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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.27 n.3 Lisboa jul. 2009

 

O processo-T.A.T. abordado na perspectiva bioniana (*)

Luís Delgado (**)

RESUMO

O autor propõe uma descrição do designado processo-T.A.T. através de um novo vertex psicanalítico, a teoria bioniana da identificação projectiva na relação continente-conteúdo, utilizando os conceitos de função psicanalítica da personalidade e função continente do psiquismo.

Termina ilustrando, através de excertos de protocolos-T.A.T., os processos de continência, contenção e incontinência dos vínculos L (Amor) e H (Ódio).

Palavras chave: Bion, T.A.T.

ABSTRACT

The author propose a description of the designated T.A.T.-process by a new psychoanalytic vertex, the bionian theory of the projective identification in the container-content relation, using the concepts of psychoanalytic function of personality and container function of psychic life.

The author finishes exemplifying with extracts of T.A.T.-stories the container processes, containment processes and lack of containment processes of L (Love) and H (Hate) links.

Key words: Bion, T.A.T.

 

Iremos descrever de forma sintética o processo de elaboração das histórias-T.A.T., ou seja, o conjunto dos mecanismos mentais mobilizados na “situação-T.A.T.”, essa situação particular em que o examinador pede ao sujeito para imaginar uma história a partir de cada imagem (material T.A.T.), isto é, forjar uma fantasia a partir da realidade.

Iniciamos com a descrição clássica deste processo psíquico:

Shentoub et al. (1990, pp. 29-30), baseada na metapsicologia freudiana, afirma que este processo é constituído pelos seguintes estádios:

– o conteúdo manifesto da imagem é percepcionado;

–esta percepção, aliada à instrução de imaginar, desencadeia uma regressão activando representações e afectos inconscientes e pré-conscientes ou “traços mnésicos carregados de um potencial afectivo” (Shentoub, 1973, p. 255) reactivados pelo conteúdo latente da imagem;

–este complexo representações/afectos, por definição inorganizado (como tudo o que pertence ao processo primário), vai confrontar-se com a barreira consciente do ego, assim como com os seus mecanismos de defesa inconscientes, para ser simbolizado através da linguagem. O ego irá ou não aceitar estas moções, em função quer dos seus objectivos conscientes (cumprir a instrução, que consiste em contar uma história), quer das suas possibilidades de defesa e de “alívio”;

– a história contada ou, mais precisamente, o conjunto do protocolo, revela-se o resultado das capacidades do ego, na medida em que ele está inserido numa situação contraditória e conflitual, constituída por imperativos de natureza consciente e imperativos de natureza inconsciente, assim como os seus modos respectivos de funcionamento – processos primários e secundários de pensamento (Shentoub, 1970/71, 1972, 1990).

Segundo a teoria bioniana da identificação projectiva na relação continente-conteúdo

O modelo teórico que subjaz ao processo T.A.T. é o de Bion (1962a/1991, 1963) e deriva do modelo de desenvolvimento infantil, reportando-se à relação precoce com o objecto materno e às mais primitivas interacções mãebébé.

O conteúdo latente das imagens-T.A.T. desencadeia pensamentos e afectos que irão pressionar a mente no sentido de serem pensados. O sujeito deve ser capaz de aceitar, conter e transformar estes conteúdos – produzidos pela identificação projectiva interna – de modo a que se tornem aceitáveis, toleráveis para a sua mente, isto é, deve ter a suficiente capacidade de contenção interna, de modo a esses pensamentos poderem ser simbolizados.

O contacto com o complexo de representações/afectos activado pelo conteúdo latente da imagem, assim como a necessidade de os pensar, implica a emergência de sofrimento psíquico.

Só com uma capacidade satisfatória de tolerância ao sofrimento/frustração psíquica o sujeito poderá elaborar uma história-T.A.T. A intolerância à frustração/sofrimento é concomitante com a mobilização de defesas poderosas visando anular, paralisar ou distorcer o pensamento e outras funções do ego.

