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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0870-8967versão On-line ISSN 2183-9174

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

RECENSÕES

L’érotisme au moyen âge. Le corps, le désir, l’amour. Arnaud de la Croix, Collection TEXTO, dirigée par Jean-Claude Zylberstein, Paris, Éditions Tallandier, 2013, pp. 168

 

Sérgio Guimarães de Sousa*

*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

spgsousa@ilch.uminho.pt

 

É hoje razoavelmente consensual, sobretudo depois da insistência de estudiosos de primeiro plano (Alain de Libera, Umberto Eco, Jacques Riché, Georges Duby, Jacques Heers, Jean Verdon, entre outros), que o entendimento sobre a Idade Média, por vezes muito injustamente desprezada, é o que deslegitima o juízo restritivo de uma equivocada percepção unívoca da sua representatividade sócio-histórica em favor de uma aferição múltipla e não raro contraditória do seu imaginário. Sabe-se, pois, que a Idade Media, do ponto de vista civilizacional, não se esgota num suposto obscurantismo, antes se afirmou na cartografia do conhecimento e das artes como um cronótopo vigoroso e complexo e, por extensão, propício à coexistência de formas várias e com diversos momentos maiores. Não é de resto preciso especial acutilância crítica para compreender que nenhum arco temporal multissecular, como foi o do vasto período medieval, poderia funcionar na proporção de um bloco monolítico de crenças e práticas.

Talvez a melhor estratégia para perceber as coordenadas desta questão entre realia e representações seja historicizá-la, como fez de forma enfática Arnaud de la Croix, em torno do tema do erotismo, pondo a nu precisamente certas infelicidades hermenêuticas resultantes da multiplicação de discursos estereotipados e convencionais em detrimento do real empírico. Objetar-se-á decerto que semelhante tema possa eventualmente afigurar-se algo discutível tendo em consideração o sentido da realidade histórica da Idade Média. Sentido cuja razão primordial e substantiva pressupõe, digamo-lo desta maneira, um tempo homogeneizado por uma irredutível ideologia religiosa. Ou seja, tratou-se de um contexto decisivamente saturado por um pendor religioso presente a todos os níveis; e, como tal, legitimador de particularismos culturais pouco consentâneos com a expressão de pulsões libidinais. Neste sentido, o desejo erótico-sentimental mais não seria, enfim, do que uma manifesta decadência, senão mesmo ruína, do edifício civilizacional da unidade espiritual conatural à mentalidade medieval.

Mas em bom em rigor as coisas não foram assim tão líquidas. Porque a ser deste modo, teríamos, em consequência, de rasurar as várias declinações medievais do corpo, do desejo e do amor. Declinações que a obra de Arnaud de la Croix põe, e bem, em relevo e através das quais – forçoso é reconhecê-lo – os medievais segregaram uma poderosa presença de erotismo: a sensualidade eloquentemente cantada pelos trovadores em finais do século XI, a proliferação da obscenidade esculpida em monumentos ou ainda a irrupção de ritos carnavalescos com uma ostensiva sexualidade pulsional emanada de tradições populares, etc.

Aliás, numa frase lapidar e assaz reveladora (pelo seu teor conclusivo), diz o autor: "Il n’y a pas de modèle sexuel au Moyen Âge. Seulement des modélisations multiples du désir" (p. 146). E antes disso: "[...] le gai savoir érotique inventé au Moyen Âge relève de l’ambivalence, c’est-à-dire du mélange des genres. Les fabliaux participent à la fois de l’obscénité et du raffinement, la lyrique occitane mêle continuellement sentiment et sensualité, la rencontre mystique avec le divin se manifeste dans le corps des femmes en proie au Seigneur pénétrant, une nonne allaite un singe en marge du roman de Lancelot, les cloîtres sont habités par des monstres de Pierre. Alors l’esprit vivifie la chair. Et le corps a une âme" (pp. 145-146).

Lírica trovadoresca (com a fin’ amor), matéria da Bretanha e mitologias celtas, narrativas como a de Guillaume de Lorris e Jean de Meun (Roman de la Rose), sexualidade popular exibida em textos, esculturas e desenhos obscenos, eis desde logo a traços largos o percurso, segundo o autor, que se oferece ao rastreio do erotismo medieval e pelo qual se torna possível "appréhender les innovations concernant la manière de concevoir le désir amoureux, dans la mesure où l’inventivité médiévale nous paraît très riche en ce domaine, et peut-être susceptible de nous inspirer, aujourd’hui, dans un sens inattendu" (p. 17). De outro modo: a herança medieval, no que ao desejo diz respeito, não se afigura incómoda ou anacrónica. Dir-se-ia até, tudo bem visto, desejavelmente atualizável.

