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Revista Diacrítica
versão impressa ISSN 0870-8967versão On-line ISSN 2183-9174
Diacrítica vol.29 no.3 Braga 2015
VÁRIA
Almeida Garrett e a proposta política do romantismo
Almeida Garrett and the political proposal of romanticism
Ana Bárbara Pedrosa*
*Licenciada em Línguas Aplicadas pela Universidade do Minho, mestre em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, pós-graduada em Linguística pela Universidade de Lisboa, doutoranda em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.
RESUMO
Iremos, neste artigo, discutir a proposta poética e política que sustentou a introdução do Romantismo na literatura em Portugal, através de Almeida Garrett, mostrando como os acontecimentos políticos se tornaram parte do imaginário literário da primeira metade do século XIX. Assim, mostraremos de que forma o Romantismo acabou por associar-se ao e fundir-se com o nacionalismo.
Palavras-chave: Romantismo, nacionalismo, proposta política
ABSTRACT
In this article we discuss the poetic and political proposal that gave grounds for the introduction of Romanticism in Portuguese literature, through Almeida Garrett, showing how political events became part of the literary imaginary of the first half of the 19th century. By doing so, we will show in what way Romanticism became associated and ended up fusing with nationalism.
Keywords: Romanticism, nationalism, political proposal
1. Introdução
Nascido em 1799 e desaparecido em 1854, Almeida Garrett deixou uma obra que ocupou um lugar proeminente na cultura portuguesa. O nome do autor, se atravessa com destaque o século XIX, particularmente a primeira metade, em que esteve no epicentro das mudanças literárias – e culturais, portanto –, também não pode ser esquecido quando se faz referência ao cânone da literatura portuguesa, onde se tornou numa das figuras menos controversas.
A conjuntura histórica, de ascensão do liberalismo, em que o autor viveu e fez a sua obra, tendo sido marcada por mudanças políticas, culturais e sociais, seria também marcada por mudanças na língua e na literatura. Assim, o liberalismo erguia-se e, a impulsioná-lo, justificá-lo e legitimá-lo, estavam questões nacionais identitárias que surgiam em força, entre outras, na obra de Garrett. Ao surgimento destas, com as convulsões políticas e sociais que lhes estavam inerentes, a literatura não poderia permanecer indiferente. E, de facto, não o fez, sendo visível que a transformação da história provocou uma alteração também na história da literatura, o que resultou numa fusão entre Romantismo e liberalismo. Assim, a arte da primeira metade do século XIX reflectiu a vida de quem fazia e vivia os acontecimentos, através de um movimento literário que teve no seu cerne uma proposta que era tão estética quanto política. Assim, tentaremos aqui explicar de que forma a introdução do Romantismo em Portugal foi não só uma proposta poética / literária, mas ainda, talvez mais ainda, política, e isto numa altura em que os escritores começaram a reflectir sobre o papel da literatura no que concerne à sua relação com a contemporaneidade histórica.
Neste sentido, veremos de que forma Garrett, usando a estética literária também como veículo de uma ideologia, pôs em prática aquilo que Victor Hugo, identificando o Romantismo com a ideia de liberdade, escreveu no prefácio a Hernani (1831): “Le romantisme (…) n'est (…) que le libéralisme en littérature”; “à peuple nouveau, art nouveau”.
2. O Romantismo como proposta política
A Revolução Francesa teve um papel preponderante na construção do corpus temático do Romantismo. Ao seu surgimento na Europa, a noção de liberdade criada no seu âmbito erigiu princípios políticos e sociais sobre os quais o Romantismo se veio a edificar: os estados passariam a ser soberanos, enquanto instituições seculares que se opusessem às reivindicações da religião, e venceria a concepção de uma sociedade que se baseasse no contrato e não na posição social atribuída à nascença. Na sua formação, veio a ofensiva contra o intelectualismo das luzes e as regras do Classicismo e do Neoclassicismo. A visão da literatura também se alterou: o indivíduo passaria a ser o potenciador da criação estética e o sentimento nacional passaria a exprimir a ideia de que a nação era a versão colectiva do individual. Erigia-se, assim, o princípio do nacionalismo literário: o artista seria fiel a si mesmo e ao país em que se formara. Por toda a Europa, viu-se que os construtores da nação não pararam de repetir que pertencer a uma nação era ser um dos herdeiros de um património comum e indivisível (Thiesse, 2011, p. 70). Desta forma, o processo de formação identitária nacional passou pela identificação de um património que pudesse ser comum a todos os herdeiros de uma tradição que os transformasse num grupo de características únicas.
