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Revista Diacrítica
versão impressa ISSN 0807-8967
Diacrítica vol.29 no.1 Braga 2015
Orações parentéticas introduzidas por ‘como': contributos para a sua caracterização semântico-pragmática
Parenthetical ‘as' clauses in portuguese: a contribution to its semantic and pragmatic description
Ana Cristina Macário Lopes*
*CELGA/ILTEC.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo contribuir para a caracterização semântico-pragmática das orações parentéticas introduzidas por ‘como' em português europeu contemporâneo. A análise de dados empíricos desenvolve-se num quadro teórico que coloca as relações discursivas como elementos-chave na construção da coerência textual/discursiva. A pesquisa conduziu ao estabelecimento de uma tipologia tripartida:(i) orações de exemplificação, (ii) orações de comentário epistémico, (iii) orações de relato de discurso. Estas orações cumprem sempre uma função discursiva: validação ou reforço do dito ((i) e (ii)), sinalização da fonte de informação ((iii)).As orações referidas em (i) e (ii) articulam-se com a âncora através das relações discursivas de, respetivamente, elaboração por exemplificação e comentário. Já as orações de relato de discurso não parecem explicáveis em termos de relações discursivas, mas antes em termos de identificação de uma fonte enunciativa distinta do falante.
Palavras-chave: orações parentéticas, conector ‘como', coerência discursiva, funções semântico-pragmáticas.
ABSTRACT
This research aims to contribute to the semantic and pragmatic description of parenthetical clauses introduced by ‘como' in contemporary European Portuguese. The analysis of the empirical data is developed within a discourse coherence framework. The outcome of the research is a typology where three main classes are sketeched: (i) examplification clauses, (ii) epistemic comment clauses and (iii) reportive clauses. Classes (i) and (ii) involve the discourse relations Elaboration (through examplification) and Comment, while class (iii) can only be characterized in terms of evidentiality.
Keywords: parenthetical clauses, connective ‘como', discourse coherence, semantic-pragmatic functions.
0. Introdução [1]
Um dos filões centrais da investigação linguística contemporânea é a análise dos diferentes tipos de articulações de orações, quer ao nível da frase, quer ao nível do discurso/texto. Ao nível da frase complexa, é consensual que há diferentes graus de integração sintática, na frase matriz, das orações subordinadas adverbiais, o que levou à distinção entre subordinadas integradas e subordinadas periféricas (cf., para o português, Lobo 2013). Na minha opinião, esta distinção é relevante e válida nos casos em que o objeto final resultante da conexão é ainda frásico (cf. testes propostos em Peres 1977 e retomados em Mendes 2013), o que corresponde a uma proposição complexa do ponto de vista semântico e a um só enunciado do ponto de vista pragmático.[2] A descrição e explicação dos diferentes tipos de articulação de orações que transcendem o nível da frase é hoje largamente tributária das teorias sobre a coerência discursiva/textual, que, independentemente das divergências e/ou das flutuações terminológicas, convergem no seguinte ponto: há relações discursivas que articulam coerentemente os distintos enunciados que integram um discurso/texto, correspondendo cada um desses enunciados a atos de fala autónomos, e essas relações operam em diferentes domínios ou planos de estruturação do discurso/texto. Dois desses domínios parecem-me recolher um consenso alargado: o domínio ideacional ou do conteúdo, tradicionalmente explorado e privilegiado no âmbito das teorias semânticas denotacionais ou referenciais, e o domínio interpessoal, dominantemente explorado no âmbito das abordagens pragmático-funcionais do discurso. O primeiro domínio mencionado prende-se com os usos da linguagem em que é dominante a função de representação do mundo sócio-físico; o segundo envolve os usos que modelizam raciocínios e avaliações do falante e plasmam as dimensões sócio-interacionais da comunicação humana (cf. Halliday 1973, Mann & Thompson 1988, Sweetser 1990, Sanders et al. 2001, e.o.).[3] Por outro lado, parece hoje também razoavelmente consensual a ideia de que muitas das relações discursivas que interligam enunciados no âmbito de um texto podem ser explicitamente marcadas por conectores ou apenas inferidas no processamento.
