Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Revista Diacrítica
versão impressa ISSN 0807-8967
Diacrítica vol.30 no.1 Braga 2016
As sequências textuais argumentativas no gênero "comentário do leitor" da folha de são paulo
The textual argumentative sequences in the genre "reader comments" from folha de são paulo
Anderson Ferreira*
*Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Brasil.
RESUMO
Este artigo tem por objetivo estudar as sequências textuais argumentativas no gênero de discurso "comentário do leitor", publicado diariamente no jornal Folha de São Paulo na secção Painel do Leitor. Fundamentamos nossas análises sobre os aspectos teóricos da Análise Textual dos Discursos (ATD), em especial, os estudos realizados por Jean-Michel Adam acerca das sequências argumentativas em seu princípio dialógico. Visamos a considerar este princípio não só no plano textual de cada amostra selecionada, mas, mormente, na situação de comunicação que a instância jornalística instaura ao dispor, no jornal, três comentários de leitores sobre o mesmo tema. Consideramos que essa estratégia tem por escopo instaurar um debate mais amplo atinente à questão da polarização partidária e da divisão do país decorrente do cenário político instaurado.
Palavras-chave: sequências textuais argumentativas – tipo de discurso - gênero de discurso – princípio dialógico.
ABSTRACT
This article aims to study the textual argumentative sequences in the genre ‘reader comments discourse', published daily in the newspaper Folha de São Paulo in the Letters addressed to the Editor section. We base our analysis on the theoretical aspects of Textual Analysis of Discourses (TAD), in particular, studies by Jean-Michel Adam about argumentative sequences in view of the dialogic principle. We intend to consider within this principle not only the textual plan for each selected sample, but, especially the situation of communication that the journalistic instance render available, in the newspaper via, three comments from readers on the sameis topic. We believe that this strategy has the purpose to establish a broader debate regardings the issue of partisan polarization and division of the country as a consequence, of the political scene established.
Keywords: textual argumentative sequences - discourse genre- dialogic principle.
0. Introdução
Esse trabalho tem por objetivo estudar as sequências textuais argumentativas no gênero "comentário do leitor" do jornal Folha de São Paulo (doravante, Folha). Focalizamos três textos publicados na secção Painel do Leitor deste periódico. Privilegiamos como aporte teórico-metodológico a Análise Textual do Discurso (ADT), mormente, os estudos de Jean-Michel Adam sobre a estrutura da sequência argumentativa. Partimos, assim, da seguinte questão: de que forma são constituídas as sequências textuais argumentativas no gênero de discurso "comentário do leitor" da Folha? Dividimos o presente trabalho em três secções. Na primeira, assumimos uma concepção de gênero de discurso e tipos de discurso pela qual classificamos os textos selecionados. Na segunda, discutimos as considerações de Adam (2011) e outros estudiosos acerca das sequências textuais argumentativas. Por fim, na terceira secção, analisamos os textos escolhidos à luz das propostas teórico-metodológicas da ATD acerca das sequências argumentativas em seu princípio dialógico.
1. Gêneros e tipos de discurso
A categoria de gênero de discurso é baseada em critérios situacionais como o papel dos interlocutores, o objetivo, o suporte, a organização textual, o tempo e o lugar. Os gêneros são condicionados sócio-historicamente e mudam de acordo com a necessidade comunicativa. A partir dos empreendimentos de Bakhtin, os estudos acerca dessa noção ampliaram a diversidade dos gêneros de discurso, implicando-os na noção de eventos comunicativos.
Contudo, a possibilidade do surgimento de diversos gêneros de discurso se deve a certa estabilidade dos aspectos internos dos textos produzidos nas sociedades, isto é, gerados no domínio de uma dada formação sociodiscursiva. As práticas discursivas, à medida que foram se consolidando dentro de cada formação sociodiscursiva, produziram os gêneros de discurso. Por outro lado, à medida que novas formações sociodiscursiva vão surgindo, novos gêneros de discursos podem emergir.