Quando, em 1834, acabou uma guerra civil em Portugal, entre liberais constitucionalistas e absolutistas, as estruturas sociais do país tinham sido abaladas. O Romantismo, exaltante da nação, acabou por associar-se ao e fundir-se com o nacionalismo, sendo ambos fundados sob o mesmo pensamento e o mesmo sentimento. As lutas liberais e nacionalistas fariam, assim, parte do imaginário histórico cultural do século XIX, tendo reflexos nas construções culturais (Cunha, 2002, p. 57). Desta forma, o novo conceito de nação, que passava pela ideia de uma entidade comum (legitimada pelo passado e, consequentemente, pela tradição) acabou por atribuir um papel social muito forte à literatura, uma vez que os escritores passaram a problematizar a relação que tinham com esta e, em concomitância, com a sociedade:
(…) o projecto novo de problematizar a relação do escritor, ou, mais genericamente, de cada consciência individual, com a realidade específica e autónoma que é a Pátria. E como o laço próprio que une o escritor, enquanto tal, à sua Pátria, é a escrita, a problematização dessas relações é antes de tudo problematização da escrita, nova ou inovadora maneira de falar a Pátria escrevendo-a em termos específico [...]. A partir de Garrett e Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-moral, constituirá o núcleo da pulsão literária determinante. (Lourenço, 2000, pp. 86-87)
Com a criação deste novo sujeito na história, a rejeição da ideia de uma ordem preexistente implicaria que não pudesse conceber-se um sistema político que pudesse reivindicar legitimidade absoluta, em virtude da ausência de uma ordem sócio-económica de origem divina (Talmon, 1967, p. 25). Desta forma, não só passa a existir a figura do cidadão-eleitor como se determina que nada – religião ou classe – possa definir o lugar social de cada pessoa. Ao mesmo tempo, o poder de criação de uma obra por parte de um escritor, ao não estar dependente de valores absolutos, passará a justificar-se no processo criativo, abrindo alas àquilo a que Jacinto do Prado Coelho chamou “idade crítica”: a poesia passa a ser “teoria da faculdade poética” e a crítica “é sempre teoria poética, isto é, primordialmente, poesia” (Coelho, 1982, p. 177). Assim, a versatilidade formal que adveio desta nova forma de perspectivar e enquadrar a literatura passou, em primeiro plano, pela recusa de modelos. Ao mesmo tempo, Garrett passou a admitir “um princípio de variabilidade histórica, nacional e subjectiva do imaginário e do gosto” (Monteiro, 2006, p. 46). Neste sentido, a literatura nacional passou a ser vista como necessária para a auto-identificação colectiva, tendo sido usada para forjar uma unidade entre elementos de uma mesma nação, que deviam identificar-se com a herança comum, uma vez que pertenciam a uma identidade colectiva que era capaz de sobrepor-se a qualquer outra.
Segundo Eric Hobsbawm, o desenvolvimento do nacionalismo dá-se na Europa do século XIX em três fases. Naquela que denomina como fase A, verifica-se apenas um movimento literário e cultural, que, como veremos, em Portugal, foi impulsionado por Garrett; na fase B, surge a campanha política dominada por grupos de militantes, pioneiros da “ideia nacional”; a fase C dá-se com o apoio geral da população às ideias difundidas (Hobsbawm, 1990, p. 21). Benedict Anderson, por sua vez, explica o processo de criação de identidades nacionais através do fim da hegemonia católica e do reino dinástico, iniciado pela Revolução Francesa e pela ascensão das burguesias nacionais, originada pela Revolução Industrial. Com as transformações provocadas pelo Iluminismo, e consequente declínio na fé católica, urgiria a necessidade de substituir a crença religiosa por outro valor imaterial capaz de providenciar as respostas que a religião oferecia, iniciando-se assim “a busca de uma nova forma de ligar a fraternidade, o poder e o tempo num todo significativo” (Anderson, 2005, p. 57).