Tendo como pano de fundo estas considerações, proponho-me contribuir, com este estudo, para a caracterização semântico-pragmática de algumas orações introduzidas por ‘como' no português europeu contemporâneo (PEC), escassamente contempladas nas gramáticas disponíveis.[4] Como é sabido, há construções muito distintas que envolvem orações introduzidas por ‘como': construções comparativas (1), construções que envolvem orações de modo (2), e construções que agruparei sob a designação de orações parentéticas (ou ditas de comentário), ilustradas em (3) (4) e (5):
(1) O Rui é tão trabalhador como o irmão.
(2) O Pedro falou como o pai teria falado.
(3) Estou desempregado, como sabes.
(4) “Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria, como é o caso da Ucrânia (…)”.
(5) “O trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura, como diz o próprio encenador, «conferir ao texto um novo impacto e actualidade»”.
Centrar-me-ei nas orações paradigmaticamente ilustradas pelos exemplos (3) a (5), às quais acrescentarei outros exemplos.[5]Serão utilizados neste artigo dados empíricos recolhidos aleatoriamente no CETEMPúblico (sempre assinalados por aspas) e alguns exemplos construídos. A estrutura do trabalho é a seguinte: na secção 1, analisam-se brevemente aspetos de natureza sintática; na secção 2, a análise incide nas funções semântico-pragmáticas das orações em apreço; na secção 3, apresentam-se as principais conclusões do estudo.
1. Aspetos sintáticos: breves considerações
As orações introduzidas por ‘como' que constituem o cerne desta pesquisa têm vindo a ser designadas de orações parentéticas (ou de comentário), com base em critérios de natureza essencialmente sintática, nomeadamente a não integração sintática na oração com que se articulam, coadjuvados por critérios prosódicos[6]. Vejam-se então algumas propriedades sintáticas das estruturas em apreço. Em primeiro lugar, têm mobilidade ou flexibilidade posicional, podendo ocorrer em posição final (3), inicial 3(a) ou interpolada 3(b):
3. (a) Como é sabido, estou desempregado.
3. (b) Estou, como é sabido, desempregado.
No entanto, verifica-se que a mobilidade sofre restrições em casos como (4). Como se atesta em 4 (a), a oração introduzida por ‘como' não pode ocorrer em posição inicial:
4. (a) *Como é o caso da Ucrânia, algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria.
Já 4 (b) é perfeitamente aceitável:
4. (b) Algumas repúblicas da CEI, como é o caso da Ucrânia, já manifestaram interesse em criar moeda própria.
A rejeição da posição inicial em 4 (a) deve-se ao facto de a oração introduzida por ‘como' expressar uma relação de exemplificação, como se verá na secção seguinte. Em (5), a mobilidade da oração introduzida por ‘como' não sofre qualquer restrição.
Por outro lado, o produto resultante da conexão não parece ser uma frase complexa, como se pode comprovar pelos testes avançados em Peres (1977):
3. (c) *O Rui acredita [que [estou desempregado, como é sabido.]]
3. (d) *Infelizmente, [estou desempregado, como é sabido.]
4. (c) *O Rui acredita [que [algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria, como é o caso da Ucrânia.]]
4. (d) *Infelizmente, [algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria, como é o caso da Ucrânia.]]
5 (c) *O Rui acredita [que [o trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura, como diz o próprio encenador, «conferir ao texto um novo impacto e actualidade».]]
5 (d) * Infelizmente, [o trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura, como diz o próprio encenador, «conferir ao texto um novo impacto e actualidade».]]
O asterisco, em 3 (c), significa que a oração ‘como sabes' não funciona como complemento do verbo ‘acreditar'. Ou seja, a crença do Rui apenas envolve o conteúdo proposicional ‘estou desempregado'. O mesmo acontece nos exemplos 4 (c) e 5 (c). Em 3 (d), o asterisco significa que no escopo do advérbio de frase se encontra apenas a primeira oração, estando excluída a oração parentética. Análise idêntica suscitam os exemplos 4 (d) e 5 (d).Parece, pois, claro, que não estamos perante um caso de subordinação adverbial. Paráfrases fiéis de (3), (4) e (5) seriam 3 (e), 4 (e) e 5 (e), o que evidencia a autonomia ilocutória do segmento introduzido por ‘como':
3. (e) Estou desempregado. E isto/isso é sabido.[7]
4. (e) Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria. Uma delas é a Ucrânia.