Seja como for, o certo é que o estudo das fontes histórico-literárias se torna indispensável para quem desejar revisar este património. É o que faz Arnaud de la Croix com inegável mérito histórico-linguístico e filológico ao debruçar-se, com atenção e com não menos demora, sobre textos fundamentais do repertório erótico-sentimental medieval, como é seguramente o caso, afora uma porção da lírica trovadoresca, do Tratactus de Amore, de André Le Chapelain (Cap. "Dorée d’Amour"). E se neste tratado de referência o autor não só recenseia o modo (cínico e humorístico) como é teorizado o código amoroso oriundo da cortesia como ainda compagina a obra com o tratado anterior, De l’amour et des amants, de Ibn Hazm (inícios do século XI), detetando notórias analogias estruturais, não é menos evidente o interesse de Arnaud de la Croix em relevar existentes textuais muito nitidamente contaminados por um flagrante erotismo. Designadamente o florescimento, em sede eclesiástica, de uma mística, essencialmente feminina, assaz tributária tanto da lírica cortês como do Cântico dos cânticos (Cap. "Éros mystique et féminin"). Mística feita de visões e êxtases, "où se nouent de brûlantes épousailles avec le divin" (p. 17). Ou então, já distante das efusões místicas, "les fabliaux du XIIIe siècle où le sexe s’affiche crûment, les chansons sensuelles des golliards, l’obscénité de nombre de sculptures et gargouilles, comme les curieux dessins qui figurent dans les marges de textes sacrés ou profanes, évocant une sexualité différente, liée à la tradition orale, au paganisme antique ou à des croyances populaires très peu chrétiennes" (Ibidem). (Cap. "Séxualité populaire").

Como é consabido, uma das especificidades filológicas do texto medieval consiste na contaminação, se nos for permitido dizê-lo assim. O mesmo é referir que se cada texto é suscetível de engendrar variantes, revisões, versões, recriações, reutilizações, etc., igualmente é capaz de provocar retomas e paródias. Destas interferências múltiplas não deixa de nos dar conta o autor: "En réalité, ces différantes conceptions de l’amour [lírica trovadoresca, ciclo arturiano, expressões místicas, etc.] et de la sexualité, d’une surprenante diversité, n’ ont cessé d’interférer les unes avec les autres. Certains fabliaux miment par endroits les romans arthuriens en les parodiant, les femmes mystiques empruntent à la lyrique des troubadours et des trouvères leur vocabulaire érotique, les Carmina Burana dénoncent l’hypocrisie des prêtres s’abandonnant aux appétits du corps qu’exaltent, cependant, les goliards, et Umberto Eco soupçonne les théologiens rigoristes de vilipender ce qui justement les séduit" (pp. 140-141). E tudo isto assim acontece porque: "Loin du consensus, de la pensée unique, du politiquement (et sexuellement) correct contemporain, les hommes du Moyen Âge ne craignent pas de dire haut et fort que les sexes sont différents, que les appétits du corps ne sont pas identiques aux élans de l’âme, ou combien les vilains, les bourgeois, les clercs et les chevaliers n’ ont pas les mêmes intérêts" (p. 141).

Por outras palavras, o homem medieval, por muito religioso e espiritual que fosse, não se coibiu de percepcionar o corpo e os desejos que este engendra como coisas tangíveis e fenomenais. A cultura dominante da Igreja, segundo a qual a vida de leigos e religiosos se supunha irredutivelmente impoluta, não o inibiu de manifestar o desejo e, com isso, de contrariar o repúdio pelo prazer apregoado por esta. Exemplo suficiente disso é sem dúvida a lírica trovadoresca. Se compararmos com a Antiguidade Greco-Latina, salta logo à vista que os trovadores colocaram a relação homem/mulher fora da clássica dominação masculina, já que o homem, por interposta presença da voz enunciativa das cantigas de amor, presta, como sabemos, vassalagem à dama, interpelada de resto como Senhor (senha genérica que diz bem da transposição das relações político-institucionais feudo-vassálicas para o campo amoroso), e depende da sua boa vontade. Diferentemente, na Antiguidade Clássica, o homem era não raramente equiparado a um caçador, sendo reservado à mulher o papel passivo de presa. Mais tarde, nos Lais, o caçador volve-se em objeto da caça, ao ver-se irremediavelmente cativado pela irresistível sedução de uma mulher que irrompe no lugar do animal que julgava perseguir. Na lírica medieval, em suma, os papéis como que se invertem. O que supõe desde logo uma maior reciprocidade na lógica do desejo. E toda esta inversão pode ocorrer tintada de erotismo, como se sabe. Basta dizer, com o autor, que os trovadores "[...] n’ hésitent pas à mettre en concurrence la joie d’amour et les biens spirituels, au bénéfice de la femme désirée" (p. 55).