A nação será, de acordo com Anderson (2005), uma comunidade imaginada, uma vez que os membros das nações nunca se conhecerão todos, havendo todavia a imagem mental de uma comunhão; limitada, uma vez que cada nação é definida pelas fronteiras; soberana, uma vez que o conceito nasceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução destruíam a legitimidade da ordem divina e do reino dinástico; será, ainda, uma comunidade, ainda que imaginada, porque, apesar da desigualdade de classes, é concebida sob a ideia de pertença a um grupo (2005, p. 27). Thiesse nota que as nações nascem “de um postulado e de uma invenção”; para que se mantenham vivas, devem contar com a “adesão colectiva a essa ficção” (2011, p. 72). Uma fez feita esta adesão, e partindo de uma tradição que é apresentada como a súmula de características nacionais, ainda que forjada, a nação aparece como sujeito imutável: permanece contínua ao longo dos séculos e os elementos que a compõem, por partilharem os traços comuns da tradição, permanecerão, ainda que sem se conhecerem todos, unidos enquanto versão colectiva do individual.
Almeida Garrett, considerado o introdutor do Romantismo em Portugal[1], surge como poeta já aos vinte anos, estudante de Leis em Coimbra. Em 1819, um ano antes da revolução, já ele incorporava as ideias de exaltação da pátria que viriam a ser das mais identificadoras do sentimento romântico: “Oh quando te heide eu ver, patria querida, / Limpa de Inglezes, safa de conventos” (Garrett, 1829, p. 40).
A análise do fenómeno das identidades é necessária no caminho para a compreensão do nacionalismo, uma vez que a questão identitária se reproduz por oposição a outras identidades e que as identidades são formadas pela pertença a um grupo circunscrito e pela diferenciação em relação ao outro. O Romantismo veio exaltar o sentimento nacional, assumindo Portugal, delimitado por fronteiras, como uma identidade comum e opondo-o a quem não fizesse parte da comunidade imaginada (Anderson, 2005, p. 27) a que já fizemos referência.
Hobsbawm (1998, p. 8) sustenta que as nações não são tão antigas como a História. Refere, no entanto, a importância da História para a consolidação das identidades nacionais, justificando que é o passado que faz uma nação, justificando-a em oposição a outras nações, e afirmando os historiadores como agentes da produção do passado (1998, p. 271). Deste modo, a História pode ser utilizada para desmontar ou legitimar. Impulsionado pela necessidade de uma legitimação identitária nacional, Garrett tentou usá-la desta segunda forma, forjando uma tradição literária portuguesa.
Para compreendermos o papel do autor na invenção da herança da nação portuguesa, devemos ter em conta os elementos simbólicos que as nações procuram ter para poderem afirmar-se enquanto tal:
(…) uma história que estabelece uma continuidade com os ilustres antepassados, uma série de heróis modelos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos culturais, um folclore, locais eleitos e uma paisagem típica, uma determinada mentalidade, representações oficiais — hino e bandeira — e identificações pitorescas — trajes, especialidades culinárias ou um animal emblemático. (Thiesse, 2011, p. 71)
O autor, ao fazer com que a historiografia literária se tornasse fundamental para o nascimento do Romantismo em Portugal, assim como para a criação de uma identidade comum portuguesa, feita através da tradição literária, estabelecia os textos que seriam a base da tradição comum e das características comuns, ao mesmo tempo que fazia com que Portugal tivesse uma literatura que pudesse competir com as outras. Os passos que deu neste sentido foram motivados por objectivos tão literários quanto políticos.
Em 1824, com 25 anos, já formado em Leis, escreve Camões e Dona Branca, poemas através dos quais a corrente literária chega a Portugal. Com Camões, Garrett ergueria um símbolo nacional, exaltando o sentimento patriótico. Nesta obra, o autor disserta sobre a necessidade da nação recuperar o seu símbolo para se afirmar: “(...) e o nome lusitano / Ao nome de Camões eterno se une.” (Garrett, 1984, p. 143).