5. (e) O trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura «conferir ao texto um novo impacto e actualidade».É o que diz o próprio encenador.
A noção de suplementação, avançada por Huddleston e Pullum (2002) e retomada por Peres e Mascarenhas (2006) e Mendes (2013), pode ajudar a esclarecer o estatuto sintático destas orações. Como assinalam os dois primeiros autores mencionados, “it is the lack of integration into the syntactic structure that distinguishes supplementation from dependency constructions and coordination. But supplementation is like coordination in being non-headed: since the supplement is not integrated in the structure it cannot function as a dependent to any head.” (Huddleston e Pullum, 2002:1350). E, mais adiante, os mesmos autores afirmam: “although supplements are not syntactically dependent on a head, they are semantically related to what we call their anchor.” (Ibidem, 1351). Esta “relação semântica” será abordada na próxima secção. Para já, direi apenas que os dois membros da construção configuram um caso de articulação textual de orações, o que significa que o produto final resultante da conexão é um (pequeno) texto, ou seja, uma unidade que funciona semântico-pragmaticamente como um todo coerente, no plano do uso da língua.[8]
Assim, propõe-se que as orações introduzidas por ‘como' que ocorrem nos exemplos sejam analisadas como suplementos, dado que se articulam semanticamente, como se de um aposto se tratasse, a uma oração âncora.[9] Prosodicamente, a oração suplemento destaca-se da âncora por pausas, marcadas na escrita por vírgula, travessão ou até parêntesis, e funciona como constituinte prosódico autónomo. Tais propriedades prosódicas evidenciam a autonomia sintática da oração, que, por seu turno, reflete, a meu ver, a sua autonomia ilocutória, como a paráfrase 4 (e) parece sustentar.
2. Aspetos semântico-pragmáticos
Importa agora analisar quais são as funções semântico-pragmáticas desempenhadas pela oração suplemento iniciada por ‘como' que garantem a sua articulação coerente com a oração âncora. Procurar-se-á, partindo de dados do corpus, estabelecer uma tipologia destas orações.
2.1. O primeiro subtipo de orações parentéticas será designado de orações de exemplificação, paradigmaticamente ilustrado por (4), que aqui se retoma:
(4) Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria, como é o caso da Ucrânia.
Neste tipo de contexto, muito frequente no corpus, a oração introduzida por ‘como', com a estrutura fixa ‘como é o caso de SN', articula-se com a sua âncora através de uma relação discursiva de exemplificação, aproximando-se assim dos segmentos introduzidos por marcadores discursivos elaborativos[10]como por exemplo, nomeadamente, designadamente, entre outros, que sinalizam a subsequente particularização de informação temática previamente expressa. Veja-se a equivalência semântica entre (4) e (4f):
(4f) Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria, designadamente/por exemplo, a Ucrânia [já o manifestou].
Note-se que a relação discursiva em apreço é legitimada pela natureza anafórica do conector ‘como', que permite a retoma do predicado da âncora.
É relevante assinalar que há fortes restrições semânticas no que toca ao conteúdo da oração de exemplificação. Mais concretamente, voltando ao exemplo, verifica-se que a Ucrânia é um membro do conjunto ‘algumas repúblicas da CEI'. Assim, a oração suplemento contém tipicamente informação que individualiza um membro de um conjunto designado por um SN anteriormente expresso. Veja-se a inaceitabilidade de (6), que não verifica as restrições semânticas mencionadas:
(6) # Há um país da CEI que já manifestou interesse em criar moeda própria, como é o caso da Ucrânia.
O corpus fornece ainda exemplos em que a relação de exemplificação marcada por ‘como é o caso de SN' envolve mais do que um elemento pertencente ao conjunto denotado pelo SN presente na âncora:
(7)“Além dos dias nacionais, na Expo-98, haverá também «dias de honra», dedicados aos patrocinadores oficiais da Exposição, como é o caso da Sony, da Coca-Cola, da SuperBock e da Vitalis, que já escolheram as datas em que vão celebrar a sua existência, na capital portuguesa.”
