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Revista Diacrítica
versão impressa ISSN 0807-8967
Diacrítica vol.28 no.1 Braga 2014
Contributo para o estudo sincrónico dos marcadores discursivos ‘quer dizer’, ‘ou seja’ e ‘isto é’ no português europeu contemporâneo
The discourse markers ‘quer dizer’, ‘ou seja’ and ‘isto é’ in european contemporary portuguese: a contribution to their synchronic study
Ana Cristina Macário Lopes*
*CELGA / Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal
RESUMO
O objetivo deste estudo é descrever as funções que os marcadores discursivos ‘quer dizer’, ‘ou seja’ e ‘isto é’ assumem no Português europeu contemporâneo, a partir de dados reais recolhidos no Corpus de Referência do Português Contemporâneo (sub-corpus oral e sub-corpus escrito). As perguntas de investigação que guiam o estudo são as seguintes: (i) os três marcadores são intersubstituíveis em todos os contextos? (ii) para além da função discursiva de marcação de reformulação, há outros valores que podem ser sinalizados pelos três marcadores em apreço?
Palavras chave: marcadores discursivos, reformulação, polifuncionalidade.
ABSTRACT
This paper aims to describe the role of the discourse markers ‘quer dizer’, ‘ou seja’ and ‘isto é’ in European contemporary Portuguese. It is a corpus-based research: the data were collected from the oral and the written sub-corpora of the “Corpus de Referência do Português Contemporâneo” (Reference Corpus of contemporary Portuguese). The research attempts to answer the following questions: (i) are the three discourse markers interchangeable in all contexts? (ii) besides their reformulative function, are there other values that can be signaled by the three markers?
Keywords: discourse markers, reformulation, polyfunctionality.
Introdução
Neste artigo, assume-se que os marcadores discursivos (doravante, MDs) são expressões linguísticas que requerem descrições e explicações pragmáticas, dado que operam ao nível discursivo, permitindo uma gestão conjunta e coordenada da interacção verbal ou guiando os interlocutores na articulação sequencial de segmentos textuais, a diferentes níveis da estrutura discursiva. Assume-se, ainda, que a expressão MD funciona como um hiperónimo, tendo como seus hipónimos os conectores discursivos (expressões que tipicamente sinalizam distintas relações discursivas entre enunciados), as expressões que inscrevem no discurso o universo de expectativas do falante e as suas atitudes, e os marcadores interativos que regulam a dinâmica conversacional e a gestão harmoniosa das relações interpessoais.[1]
Os três marcadores que este estudo se propõe abordar têm um denominador comum: todos eles são conectores que permitem sinalizar uma reformulação. Assim, todos eles veiculam um significado de natureza procedimental, pois codificam uma instrução sobre como integrar o segmento que introduzem numa representação mental coerente do discurso, guiando, por conseguinte, o processo interpretativo. Parece-nos possível circunscrever o “core meaning” dos três conectores da seguinte forma: ‘interprete o que se segue como uma melhor formulação do que acabou de ser dito’.[2] Mas há ainda outras propriedades que todos eles partilham: (i) funcionam como constituintes prosódicos, demarcados por pausas dos segmentos que conectam (pausas geralmente sinalizadas por vírgula, na escrita); (ii) são expressões totalmente gramaticalizadas no Português europeu contemporâneo (doravante PEC), armazenadas no léxico como uma única entrada, cujo significado não é calculado composicionalmente; (iii) são operadores de dois lugares, já que implicam a ocorrência de um enunciado fonte, à direita, e de um enunciado reformulado, à esquerda.
Na esteira de Gülich & Kotshi (1983, 1985), Roulet (1985) e Rossari (1994), assume-se que a reformulação é uma operação metadiscursiva pela qual o falante reelabora um enunciado movido pela intenção de tornar mais inteligível o seu discurso, reduzindo eventuais riscos de incompreensão por parte do interlocutor.[3] Neste sentido, a reformulação visa reparar problemas de formulação e pretende garantir a intercompreensão, numa perspetiva interativa. Esta definição focaliza casos de auto-reformulação, mas há ainda casos de hetero-reformulação, sempre que o ouvinte reelabora uma intervenção prévia, com o propósito cooperativo de testar a efetiva compreensão do enunciado que lhe foi dirigido.