Camões, recuperado enquanto símbolo da nação, apareceria para afrontar o rigor das regras neoclássicas e para obrigar a uma reflexão sobre as especificidades da linguagem literária (Monteiro, 1985, p. 119), temas sobre os quais o Romantismo viria também a afirmar-se. A sua recuperação histórica, assim como a sua afirmação enquanto símbolo nacional, deu-se ainda por meio de pessoas como D. Frei Alexandre, Francisco Dias Gomes ou António das Neves Pereira, também empenhadas em legitimá-lo enquanto impulsionador da linguagem literária portuguesa.
Ao mesmo tempo, a situação política nacional e o interesse que Camões suscitava em países estrangeiros também deram espaço a que os românticos o recuperassem enquanto símbolo na nação:
Levas de portugueses se viram atiradas para a Inglaterra e para a França por uma Pátria anquilosada que não entendia os seus programas regeneradores; angústia pelo destino da Nação, revolta pela incompreensão encontrada, desajuste do ideal à realidade, dores do isolamento e da pobreza, saudade pungente da terra e do povo lusíadas - que melhor contexto para que à imaginação e à sensibilidade falasse, com redobrado ardor, o vulto do Camões perseguido, errante e torturado?
Às homologias sentidas com esse Poeta que a tradição portuguesa lhes legava, (…) já identificado com a Pátria, somou-se, porém, como agente da emocionada admiração que lhe foi votada, o interesse que mostrava por Camões a Europa culta e já romântica, à luz de critérios de análise que permitiam abordar a sua obra por novos ângulos que lhe eram favoráveis. (Monteiro, 1985, p. 124)
Com efeito, várias personalidades, como Madame de Staël[2], que terá sido a primeira estudiosa a encarar a literatura enquanto produto social, Bouterweck, Sismondi ou os Irmãos Schlegel, apreciavam em Camões o que nele escapava à moda culta de Quinhentos e revelava um espírito romântico, no sentido peculiar que o adjectivo então tomava: originalidade de concepção, espiritualidade cavaleiresca, melancolia sonhadora unida à fruição encantada da aventura e da beleza; por ter deixado ecoar nele esse autêntico filão português que no Romanceiro, nas velhas crónicas ou em Gil Vicente também encontravam, e por tanto se ter comprometido com o destino da Pátria, alimentando nela a sua imaginação, é que Camões era considerado um verdadeiro poeta nacional. (Monteiro, 1985, p. 125)
Desta forma, aquilo que a retórica clássica menorizava passava a ser visto como um exemplo em termos de linguagem literária e, mais importante, como identificador da nacionalidade portuguesa. Para que a nação pudesse ser identificada através da linguagem literária, em virtude da necessidade de criação de uma cultura nacional e pela referida questão identitária, reproduzida por oposição a outras identidades, Garrett criticava, condenava o que não tivesse origem portuguesa:
Pronto se oferece quem germanas artes
Em dar-lhe vida e propagá-lo empregue (Garrett, 1984, p. 143)
A literatura, que Even-Zohar (2011, pp. 81-82) acredita ter sido o factor mais comum a ser usado para a coesão sócio-cultural das nações, ainda que reconheça que a sua contribuição só possa ser calculada em termos gerais, era, assim, vista como um elemento propulsor deste novo sujeito e só sem influências externas poderia ser identificadora do sentimento nacionalista que acompanhou e formou o Romantismo. Portanto, a literatura servia de “factor de poder e distinção”, uma vez que “possuir uma literatura pertencia aos indispensabilia do poder (Even-Zohar, 2011, p. 82): podia competir com as das outras nações e, por recusar-se a ter outras origens que não a portuguesa, retrataria o que era comum na identidade portuguesa.
A recuperação de Camões através da literatura começara antes de Garrett: Bocage, que morrera durante a infância de Garrett e recriara o mito camoniano do poeta marginal, exilado, que encarna a decadência da pátria (Machado, 1996, p. 21), já se havia comparado ao autor d'Os Lusíadas:
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! (Bocage, n. d., p. 101)
Camões era, aliás, um tema recorrente na poesia elmanista. Garrett vem recuperar esse mito, permitindo-nos comparar o último dos pré-românticos ao primeiro dos românticos, também ele comparando-se a Camões, partilhando com ele a condição de poeta afastado da pátria. No poema Camões é evidente o forjamento de uma construção patriótica: as ideias de liberdade e independência, a exaltação de um herói nacional, poeta, com um destino trágico fora da pátria, a angústia da saudade da pátria, presa em forças reaccionárias, a revolta contra uma ordem política que asfixiaria a aspiração revolucionária da burguesia. O Romantismo ambicionava destruir os valores vigentes, procurar um novo modelo de vida, exaltar a pátria, transformá-la. Estaria também nestas pretensões o Romantismo de Garrett.
