatos’ e não radicais.

O perfil desta imagem também se confirma com acontecimentos ocorridos na segunda metade da década dos anos 40, nomeadamente no que concerne ao estatuto científico e político de Jacob Grimm. Eleito como primeiro presidente do primeiro Germanistentag (primeiro congresso nacional dos germanistas) em 1846 e subsequentemente em 1847, foi-lhe dado o privilégio de ocupar uma sede de honra no primeiro parlamento alemão em Frankfurt, em 1848, precisamente no meio das frações de direita e de esquerda. Dar-lhe a honra deste lugar era um ato carregado de simbolismo, refletindo bem o caráter desse parlamento que se titulou também de parlamento de honoratiores, de pessoas intelectuais provindas do ambiente académico e culto, de boa vontade e imbuídas de um idealismo patriótico-liberal. O título em parte depreciativo alude à falta de poder dos intelectuais, pois o parlamento teve uma vida muito curta, cedendo já em 1849 às estratégias do poder factual do soberano que mostrou não ter a mínima vontade de se deixar ‘comandar’ pelas decisões deste parlamento, ao recusar-se a receber a coroa do rei por despacho parlamentar. O facto de Jacob Grimm ter participado ativamente nos procedimentos que nada mais eram que a rendição do parlamento face à imposição do rei, completa a sua imagem como autoridade científica e figura simbólica do patriotismo ‘germânico’ dos tempos de então, mostrando por um lado uma coragem cívica elevada, mas por outro também um pragmatismo algo tímido e cauteloso.

Independentemente de como se avalie o envolvimento político dos irmãos Grimm e nomeadamente de Jacob Grimm, julgo que é óbvio que a luta científica pelo novo método científico-empírico da Ciência da Linguagem e pela sua institucionalização como ciência academicamente valiosa juntamente com o seu êxito se deram em íntima conexão com os acontecimentos políticos. Neste âmbito, a germanística teve decerto uma função simbólica na luta pela concretização da unificação estatal do povo alemão, e essa função simbólica prendia-se até ao ano de 1849 com ideias profundamente liberais e democráticas. Que este sonho se transformou mais tarde em pesadelo, é um outro capítulo da História que dificilmente se deixa ligar ainda ao mérito dos irmãos Grimm.

5.

Quero terminar esta breve apreciação do papel de Jacob Grimm para a institucionalização académica da Ciência da Linguagem voltando a um assunto a que se aludiu já algumas vezes ao longo deste artigo: o horizonte mais vasto dos outros estudos de então que também se deixam enquadrar sob o título de Estudos Germanísticos ou de estudos sobre a linguagem em geral. Pois é precisamente pelas fronteiras com as quais Grimm demarcou o alcance dos seus estudos que ele teve, em última instância, o êxito a que aspirou e que merece com todo o direito. O esquema abaixo apresentado pretende identificar as correntes mais importantes deste tempo e algumas das influências diretas entre estas, indicadas pelas setas bidirecionais. A falta de setas, por outro lado, reporta-se a uma oposição mais explícita, muitas vezes reconhecida pelos próprios autores.

 

 

As duas áreas de estudo com as quais Grimm teve muito em comum são a de Franz Bopp e a Filologia. Se Jacob Grimm, mesmo assim, sentiu por vezes a necessidade de demarcar os seus estudos claramente dos de Bopp (cf. Schmidt, 1985: 192s.) ou da Filologia[6], isso dever-se-á certamente à necessidade de afirmar e legitimar os seus estudos como disciplina própria perante outras disciplinas concorrentes.

No que respeita ao ímpeto de intensificar o ensino da língua materna nas escolas básicas (Elementarunterricht) e nos liceus, é sabido que Grimm teve pouca ou nenhuma noção da utilidade deste empreendimento (cf. ibid. 174s.). Não viu nenhum proveito na tentativa de popularizar a sua Ciência da Linguagem, reservando assim o estudo das línguas ao intelectual erudito. Partindo do princípio que a aprendizagem da língua materna corresponde a um processo natural que desnecessita de um esforço suplementar, negligenciou ou até ignorou a tarefa da didatização dos resultados e estudos científicos, destacando-se assim bastante do ideal da formação (Bildung) humana que de maneira paradigmática foi defendido por Humboldt.

Uma demarcação clara, e explicitamente evocada por Grimm no prefácio ao primeiro volume da sua Deutsche Grammatik (Grimm, 1819: XIIss.; apud Schmidt, 1985: 176), diz respeito às assim chamadas correntes de gramática lógica ou filosófica e à gramática crítica (ibid. XIII; apud Schmidt, 1985: 177). As teorias ligadas à primeira corrente pecariam, segundo Grimm, por filosofar sobre a essência e lógica da linguagem sem ter em consideração o estudo dos factos empíricos, enquanto a segunda corrente se preocuparia com o efeito do uso da linguagem sobre o pensamento, tentando logificar e uniformizar a linguagem através de tentativas de eliminar irregularidades gramaticais. Segundo Grimm, esta corrente manifestaria algo como um sacrilégio contra a santidade da própria língua, pois em muitos casos nem sequer se saberia qual a razão da irregularidade que se quer eliminar.

Enquanto as oposições com a ciência comparativa de Bopp, com a empresa das gramáticas escolares e com a Filologia se prendem com a conjuntura histórica da constituição académica das disciplinas da Ciência da Linguagem, perdendo depois em importância, há uma oposição que ainda hoje se mantém assunto de disputa.