Os autores acima referenciados distinguem dois sub-tipos de reformulação: a reformulação parafrástica, baseada na sinalização de uma relação de equivalência entre dois enunciados, e a reformulação não parafrástica, que implica uma distância, um afastamento do locutor face ao seu enunciado inicial e acarreta, muitas vezes, uma alteração de perspectiva enunciativa. Note-se que a reformulação parafrástica, entendida de forma estrita como envolvendo uma relação de exata equivalência entre segmentos discursivos, é rara, surgindo essencialmente em contextos de tradução, definição ou glosa.[4] A reformulação não parafrástica pode recobrir diferentes sub-tipos. Fonseca (1992: 308) refere casos de condensação e recapitulação, casos de expansão e, finalmente, casos de invalidação do dito, objectivados em movimentos discursivos de correção ou retificação.
Neste artigo, considerar-se-á que a reformulação, enquanto operação metadiscursiva, pode ser perspectivada escalarmente: num dos pólos, teremos a marcação de uma relação de equivalência, no pólo oposto a marcação de uma relação de correção/retificação. Na zona intermédia da escala, encontram-se diferentes sub-tipos de reformulação parafrástica e não parafrástica: explicação, especificação, condensação, distanciamento.[5]
O objectivo deste estudo, que parte de dados empíricos recolhidos no Corpus de Referência do Português Contemporâneo (CRPC, sub-corpus oral e sub-corpus escrito)[6], é essencialmente descritivo. Procurou-se colmatar uma lacuna, dado que, tanto quanto é do nosso conhecimento, não há nenhuma descrição sistemática dos usos destes marcadores no que ao PEC diz respeito. As questões que se colocam à partida são as seguintes: (i) os três marcadores são intersubstituíveis em todos os contextos, isto é, encontram-se em variação livre? (ii) para além da função discursiva de marcação de reformulação, há outros valores que podem ser sinalizados pelos três marcadores em apreço, no PEC?
O artigo está organizado da seguinte forma: na secção 1, descrevem-se os valores de ‘quer dizer’ atestados no corpus; na secção 2, sistematizam-se os valores de ‘ou seja’ e na secção 3, os valores de ‘isto é’. Por fim, na secção 4, explicitar-se-ão as principais conclusões deste estudo, confrontando os resultados obtidos na descrição.
1. Quer dizer
Trata-se de uma expressão cristalizada, constituída por duas formas verbais (verbo querer, na 3ª pessoa do singular do presente do Indicativo, seguido do infinitivo do verbo dizer) que fusionaram, passando a funcionar como uma combinatória fixa.[7] De facto, o verbo querer não admite flexão (*querem dizer) e o verbo dizer não admite complementação frásica (*quer dizer que p).[8] Na esteira de Traugott & Brinton 2005, diremos que houve um processo de fusão e reanálise, passando a expressão a funcionar como constituinte prosódico autónomo, com mera função conectiva. Contudo, podemos dizer que o marcador deriva de fontes lexicais que estão associadas de forma bastante transparente à função pragmática codificada (cf. Cuenca 2003:1080).[9]
No nosso corpus, encontrámos quatro valores distintos para o marcador ‘quer dizer’. Começaremos por apresentar exemplos em que ‘quer dizer’ funciona como marcador de reformulação (1.1.); seguidamente, focalizar-se-ão os usos do marcador com valor de atenuação (1.2.) e de conclusão (13.); finalmente ilustrar-se-ão os seus usos como ‘filler’, ou seja, como marcador de formulação ou construção on-line do discurso oral (1.4.).
1.1. Valores reformulativos
Atente-se nos seguintes exemplos:
(1) Eu este ano para apanhar a azeitona tenho que dar a meias a azeitona, quer dizer, eu tratei das oliveiras e tudo e agora para apanhar, metade é para o indivíduo que ma apanha e metade é para mim. [133-04-G00-002-25-M-E-5-3-00]
(2) (…) quando eu estou doente vou a um médico, não faço com ele um contrato escrito, mas na realidade eu vou à espera de receber um serviço, e esse serviço tem de me ser prestado nos termos do código, nos termos da lei, segundo as leis da arte, quer dizer, segundo a melhor, o melhor conhecimento médico, essa é a obrigação jurídica do médico. [O-0028-R-O-P-Lis-Redip]
(3) Até já se consegue fazer ali vida de cidade, quer dizer, já há o anonimato que há nas cidades [1232P273]
(4) Interessa sobretudo distribuir bem, quer dizer, com justiça, o que se vai produzindo [A43766]
Todos os exemplos ilustram casos de auto-reformulação parafrástica: o falante reformula o enunciado prévio com o objectivo de explicar (do lat. explicare, com o sentido de desdobrar, desenvolver) o que disse anteriormente. Note-se que não há propriamente uma equivalência semântica entre os dois fragmentos discursivos articulados por ‘quer dizer’, mas antes uma explicação, uma clarificação do dito, com o intuito de o tornar mais preciso ou mais explícito. Consideramos que a explicação ou a clarificação do dito é um sub-tipo da reformulação parafrástica, já que o falante assume como pragmaticamente equivalentes os dois segmentos interligados, sinalizando, no entanto, que a segunda formulação é mais adequada e clarificadora, traduzindo melhor a sua intenção comunicativa. As unidades articuladas pelo marcador podem ser enunciados que envolvem a expressão de proposições (cf. exemplos 1 e 3) ou sintagmas de natureza subproposicional, no interior de um mesmo enunciado (cf. exemplos 2 e 4).