A escrita de Camões não seria a única tentativa de Garrett exaltar o sentimento nacional na sua literatura. Pouco depois de tê-lo publicado, e ainda em 1826, publicou Parnaso Lusitano, uma recolha antológica que foi ainda uma tentativa de compilar a história da literatura portuguesa[3]. Anos mais tarde, publicou o Romanceiro, quesignificava uma nova valorização do nacional, sendo o que faltava para que Portugal tivesse uma literatura nacional. No prefácio desta obra, cujo primeiro volume foi publicado em 1843, o autor afirma que, para se ser nacional, é necessário ser-se romântico e popular, afirmando ainda que pretende suprir uma grande falta na literatura portuguesa com o trabalho que apresenta na colecção (Garrett, 1983, p. 31). Tenciona criar um “livro popular” e “popularizar o estudo da nossa literatura primitiva” (Ibidem). Por esse motivo, Garrett cumpre, neste livro, um papel pioneiro, tendo anotado, corrigido e coleccionado os romances populares, cumprindo o seu intento de reunir os documentos necessários para criar a história da poesia popular portuguesa. A ideia do Romanceiro era a valorização da literatura portuguesa oral e tradicional, através da colecção dos romances populares que a ama Brígida contara a Garrett durante a sua infância. Através do intento que motivara o Romanceiro, o imaginário da nação podia construir-se mediante a “invenção da tradição” característica de cada nacionalidade e mediante a construção de uma “memória nacional” (Cunha, 2002, p. 58), estabelecendo ou simbolizando a coesão nacional. A “invenção da tradição” de uma comunidade política e imaginada (Anderson, 2005: 27) seria imperativa no momento em que Estado, nação e sociedade convergiam em torno da figura do cidadão-eleitor, que legitimaria o sistema politicamente (Cunha, 2002, p. 58). Garrett conseguia ainda completar aquilo a que Even-Zohar chamou “embalagem de três-em-um” (2011, p. 92): ao permitir que Portugal tivesse então um passado comum, uma língua desenvolvida pelos seus membros e uma literatura, estava estabelecida a base de criação da nação, sobre a qual a identidade nacional podia começar a erigir-se.
Seria também por esta altura que se operaria uma transição importante no sistema escolar, em que o ensino da história da literatura nacional teria um papel de destaque, substituindo o ensino da Poética, da Retórica e das língua e literatura greco-latinas, fundamentando uma tradição literária nacional. Estas mudanças estavam de acordo com a defesa de Garrett de uma constituição estabelecida sobre bases populares. Desta forma, o autor reconhecia-se uma função social e pragmática que era indissociável da sua relação com a escrita (Buescu, 2003, p. 86), uma vez que, das atitudes literárias, passa sempre às atitudes políticas, já que quase sempre faz política fazendo literatura e vice-versa (Martins, 1956, p. 29). De facto, ao analisarmos o percurso do autor, vemos que cidadão e escritor mantêm laços estreitos, uma vez que a criação literária se dá pela passagem à prática de um plano político de regenerar a pátria, fazendo desta a versão colectiva do individual e criando uma tradição literária portuguesa.
Consciente da dupla tradição da literatura portuguesa, o autor optou claramente pela tradição popular, havendo já nesta escolha estética uma escolha política e tornando-se já Garrett, precisamente por isso, num autor moderno (Santos, 2003, p. 95). Aqui, teve ainda Alexandre Herculano um papel de relevo, uma vez que ambicionava democratizar o ensino em Portugal e que, através da instrução, queria que a liberdade fosse o garante da civilização, cabendo-lhe ainda a fundamentação teórica do Romantismo. Os dois autores consideravam ainda fundamental educar o povo, de forma a poderem formá-lo para a cidadania, levando a cabo o projecto iluminista.