Num artigo publicado em 1983, Schlieben-Lange realça novamente a diferença entre o tipo de Ciência da Linguagem reconstrutivo-retrospetivo cujo primeiro protagonista seria Jacob Grimm e o tipo construtivo-prospetivo que a autora associa precisamente ao tipo de gramática lógico-filosófica, nomeadamente aos ideólogos franceses (Schlieben-Lange, 1983: 477ss.). Schlieben-Lange termina o seu estudo histórico com um apelo (ibid., 484-487): devido à aceitação geral do método histórico-empírico e da sua consequente evolução para o método evolutivo e mecânico, foi-se negligenciando e ignorando cada vez mais o método lógico-filosófico e ‘prospetivo’ dos autores em fins de século XVIII, facto que seria lamentável, pois residiria nesta corrente um potencial prometedor humanizante que mereceria ser redescoberto e revisto.

Outro caso é a comparação dos papéis de Jacob Grimm e Wilhelm von Humboldt para o desenvolvimento dos estudos sobre a linguagem. Alegou-se, nomeadamente em inícios de século XX, que o favorecimento do método de Grimm teria conquistado uma certa paradigmaticidade em detrimento da apreciação da obra de Humboldt que caiu, durante quase 100 anos, em esquecimento. Também aqui, notar-se-á uma diferença do alcance das duas teorias, pois Humboldt era sem dúvida um autor cuja teoria se afigura como mais filosófica e que se pautava pela tendência universalista de dar importância a todas as vertentes do estudo linguístico, desde o estudo empírico-histórico até à ênfase da sua importância para a Bildung humana e à reflexão filosófica sobre a essência da linguagem. Mas, o que se afirma, no fundo, com estes apelos e comparações é a importância dada a uma certa dicotomia entre Ciência da Linguagem e Filosofia da Linguagem, sob um ponto de vista por vezes estereotípico: enquanto a Ciência da Linguagem se preocupa demasiado com a análise de bases de dados empíricos, perderá de vista o verdadeiro fim deste empreendimento. Mas logo que esta dimensão entra no pensamento metodológico, a mera ciência torna-se filosófica. Pode-se alegar que esta última dimensão está ausente nos trabalhos de J. Grimm, mas esta limitação talvez tenha sido necessária para conseguir os grandes avanços na Ciência da Linguagem. Convém, portanto, dar mérito a ambos os empreendimentos, sem cair na posição algo limitada de louvar um em detrimento do outro. É neste sentido, que o trabalho de Jacob Grimm, que pôde contar sempre com a ajuda e contribuição do seu irmão Wilhelm, merecerá sempre a devida atenção e homenagem.

 

Referências

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Cerquiglini, Bernard / Gumbrecht, Hans Ulrich (ed.) (1983), Der Diskurs der Literatur- und Sprachhistorie. Wissenschaftsgeschichte als Innovationsgeschichte, com colaboração de Armin Biermann, Friederike J. Hassauer-Roos, Sabine Schirra, Frankfurt /M., Suhrkamp        [ Links ]

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Hermand, Jost (1994), Geschichte der Germanistik, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt        [ Links ]

Neumann, Werner (1985a), “Die Dialektik des theoretischen und methodologischen Neuansatzes in der sprachwissenschaftlichen Germanistik”, in Bahner / Neumann (ed.) (1985), pp. 24-44        [ Links ]

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Schlieben-Lange, Brigitte (1983), “Geschichte der Sprachwissenschaft und Geschichte der Sprachen”, in Cerquiglini / Gumbrecht (ed.) (1983), pp. 464-491        [ Links ]

Schmidt, Hartmut (1985), “Aspekte der Institutionalisierung. Zur Durchsetzung der neuen Denkmuster”, in Bahner / Neumann (ed.) (1985), pp. 151-248        [ Links ]

Storost, Jürgen (1985), “Zeitschriften und Rezensionen”, in Bahner / Neumann (ed.) (1985), pp. 282-328        [ Links ]

 

Notas

[1] Cf. Storost (1985: 308s.). A aceitação da crítica de Schlegel mostra nitidamente que a base comum com os românticos, em termos ideológicos, era muito frágil. Os Grimm eram realistas, obcecados com a explicação racional do património linguístico, em vez de ver nele um incentivo para um pensamento místico-idealista e um antídoto ao racionalismo estéril. O que, no entanto, une os Grimm e os românticos é talvez o seu grande amor pela tradição e cultura ‘germânica’.

[2] Uma síntese de todas as mudanças fonéticas abrangidas pela 1. Lautverschiebung dão, a título de exemplo, Dürscheid / Kircher / Sowinski 1995.

[3] No caso da filosofia e ‘política educativa’ da linguagem dos assim chamados ideólogos franceses, em fins do século XVIII, verifica-se até um desprezo sistemático do dialeto e uma tendência de ver nele apenas um sinal de impureza e degradação da língua culta, uma falha e mancha negra que se deve combater e erradicar (cf. Oesterreicher, 1983: 167-187).

[4] Cf. Neumann (1985b: 66-71). Neumann destaca o papel do ministro prussiano Herzberg na tentativa de incentivar a investigação da língua alemã.

[5] Cf. o respetivo relato de Varnhagen apud Schmidt (1985: 240).

[6] Sinal de uma necessidade de se autoafirmar perante outras áreas concorrentes é o facto de Lachmann e Haupt não estarem presentes nos primeiros Germanistentage (congressos nacionais dos germanistas), cf. Schmidt (1985: 192s.).