A ocorrência da negação está vedada neste tipo de orações:
(4g) # Algumas repúblicas da CEI já manifestaram interesse em criar moeda própria, como não é o caso da Ucrânia.
Tal facto resulta da função semântico-pragmática assinalada: se o falante se propõe exemplificar o que foi asserido na âncora, é requerida a concordância de polaridade.[11]
Em todos os casos deste tipo, o locutor, ao aduzir um (ou mais) exemplo(s), visa fornecer uma prova que valida a sua asserção.
2.2. Nesta subsecção, analisam-se exemplos de suplementos oracionais introduzidos por ‘como' que genericamente serão subsumidos pela designação genérica de orações de comentário. Como se verá, é possível granular a tipologia, dentro desta ampla classe. De qualquer modo, assume-se que a relação discursiva relevante, que articula coerentemente a âncora e o suplemento, é a de Comentário: o falante comenta o conteúdo proposicional da âncora, avaliando-o de formas diversas.
O exemplo (3), bem como os que se seguem, ilustram um primeiro subtipo de orações de comentário:
(8) “Aliás, quem decide sobre a programação televisiva é, em última análise, o próprio telespectador, já que, como é sabido, as programações obedecem ao critério fundamental da preferência do público.”
(9) “A geração criada ou influenciada pela revolta libertária francesa de Maio de 1968 foi, como se sabe, muito marcada pelo maoísmo.”
(10) Como sabes, vou emigrar.
Em (3), (8) e (9), o falante avalia o conteúdo da oração âncora como informação conhecida, partilhada no interior da comunidade. A ocorrência do clítico impessoal se, a assinalar um sujeito indeterminado do verbo saber, bem como a construção passiva sem agente da passiva expresso, legitimam a leitura proposta.[12]Em (10), o falante avalia o conteúdo da âncora como conhecido pelo interlocutor. Em todos os exemplos, como é substituível por conforme.
Verifica-se, nestes contextos, uma forte afinidade entre estas orações de comentário e as orações relativas de frase, como se atesta em (9 a):
9 (a) A geração criada ou influenciada pela revolta libertária francesa de Maio de 1968 foi muito marcada pelo maoísmo, o que é sabido.
No entanto, como pertinentemente assinala Lobo (2013: 2019), a oração comentário introduzida por ‘como', contrariamente à relativa de frase, não admite a ocorrência da negação. Veja-se (9b):
9 (b) *A geração criada ou influenciada pela revolta libertária francesa de Maio de 1968 foi muito marcada pelo maoísmo, como não é sabido.
Uma explicação para este comportamento reside na função semântico-pragmática da oração parentética: ao avaliar o conteúdo asserido na âncora como informação conhecida, só a polaridade afirmativa é legitimada.[13]
Do ponto de vista discursivo, a opção por construções deste tipo parece-me configurar tipicamente uma estratégia de validação do dito: ao avaliar o conteúdo asserido como informação factual conhecida e partilhada, parte integrante do ‘common ground', o falante posiciona-se apenas como instância enunciadora de informação ‘taken for granted', apresentada como verdadeira e incontestável. Esta construção pode estar ao serviço de uma estratégia discursiva de despersonalização ou ocultação do eu, que mitiga a natureza categórica da asserção.
Um outro subconjunto atestado no corpus é ilustrado pelos exemplos que se seguem, que expressam, todos eles um comentário epistémico:
(11) “A lista das espécies resultou, como é claro, bastante incompleta: ficaram por referir espécies tão importantes como as nogueiras, os amieiros, as aveleiras, a criptomérias, os diospireiros, as faias, às árvores da borracha, os larícios, os tulipeiros, as amoreiras, as romãzeiras, etc .”
(12) “Uma Thurman, como é evidente, passou as audições e não se deixou intimidar pela presença de Robert De Niro.”