Podemos considerar, portanto, que o gênero "comentário do leitor" passou a existir a partir do tipo de discurso jornalístico que, por sua vez, dependeu da existência de uma formação sociodiscursiva ligada a essa atividade socioprofissional associada à atividade da imprensa. Deste modo, "tipos e gêneros de discurso estão, assim, tomados por uma relação de reciprocidade: todo tipo é uma rede de gênero; todo gênero se reporta a um tipo" (Maingueneau 2015: 66). Mas por que considerar o comentário do leitor um gênero de discurso que integra o discurso jornalístico?
A princípio, pelo fato de esse gênero ser vinculado, de modo exclusivo, pela instância jornalística. Não vemos comentários de leitores aparecerem publicados em livros ou blogs pessoais. Não obstante, esse não pode ser considerado um critério essencial, já que gêneros de discurso como artigo de opinião, crônica e entrevista, nascidos para e no jornal, são, muitas vezes, compilados e reunidos em livros, blogs e sites. Diante disso, devemos nos ater a vários critérios como "o tipo de conteúdos, a organização interna desses conteúdos, aspectos formais, o estatuto socioprofissional e os papéis sociais do locutor e do alocutário etc."(Silva 2012: 81).
Focalizemos este último critério: os papéis sociais do enunciador e do coenunciador. Qual o papel social do enunciador do gênero "comentário do leitor"? Certamente, não é do lugar de leitor que fala o enunciador do comentário. Os papéis, neste caso, se invertem. O leitor/enunciador toma a palavra, legitimado por um estatuto socioprofissional conferido apenas àqueles que fazem parte da imprensa. Neste sentido, ele também está apto a discutir os conteúdos selecionados pela instância jornalística, desde que se submeta aos aspectos formais do gênero em questão de maneira a respeitar certa organização dos conteúdos.
Deste modo, seguindo os critérios do modelo instaurado pela instância jornalística, o leitor/enunciador produz um texto de forma a adequá-lo em dada situação de comunicação. No caso da secção Painel do Leitor do jornal Folha, a situação de comunicação diz respeito àquilo que é de natureza extralinguística, mas que se encontra materializada linguisticamente pela situação de enunciação a qual o leitor está inserido, ou seja, o modelo de texto que o jornal consagrou.
Cada situação de enunciação é condicionada, entre outros fatores, pelos papéis sociais dos interlocutores, pela sua localização temporal e espacial e pelo tema abordado. Segundo a sua competência linguística e a sua competência comunicativa [...] o locutor gera um texto que, desejavelmente, se caracteriza pela sua relevância para a situação de enunciação em que está a se comunicar (Silva 2012: 87).
Assim, os textos produzidos pelos leitores e publicados no jornal pertencem ao discurso jornalístico, pois emergem por meio de interlocutores inseridos nessa atividade socioprofissional. Logo, "o conjunto de indivíduos que, numa dada comunidade, se dedica à atividade de produzir textos de imprensa (nos jornais, na rádio, na televisão e na internet) constitui uma formação sociodiscursiva, que é responsável por um determinado tipo de discurso: o discurso jornalístico" (Silva 2012: 55).
Cabe lembrar que é por intermédio dos editores que os textos dos comentários dos leitores são selecionados para exercer os papéis sociais dos interlocutores em cada sociedade. Em última instância, o jornal instaura um debate cujos rumos e conteúdos podem ser controlados por ele.
2. As sequências argumentativas
Entre os tipos de textos propostos por Werlich (1975) e retomados por Adam (2011), encontram-se os textos argumentativos. Neles notamos, de maneira geral, duas características: a análise e o posicionamento do enunciador. Podemos apontar, com isso, dois funcionamentos da argumentação na produção verbal.
O primeiro diz respeito ao processo de apresentação de um ponto de vista (A), elidindo ou refutando uma tese anterior (B) e propondo uma nova tese (C). Essa estrutura composicional de escrita foi bastante usada na filosofia pelo menos até o século XVII. O segundo, que não elimina a sequência (A) - (B) - (C), baseia-se, sobretudo, na organização de um conjunto de enunciados, podendo vir a aparecer em meio a outros tipos de textos e em qualquer gênero de discurso.
Essas perspectivas resultam em duas acepções gerais de argumentação. Uma que se fundamenta na qualidade de persuadir ou convencer o interlocutorao propor uma nova tese, independente de uma lógica formal, ou seja, independente da verdade ou falsidade de uma proposição. E outra que se configura pelo modo de organização enunciativa, resultado da passagem do período argumentativo à sequência argumentativa (Adam 2011). Nesta última acepção, alicerçamos nosso trabalho.