Os processos de contenção-transformação-devolução interna estão assim não só na dependência da maior ou menor tolerância à frustração/sofrimento, da qualidade da função continente e da função alfa, mas também do tipo de vínculo emocional predominante (L, H ou K) que o sujeito tem consigo próprio (e com o examinador).

Perante a experiência de frustração, a realização negativa pode dar lugar à sua simbolização ou não, em função da capacidade de tolerância a essa frustração, e a experiência pode ser nomeada ou não através da palavra (narrativa).

Deste modo, numa situação de tolerância à frustração, pode dar-se uma realização negativa (“não-coisa”), uma transformação. Caso contrário dá-se uma não-transformação: a fuga, o evitamento, a defesa pelo perceptivo ou pelo projectivo “evacuativo”, etc., tudo o que possa afastar o sujeito da confrontação com a sua verdade.

Concluindo, o processo T.A.T. tem necessariamente de ter em conta a capacidade do sujeito de tolerar a dor mental e a frustração para que possa levar a cabo as modificações (transformações) necessárias às experiências de frustração, inevitavelmente impostas pelo contacto com aspectos dolorosos da realidade interna activadas pelas características do conteúdo latente das imagens T.A.T. (manejo da líbido e da agressividade tendo em conta a diferença de sexos e de gerações).

O sujeito irá assim testar o seu modo dominante de funcionamento psico-emocional: fugir/evitar ou modificar/transformar a frustração geradora de angústia, criando algo.

Processo T.A.T. e função psicanalítica da personalidade

Depois de explicitadas as características do processo de elaboração/criação das histórias –T.A.T. de acordo com a teoria freudiana clássica e de acordo com aspectos da teoria bioniana, com os seus elementos constitutivos, e reflectindo mais aprofundadamente, verificamos com surpresa que existe um conceito amplo que aglutina e sintetiza todos estes elementos e processo dinâmico, que é a função psicanalítica da personalidade (Bion, 1962b/1979).

Vejamos então:

–A Função Psicanalítica da Personalidade designa uma atitude mental profunda face à verdade e ao conhecimento de si mesmo – trata-se do vínculo K (Bion, 1962b/1979) – isto é, a pulsão epistemofílica (Klein, 1930/1996), os movimentos de auto-conhecimento, a “pulsão” para conhecer as suas próprias verdades, propiciada pela confrontação com as imagens T.A.T., as quais representam “situações humanas clássicas ” (Murray, 1938) ou “situações relacionadas com os conflitos universais” (Shentoub et al., 1990, p. 27).

– Obviamente que o pensamento é solicitado neste processo, constituindo aquele o material (pensamentos activados pelo conteúdo latente da imagem) que vai pressionar o aparelho para pensar de modo a ser pensado. O pensamento sendo, como vimos atrás, o resultado de uma realização negativa (Bion, 1962a/1991), isto é, da confrontação das pré-concepções do sujeito com as várias temáticas das imagens T.A.T.

– Neste processo está também implícita a capacidade suficiente para enfrentar, tolerar, transformar e nomear a dor e o sofrimento inerentes à confrontação com os pensamentos e afectos activados pela confrontação com o material T.A.T., assim como a capacidade negativa (Bion, 1970), isto é, a tolerância à dúvida, ao mistério, à incerteza face à ambiguidade do material, ao que se passa no interior da mente do próprio sujeito, e ainda aos desenvolvimentos a dar às narrativas.

–A função continente (Bion, 1963) está evidentemente presente na medida em que existe um aparelho psíquico com a capacidade de acolher pensamentos e afectos inorganizados, caóticos e destabilizadores e seguidamente transformá-los em representações simbólicas que posteriormente possam dar lugar a uma linguagem estável e a narrativas organizadas e coerentes. A função continente implica ou acompanha-se de uma tomada de consciência do self, à medida que o sujeito se vai confrontando e elaborando as várias temáticas sugeridas pelas imagens T.A.T.