Nestes contextos, ‘quer dizer’ pode ser substituído por ‘ou seja’, ‘isto é’, e ainda por conectores de reformulação não contemplados neste estudo, como ‘por outras palavras’, noutros termos’, ‘dito de outro modo’.
Vejam-se agora os seguintes exemplos, em que ‘quer dizer’ introduz uma auto-reformulação não parafrástica:
(5) (…) o parque, é um parque nacional, não é, que abrange a área (Peneda) e (Gerês). E tão a fazer melhoramentos, não é, quer dizer, eu não sei, ainda não cheguei a entender se isto é bom ou mau (…) [1083-11-D05-002-23-F-A-3-2-0]
(6) A pornografia é uma invenção masculina. A prostituição é uma coisa masculina, não há pornografi ou prostituição para as mulheres. Quer dizer, só há para uma minoria.[ jpub_970925_c01]
Em (5), no enunciado prefaciado por ‘quer dizer’, o falante reconsidera o ponto de vista expresso previamente, distanciando-se dele. Em (6), o locutor recorre ao marcador para corrigir ou retificar uma formulação prévia. Com este último valor, o marcador comuta livremente com ‘ou melhor’/ ‘ou antes’, podendo ainda ser substituído por ‘ou seja’ e ‘isto é’.[10]
Casos deste tipo (ou seja, casos de auto-reformulação não parafrástica) são raros no corpus, o que parece indiciar que não estamos perante o valor prototípico do marcador ‘quer dizer’ no PEC. Naturalmente, os conteúdos proposicionais dos segmentos conectados são decisivos para a distinção entre reformulação parafrástica e não parafrástica.
1.2. Atenuador
Atente-se agora no exemplo (7):
Neste exemplo, ‘quer dizer’ parece funcionar como atenuador ou mitigador da avaliação negativa que o falante expressa. Note-se a ocorrência do diminutivo no quantificador (um bocadinho), que parece cumprir a mesma função pragmática de mitigação ilocutória, numa estratégia discursiva de delicadeza atenuadora, que salvaguarda ou protege a face postiva do falante (cf. Brown & Levinson 1897, Briz 2006). Com esta função modalizadora, o marcador não comuta com ‘ou seja’ e ‘isto é’ e funciona, tal como os adverbiais modalizadores, como operador de um lugar.[11](7) E então esse aluno, quer dizer, foi um bocadinho insolente, na maneira de falar e eu reagi e disse que ia comunicar à reitoria. [503-09B00-002-35—M-C-3-6-A]
Não detetámos nenhuma ocorrência deste tipo no corpus escrito, e apenas uma no corpus oral, o que parece indiciar a fraca produtividade do marcador em apreço no que toca à expressão deste valor.
1.3. Marcador conclusivo
Atente-se agora no exemplo (8):
(8) Os indivíduos nascidos em países de determinada religião seguem, em regra, essa religião: a maioria dos árabes são muçulmanos; a maioria dos anglo-saxões são protestantes. Quer dizer, doutrinas e crenças são, para muitos, aquilo que lhes foi ensinado. [J13337]
Trata-se de um exemplo retirado do sub-corpus escrito, a única ocorrência encontrada em que o marcador assume um valor conclusivo, como a substituição por ‘portanto’, sem qualquer alteração do significado, comprova. A baixíssima frequência de uso, no corpus, aponta para a natureza periférica deste valor no PEC.