O debate cultural sobre o papel da literatura no mundo não se limitava aos escritores, sendo desenvolvido principalmente por meio da imprensa, onde “a literatura se assume como instrumento de transformação política, cultural e social” (Rocha, 1998, p. 31). Neste contexto, Garrett e Herculano procuravam reconstruir a ideia da pátria: o primeiro construindo literariamente a alma nacional e o segundo fundamentando o nacionalismo liberal histórica e literariamente. Ao mesmo tempo, ambos os autores, apesar da concepção que tinham da literatura nacional e popular, condenavam veementemente a rejeição dos clássicos e manifestavam-se contra a imitação da literatura francesa. Apesar disso, é comum, na obra de ambos, o recurso a termos em língua francesa.
O Romanceiro, contudo, e mesmo tendo sido criado com o intuito de estabelecer uma tradição literária nacional, de regenerar a moderna literatura nacional (Ferré, 2003, p. 315), não foi uma simples colecção: o autor retocou e modificou as versões que considerava imperfeitas, tentando ainda uma recriação literária de alguns desses romances, como Adozinda ou Bernal Francês. O primeiro é ainda um texto fundamental para que possamos compreender de que forma Garrett se inspirava na memória colectiva, nas fontes tradicionais, o que foi uma das principais bandeiras dos intelectuais da época (Pires, 2003, p. 330). Garrett não seria, assim, um mero colector da literatura portuguesa, sendo antes um impulsionador da identidade portuguesa. Com Camões, contudo, foi dado um primeiro passo para a exaltação do sentimento nacional: a pátria passaria a encarnar a figura da história nacional - e, sendo sujeito literário, ressignificava-a poeticamente – e o seu símbolo, Luís de Camões, legitimá-la-ia interna e externamente.
É, assim, necessário considerar o elemento nacionalista para entender a forma como Bocage foi o intermediário de enciclopedistas e pré-românticos durante o período de formação do Romantismo português (Machado, 1996, p. 21). A nação passaria a ser o sujeito da narrativa literária, ainda que fosse elaborado pela própria história literária, construída com base na ideia da permanência histórica do espírito nacional. A moderna história literária ia, assim, legitimar-se através da reconstrução selectiva do passado (Cunha, 2002, p. 140) e o Romantismo ia basear-se na necessidade de revoluções sociais e na angústia da perda do passado.
Anthony Smith considera que é possível que o nacionalismo seja o mito identitário mais persuasivo do mundo moderno (1991, p. 8), apoiando-se sobretudo no passado como legitimador do direito territorial e nacional. De facto, foi o que Garrett fez através da literatura: usou o passado para legitimar a nação, criando um registo da sua literatura e, portanto, da sua cultura. Ao mesmo tempo, deu um primeiro passo para que o mito da pátria deixasse de ser um herói dos romanos ou uma figura divina dos gregos, sendo-o, pelo contrário, o poeta d'Os Lusíadas, permitindo ao Romantismo dar a sua lição de nacionalismo em Portugal.
Em Camões, Garrett denuncia as faltas de Portugal, revoltando-se com o desaparecimento da sepultura de Camões:
Nem o humilde lugar onde repoisam
as cinzas de Camões, conhece o Luso. (Garrett, 1984, p. 157)
Raça de ingratos! (Garrett, 1984, p. 157)
Anderson considera que não há emblemas da cultura moderna do nacionalismo que sejam mais marcantes do que os cenotáfios e os túmulos de soldados desconhecidos (Anderson, 2005, p. 31). Garrett, por sua vez, recriminava a nação pelo paradeiro desconhecido do túmulo daquele que devia ser o seu símbolo.
A censura pelo desconhecimento do paradeiro do sepulcro de Camões inclui ainda uma promessa de silêncio. Assim, o autor jura não escrever nem mais um verso sobre “o lusitano – envilecido! – nome” (Garrett, 1984, p. 157). Sobre o túmulo de quem apresenta como herói da nação, Garrett suicida-se enquanto poeta (França, 1993, p. 59), sugerindo que aquela seria não só a última vez que escrevia sobre Portugal, mas também que aquele seria mesmo o seu último poema:
(...) este só brado
Alevanta final e derradeiro. (Garrett, 1984, p. 157)
Este seria, assim, o único exemplar do Romantismo em que Garrett mal penetrara, mas que inaugurara no país que condenara nos versos. Camões será, por isso, um “poema-suicídio” (França, 1993: 50) em que Garrett, que parece morrer com a pátria, a renega. Esta é uma pretensão muito típica do Romantismo: o seu carácter revolucionário impõe o corte com o passado, ainda que o use para legitimar e exaltar outra coisa, outra pátria, como foi intenção do autor.