–A relação continente/conteúdo (Bion, 1963) está incluída na função continente, com a possibilidade da mente do sujeito tolerar os movimentos regredientes e progredientes, as oscilações entre as posições esquizo-paranóide e depressiva (entre movimentos de dispersão e de integração), na medida em que, na elaboração da história, há necessariamente movimentos oscilatórios entre a necessidade de controlo e o deixar ir, entre os movimentos progredientes e regredientes, entre os processos primário e secundário do pensamento, entre o pensamento divergente e convergente, em suma, entre a razão e a fantasia. É esta relação continente/conteúdo que permite a “relação de intimidade” (Meltzer & Harris 1973/1980) com o próprio sujeito, na medida em que se funda num laço emocional intenso, rico e profundo.

–A sublimação/simbolização deriva dos deslocamentos intervindo no processo pulsional, simultâneamente ao nível do alvo e do objecto da pulsão (Freud, 1910b/1984, 1927a/1981), ou das transformações das representações de coisa em representação de palavra (Shentoub & Debray, 1970/1971), ou da transformação dos elementos beta em elementos alfa (Bion, 1962a/1991), propiciando elementos oníricos, de rêverie e narrativas, em que há uma depuração dos elementos físicos, sensíveis, pulsionais em elementos mais abstractos, simbólicos e coadunáveis com o pensamento secundário.

–A reparação (M. Klein, 1935/1996) também faz parte integrante e dinâmica da Função Psicanalítica da Personalidade e da elaboração/ /criação da história T.A.T. na medida em que o sujeito, sendo capaz de tolerar esta situação destabilizadora (situação T.A.T.), “entrega-se a um trabalho psíquico que visa restaurar a completude e a coerência do objecto (interno e externo)” (Marques, 1996, p. 42) – ou, utilizando uma expressão nossa, o desejo reparatório em relação a si próprio, à sua integridade (reparação do self) e aos seus objectos internos – procurando e criando novos objectos, o que reenvia para as noções de reparação simbólica (Houzel, 1991).

Capacidades continentes dos vínculos L e H e qualidade da história

A partir deste momento pretendemos avaliar as repercussões no processo-T.A.T. da qualidade da função continente em relação aos vínculos emocionais amor (L) e ódio (H) que fazem parte intrínseca da ligação entre dois sujeitos, ou entre duas partes do mesmo sujeito.

Estes dois vínculos fundamentais na relação de objecto podem ser potencialmente desorganizadores do psiquismo e da qualidade dos seus processos de pensamento, se excessivos, representando um modelo de falhanço do trabalho de ligação, integração e simbolização, isto é, da função continente para o psiquismo.

Quando existe uma satisfatória função psicanalítica da personalidade ou capacidades continentes do psiquismo verifica-se uma tendência geral clara dos sujeitos submetidos ao T.A.T. para manifestarem essa capacidade continente dos vínculos emocionais L e H.

Por outro lado, existe uma correlação positiva entre a relação continente/conteúdo positiva, a capacidade do sujeito se conhecer a si próprio (K+) e a capacidade continente dos vínculos emocionais L e H, o que significa que quanto mais sólida for a capacidade continente do psiquismo, mais possibilidade apresentará o sujeito para tolerar certos conteúdos psíquicos e de os utilizar no processo-T.A.T.

Continência dos vínculos L e H

Iremos ilustrar esta tendência geral positiva para a continência dos vínculos emocionais através de excertos de um protocolo-T.A.T., parecendo-nos útil, para melhor compreensão, no protocolo, da presença das capacidades continentes (acolhimento, tolerância e transformação dos pensamentos e emoções vinculares) no processo-T.A.T., a exposição de algumas informações anamnésticas respeitantes ao sujeito em causa.

Assim, Filipe tem 30 anos e é actor profissional de teatro, actualmente consagrado, fazendo parte do corpo de actores residentes de uma grande companhia de teatro. Nasceu em África, sendo o décimo segundo de uma fratria de treze irmãos. Vivia com os pais e mais alguns familiares. Aos doze anos conhece aquele “que me salvou da delinquência”, e a quem chama carinhosamente “pai emprestado”. Aos quinze anos sofre uma depressão clínica de certa gravidade, com ideações suicidas. Aos dezasseis anos faz as malas e vem para o continente sem perspectivas de vida. Passados uns meses conhece, através de um amigo, um encenador de uma companhia de teatro que lhe oferece trabalho e um quarto para dormir nas instalações da companhia. Há 14 anos que aquela “se tornou a minha família”. Terminou recentemente uma relação amorosa de alguns anos, isto porque “a minha namorada descobriu que eu lhe tinha sido infiel”.