1.4. Marcador de formulação
Vejam-se agora os seguintes exemplos:
(9) Não consigo encontrar identidade entre os meus problemas familiares e a maior parte das pessoas com quem eu contacto, pessoas da minha idade, e isso devido talvez à, quer dizer, a maior parte das pessoas que têm problemas familiares consideram-se, consideram que os pais e as pessoas da família em geral tão ultrapassadas…[609-19-C00-002-19-F-J-5-7-00]
(10) Gosto mesmo de falar com esse senhor. É formidável. Agora, quer dizer, o ambiente assim daqui, quer dizer é…não gosto (…) (587-20-C10-020-22-F-A-4-2-00)
Naturalmente, só se encontra este valor no corpus oral. Nestes casos, o marcador funciona basicamente como um “filler”, uma pausa discursiva preenchida, sinalizando o processo da formulação on-line do próprio discurso, que reflete a não planificação prévia do que se pretende comunicar. Em situações espontâneas, informais e pouco controladas de produção de discurso oral, são frequentes os momentos de hesitação, as reorientações do discurso, e ‘quer dizer’, no nosso corpus, cumpre dominantemente essa função de ‘bordão’. Tendo em conta um critério de frequência, no corpus em análise esta função sobrepõe-se à função reformuladora.[12]
2. Ou seja
O marcador em apreço é formado pela conjunção de disjunção ou, que sinaliza uma alternativa, seguida do verbo ser na 3ª pessoa do presente do Conjuntivo, modo que tipicamente expressa posibilidades que podem ser consideradas no contexto enunciativo (Marques 2005). Completamente gramaticalizado, o marcador funciona como uma só entrada lexical, cujo significado não pode ser composicionalmente derivado, e tem autonomia prosódica.[13]
Num estudo prévio (Pons-Bordería & Lopes, a publicar), foram já recenceados os valores de ‘ou seja’ no PEC, a partir do sub-corpus oral do PEC. Assim, retomam-se aqui os valores recenseados nesse estudo e acrescentam-se exemplos retirados do corpus escrito. Destacar-se-ão em primeiro lugar os seus valores de reformulação (2.1.), seguidamente ilustrar-se-á o valor conclusivo que pode assumir (2.2.) e, finalmente, o seu valor de marcação da formulação on-line do discurso oral (2.3.).
2.1. Reformulador
Atente-se nos exemplos (11) a (14):
(11) L2: pegando nesta operação que tem agora um mês, faz agora um mês que reduziu, eh, de sessenta para vinte o número de acidentes, ou seja em relação ao mesmo período do ano passado há três vezes menos acidentes... (O-0029-R-O-P-Lis-Redip)
(12) (…) ontem, eh, a conferência das nações unidas sobre comércio e desenvolvimento, eh, apontava exactamente no mesmo sentido, o que é curioso é que falava em que, eh, o custo da crise asiática vai representar este ano cerca de um por cento da produção mundial, ou seja, duzentos e sessenta mil milhões de dólares. (O-0018-RE-P-Lis-Redip)
(13) L3: claro, a clonagem é exactamente um processo que conduz à formação de indivíduos genotipicamente iguais, ou seja, com o mesmo património genético. (O0007-R-Ci-P_Lis-Redip)
(14) Para além disso, toda a restante racionalidade que é depositada no Estado pelo processo político é derivada da solução democrática de conflitualidade económica, social e política, ou seja, do facto de se governar com um programa legitimado pela maioria , após eleições livres [A131297]
Todos eles ilustram casos paradigmáticos de auto-reformulação parafrástica: o falante reelabora a sua primeira formulação, com o objectivo de tornar mais precisa, explícita ou clara a informação que pretende comunicar. Os fragmentos conetados podem ser de natureza proposicional (cf. 11) ou de natureza subproposicional (cf. 12 a 14).
Importa assinalar uma particularidade encontrada no corpus escrito: referimo-nos a ocorrências em que ‘ou seja’ funciona cataforicamente, sinalizando que o segmento subsequente especifica algo a que alude o segmento anterior. É o que ilustra o exemplo (15), no qual ‘ou seja’ poderia ser substituído por ‘a saber’:
(15) Penso que se não houvesse um objectivo determinado e declarado, ou seja, o de conseguir o mesmo objectivo pretendido em 1982 pelo Secretário de Estado Alfaia , tudo quanto se está a passar seria incompreensível (A151466)
Atente-se agora nos exemplos (16) a (18):
(16) …daqui a pouco vamos já ouvir o principal da actualidade…do resto da actualidade, eh, esta manhã, mas para já nesta manhã aqui em directo do, eh, ipatimup, ou seja, do instituto de patologia e imunologia molecular da universidade do porto, será interessante nós eh, avaliarmos o curriculum deste instituto em apenas dez anos ... (O-0008-R-Ci-P-Lis-Redip)
(17) Mas essas bolachas, são as bolachas geralmente que têm...o filling ou seja o recheio, não é,... ( 1143-11-D05-001-38-F-C-3-2-H)
(18) No seu documento final, esta sessão extraordinária proclamou a semana a começar na data do aniversário da Constituição da ONU , ou seja, a 24 de Outubro, como a Semana Mundial do Desarmamento. [A132603]
Nestes exemplos, verifica-se um caso de estrita equivalência semântica entre os segmentos conetados. São raros casos como estes, em que a reformulação envolve de facto total equivalência: em (16), o falante explica o que significa a sigla que acabou de usar; em (17) o falante recorre a ‘ou seja’ para introduzir a tradução de um termo estrangeiro; em (18), exemplo extraído do corpus escrito, o segmento introduzido por ‘ou seja’ identifica a data previamente referida.