(13) “Esta orientação, como é óbvio, decorre da vontade expressa da maioria dos 38 mil accionistas da instituição, com a qual me identifico inteiramente.”
(14) “Ajudando o desempenho das bolsas portuguesas esteve também, como é lógico, a evolução em alta dos principais mercados de capitais internacionais.”
Em todos estes exemplos, a oração introduzida por ‘como' é substituível por um advérbio avaliativo orientado para a enunciação, a saber: obviamente, evidentemente, claramente, logicamente.[14]São muito díspares as tipologias e as designações de advérbios ou expressões de natureza adverbial deste tipo, na literatura (cf. Quirk et al. 1985, Biber et al. 1999, Fraser 1999, Huddleston & Pullum 2002, Kovacci 2000, Costa 2008, Raposo et al 2013, e.o.). Trata-se, do ponto de vista semântico, de estruturas que funcionam como comentários sobre todo o conteúdo proposicional da oração âncora, expressando avaliações de natureza modal. De facto, o comentário ‘como é óbvio' (ou qualquer uma das outras formulações atestadas), expressa a atitude do falante relativamente à verdade do que assere, ou, mais rigorosamente, marca o forte grau de compromisso do falante com o valor de verdade do conteúdo proposicional asserido na oração âncora. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia discursiva de reforço do valor de verdade do conteúdo asserido, que concomitantemente enfatiza a qualidade ou a fiabilidade da evidência que sustenta a asserção.
Este efeito de enfatização pode ser analisado em termos de implicatura conversacional generalizada, no quadro teórico da pragmática neo-griceana (cf. Levinson 2000). De facto, uma das condições de felicidade de uma asserção categórica, expressa através de uma frase declarativa desprovida de qualquer marcador de modalização, é a crença do falante na verdade do conteúdo proposicional asserido. Ao acrescentar a oração de comentário, o falante constrói um enunciado ‘marcado', o que desencadeia uma implicatura, baseada na exploração da máxima de Modo. Essa implicatura, a meu ver, corresponde à enfatização da evidência que sustenta a asserção.[15] Ou seja, ao reforçar ou intensificar o seu compromisso com a verdade do que assere, o falante implicita que dispõe de provas robustas que sustentam a sua asserção. Assim, nas construções em análise, para além do reforço modal epistémico, a oração de comentário, ao avaliar a informação expressa como óbvia, evidente, tem como efeito discursivo mais saliente a objetivização do dito, perspetivado como informação fiável, acessível, compartilhada pelo interlocutor, ou mesmo por um grupo mais alargado onde se inclui o interlocutor, e, consequentemente, não sujeita a contestação.[16]
No corpus aparecem ainda outros exemplos que envolvem uma avaliação epistémica, como a seguir se ilustra:
(15) “Se, como é provável, a Assembleia Municipal da Póvoa avalizar o projecto aprovado por unanimidade pelo executivo municipal, a grande superfície será obrigada a encerrar aos domingos durante oito meses do ano.”
Tipicamente articuladas como suplemento à prótase de uma construção condicional, prótase essa que funciona como âncora, estas orações de comentário qualificam epistemicamente a hipótese expressa, atribuindo-lhe um valor de probabilidade ou quase-certeza. Tal qualificação parece-me funcionar discursivamente como uma estratégia de credibilização da apódose: de facto, a inferência do falante expressa na apódose será tanto mais consistente e plausível quanto mais provável for (apresentada) a premissa do raciocínio, na prótase.
Todos os exemplos desta secção ilustram, portanto, orações parentéticas que expressam um comentário epistémico indexado ao falante, com uma funcionalidade discursiva clara: reforço do valor de verdade do conteúdo asserido ou estratégia de legitimação de uma inferência em construções condicionais.
Atente-se agora nos exemplos (16) a (18), que configuram o último sub-conjunto das orações de comentário atestadas no corpus:
(16) “Os cortes no pessoal -- sempre um processo extremamente penoso neste país -- aconteceram precipitadamente, como é habitual.”
(17) “Os partidos mais votados foram, como se esperava, os unionistas, partidários da ligação do território à Grã-Bretanha.”