Cartão 2

– 10´´ – “Ela sente necessidade de... Ela é uma pessoa que sente necessidade de partilhar o conhecimento. Decidiu mudar alguma coisa na comunidade dela e acredita que tudo passa pela literatura, pela palavra. Todas as manhãs, ela não se cansa de percorrer vários quilómetros para tentar dizer às pessoas a importância dos livros. E porque também adora o campo, não é? Mas ao mesmo tempo há uma insatisfação nela. Talvez se queira mudar para a cidade. Então talvez não. Acredita que é uma coisa passageira. Aquilo que ela procura na cidade há-de passar pela aldeia dela, onde ela acha que está tudo mais equilibrado, não é? E tem uma boa relação com a mãe. Apesar de não concordar muito que a irmã tenha engravidado nova. Um dia ela acredita que vai escrever um livro sobre a comunidade dela, sobre a aldeia dela. Talvez nunca mais pense em ir para a cidade. Acho que é tudo... Os olhos dela são muito espertos” – 4´5´´.

Cartão 4

– 5´´ – “Eles eram muito felizes quando se conheceram. Ela gostava muito dele e ele dela. Partilhavam uma vida em comum. Até que ele descobriu que aquilo tudo era plástico. Mas não da parte dela, da parte dele. E, confuso, não sabia se lhe contava se não. Porque no fundo acreditava que gostava dela. Então evitava o contacto com os olhos dela, a protecção que ela lhe dava. Uma protecção quase carnal. Esta dualidade frustrava-o... fazia-o perder-se com os amigos. Mas ela mesmo assim não desistiu dele. Continuava a procurá-lo e a protegê-lo e isso magoava-o. Porque ele estava na dúvida se era o verdadeiro amor que ela sentia por ele ou se era de plástico. Mas a única solução para descobrir era voltá-la a pedir em casamento. Para ter a certeza que os olhos dele e o coração estremecem quando a têm por perto” – 3´35´´.

Cartão 5

– 10´´ – “Alice, chama-se, ou D. Alice. D. Alice é a santa mãe protectora, digamos assim. Gosta de ter pessoas em casa e cuidar de tudo. Até que um dia ficou embasbacada ao encontrar flores num jarro por cima da mesa, onde ela tinha acabado de recolher as flores antigas. Ela tinha a certeza que não estava ninguém em casa. Perguntava-se a si mesma como é que aquelas flores tinham aparecido no jarro, se ela tinha removido as antigas. Porém, esquecera-se que o Jorge, o seu filho mais velho, tinha o mau hábito de surpreendê-la com pequenos truques, como bonbons ou chocolates debaixo do travesseiro, flores no frigorífico, ou ainda pudim flan caseiro ‘feito para a mamâ’, como dizia. Quando ela pensou no filho sorriu e compreendeu a relutância que tem em aceitar presentes ou surpresas” – 4´.

Cartão 6BM

– 10´´ – “Veio despedir-se da mãe. Talvez porque vai viver para outras regiões, ou talvez porque se vai casar. Na verdade ele tem tantas dúvidas que não sabe porque se vai despedir da mãe que, muda, pensa: ‘porque é que tem que ser assim? Porquê criar uma coisa? Investimos tanto e um dia é como se quebrasse porque se vai ausentar de nós’. Ele tenta convencê-la. Tenta explicar-lhe que a dada altura é importante, é preciso, mesmo porque algum dia terá de fazer a sua vida. A mãe recusa-se a compreender e coloca as desvantagens da sua velhice para convencer o filho a ficar. Diz que daí em diante já não iria perguntar a que horas chegou, que já não teria ninguém para esperar para jantar. Dizia que uma parte dela morria naquele instante. Ele, frio, responde que algum dia temos que morrer e vai-se embora. Curiosamente a mãe adoece. Talvez venha a morrer. Acaba assim” – 4´10´´.