Os exemplos seguintes, (19) e (20) ilustram casos de auto-reformulação não parafrástica:
(19) E até porque gosto muito de tourear e... gosto muito de, já li umas coisas acerca de tauromaquia em geral e, sei que aqui estamos um pouco atrasados, ou seja, muito mesmo em relação a (Portugal) continental e a (Espanha) e (México) (744-08-TD0-012-25-MC-4-4-00)
(20) Não, não, eu não tenho tido chatices nenhumas, não tenho tido absolutamente chatices nenhumas. E até desde que cá estou nunca tive pessoa nenhuma que lá ficasse presa. Ou seja, não, tive, foi um senhor abade…(346-18-C00-011-42-M-I-1-7-00)
Neste contextos, ‘ou seja’ codifica uma instrução de correção ou rectificação: o enunciado prefaciado pelo conetor cancela informação previamente asserida. Assim, ‘ou seja’ comuta livremente com ‘ou melhor’, ‘ou antes’, podendo ainda ser substituído por ‘quer dizer’ e ‘isto é’. O contexto verbal, mais concretamente o conteúdo proposicional das unidades articuladas, é decisivo no que toca à ativação desta nova interpretação. No corpus escrito, não encontrámos nenhum exemplo de ‘ou seja’ com esta função.
Centremo-nos agora nos casos em que ‘ou seja’ funciona como marcador de hetero-reformulação. O marcador mantém a sua posição inicial, prefaciando o segmento que configura a reformulação, mas o facto de a unidade discursiva ser diferente – trata-se de uma intervenção reactiva, da responsabilidade do interlocutor – faz com que novos valores sejam activados. De facto, a função básica desta intervenção reactiva é sinalizar uma atitude de forte cooperação por parte do interlocutor. Vejamos alguns exemplos:
(21) L4: as pessoas que nascem com mucinas 1 pequenas têm muito maior susceptibilidade à infecção pelo helicobacter pylori1, do que as pessoas que nascem com mucinas grandes. L3: ou seja, entrando dentro desse infinitamente pequeno que é possível, eh, desencadear acções preventivas e... e... e avançar para o tratamento, neste caso... L4: exactamente (O-0008-R-Ci-P-Lis-Redip)
(22) ...portanto nós em portugal temos uma elevadíssima percentagem da população com uma doença infecciosa do estômago que provoca alterações que são gravíssimas em termos do que é a saúde da população... L3: ou seja este é um mal português. qual...qual será a raiz... a origem desse mal português? ( O-0008-R-CiP-Lis-Redip)
Em (21), ao iniciar a sua intervenção reativa por ‘ou seja’, o interlocutor pretende confirmar a sua plena compreensão do que foi dito pelo primeiro falante, sinalizando o seu empenho em cooperar na interação verbal em curso. Em (22), a intervenção reativa iniciada por ‘ou seja’ opera por redução, reformulando de forma condensada o que foi comunicado pelo primeiro falante, sempre com um propósito de sinalização de empenho cooperante na interação.
Embora o corpus não nos ofereça evidência empírica de que ‘ou seja’ pode constituir, por si só, a intervenção reativa, a nossa competência de falante nativa permite-nos construir um exemplo em que isto acontece:
(23) L1: Não basta querer, é preciso investir. L2: Ou seja?
L1: Não te faças de ingénuo, sabes muito bem o que quero dizer.
Neste exemplo, o marcador funciona como uma unidade discursiva independente e sinaliza um pedido de explicação ou de esclarecimento, parafraseável por ‘o que queres dizer com o que acabaste de dizer?’.
