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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0870-8967versão On-line ISSN 2183-9174

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

DOSSIER 50 ANOS DE LUUANDA

Introdução

 

Joana Passos* Elena Brugioni**

 

No Colóquio de Outono de 2013, subordinado ao tema As Humanidades e as Ciências, Disjunções e Confluências, o Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho tomou a iniciativa de organizar uma Mesa Redonda sobre o cinquentenário de Luuanda, de Luandino Vieira, obra fundadora da moderna literatura, escrita, de Angola, e emblema de uma intervenção literária que reuniu vários escritores dessa mesma geração de 1950 / 1960 em torno da causa da libertação nacional. Embora Luuanda fosse efetivamente publicada pela primeira vez em 1964, foi escrita em 1963, na cadeia de S. Paulo, da invocada cidade. As circunstâncias da criação do manuscrito e do seu clandestino caminho do interior da prisão até ao editor, pela mão de Ermelinda Graça, são já parte integrante do percurso extraordinário deste livro, e justificam uma certa antecipação no assinalar da efeméride.

A partir das intervenções nessa Mesa Redonda, quisemos deixar memória de tão participada e emotiva sessão, testemunho vivo do reconhecimento que Luandino Vieira conquistou junto de gerações de investigadores, incluindo os mais jovens. E foi este mesmo propósito que motivou a procura de testemunhos por parte de outros escritores, colegas e cúmplices, que quiseram deixar a sua voz associada a este dossier.

As organizadoras querem agradecer, em primeiro lugar, a generosidade de Luandino Vieira, pela forma como nos recebeu e se disponibilizou a colaborar, e, por outro lado, o continuado e decidido apoio da professora Ana Gabriela Macedo, Diretora do CEHUM, que acolheu esta iniciativa. Agradecemos também às nossas convidadas, as professoras Ana Mafalda Leite e Inocência Mata, bem como às professoras Laura Padilha e Rita Chaves, os ensaios que nos disponibilizaram. Por fim, o nosso reconhecimento aos escritores que juntaram as suas vozes a esta homenagem e um agradecimento especial a Ungulani Ba Ka Khosa, que, ao saber da iniciativa, se disponibilizou para levar o nosso convite até ao Luís Bernardo Honwana.

Luuanda, conjunto de 3 ‘estórias’ escritas em 1963 por Luandino Vieira, ganhou uma maior visibilidade em 1964, quando lhe foi atribuído o prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga, na altura um importante prémio angolano, o qual teve o mérito de estimular a publicação de autores locais, na Angola dos anos 60. O percurso pessoal de Luandino Vieira, o período histórico em que viveu e as formas de intervenção a que não se esquivou são indissociáveis da escolha de temas, perspetiva ideológica, carga humana e afetiva e, até, do inovador uso da linguagem que se encontra nos seus textos. Também o impacto de Luuanda se prende com as posições públicas tomadas por quem o escreveu. Em 1959, no âmbito do chamado Processo dos 50, a PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado — efetuou um conjunto de prisões de destacados nacionalistas angolanos com o objetivo de desorganizar, ou pelo menos adiar, a eclosão da guerra de libertação em Angola. Luandino Vieira foi um dos nacionalistas presos no âmbito deste processo. Quando escreve Luuanda, em 1963, é um preso político em virtude das suas convicções nacionalistas, e já decorria a guerra de libertação de Angola (1961-1975). A situação vivida pelo autor enquadra estes contos como escrita comprometida, e por isso é pertinente recordar o percurso de Luandino Vieira, para se contextualizarem as motivações que subjazem à escrita, e se explicitar o receio que estes textos inspiravam ao regime ditatorial do Estado Novo. Mais tarde, em 1964, Luandino Vieira acabaria por ser transferido para a prisão do Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde, onde ficou oito anos. Tratava-se portanto de uma voz que se queria silenciar, um ativista a manter longe de Luanda.

No ano seguinte, em 1965, Luuanda ganhou o 1º Grande Prémio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Autores, e desencadeou um polémico processo político, que teve o efeito oposto ao pretendido: quanto mais se pretendia silenciar o impacto destes textos, mais mítica se tornava a obra de Luandino Vieira. Com a atribuição do prémio pela Sociedade Portuguesa de Autores – o que levou ao encerramento da mesma pela polícia política do Estado Novo – Luuanda tornou-se um símbolo de resistência, alinhada à esquerda, que unia uma parte da intelectualidade portuguesa aos ativistas que pugnavam pela libertação das várias nações africanas ainda colonizadas por Portugal. Luuanda torna protagonista o povo de Luanda, por contraste com os bairros coloniais da "Cidade Alta", revelando a base operária, explorada, dessa Luanda do musseque que, unida e resoluta, é o símbolo de uma idealizada nação africana a germinar. Doze anos depois da escrita de Luuanda, Angola torna-se um país independente, a 11 de Novembro de 1975. Neste processo histórico, a escrita literária de Luandino Vieira teve um importante papel de consciencialização política e de elucidação dos termos do conflito, ao mesmo tempo que ofereciam ao leitor angolano uma base de identificação com uma identidade angolana, distinta da portuguesa, que era urgente afirmar. Luuanda é portanto uma obra que nasce ligada a um contexto de resistência e afirmação, em sintonia com outras literaturas de língua portuguesa que na altura enfrentavam os mesmo desafios. Não é, apesar desta responsabilidade histórica, um livro datado, pois a vitalidade do texto continua a cativar leitores e permanece vivo testemunho da identidade angolana e das questões que ainda hoje aguardam resposta nessa sociedade.

O livro Luuanda veio a ser reeditado 17 vezes[1], e foi traduzida para russo, alemão, checo, dinamarquês, sueco, inglês, italiano, polaco, espanhol e francês. As duas últimas reedições saíram simultaneamente em Luanda e Lisboa, em 2004 e 2008.

Em tom de conclusão acrescentaríamos que, em 2006, o Prémio Camões foi atribuído a Luandino Vieira, que na altura ainda vivia isolado e silencioso, recluso no convento de San Payo, em Vila Nova de Cerveira, onde esteve cerca de 10 anos. Aparentemente, nos últimos anos, o escritor reencarnou num avatar mais mundano, recomeçou a reescrever depois de uma longa interrupção, e redescobriu a teia de amigos e colaboradores que o reclamam para o mundo. Luandino Vieira tem também uma faceta de editor, com a editora Nóssomos, através da qual, mais uma vez, está a fazer as coisas que têm de ser feitas, como reeditar publicações raras de autores angolanos (e não só), divulgando de novo a sua obra.

Em nome de muitos, obrigada por tanto, Luandino.

 

Notas

[1]Dez das reedições de Luuanda são das Edições 70, editora com um papel destacado na divulgação de autores angolanos e moçambicanos em Portugal, fazendo a ponte entre os intelectuais dos dois países num período de grandes convulsões históricas e políticas. Quatro edições são angolanas, três delas da União de Escritores Angolanos.