Cartão 7BM

– 10´´ – “‘Quando for velho quero ser como tu’, dizia o velho rapaz... o jovem rapaz. Porque tinha uma certa admiração por pessoas mais velhas. Por isso não perdia o momento de estar com elas, de ouvir as suas histórias, pois acreditava que todos aqueles percursos que eles tinham feito, que tudo aquilo que tinham tentado fazer e construir não tinha sido em vão, que não tinham acabado. Que ele sim, era o testemunho de toda aquela procura e que por isso seria ele a continuar a estrada que os outros tinham feito. Para também ser como eles e construir histórias e partilhar experiências até encontrar a grande essência ou seja, o amor. Porque queria que todos eles nessa viagem que tinham feito... só existia uma lacuna, a ausência do mesmo, do amor. Por isso levavam as testas engelhadas, os cachimbos apagados e não lavavam as mãos antes de cada refeição. Ele acreditava que ia ser diferente, apesar de gostar deles, dos velhos” – 3´30´´.

Cartão 13MF

– 5´´ – “‘Acabei de cometer um grande erro’, diz o João. ‘Ela gostava de mim, trocou tudo, a sua vida, para estar comigo e eu, num acto de estupidez e loucura, encaminhei-a ao demónio. Matei-a sem razão. Não mais quero vê-la como pessoa. Não mais voltarei a pronunciar a palavra Eu. Fugirei de todos os que se aproximarem de mim e temerei todos os que disserem que me amam, todos aqueles que me falarem de amor. Talvez venha a ser poeta. Talvez redija num só verso todas as memórias daquele que foi o meu amor. Talvez acredite que outra vida venha a brotar do sonho do meu querer. Ela era inocente. Eu é que sou culpado em não compreender a dualidade do amor. Não fugirei. Ficarei aqui à espera das consequências por ter profanado a minha fidelidade no amor. Vou-me suicidar’ (gesto)” – 3´40´´.

Estas histórias revelam-se, como o conjunto do protocolo de Filipe, satisfatoriamente dominadas, integradas e coerentes, a flexibilidade do seu registo defensivo permitindo-lhe a evocação dos conflitos muito perto das solicitações latentes dos cartões, sem que o sujeito nunca se sinta invadido.

A relação triangular reactiva-lhe o manejo da líbido e da agressividade, num registo a princípio muito sublimado e seguidamente mais pulsional (cartão 2).

As relações no seio do casal (cartão 4) são erotizadas mas tumultuosas, marcadas pelo medo da não correspondência, a duplicidade e a possibilidade da desilusão.

A relação com a imagem materna é extremamente ambivalente: quer edipiana e idealizada (cartão5), quer desidealizada para se poder libertar (cartão 6BM).

Se o acesso à ambivalência é possível, já o reconhecimento da perda de objecto é mais problemática, apesar de a integrar numa história lábil, muito bem elaborada (cartão 6BM).

Na relação com a imagem paterna (cartão 7BM) a ambivalência mantém-se intensa, apesar do primeiro movimento ser de excessiva idealização positiva. A dificuldade em assumir os investimentos agressivos parece contribuir para travar a possibilidade, no sujeito, de realizar um movimento identificatório sem o custo de uma excessiva culpabilidade.

É esta culpabilidade e ambivalência extrema que se manifesta clara e intensamente na relação amorosa e sexual (cartão 13MF), dificilmente contida, com a vertente narcísica destrutiva consequente à agressividade a aparecer (“vou-me suicidar”).

Contudo, a mobilização de defesas relativamente flexíveis correspondendo a uma continência activa, permite a Filipe elaborar com eficácia as problemáticas com as quais é confrontado, parecendo até que lhe provocam uma efervescência dramática criativa. O seu funcionamento defensivo, essencialmente lábil, permite a criatividade. Apesar da intensidade da excitação, que traduz claramente a mobilização de todo o arsenal defensivo, a qual é reveladora da fragilidade do envelope e do trabalho de protecção, parece-nos que esta fragilidade, não colmatada por um sistema defensivo rígido, permite o trabalho do pensamento no domínio da criatividade.