2.2. Valor conclusivo
Os dois corpora oferecem-nos ocorrências de ‘ou seja’ como marcador conclusivo, substituível por ‘portanto’ e sinalizando que o enunciado seguinte expressa um consequência lógica que pode ser inferida a partir do enunciado prévio, como os exemplos que se seguem ilustram:
(24) na manhã desta quinta-feira, os ministros das finanças dão o passo que falta para o nascimento do euro. quando for meio-dia e meia hora anunciam o valor da taxa de conversão para cada moeda, ou seja, ficaremos a saber quantos escudos valerá cada euro... daqui por diante ( O-0003-R-A-P-Lis-Redip)
(25) É uma questão à qual, quase em exclusivo, os sectores cooperativo e privado têm dado resposta, ou seja, o Estado tem ignorado a sua responsabilidade perante estas crianças e o seu papel integrador [noCOD_1012698]
2.3. Marcador de formulação
Embora em número substancialmente menos significativo do que o que encontrámos na análise de ‘quer dizer’, ‘ou seja’ também é utilizado no PEC como marcador de planificação on-line do discurso, marcando hesitações, pausas, na formulação:
(26) PAU: /mas / basicamente eu comecei / quando comecei a trabalhar lá / &eh +$ ou sej/ eu &trabalhe / eu trabalhei lá / um mês e pouco (O-0004-pfamcv04 c_oral_rom)
(27) ...uma certa euforia em relação a timor-leste, eh, em rel... à questão timorense com a queda de suharto, com a chegada... do... do presidente habibi com a ideia de, eh, avanço de reformas democráticas na indonésia, eh, passados agora estes, eh, cinco meses, sente que essa... que há razão para essa euforia ou seja que, eh, há bocadinho usou a expressão um momento crucial em relação a timor-leste... (O-0016-R-E-P-Lis-Redip]
Como os dados ilustram, ‘ou seja’, combinado frequentemente com um pausa, recomeça ou reorienta o discurso, refletindo hesitações e problemas de planificação por parte do falante.
3. Isto é
Este marcador é formado pelo demonstrativo invariável isto (um pronome que pode funcionar anafórica ou cataforicamente, como deítico textual), seguido da 3ª pessoa do singular do presente do Indicativo do verbo ser.[14]Esta estrutura é replicada noutras línguas (that is (ing.), cioè (it.). esto es (esp.)). Trata-se, de um marcador totalmente gramaticalizado, cujo significado procedimental não é derivado composicionalmente. Contrariamente ao que acontece com o marcador reformulativo espanhol ‘esto es’, que ocorre exclusivamente em registo formal (cf. Pons 2008), ‘isto é’ é mais versátil em PEC, estando documentado em registo informal de língua, como se verá a seguir.
No nosso corpus, o conector ‘isto é’ cumpre essencialmente uma função de reformulador (3.1.). Daremos seguidamente exemplos em que o mesmo conector funciona como marcador de formulação (3.2.).
3.1.Reformulador
Atente-se nos seguintes exemplos:
(28) …numa das tardes ha d (…) que como sabem também falava hebraico / ha perguntou a Adão / “Adam / efo / atá?” isto é “homem onde estás tu?” [O51]
(29) Mas tenho uma boa clientela nós aqui procuramos ou numa praça ou noutra, isto é, ou num mercado ou noutro… [35-09-C00-00142-M-B-1-7-00]
(30) …existe julgo eu em trinta e oito dos estados unidos / a a (..) apenas em relação àquilo que se chama eutanásia passiva / isto é ao direito a ser desligado de uma máquina … [OP0076L]
(31) O conhecimento da pedosfera, isto é, a camada da Terra constituída pelos solos, é muito importante em Ecologia [L0631]
[14]
Em (28), encontra-se um contexto muito específico de ocorrência do reformulador ‘isto é’, um contexto de tradução, em que se verifica uma equivalência estrita entre os dois segmentos articulados pelo conetor. O exemplo (29) oferece-nos também um caso de auto-reformulação parafrástica pura, no sentido da marcação de total equivalência semântica entre os termos articulados, ‘praça’ e ‘mercado’, que assim são apresentados como sinónimos no contexto discursivo em causa. Já em (30), o marcador aparece num contexto de glosa, sinalizando uma reformulação que visa explicar o significado de uma expressão potencialmente desconhecida pelo interlocutor. Em (31), exemplo do corpus escrito, o produtor do texto recorre à auto-reformulação para tornar mais preciso e claro o que pretende dizer. Os exemplos mostram-nos que o marcador pode articular constituintes subproposicionais e proposicionais.
No corpus, este valor de auto-reformulação parafrástica, presente quer em contextos equativos (que envolvem estrita equivalência semântica entre os dois segmentos articulados), quer em contextos metalinguísticos (que envolvem definições), quer ainda em contextos em que o falante visa explicar, precisar ou clarificar o que pretende comunicar é, sem dúvida, o mais relevante, em termos quantitativos. Nestes contextos, ‘isto é’ comuta livremente com ‘ou seja’ e ‘quer dizer’.