De acordo com Silva (2012), enquanto perspectivada sobre o modo de organização enunciativa, as sequências argumentativas se distinguem das sequências narrativas, descritivas e explicativas. Contudo, enquanto perspectivada sob o enfoque retórico, as sequências narrativas, descritivas, explicativas e dialogais, considerando o contexto pelas quais são produzidas, podem ter uma orientação argumentativa. Isso significa dizer que fábulas, contos, canções populares, publicidades, notícias, conversas informais etc., podem, mesmo por outros gêneros de discurso, ‘querer' persuadir ou convencer seus interlocutores.
No esquema abaixo, podemos visualizar os movimentos de demonstrar-justificar uma tese e refutar uma tese ou certos argumentos de uma tese. Esse esquema, proposto por Adam (2011), se aproxima do protótipo de proposição enfocada pela Lógica Formal.
No esquema 21, Adam (2011), baseado nas considerações de Toulmin (1993), observa que a passagem entre os dados (D) e a Conclusão (C), configura-se pelos procedimentos argumentativos (W), (B) e (C), como apresentado abaixo:
Toulmin (1958) exemplifica o esquema acima da seguinte maneira: (D) Harry nasceu nas Bermudas. (W) As pessoas nascidas nas Bermudas são geralmente cidadãos britânicos. (B) Dados os estatutos vigentes. (Q) (R) A menos que os pais de Harry sejam estrangeiros. (C) Harry é cidadão britânico. Notemos que, neste esquema, os modalizadores (Q) e (R) nem sempre vêm escritos nas sequências argumentativas, eles podem ser inferidos pelo interlocutor. Esse dado revela que as sequências argumentativas, na perspectiva de Toulmin, não podem ser tomadas como sequências axiológicas, já que elas podem ser refutadas ou reformuladas, caso os modalizadores venham a se confirmar.
Com base nesse modelo, Adam (2011) elabora a sua teorização acerca da estrutura macroproposicional prototípica da sequência textual. Vejamos o esquema 22.
Observamos, por esse esquema, um salto em relação à Lógica Formal e à Retórica no que se refere à veracidade ou à falsidade de uma proposição e ao processo de persuasão, respectivamente. Adam (2011: 234) acrescenta, tomado por um princípio dialógico, a Tese Anterior (P. arg 0), com a qual o movimento argumentativo dialoga (P.arg 2) e (R) e contra a qual se posiciona a Conclusão (C) ou (nova) Tese (P.arg 3).
Segundo o autor, esse esquema não obedece a uma ordem linear obrigatória, comportando dois níveis: o nível justificativo e o nível dialógico ou contra-argumentativo. No primeiro, como na Lógica Formal, o interlocutor é desconsiderado. No segundo, o interlocutor tem a função de um contra-argumentador, "a estratégia argumentativa visa a uma transformação dos conhecimentos" (Adam 2011: 235). Portanto, o modo de ordenação das Premissas e Conclusão pode aparecer na ordem progressiva: [Premissas, [logo] Conclusão] ou na ordem regressiva: [Conclusão [porque] Premissas]. Seja em que ordem apareça, verifica-se a estrutura macroproposicional do esquema 22 supracitado.
A inclusão da macroproposição Tese Anterior (P.arg 0), proposta por Adam (2011), postula o conceito de dialogismo. Neste sentido, constata-se que qualquer texto, mesmo monologal, responde a outros textos, implicando, por vezes, novas respostas.
Segundo Silva (2012), nem sempre as macroproposições previstas no esquema elaborado por Adam (2011) precisam ocorrer no texto. Contudo, caso não ocorram, faz-se necessário, para uma adequada compreensão, recuperá-las, quando possível, de modo inferencial. As sequências argumentativas podem ser observadas em seu estado "puro", isto é, separadas de outros tipos textuais. Todavia, a estrutura de uma sequência argumentativa pode tornar-se mais complexa ao integrar fases narrativas, descritivas ou explicativas.
Como acrescenta Silva (2012), os estudos de Toulmin (1958), Moeschler (1985) e Adam (1992; 2011), mesmo distanciados no tempo, concorrem em uma ideia base: a essência de qualquer esquema argumentativo remete ao movimento entre as Premissas e a Conclusão.