(18) “O acto foi, como é costume, acompanhado pela marcha nupcial, e o casal mais idoso que compareceu à cerimónia era formado por Manuel Pedroso, de 62 anos, e Zulmira Santos, de 67”.
Nestes exemplos, a oração introduzida por ‘como' expressa um comentário do falante sobre a conformidade entre o que se assere e aquilo que constitui um horizonte de expectativas. Por outras palavras, o falante avalia a situação expressa na oração âncora como esperada ou conforme às expectativas. Neste contexto ‘como' é substituível por ‘conforme'.
Se se considerar que expectativas são crenças, então a função da oração parentética pode também ser analisada no âmbito epistémico. De facto, parece consistente argumentar que uma situação que corresponde a uma expectativa do falante (ou de um grupo mais vasto, no qual ele se insere) é uma situação cuja probabilidade de ocorrência é avaliada como elevada. Nos exemplos em apreço, o facto de não haver uma indexação explícita da expectativa ao universo cognitivo do falante (note-se a ocorrência da 3ª pessoa em todas as orações introduzidas por ‘como', e do pronome impessoal se em (17)) induz a interpretação de que se trata de uma expectativa compartilhada por toda a comunidade.
Avaliar a situação descrita na âncora como esperada ou previsível é, pois, a função discursiva destas construções. A ocorrência destas orações parece-me poder corresponder a duas estratégias discursivas distintas, por parte do falante: encobrir uma opinião pessoal sob a capa de uma expectativa geral ou diminuir o grau de saliência cognitiva da informação expressa. O género discursivo e a inserção do fragmento num contexto mais vasto serão elementos-chave para a apreensão da estratégia posta em jogo.
Note-se que há de novo uma forte afinidade entre estas orações e as orações relativas de frase, como se comprova comparando (17) com (17 a):
17 (a) Os partidos mais votados foram os unionistas, partidários da ligação do território à Grã-Bretanha, o que era esperado.
Em ambos os casos, a oração suplemento convoca a situação descrita na âncora para sobre ela produzir um comentário. Esta afinidade evidencia a natureza anafórica da oração comentário: ‘como' retoma anaforicamente a situação previamente descrita, que funciona globalmente como um antecedente: ‘como era esperado' equivale, portanto, a ‘isso era esperado'.
No entanto, contrariamente ao que acontece com as orações relativas de frase, nas orações de comentário não pode ocorrer a negação, justamente porque se trata de orações que confirmam uma expectativa. Contraste-se (17b) com (17c):
17 (b) Os partidos mais votados foram os unionistas, partidários da ligação do território à Grã-Bretanha, o que não era esperado.
17 (c) *Os partidos mais votados foram os unionistas, partidários da ligação do território à Grã-Bretanha, como não era esperado.
Em jeito de síntese, direi que as orações de comentário introduzidas por ‘como', presentes no nosso corpus, envolvem epistemicamente o falante, que avalia a informação contida na âncora como conhecida ou expectável, ou marca o seu grau de compromisso relativamente à verdade dessa informação. O facto de ‘como' ser comutável por ‘conforme' apenas em dois subconjuntos de exemplos, na série dos que ilustram comentários (cf. (8) a (10) e (16) a (18)), parece apontar para uma afinidade semântico-pragmática entre eles.
2.3. Vejamos agora alguns exemplos que ilustram o último subtipo de orações introduzidas por ‘como' que vamos contemplar neste estudo, substancialmente distintas das que até aqui foram abordadas:
(19) O projecto de despoluição da ria de Aveiro está, assim, em concretização há já alguns anos, mas as outras medidas de resolução, como afirma Duarte Esmeraldo, «estão ainda por lançar» .
(20) É «rock, e nem mais uma palavra», como anuncia a organização.
(21) O trabalho de dramaturgia, a cargo de Miguel Romeira, procura, como diz o próprio encenador, «conferir ao texto um novo impacto e actualidade».
(22) José Graça foi um dos últimos, quando, em 8 de Fevereiro deste ano, rescindiu amigavelmente o seu contrato de trabalho, ficando assim, como diz, com mais tempo para dedicar aos problemas da freguesia.