Embora substancialmente menos frequentes, no corpus oral encontram-se ainda exemplos que ilustram casos de auto-reformulação correctiva ou retificativa sinalizada pelo mesmo marcador:
(32) Nós somos os melhores pagos de todos os médicos. Pois, somos os que tamos mais atrasados. Isto é, os que tão um ano à nossa frente ainda recebem mais uns pozinhos do que nós, mas com a excepção desses e de nós, todos os outros medicos formados há cinco, dez, quinze anos, tão a ser pior pagos do que nós. [472-14A00-00726-M-A-6-8-00]
Não foram detetadas, no corpus oral, ocorrências de ‘isto é’ em contextos de hetero-reformulação.
De notar que no corpus escrito ‘isto é’ ocorre frequentemente com função catafórica, apontando para uma especificação de algo que foi anunciado no segmento anterior:
(33) A política sublime, que se opõe à dos Estados, quer aprofundar aquilo que a experiência do nosso século acabou por aniquilar, isto é, a confiança numa Grande Política, tal como a defendeu Nietzsche. (L0989).
Neste tipo de contextos, ‘isto é’ seria substituível por ‘a saber’.
3.2. Marcador de formulação
Veja-se agora o seguinte exemplo:
(34) / &eh / &eh / depois / há uma coisa muito importante // $ que é +$ havia cá em Portugal // $ que é a rolha // $ isto é / eu estou numa zona / onde havia / a grande produção de rolhas de Portugal [ O-0120-ppubdl03-c_oral_rom]
[14]Neste caso, o falante recorre a ‘isto é’ como mero preenchimento de pausa discursiva decorrente do processamento on-line de um discurso não planificado. Após a ocorrência do marcador, verifica-se uma reorientação do discurso. Em termos quantitativos, são escassas as ocorrências, no corpus oral, de ‘isto é’ com esta função. Face aos dados, esta parece ser uma função subsidiária do marcador no PEC.
4. Conclusões
A análise dos dados empíricos permite-nos retirar as seguintes conclusões:
1. Os três conetores funcionam, no PEC, como marcadores de reformulação. Tanto no corpus oral como no escrito, encontram-se em variação livre na marcação de reformulação parafrástica; não foi detetada nenhuma ocorrência de ‘ou seja’, no corpus escrito, como marcador de reformulação não parafrástica corretiva.
2. Todos eles podem funcionar, na oralidade, como marcadores de formulação, ‘fillers’, sinalizando o processamento on-line de discursos pouco planeados, mas aquele que de forma mais expressiva cumpre esta função é, sem dúvida, o marcador ‘quer dizer’. ‘Isto é’ aparece como o marcador com menos usos deste tipo, no corpus.
3. Se exceptuarmos os usos reformulativos, abundantemente respresentados nos dois sub-corpora, e formulativos, circunscritos ao corpus oral, verifica-se uma escassa frequência de usos secundários no conjunto dos marcadores. Com um valor atenuador, só se atestaram ocorrências de ‘quer dizer’, no corpus oral; como um valor conclusivo, foram detetadas ocorrências de ‘ou seja’ em ambos os corpora, e de ‘quer dizer’ no corpus escrito.
4. Embora todos eles manifestem algum grau de polifuncionalidade, o marcador ‘isto é’ é aquele que manifesta um menor número de usos secundários.
No quadro que a seguir se apresenta, sintetizam-se os principais resultados deste estudo, no que toca ao valor dos marcadores:
Quer dizer | Ou seja | Isto é | |
Conetor de Reformulação | + | + | + |
Conetor Conclusivo | + | + | _ |
Marcador de atenuação, no corpus oral | + | _ | _ |
Conetor formulativo (filler), no corpus oral | + | + | + |
Confrontando os exemplos do corpus oral com as produções escritas, as diferenças mais significativas consistem no uso de ‘ou seja’ e ‘isto é’, no corpus escrito, com um valor catafórico idêntico ao do marcador ‘a saber’.
Referências
Bárbara, M.E. (1997) Contribuição para o estudo da reformulação em português. Dissertação de Mestrado. FLUC. [ Links ]
Briz, A. (2006) “Para una análisis semántico, pragmatico y sociopragmático de la cortesía atenuadora en España y América”, en Lingüística Española Actual, XXVIII/2, 1-41.
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Notas
[1]Perspectiva semelhante é adotada, entre outros, por Pons (1998, 2006), Fraser (1999), Zorraquino & Portolés (1999), Rossari (2006).
[2]Adotamos a definição já proposta em Pons Bordería & Lopes (a publicar).