No caso da nossa lírica, não resisto à tentação (é caso para dizer) de transcrever este verso extraído de uma cantiga de amigo de Juião Bolseiro (trovador do séc. XIII afeto à corte castelhana) por nele se notar (creio) um subconsciente textual claramente erótico. Aquele pelo qual a moça carente exprime desta forma o seu desalento por as noites serem tão longas na ausência do amigo: "E ora vai noit’ e vem e crece" (v. 16, 3.ª cobla; itálico meu). E noutro verso anterior, clamava-se assim a saudade: "E ora dur’ a noit’ e vai e vem" (v. 9, 2ª cobla; itálico meu).

Mas não só em cantigas de amigo se expõe a retórica do desejo, como é evidente. Seja-me consentido um parêntesis, e já à margem do livro de Arnaud de la Croix, para apontar alguns exemplos, entre outros possíveis, muito significativos. Admire-se nestes textos da Europa medieval, a tal que muitos confinaram a uma pura ortodoxia religiosa, a explicitação do desejo num quadro cujo paradigma, por exemplo, é o do homoerotismo mesclado com conteúdo sacro-religioso. Veja-se assim esta cantiga, intitulada "Iohannes Hiesu Christo multum dilecte virgo", repleta de questões de género (atribuição do título de virgem ao discípulo predileto de Cristo, João, o Evangelista; inversão do papel da pederastia, sendo aqui o discípulo o mestre e não o princípio ativo / masculino):

Iohannes Hiesu Christo multum dilecte virgo/ Alleluia/ Tu eius amore carnalem/ Alleluia/ In navi parentem liquisti/ Alleluia/ Tu leve coniugis pectus respuisti/ messiam secutus/ Alleluia/ Ut eius pectoris sacra meruisses// fluente potare/ Alleluia/ Iohannes Christi care/ Alleluia.

Outro exemplo de texto (neste caso, litúrgico) com um conteúdo legível em termos homo-eróticos provém da cantiga "Sergius tristis". Ei-la:

Sergius tristis, quod tanti socii/ iocunditate careret,/ lacrimando dicebat:/ Heu mi contubernalis Bache!/ Non iam psallimus/ "Ecce quam bonum et quam iocundum/ habitare fratres in unum!"// Cui noctu martyr respondit:/ Et si corpora te desservi,/ tecum spiritu inseparabile psallo:/ "Ecce quam bonum et quam iocundum/ habitare fratres in unum!"/ Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto.

E leia-se "Lamentomi et sospiro per più potere amare", composição escrita, convirá notar, por volta do século XII, isto é, num período em que a crucificação começou a ser mostrada de um modo mais gráfico e em que as descrições do Messias se tornaram cada vez mais corporais e sensuais. A figura de Cristo bem depressa se converteu, como se percebe sem custo, no foco de desejos homo-eróticos espirituais (digamos), como é disso satisfatória amostra o texto de que falamos:

Lamentomi et sospiro/ Per piú potere amare/ Con grande desiderio/ L’amor vorrei gridare. // Vorrei gridar tant’alto,/ Tutto ‘l mondo m’audisse,/ Et dentro ‘n paradiso/ Ogne sancto respondesse,/ Et al mi’ grande amore/ Pietà li ne venisse:/ La sua benigna faccia/ Mi degni rischiarare.// Va’ gridando, cor meo,/ Con caldo di fervore,/ Et passa sopr’a’ cieli/ Et vatten al mio amore,/ Et doventa prontíssimo/ Innanz’a lo ‘mperadore/ Et e’ tti farà doni/ Si ben sai domandare.// Rispondami il mio amore/ Et sì mi degni audire,/ Et gratia si mi doni/ Ch’i’ faccia il suo piacere;/ Constrigami in sue braccia/ L’altissimo meo sire,/ Non mi lasci perire,/ Ké mi degnò creare.// Non debo aver mais posa/ Né refinar non vollio;/ Del mio dilecto sancto,/ Ched’io ‘l pur [vollio],/ Lamentomi per gioias,/ Ed al mio amor mi dollio;/ Di sé mi faccia [degno]/ K’i’l possa guadagnare.// Amor, fosti battuto,/ Feruto ti fu ‘l core;/ Sire di grande alteza,/ Ki comperra tant’amore?/ Ké tu per me ti desti/ A cotanto dolore,/ Alla più dura cosa:/ Morir per me salvare.// Dio ke mi fece et me creòe/ Dami a veder quell’ora;/ In me sia tanta baldanza/ K’i’ non agia paura/ E io cum gioia mi mora/ Per Iesu mia dolzura//