Nestes exemplos, a oração introduzida por ‘como', substituível por ‘segundo', não expressa um comentário do falante sobre o conteúdo da oração âncora, antes apresenta a fonte da informação por ela veiculada. Serão aqui designadas de orações de relato de discurso. Há afinidades entre os exemplos (19) a (22) e o exemplo seguinte, onde ocorre uma oração suplemento que se apõe a discurso citado:
(23)-“Mas tu não passas de um garoto”, disse o rei.
De facto, verifica-se, em todos os casos, a ocorrência de verbos declarativos na oração suplemento, bem como a posposição do sujeito. No entanto, contrariamente ao que acontece nas orações que se apõem, introduzindo discurso citado, nos exemplos (19) a (22), o falante, tipicamente, não cita na totalidade o discurso produzido por outrem, antes o inscreve (parcialmente) no seu próprio discurso. Essa inscrição, na escrita, pode envolver o recurso a aspas (cf. (19) a (21)) ou não (cf. (22)).Trata-se de uma forma híbrida de incorporação do discurso de outrem, na qual se imbricam discurso citado e discurso produzido pelo relator.[17] Muito frequente nos géneros jornalísticos, estas orações identificam a fonte da informação, permitindo ao locutor assumir-se como um intermediário, com o consequente distanciamento enunciativo que daí advém.
Não são apenas verbos declarativos os que ocorrem neste tipo de orações. Também verbos de atitude proposicional, como crer, pensar, supor, podem ocorrer em orações introduzidas por ‘como' que cumprem a mesma função de inscrever no discurso uma outra instância enunciativa, a fonte responsável pela informação (ou parte da informação) contida na âncora, como atesta o exemplo seguinte, retirado do corpus:
(23) “Alguém, ou «um grupinho», como pensa a GNR, se lembrou de, durante a noite, furar pelo menos dois dos pneus dos carros que estivessem estacionados nas ruas.”
3. Conclusões
O estudo realizado permite enunciar as seguintes conclusões:
As orações introduzidas por ‘como' que integram o corpus comportam-se, do ponto de vista sintático, como orações de suplemento, estruturalmente não integradas na oração âncora.
Do ponto de vista semântico-pragmático, os dados recolhidos repartem-se pela seguinte tipologia: (i) orações de exemplificação, (ii) orações de comentário (iii) orações de relato de discurso.
As orações tipologizadas em (i) e (ii) articulam-se com a âncora através das relações discursivas de, respetivamente, elaboração por exemplificação e comentário. Já as orações de relato de discurso não são explicáveis em termos de relações discursivas, mas antes em termos de identificação de uma fonte enunciativa distinta do falante.
Ao serem convocadas pelo falante, as orações parentéticas introduzidas por ‘como' cumprem sempre uma função discursiva: validação ou reforço do dito ((i) e (ii)), sinalização da fonte de informação ((iii)), com a concomitante desresponsabilização do falante pela asserção contida na âncora.
Dado o caráter aleatório da extração dos dados, não se exclui que a tipologia proposta possa vir a ser mais finamente granulada.
Referências
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Notas
[1] Agradeço os comentários dos revisores anónimos à primeira versão deste trabalho.
[2] Considera-se que um enunciado é o produto de um ato de fala.
[3] Não abordarei aqui outro possível domínio de análise textual, que envolve a organização temático-informacional do texto.
[4] Na mais recente gramática do português (Raposo et al. 2013), são escassas as linhas consagradas às orações de comentário ou conformativas, que, além do mais, configuram apenas um sub-tipo das construções parentéticas introduzidas por ‘como'.
[5] Sobre as construções comparativas, cf. Marques 2004; sobre as orações de modo, cf. Móia 2001.
[6] Cf. Quirk et al 1985, Biber et al. 1999, Huddlestone & Pullum 2002, e.o. Prosodicamente, estas estruturas funcionam como unidades entoacionais autónomas (cf. Frota 2000, para o português). Para uma análise sintática distinta, cf. Potts 2002.
[7] Note-se que a oração introduzida por ‘como', ao ser transformada em enunciado autónomo, envolve a ocorrência do pronome anafórico ‘isto/isso', que retoma o conteúdo da oração anterior. Significa isto que o conector ‘como' tem uma natureza anafórica, retomando a situação descrita na oração âncora e dando origem a uma oração que envolve elipse (como é sabido = sabe-se que p, sendo p a oração âncora).