3. As sequências argumentativas no gênero "comentário do leitor"
Passemos, então, às análises dos textos selecionados. Trata-se de três comentários do leitor publicados na secção Painel do Leitor da Folha de São Paulo. O jornal disponibiliza um canal pelo qual os leitores podem participar enviando notícias, comentários, fotos ou vídeos. Esse material é selecionado e publicado na supramencionada secção. Trata-se de se comunicar com o leitor da Folha, dando-lhe meios para interagir com a construção do jornal.
Comentário 1
Agora que Dilma venceu, vemos uma profusão de palpites sobre o que ela deve fazer de seu governo – curiosamente, vindo de cidadãos que não votaram nela. Gostaria de lembrar que as ideias e as práticas da presidente foram referendadas pela maioria do eleitorado. Portanto, mais modéstia e contenção! Todo mundo pode sugerir o que quiser, mas as linhas mestras do governo serão traçadas por quem conquistou democraticamente nas urnas o poder de governar o país.
José Cláuver de Aguiar Junior (Santos, SP)
No comentário 1, podemos aplicar o esquema 21 de Adam (2011: 233).
Esse esquema nos permite separar os Dados (D) [Dilma venceu], Conclusão (C) [o país será governado por quem conquistou democraticamente este direito nas urnas] e o Apoio (B) que se vale de macroposições que, embora não estejam articuladas à conclusão, não a invalidam: [vemos uma profusão de palpites sobre o que ela deve fazer de seu governo], [vindo de cidadãos que não votaram nela]. O enunciador propõe, na Conclusão (C), que as eleições foram justas e democráticas, no entanto aqueles que, porventura, não votaram na presidente Dilma não podem "dar palpites" sobre os rumos de seu governo. Ora, num Estado democrático de direito, como é o Brasil, uma das funções da democracia é a proteção dos direitos humanos fundamentais como a liberdade de expressão.
De outro modo, é por meio de inferências que podemos recuperar as macroproposições consideradas por Toulmin (1958) como a Garantia ou Certificação (W), o Modalizador (Q) e a Restrição (R), as quais garantem a eficácia da Conclusão (C). Assim, se o enunciador conclui que o país será governado por quem conquistou esse direito democraticamente nas urnas, podemos inferir que as eleições constituem um sistema democrático; mas que, segundo ele, quem as vence pode governar o país segundo seus propósitos; e, contrariamente a um sistema democrático, quem não votou no candidato vencedor não tem direito de opinar acerca de questões políticas no âmbito federal. O funcionamento do esquema argumentativo, então, pode ser disposto como na tabela a seguir:
Em (W), (Q) e (R), temos a recuperação por inferência, estas proposições nos leva a crer que as democracias se submetem à vontade das maiorias. Todavia, (W) se encontra em posição de confronto com (Q) e (R), no sentido de que, como sabemos, um sistema democrático admite a participação de todos os cidadãos, bem como entende como sadio o conflito de ideias e, também, considera como válida uma oposição político-ideológica ao governo democraticamente eleito. Para elucidar este confronto interno na sequência argumentativa no comentário 1, recorremos a Adam (2011) que, à luz de um princípio dialógico, propõe a entrada da Tese Anterior (P.arg 0) em vista a uma (nova) Tese (P.arg 3). Exploraremos essa proposta na próxima análise que versa sobre o mesmo assunto.
Comentário 2
O PSDB não teve a capacidade de ganhar do PT, que perdia para ele mesmo. Simples a razão: em três eleições presidenciais, o PSDB lançou três candidatos. Não firmou nenhum nome. E o pior: na hora de ganhar, colocou um candidato que governou Minas Gerais por oito anos e não conseguiu sequer ganhar nesse Estado. A sigla perdeu por seus candidatos não respeitarem a hora certa de cada um.
Rômulo Gobbi (Santa Bárbara d'Oeste, SP)
Observemos a seguinte tabela baseado no esquema 22 proposto por Adam (2011: 234).