Neste contexto, e tendo também em conta as suas histórias aos cartões 3BM (“perdeu as pessoas de quem mais gostava”), 7BM (“só existia uma lacuna, a ausência de amor” e 13B (“mas o que ele verdadeiramente espera é que passe alguém que lhe dê alguma coisa para comer (...) o puto nunca janta”), solicitando a perda e/ou o abandono do objecto, o protocolo do Filipe parece-nos exemplar de um tipo de processo criador que D. Anzieu (1992) designou “criações-consolidações”, no qual o criador faz das poucas estimulações recebidas pela figura maternal, em criança, a matéria única de uma obra cujo objectivo é fazê-las durar eternamente; no caso do Filipe, a actividade criadora pode ser concebida como uma tentativa para escapar à depressão e/ou à angústia de aniquilamento que ele sente activa dentro de si próprio.

Contenção dos vínculos L e H

A presença pesada e contínua da defesa pela contenção assinala a fragilidade da função continente para o psiquismo, com repercussões negativas no processo-T.A.T. ou seja, ao nível dos processos de pensamento de qualidade conducentes à criação de uma história de qualidade.

Uma ilustração clara desta falha continente através da defesa pela contenção é-nos dada pelo protocolo de Guilherme, também ele actor, completamente dominado pelos procedimentos CI e CF, assinalando a inibição (contenção) e pela ausência de procedimentos A1,B1, isto é, procedimentos concorrendo para a encenação dos conflitos, assim como para a expressão dos vínculos L e H:

Cartão 2

– 5´´ – “Desenho do antigo regime. Rapaz atlético, a cultura, o físico. Rapariga bem vestida. Educação”.

Cartão 4

– 5´´ – “(risos) O gajo está numa casa de meninas porque há uma lá atrás”.

Cartão 5

– 10´´ – “Ouviu um barulho durante a noite e foi ver o que se passava”.

Cartão 6BM

– 5” – “Um gajo novo e a mulher do Castelo Branco. Não...tô a brincar. Alguém que foi dar uma notícia desagradável e está com receio de dar a notícia, pois ele veio lá de fora... não tem roupa de quem estava em casa”.

Cartão 7BM

– 10´´ – “Um conselho do mais velho”.

Cartão 13MF

– 5´´ – “Matou-a... ou acabou de morrer, porque está tapadinha e tem um braço pendurado. E ele está com pena”.

Outro exemplo ilustrativo da defesa contínua pela contenção é o protocolo de Ana, em que é flagrante o esforço contínuo que faz para manter o controlo da agressividade na relação de objecto, pela utilização massiva de procedimentos rígidos, claramente obsessivos.

Ilustramos com a história ao Cartão 6BM:

– 5´´ – “A mesma época. Reproduções ou desenhos continuam a ser da mesma época. Aqui vejo nitidamente que é uma pessoa de idade, a mulher, não propriamente uma pessoa velhinha. Era normal para uma pessoa daquela época que se vestisse assim. Depois há um rapaz ou um homem, ele é um homem mas há uma grande diferença de idades. Não sei se ele é filho ou neto, ele olha para trás para o seu mundo. O seu mundo não tem nada a ver com o mundo do homem. Ele parece aborrecido, contrariado e o que eu acho é que há aqui uma grande incompreensão de parte a parte... Digo de parte a parte por ele ser bastante mais novo e poder não se aperceber das razões da pessoa mais velha, mas o que é facto é que a pessoa mais velha também não se apercebe das razões dele, seja lá o que está em causa. Tenta ser respeitoso, está com o seu chapelinho na mão, tem uma atitude de respeito mas ela está mesmo de costas voltadas... Pronto, aparece uma janela mas ninguém está a olhar à janela. Para mim é um conflito de gerações. Ele está inseguro, está angustiado, digamos na linguagem que se usa agora ‘raios partam não sei o que fazer à velha’, não sei se deva pôr isso. E ela ao mesmo tempo ‘como é que é possível?! como é que é possível?!’. Aliás ela até tem um lencinho na mão e ele o chapéu, ela faz a ceninha do choro. Naquela altura era costume usar o lencinho, servia para tudo. Não tenho dúvidas que era uma pessoa velha, no outro ainda tinha porque parecia o peito de uma pessoa jovem. Aqui não ponho nunca a ideia que seja um marido. Não é um marido” – 10´15´´.