[8] Exclui-se a possibilidade de analisar a oração de comentário como uma subordinada adverbial periférica (estrutura tipicamente exemplificada pelas orações concessivas), justamente porque os testes convocados evidenciam que não estamos perante uma frase complexa. É esta também a posição de Mendes (2013), que defende, na esteira de muitos outros (cf. Lehmann 1988, Givón 1990, Hopper & Traugott 1993), que há um continuum entre mera justaposição de enunciados, suplementação, coordenação, subordinação periférica e subordinação integrada.
[9] Uma análise alternativa seria considerar-se a oração introduzida por ‘como', em (4), uma oração suplemento com uma âncora de natureza nominal, no caso em apreço ‘algumas repúblicas da CEI'. No entanto, uma vez que defendo na secção seguinte que há uma relação discursiva de exemplificação que interliga coerentemente os dois segmentos dicursivos, é mais consistente a análise proposta, dado que uma relação discursiva opera entre constituintes textuais de natureza oracional. Ou, dito de outro modo, uma relação discursiva pode ser perspectivada como um predicador binário cujos argumentos são orações.
[10] Cf. Lopes e Carrilho (a publicar).
[11] Como me foi pertinentemente assinalado por um dos revisores anónimos, é possível a oração âncora ser negativa, não o sendo a oração introduzida por como: (i) Algumas repúblicas da CEI não concordam com a criação de uma moeda própria, como é o caso da Ucrânia. Este exemplo confirma a função das orações introduzidas por como: exemplificar o que foi asserido na âncora. Assim, a oração exemplificativa será lida em termos de concordância de polaridade.
[12] Orações de comentário perfeitamente equivalentes a estas, e atestadas no corpus, envolvem a estrutura estereotipada “como é do conhecimento geral/público”: (i) O Ministério da Agricultura já publicou o Despacho Normativo 35-A / 93 (B), como é do conhecimento geral.
[13] No entanto, como me foi assinalado por um revisor anónimo, se o verbo da oração introduzida por como tiver um significado intrinsecamente negativo, a ocorrência da negação é possível: (i) A geração influenciada pela revolta libertária francesa de Maio de 1968 foi muito marcada pelo maoísmo, como ninguém ignora/desconhece.
[14] Note-se que não é possível a substituição de ‘como' por ‘conforme', nestes casos.
[15] A categoria da evidencialidade e as suas afinidades e/ou interseções com a modalidade epistémica tem sido profusamente debatida (cf. Palmer 2001, Dendale & Tasmowski 2001, Saussure 2002, Aikhenvald 2003, e.o.). No âmbito deste estudo, não se discutirão as diferentes linhas de argumentação. Assume-se apenas que a modalidade epistémica envolve a expressão da atitude do falante relativamente à verdade do dito, sendo a evidencialidade relacionável com a fonte dessa mesma informação.
[16] Note-se que a objetivização do dito, ou seja, a apresentação da informação como evidente, óbvia e, consequentemente, incontestável, pode, em contextos argumentativos, ser um escudo utilizado pelo falante para afirmar uma opinião sem com ela se comprometer abertamente. Nestes casos, será uma tática de atenuação do ato de fala assertivo. Parece-nos ser o caso no exemplo seguinte:
(i) R - Os meus leitores são gente nova, gente com pouco dinheiro, da classe média, que é aquela que é mais penalizada por aquilo a que se chama democracia. P - A que se chama democracia? R - A gente não vive em democracia, como é evidente. Não vive. Há algumas quase democracias - a Holanda, a Bélgica, a Suíça [com] aquele arranjo [federal] complicado. A democracia implicava um constante referendar pelo povo das decisões do poder.
[17] Note-se que seria possível introduzir uma distinção entre relato de re e relato de dicto ou verbatim: quando aparecem as aspas, estaríamos perante um relato de dicto; nos outros casos, o locutor apenas se propõe relatar o que foi dito, e não propriamente a forma como foi dito.