Baseados no esquema 22 de Adam, divididos os enunciados do comentários 2 alocando-os em Dados e Apoio das inferências, deixamos vazios a Tese Anterior (P.arg 0) e a (nova) Tese (P.arg 3), mas poderíamos considerar a instância jornalística arranja o modo de apresentação na secção do Painel do Leitor para que (P.arg 0) do comentário 2 parta do assunto do comentário 1 [Dilma venceu], e (P.arg 3) do comentário 2, como apoio da Restrição/Especificação, proponhauma nova organização interna do partido PSDB na disputa das próximas eleições, como veremos na Tabela 4. Por ora, consideremos a tabela a seguir:
Pelos pressupostos de Adam (2011) a inclusão da Tese Anterior (P.arg 0) nas sequências argumentativas permite-nos conceber o funcionamento dialógico do texto. Neste caso, observamos que um texto responde a outros textos. O comentário 2, põe em curso uma reformulação ou complementação do comentário 1. Esta constatação só é plausível se considerarmos a função social que exerce o gênero comentário do leitor no jornal. Trata-se, portanto, de uma sequência argumentativa mais ampla que inclui, como veremos, o comentário 3 que retoma os dois anteriores.
Contudo, o comentário 2 não retoma uma Tese Anterior (P.arg 0) do comentário 1, mas, sim, o tema e o fato de o PSDB ter perdido a eleição. O comentário 2 consiste em uma justificativa pela derrota do PSDB que, o arranjo proposto pelo jornal na secção Painel do Leitor, põe em diálogo com o comentário1. A instância jornalística produz, assim, a partir da inclusão do comentário 2, uma situação de debate entre dois interlocutores, nomeadamente mobilizado pelo enunciador do comentário 2, já que o enunciador do comentário 1 assume uma posição mais "radical" no debate.
Deste modo, inverte-se o ponto de saída dos Dados (D) para dar voz a outro ponto de vista (PdV) sobre o resultado das eleições. Assim, no comentário 1, temos [Dilma venceu] e, no comentário 2, temos, [O PSDB não teve a capacidade de ganhar do PT]. O enunciador, no comentário 2, focaliza a polarização entre PSDB e PT, justificando os motivos pelos quais o PSDB saiu derrotado das eleições presidenciais, atribuindo a derrota a gestão do próprio partido na corrida presidencial, atenuando, desse modo, a força do adversário. De outro modo, o enunciador do comentário 1 é mais categórico e deixa pouco espaço para o debate.
Esses pontos de vista (PdV) acerca do resultado das eleições e do rumo do país são postos em correlação pela instância jornalística, visando a instaurar um debate sobre o evento eleitoral ocorrido. Observamos que tanto no comentário 1 quanto no comentário 2 não estão marcadas as restrições que Adam (2011) classifica de (P.arg 4). Em ambos os comentários, essa ausência (Ø) revela que o esquema argumentativo se encontra no nível justificativo em que "o interlocutor é pouco levado em conta. A estratégia argumentativa é dominada pelos conhecimentos colocados" (Adam 2011: 234) e não no nível dialógico, cujo escopo consiste em transformar o conhecimento. Desta forma, temos que (P. arg 1) + (P. arg 2) + (P. arg 3) no caso do nível justificativo, correspondem aos Dados, à Sustentação e à Conclusão, respectivamente, sendo esta última omitida no comentário 2.
Não obstante, se olharmos o gênero comentário do leitor pela situação de comunicação instaurada pela instância jornalística, observaremos um nível dialógico em que podemos inferir (P.arg 0) e (P.arg 4). A Tese Anterior (P.arg 0) pode ser recuperada se considerarmos as condições sócio-históricas de produção dos gêneros em análise. Trata-se de certa divisão no país instituída por disputas pelo poder entre formações sociodiscursivas no âmbito da política partidária. Essa polarização motivou práticas discursivas de violência propagadas, em especial, nas redes sociais. De outro modo, podemos observar que o (P.arg 4) do esquema 22 de Adam (2011), no comentário 2, pode ser inferido por uma restrição [a menos que] ou por uma especificação [só se] recorrendo-se à Tese Anterior (P.arg 0) específica da participação do PSDB em eleições presidenciáveis. Sabemos que três candidatos do PSDB concorreram, nos últimos doze anos, às eleições para a presidência da República. Deste modo, o enunciador do comentário 2, baseado em (P.arg 2), não marca, linguisticamente, as restrições da macroproposição.