Ao escrever “«Pátria, ao menos / juntos morremos...» – E expirou coa Pátria”, Garrett (1984, p. 157) sintetiza a união de poeta e pátria na morte simultânea, fazendo com que confluam os planos da história individual e da história colectiva (Grossegesse, 2003, p. 303). Assim sendo, toda a relação intertextual confluirá na projecção da emulação por parte de Garrett, ou seja, na sua auto-representação literária como um “novo Camões” (Grossegesse, 2003, p. 305). Morrendo poeta e pátria no mesmo instante, deduz-se que a pátria sobrevive devido à obra artística (Ibidem). Dessa forma, Garrett procura rever-se em circunstâncias histórias semelhantes às de Camões, afirmando-se, num contexto de crise, como uma voz excepcional que seria capaz de denunciar a decadência (Reis, 1982, p. 73). O início do Romantismo em Portugal será, assim, marcado pelo recurso à intertextualidade como processo estruturante da mensagem nova (Reis, 1982), pela angústia da influência, pela afirmação romântica da originalidade e pelo contributo para a canonização de Camões (Leal, 2003, p. 324). Camões vai, assim, reinterpretar Camões como modelo da relação entre indivíduo, escrita e nação (Grossegesse, 2003, p. 312): a sua recuperação, para além da afirmação de uma linguagem literária que contraste com a do Neoclassicismo, permite impulsionar a ilusão da identidade portuguesa e usar a nação enquanto sujeito literário.
Este olhar para o passado para legitimar o presente não é de somente. Afinal, para transformar a sociedade, Garrett teria, e teve, de ocupar-se das suas raízes. Precisou, para isso, de estudar a História de Portugal. Propôs-se fazê-lo e tornou-se, assim, em 1838, cronista-mor do reino, sendo responsável pela organização e realização de conferências públicas sobre a história de Portugal. O interesse pela história verifica-se em Garrett ainda de outra forma: o seu teatro era pautado por temas inspirados no passado nacional.
O autor era fascinado pelo princípio democrático de Rousseau. Consagrava, por isso, à criação literária, o princípio da liberdade, como o fazia em relação à regeneração do país. A liberdade garantiria a civilização, por intermédio da instrução. O autor fazia parte do partido da ordem e confessava ser um poeta da ordem: havia, por isso, no Romantismo, principalmente no seu Romantismo, uma responsabilidade de organizar e regenerar, criar uma ligação entre o movimento literário e as novas estruturas políticas do país. Garrett era, por isso, o agente ideal para esta revolução: enquanto poeta e legislador formado no quadro mental do Iluminismo, teria todas as condições para levar a cabo esta regeneração cultural. O Romantismo, debruçado sobre o passado, combate pelo futuro em nome do passado, teve, contudo, duração curta, encontrando lugar nos períodos de transições dramáticas: a alma não resistiu a ser maior do que a realidade, diria um dia Lukács. Este combate pelo futuro em nome do passado viria também a ficar claro na obra Viagens na Minha Terra (1846): também aí há uma inclinação sobre o passado com o objectivo de orientação em direcção ao futuro (Duarte, 2003, p. 153).
Hobsbawm mostra que a história que se torna na base da ideologia das nações não é aquela que é preservada na memória popular, mas a que foi fixada por aqueles a quem competia esta tarefa (2011, p. 67). Neste sentido, fixando textos e retocando-os, forjando uma tradição literária, era escolhido o passado mais conveniente e Garrett, pelo seu papel na historiografia literária, estava no epicentro desta escolha.