Incontinência dos vínculos L e H

Mas também é frequente encontrar na clínica momentos revelando a ausência da acção da função continente, momentos de uma total incontinência de um dos vínculos emocionais, impedindo qualquer processo mental criativo.

Ilustramos estas situações de incontinência com duas histórias de dois protocolos-T.A.T.:

Bernardo – Cartão 10

– 5´´ –“Isto são pequenos ramos velhos todo torcidos, ramos mortos, poemas de Verharem que falam dos velhinhos, duas árvores secas” – 35´´.

Manuel – Cartão 10

– 10´´ –“Nada. Volta a página. Estou a ver um grande nariz no meio da página (ri) assim como uma mão (sorri)”.

Os sujeitos parecem recusar a expressão libidinal no seio do casal, sugerida pelo conteúdo latente da imagem.

Em relação ao primeiro, ficamos com a ideia de que a expressão libidinal, apesar de heterossexual, é proibida. Este cartão evoca o carinho e ele fala de ”ramos velhos todos torcidos, ramos mortos”. Trata-se, de facto, de uma percepção libidinal muito mórbida, mortífera.

No segundo caso trata-se de um autêntico escárnio, um ataque mortífero em relação à expressão libidinal.

Em ambos os casos, a incontinência da agressividade destruidora, do ódio, impede qualquer dinâmica criativa.

No entanto, o que se observa normalmente em sujeitos dotados de uma satisfatória função psicanalítica da personalidade, facilitadora do processo-T.A.T. é revelarem a capacidade continente em relação aos vínculos emocionais, apesar de se observarem pontualmente momentos de incontinência ou de contenção nos processos psíquicos, não afectando significativamente, todavia, os processos de simbolização e criatividade.

Iremos ilustrar esta dinâmica, através de dois excertos de protocolos-T.A.T. de dois sujeitos:

Horácio – Cartão 6BM

–“Posso pedir-lhe uma coisa? Quem é que inventou estes testes e decidiu que as pessoas estão bem ou mal a partir das respostas?... (digressões durante as quais, aparentemente, não olha para a imagem) 1´30´´ – Duas ou três explicações: a primeira, a mãe ter-lhe-ia dito: ‘então tu vais casar com aquela desavergonhada!’ Bem... o que me está a chatear é o chapéu, porque se fosse mesmo filho dela, não estou a ver porque é que teria o chapéu. A mãe e o filho logo depois do falecimento do pai, o falecimento ou o despedimento. A terceira, o filho vem anunciar à mãe que se ia embora definitivamente, que isso vai desgostar os dois, mas que é uma decisão irrevogável” – 3´.

Cartão 7BM

–“(Digressão muito longa sobre o futebol) – 30´´

Digamos que há um velho e um jovem. O velho acaba de demonstrar uma evidência ao outro, com ar de quem diz: ‘Estás a topar que estou seguro’. O outro olha...(digressão imediata sobre a América).

Estas histórias mostram à evidência tratar-se de um sujeito com uma problemática paterna e materna não integrada e não resolvida.

No cartão 6BM, o cartão da confrontação materna, começa por pôr-lhe o problema da sua própria saúde mental. A longa digressão sobre os testes e os psicólogos, num modo agressivo e portanto defensivo, vai permitir-lhe elaborar três histórias.

A primeira é altamente conflitual e ele é obrigado a eliminá-la porque o filho não suporta a agressividade da mãe, minimiza o seu discurso e anula a filiação: “se fosse mesmo filho dela”.

O segundo tema é o falecimento do pai. Este tema já é mais banal e o sujeito é bastante mais restritivo e controlado, na medida em que nenhum afecto é expresso.