Quanto à Conclusão (C) ou (nova) Tese (P.arg 3), o texto do comentário 2 não está organizado em ordem linear. Logo, a proposição [A sigla perdeu por seus candidatos não respeitarem a hora certa de cada um], disposta no final no texto, representa uma paráfrase daquilo que foi posto na Sustentação (P.arg 2) por isso a alocamos juntos aos Dados (D). Recuperamos, portanto, (P.arg 4) e (P.arg 3) por meio de inferências. Assim, temos:
Vemos, portanto, que, no comentário1, o ponto de vista (PdV) sobre o tema é favorável ao PT e no comentário 2 é desfavorável ao modo como o PSDB organiza e administra sua candidatura e escolhe seus representantes ao governo. Todavia, no comentário 2, o enunciador argumenta a favor de mudanças no PSDB para que seja possível ganhar as eleições, ao passo que o enunciador do comentário 1 ‘exclui' da participação no novo governo aqueles que não votaram na presidente Dilma.
Comentário 3
A eleição foi marcada pela liberdade de opinião que os eleitores de direita e de esquerda tiveram nos meios de comunicação. Podemos usá-los para exigir mudanças. Que os acalorados debates e discussões partidárias se transformem em cobranças. Assim realizaremos nossos papéis de cidadãos, exigindo melhorias, criando fóruns na internet, indo às ruas. Não podemos deixar que continuem acomodados.
Henrique Yochi (Monte Alto, SP)
No comentário 1, os Dados (D) são [Agora que Dilma venceu]. No comentário 2, os Dados (D) são [O PSDB não teve capacidade de ganhar]. Já no comentário 3 os Dados (D) são [A eleição foi marcada pela liberdade de opinião que os eleitores de direita e de esquerda tiveram nos meios de comunicação]. Neste último, é nítido o efeito de sentido de neutralidade que o texto visa a instaurar.
Os Dados (D) do comentário 3, retoma os outros dois comentários à medida que os aloca nas formações sociodiscursivas marcadas pelos itens lexicais esquerda e direita. Deste modo, a Tese Anterior (P.arg 0), no comentário 3, diz respeito ao tema abordado pelos outros dois comentários, mas, por meio do percurso argumentativo, objetiva-se reformulá-los.
Na sustentação (P.arg 2), o enunciador propõe validar sua Conclusão (C) ou (nova) Tese: [Que os acalorados debates e discussões partidárias se transformem em cobranças], [Assim realizaremos nossos papéis de cidadãos, exigindo melhorias, criando fóruns na internet, indo às ruas], enunciando de forma negativa (P. arg 2) [Não podemos deixar que continuem acomodados].
Esta (nova) Tese (P.arg 3) instaura um diálogo com os dois outros comentários, reavaliando o conceito de democracia, refutando a Tese do comentário 1 em que se declara que o país será governado apenas por aqueles que votaram no PT. Também, reformula o comentário 2 que argumenta acerca de estratégias para o PSDB se sair vitorioso nas eleições, minimizando o fato de esse partido poder contribuir em outras frentes com o fortalecimento da democracia no país. Por fim, a (nova) Tese (P.arg 3), no comentário 3, convoca os cidadãos brasileiros para que, por meio dos movimentos sociais e participação política, cobrem dos políticos eleitos ações que visem à construção de um país mais igualitário e justo.
A instância jornalística dispôs, estrategicamente, de modo global, no Painel do Leitor, uma sequência textual argumentativa que resulta em uma (nova) Tese (P.arg 3) contrária à Tese Anterior (P.arg 0) que tinha por escopo a polarização partidária e a divisão da sociedade brasileira entre esquerda e direita, pobres e ricos, nordeste e sudeste ou, ainda, entre PT e PSDB.
Com efeito, essa estratégia argumentativa acionada pelo gênero de discurso "comentário do leitor" deve ser considerada não só pelos conteúdos, pela organização interna desses conteúdos, pelos aspectos formais, pelo estatuto socioprofissional e pelos papéis sociais dos interlocutores, mas também pelo tipo de discurso instaurado por uma formação sociodiscursiva.