[3]Como pertinentemente afirma Fonseca (1992: 307-308), “são certamente múltiplos os factores que intervêm na reformulação. Entre eles, conta-se em particular a tomada de consciência por parte do Locutor da não-adequação do seu discurso às intenções designativas do universo de referência a activar, às condições do bom, eficaz e apropriado processamento da comunicação-interacção. Mas actua aqui também a percepção por parte do Locutor das dificuldades no domíno da recepção-interpretação (...) que adivinha por parte do Alocutário (...)”.
[4]É neste sentido que podemos entender a afirmação de Cuenca (2003:1072), segundo a qual “Reformulation is more than a strict paraphrase. It can imply discourse values such as explanation, specification, generalization, implication, gloss or summary.”
[5]Cf. Pons & Lopes (a publicar).
[6]http://www.clul.ul.pt/pt/recursos/183-reference-corpus-of-contemporary-portuguese-crpc. Foram escolhidas aleatoriamente 100 ocorrências no sub-corpus oral e 100 ocorrências no sub-corpus escrito.
[7]No corpus, ocorre uma variante socioletal de ‘quer dizer’, a expressão ‘quer-se dizer’, que tipicamente corresponde a usos menos padronizados do PEC. Assinale-se que as duas formas verbais podem ocorrer em combinatórias livres, no PEC, como acontece em (i): (i) O João quer dizer à mãe que não pode assumir o compromisso, mas não tem coragem de o fazer.
[8]Para uma análise sobre o processo de gramaticalização subjacente ao desenvolvimento deste marcador , cf. Gonçalves et al. 2007.
[9]O verbo declarativo dizer é comum em marcadores de reformulação noutras línguas românicas: c’est-à-dire (fr.), es decir (esp.), és a dir (cat.).
[10]Embora no nosso corpus não haja nenhum exemplo de hetero-reformulação sinalizada por ‘quer dizer’, encontra-se um exemplo em Bárbara (1997):
X: por exemplo o lagarto não faz mal, isso até é amigo do homem, pode uma pessoa estar a dormir muito descansado no campo, passa um lagarto pela cara ou por as mãos, a gente acorda....sabe que está o inimigo ao pé, pode ser uma cobra para nos fazer mal, e a gente nessa altura com um pauzito (...) mata-o.
A: ah, quer dizer, ele avisa, o lagarto. (PF 0564)
O falante reinterpreta a intervenção prévia, numa intervenção reactiva cujo objetivo é confirmar/testar a compreensão do que foi dito. Trata-se de um movimento de hetero-reformulação não parafrástica, através do qual o falante condensa aquilo que infere ser a informação mais relevante da intervenção anterior.
[11]No espanhol, este valor é marcado por ‘o sea’. Cf. Schwenter 1996, Pons Bordería & Lopes, a publicar.
[12]No espanhol, é o marcador ‘o sea’ que assume este valor formulativo (Pons Bordería & Lopes, a publicar).
[13]Tanto quanto é do nosso conhecimento, não há estudos sobre o processo de gramaticalização de ‘ou seja’ em Português. Parece-nos, numa primeira pesquisa a aprofundar posteriormente, que ‘ou seja’ começa por ocorrer em construções livres, marcando a conjunção ‘ou’ um valor disjuntivo exclusivo, como se atesta em (i) e (ii), dados recolhido em Davies & Ferreira (2006):
(i) Ca o enprazador ou o enprazado nõ deue në pode fazer enalheamëto nouamët ë në hûã maneira da cousa sobre que he feito o enprazamëto & quer demãdar por sua. assy como dissemos de suso. ata que seia liurado da contenda que he antreles per juizo. ou seia dado por quite o enprazado do enprazamëto. [Primeira partida Afonso X, Primeira Partida, séc. XIV]
(ii) As duas reglas: A prymeira, que soomente executemos aquello em cujo prossyguymento nem hûû mal nom venha, ou seja del o menos e tal que bem se possa remediar, e fujamos daquel onde grande mal pode vÏÏr, specialmente o que se nom pode bem remediar segundo intendymento d’homëës.[D. Duarte, Leal Conselheiro, séc. XV]
Contextos deste tipo facilmente ativam uma implicatura de equivalência, no sentido de que qualquer uma das alternativas expressas é apresentada como igualmente aceitável. Tal implicatura pode ter-se convencionalizado dando origem ao valor reformulativo parafrástico de ‘ou seja’.
[14]Segundo Pons (2008), ‘esto es’ resulta da tradução do latim is est em documentos jurídicos do espanhol antigo. Tanto quanto sabemos, não há estudos diacrónicos que nos permitam avançar a mesma afirmação no que toca ao português.