E, por fim, um terceiro tema socializado, com defesas flexíveis, variadas e não aparentes, revelando a acção de uma função continente do psiquismo e do vínculo H.

Mas ele demorou imenso tempo para chegar aqui. A elaboração começa pela angústia; uma angústia muito íntima sobre a sua saúde mental, e termina com uma boa história, mas só depois de numerosas tentativas e falhanços. Como se ele soubesse que produzir, criar uma história, significa resolver a sua angústia.

No cartão 7BM a problemática paterna apresenta-se semelhante à problemática materna que acabámos de explicitar, mas aqui ele não consegue uma saída positiva através de uma boa história.

Vejamos também o caso de António – Cartão 5:

– 10´´ – “É muito 1900. Um bocado miserabilista. Um pouco casa de porteira... A mulher abre a porta e grita para o marido que deve estar numa cozinha qualquer: ‘Já são mais que horas para os miúdos se deitarem!’. Há uma coisa que me choca desde o início: não há nenhuma agradável. O que me choca também, é esta mulher, neste interior, não me interesso mesmo nada em relação a ela, e lamento-a um pouco por viver num mundo que não me agrada. Fica-se com a impressão de que tudo o que ela me pudesse dizer não teria para mim qualquer interesse”.

Cartão 6BM

– 10´´ – “É o mensageiro sombrio que vem anunciar uma má notícia a esta pobre mulher. Talvez a morte de um próximo. Não sei. Mas devido à sua idade, ela já passou por tanta coisa que adquiriu uma espécie de fleuma. Ela olha para um... imagino um jardim, pela janela e consola-se pensando em Deus, na natureza, misturando tudo um pouco”.

Cartão 7BM

– 10´´ – “O pai aconselha o filho. O filho que já é mais que adulto. Não sei o que poderei dizer além disto... ‘Eu também passei por isso!’. Por onde é que eu não sei, ele está a destilar-lhe a filosofia daqueles que viveram mais do que os outros. Tem um bigode que faz lembrar... não sei quem, é simpático. Estou a falar do velho... menos do filho”.

A história ao cartão 5 é impressionante. Existe o tema banal, mas António projecta uma violência muito intensa, como se existisse um ódio e um desprezo entre ele e a figura materna: “tudo o que ela me pudesse dizer não teria para mim qualquer interesse”. Encontramo-nos plenamente no registo da rejeição da mãe, isto é, no registo da incontinência do vínculo H em relação à imagem materna. Esta mãe é miserável e triste, desinteressante, e se é lamentada no plano consciente é odiada no plano inconsciente.

A história ao cartão 6BM mostra-nos novamente, apesar de muito mais integrado (presença da função continente dos vínculos emocionais), o lamento consciente e o ódio inconsciente em relação à figura materna: “adquiriu o hábito do desgosto” e “ela mistura tudo um pouco”. No entanto, e devido a uma maior capacidade continente do vínculo H, consideramos uma história conseguida.

No cartão 7BM revela-se a projecção da mesma agressividade dificilmente contida em relação à figura paterna. Apesar de ser “simpático”, o seu discurso é chato e supérfluo.

REFERÊNCIAS

Anzieu, D. (1992). Becket et la psychanalyse. Paris: Edit. Mentha.

Bion, W. (1962a/1991). Uma teoria do pensar. Melanie

Klein hoje (vol. 1, pp. 185- 193). Rio de Janeiro: Imago Edit.

Bion, W. (1962b/1979). Aux sources de l’expérience. Paris: Presses Universitaires de France.

Bion, W. (1963). The elements of psycho-analysis. London: Heineman.

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(*) Excerto retirado da Dissertação de Doutoramento em Psicologia Aplicada (Psicologia Clínica) pela U.N.L/I.S.P.A., intitulada A dinâmica criativa através do Thematic Apperception Test – Sublimação, reparação e função continente no processo criativo, 2006 (pp. 250-254, 294-297).

(**) Psicanalista (S.P.P. e I.P.A.), Professor Auxiliar do Instituto Superior de Psicologia Aplicada.

 

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