Todavia, embora o comentário 3 tente instaurar um efeito de neutralidade diante do debate mobilizado pela instância jornalística - o qual, por sua vez, reproduz, pelos comentários 1 e 2, os pontos de vistas (PdV) produzidos no Brasil no meses que antecederam as eleições – o enunciador fala do lugar da oposição (P.arg 2): [Não podemos deixar que continuem acomodados], e, em última instância, fala do lugar do cidadão, politicamente, engajado que considera que o governo que se reelegeu estava "acomodado" no poder. No gênero de discurso "comentário de leitor" no Painel do Leitor da Folha, o esquema abaixo pode ser elucidativo:
4. Conclusão
Argumentar, num sentido amplo, consiste em utilizar a atividade verbal a fim de persuadir ou convencer o outro. De outro modo, consiste em colocar um ponto de vista sobre determinada questão. Temos muitas maneiras de argumentar, o que resulta em boas argumentações ou argumentações fracas. As argumentações podem ser apresentadas por meio de textos por excelência argumentativos ou por textos narrativos, descritivos, explicativos ou dialogais. Esta última forma torna sua apreensão mais complexa. Também, todos os gêneros de discurso podem ter uma orientação argumentativa. Neste sentido, estudar as sequências argumentativas que compõem esses textos e gêneros de discurso significa revelar como os indivíduos constroem seus conhecimentos em uma dada sociedade. Nos textos dos comentários do leitor por nós selecionados, podemos compreender a construção desses conhecimentos em dois níveis.
O primeiro diz respeito às sequências argumentativas no plano textual de cada gênero de discurso publicado na Folha. Em cada um deles, podemos observar a proposição de Adam (2011) pela inclusão da Tese Anterior (P.arg 0) e do destaque à (nova) Tese (P.arg 3) que indica um procedimento diferente da Conclusão (C) proposta por Toulmin (1958). Tanto (P.arg 0) quanto (P.arg 3) assinalam que o discurso retoma e revela outros discursos, evidenciando o conceito de dialogismo proposto por Bakhtin (2010).
O segundo nível refere-se aos efeitos de sentido que uma análise global dos três comentários pode suscitar. Isso significa dizer que se olharmos os três textos dispostos pela instância jornalística como tomados pela situação de comunicação, veremos que a noção de dialogismo torna-se ainda mais presente, já que, nesse enfoque, o jornal, ao publicar os comentários de seus leitores, instaura uma função-leitor que visa ampliar o debate atinente aos assuntos abordados, logo o efeito de sentido das sequências textuais argumentativas, como apontou Adam (2011), pode ser evidenciado.
Em suma, o gênero constituído no Painel do Leitor da Folha não trata apenas das ‘opiniões' dos leitores sobre as eleições presidenciais, a instância jornalística visou a produzir um efeito de sentido de debate entre dois polos partidário e um "mediador" que tenta solicitar a participação dos cidadão de forma democrática na construção política do país. As sequências argumentativas, portanto, ultrapassam o nível do plano textual.
Referências
Adam, Jean-Michel (1992) Les textes: types et prototypes. Récit, description, argumentation, explication et dialogue. 3ªed., Paris, Nathan. [ Links ]
–––– ,(2011). A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo, Cortez. [ Links ]
Bakhtin, Mikhail (2010). Estética da criação verbal. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 5º ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. [ Links ]
Charaudeau, Patrick & Maingueneau, Dominique (2008). Dicionário de Análise do Discurso. – Coordenação de tradução Fabiana Komesu. 2ºed. - São Paulo: Contexto. [ Links ]
Maingueneau, Dominique (2015). Discurso e análise do discurso. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial. [ Links ]
Moeschler, Jaques (1985). Argumentation et conversation. Paris: Hatier. [ Links ]
Silva, Nunes da (2012). Tipologias Textuais - Como Classificar Textos e Sequências. Coimbra: Editora Almedina. Coleção CELGA, 2012. [ Links ]
Toulimin, Stephen Edelston (1993). Les usages de l'argumentation. Paris: Armand Colin. [ Links ]
Werlich, Egon (1975). Tipologie der Texte. Heidelberg: Quelle et Meyer. [ Links ]
[Recebido em 18 de novembro de 2015 e aceite para publicação em 18 de abril de 2016]