E como seria de esperar, igualmente a figura da Virgem Maria suscitou desejos. Centenas de cantigas foram escritas em honra de Santa Maria durante os séculos XIII e XIV e muitas delas revelam uma devoção espiritual não isenta de desejo sensual. Eis uma delas:

Sempr’ acha Santa Maria/ razôn verdadeira/ per que tira os que ama/ de maa carreira.// E dest’un mui gran miragre/ direi que aveo/ a un cavaleiro que éra/ séu, non alleo,/ desta Sennor grorïosa;/ mas tant’ éra cheo/ de luxúria, que passava/ razôn e maneira.// Ca pero mui fïava/ en Santa María/ e loava os seus bees/ quanto mais podía,/ o pecado de luxúri’/ assí o vencia/ que o demo o levara,/ cousa é certeira.// El en tal coita vivendo,/ a mui Grorïosa,/ entendendo que saúde/ dest’ éra dultosa,/ porque non perdess’ sa alma,/ come pïadosa/ faz e come mui sisuda/ e come arteira.// Ca pois viu que do pecado/ nunca peedença/ el tevéra que lhe déssen,/ meteu sa femença/ en tirá-lo del, en guisa/ que en descrença/ non caesse pelo demo,/ que sempre mal cheira// A pecad’e a mentira/ e a falsidade./ Porên sãou a Reínna/ de gran pïadade/ este cavaleir’ e fez-lle/ teer castidade/ por maneira muit’ estranna/ e mui vertudeira.// E fez-lle que non perdesse/ ollos, pées nen mãos/ nen outros membros do corpo,/ mais que fossen sãos;/ mais se o metess’ o demo/ en cuidados vãos/ de pecado, que non podéss’/ ser en tal feira;// Ca pero que gran sabor/ ouvésse de querê-lo,/ que per nulla maneira/ non podésse fazê-lo./ Esto fez a Virgen santa/ pera sig’ avê-lo,/ ca de salvar os seus sempre/ é mui sabedeira.//

Estas transcrições ajudam a compreender sem dificuldade aquilo que resulta inteiramente claro da leitura de L’érotisme au Moyen Âge. Le corps, le désir, l’amour: que o facto de a Idade Media ter sido uma época – melhor seria dizer: várias épocas – estruturada por uma profunda e absorvente religiosidade não fez com que esse período da história ficasse imune à expressão do desejo nas suas diversas modalidades. E mais do que isso: como documentam os textos históricoliterários, e em particular estes que citei à margem da obra, o desejo – sejamos claros –, mesmo ocorrendo ao arrepio da moral religiosa e a despeito das convenções sociais em vigor, não se limita a ser uma exceção à regra que define o imaginário medieval. E isso a tal ponto que se torna difícil, ou até impossível, explicar a cultura medieval sem considerar tais manifestações erótico-sentimentais. Tanto mais, como se vê pelas composições transcritas, que bom número desses textos se constrói a partir da e sobre a matéria místico-religiosa. Isto é, a exacerbada religiosidade medieval não só não dissolveu o desejo como este se manteve na órbita da constelação religiosa. Um pouco como se religião e sexualidade (na sua variante transgressiva) se acomodassem. Talvez se possa por isso inferir que foi, ao fim e ao resto, na esfera de uma realidade muito consideravelmente religiosa que se intrometeu e agitou o reverso obs ceno dessa religiosidade. O mesmo seria dizer, enfim, que a questão sexual aparece configurada – como, aliás, os textos citados comprovam – por visões religiosas, não se confinando, por conseguinte, ao registo muito medieval da luxúria feminina. Daí, conforme mostra Arnaud de la Croix com inteira justeza, que a questão do erotismo medieval não seja irrelevante.

E desde logo também, forçoso é dizê-lo, por o leitor moderno ficar a perceber que muito do que supostamente presumia de moderno afinal mais não ser do que a atualização do passado longínquo. Mas não tão longínquo, como sugere por mais de uma vez o A., que não possa apresentar-se bem desempoeirado e até com o seu quê de inovador. Numa palavra, a identificação que o leitor de hoje fará da Idade Média pode, vistas as coisas com rigor, muito bem ser inviável. O que não deixa de arrastar por vezes uma responsabilidade hermenêutica e crítico-textual, como acontece com aqueles versos que citei de Juião Bolseiro e que jogam o seu sentido numa semântica subliminar. A que convida a decifrar o corpo pulsional dos textos.