Helena Carvalhão Buescu afirma que Garrett seguiu um percurso que o levou ao Romantismo e a ter um papel fundamental na sua implantação em Portugal (1997, p. 114), o que faz sentido face à forma como o autor tentou criar um passado literário nacional. Mesmo assim, há uma certa dificuldade em analisar o caminho traçado por Garrett, em entender de que forma conseguiu modificar, regenerar, refazer a literatura: a dúvida reside algures entre a possibilidade do autor ter executado um plano prévio ou de se ter feito romântico à medida que ia percorrendo o caminho do Romantismo, e já foi partilhada por Maria de Lourdes A. Ferraz (2003, p. 343). Para mais, é sabido que Garrett cultivava a sua imagem pública, falsificando-se e ficcionalizando-se para o público: o autor, para além de fornecer informações que pudessem ser bem aproveitadas por Gomes de Amorim, seu biógrafo, conferindo-lhe uma imagem de requinte, mentia em relação à sua idade, chegando a rasurar a data de nascimento várias vezes no mesmo texto (Amorim, 1881, p. 21) ou a redigir notas biográficas cuja autoria atribuía a outras pessoas. Será por isto que Helena Carvalhão Buescu considera que Garrett é excelente na “verdade proposta” (2001, p. 56) que os escritores dizem de si mesmos: tendo o autor sido um homem de teatro, sempre tentou envolver-se, e à sua obra, num aparato cénico que provocasse surpresa. Esta característica de Garrett, aliada à ficcionalidade que a literatura permite, não deverá ser esquecida quando se tenta encontrar o homem na obra. “Vida como teatro”, viria a dizer Eduardo Lourenço (2003, p. 68).
Por tudo isto, é sempre difícil afirmar-se o propósito de um autor aquando da criação literária, uma vez que a literatura tem direito ao improvável (Lopes, 1994, p. 479). Mesmo assim, o propósito ideológico de Garrett dificilmente passa despercebido: não só o Romanceiro (1851) terá surgido apenas com a finalidade de regenerar a moderna literatura nacional (Ferré, 2003, p. 315), como a ideia de que a literatura de Garrett foi a passagem à prática de um plano de regeneração não nos chocaria. Para mais, torna-se claro que a publicação de Camões é já o início do forjamento de uma construção patriótica, em que o nacional é um elemento fulcral da criação literária.
3. Considerações finais
Garrett construía o presente olhando para o passado: queria reformar para garantir o funcionamento de novas instituições. Por esse motivo, foi o criador do Teatro Nacional e exerceu actividade política no Parlamento, onde alguns dos seus discursos ficaram célebres. O autor tinha, por isso, uma vida agitada, entre política, literatura e Parlamento. Os anos 40 desse Romantismo cristalizaram à volta de Garrett. Morreu, em 1854, no fim de uma época criada por si.
Coleccionando e retocando a literatura popular portuguesa, o autor forjava uma tradição literária ao mesmo tempo que erigia princípios nacionalistas. Esses princípios seriam, aliás, das ideias mais identificadoras do sentimento romântico: o autor, no prefácio do Romanceiro, afirma que, para se ser nacional, é necessário ser-se romântico e popular.
Com Camões, Garrett começou a forjar uma construção patriótica, afirmando um símbolo nacional, exaltando e valorizando o sentimento nacional na sua literatura. Anos mais tarde, Garrett continuaria a forjar a tradição portuguesa através da colecção e dos retoques do Romanceiro, que considerava ser o que faltava para que Portugal tivesse uma tradição nacional. Desta forma, supriria uma grande falta na literatura portuguesa e o Romanceiro não seria uma mera colecção da literatura portuguesa, antes uma obra impulsionadora da identidade nacional.
Com isto, Garrett, ainda que tentasse cortar com o passado, tinha-o como elemento obrigatório da nova literatura, uma vez que ele era necessário à legitimação do presente.
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[Recebido em 27 de abril de 2015 e aceite para publicação em 1 de setembro de 2015]
Notas
[1] Alexandre Herculano, considerando que o movimento intelectual da Europa se desenvolveu fora de Portugal, viria a considerar D. Branca e Camões “os primeiros e até agora os únicos monumentos de uma poesia mais liberal do que a de nossos maiores” (Herculano, 1985, p. 21), julgando-os, assim, pelo valor de “liberalidade”.
[2] Na obra De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, datada de 1800, a autora manifesta a ideia de que a obra literária deve expressar o zeitgeist em que é concebida.
[3] No “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, ensaio de abertura da obra, Garrett tenta traçar uma história da literatura portuguesa, relacionando a obra literária com o zeitgeist em que esta era concebida.