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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica v.27 n.4 Lisboa out. 2009
Aprender ortografia: O caso das regras contextuais
Cristina Silva (*)
RESUMO
Este artigo procura avaliar o efeito de diversos programas de intervenção que incidiram sobre a apreensão de várias regras ortográficas contextuais. No Estudo 1 participaram 50 crianças com dificuldades de aprendizagem do 2º ano de escolaridade que foram divididas em 5 grupos. Para avaliar-se a evolução pré e pós-teste efectuou-se um ditado nos dois momentos avaliativos que incluía 20 palavras cuja grafia integrava a regra contextual que foi objecto de intervenção. A intervenção no Grupo Experimental 1 incluía uma sequência completa de tarefas de aprendizagem, nomeadamente Descobrir a Regra (DR); Completar Lacunas em palavras (CL); Produção Textual (PT) com revisão de palavras alvo relacionadas com a regra contextual que foi objecto de intervenção. Os restantes grupos experimentais efectuaram apenas sequências parciais, nomeadamente: Grupo Experimental 2 – DR+CL; Grupo Experimental 3 – DR+PT; Grupo Experimental 4 – CL+PT. O quinto grupo era o Grupo de Controlo.
Os resultados indicaram que os Grupos Experimentais 1 e 2 evoluíram significativamente mais do que o Grupo Experimental 4 e o Grupo de Controlo. Não se registaram diferenças significativas entre os Grupos Experimentais 3 e 4 e o Grupo de Controlo.
No Estudo 2 foi utilizado o mesmo paradigma de intervenção com duas regras contextuais diferentes das do anterior estudo. O procedimento implementado com os Grupos Experimentais 1, 2 e 3 foi análogo ao dos correspondentes grupos do estudo anterior, mas o Grupo Experimental 4 apenas efectuou a descoberta da regra. Todos os grupos experimentais registaram uma evolução significativa entre o pré o pós-teste, não se verificando diferenças entre os grupos.
Palavras chave: Dificuldades de aprendizagem, Ortografia, Métodos pedagógicos.
ABSTRACT
This article addresses the issue of evaluating the effects of several intervention programs for teaching orthographic contextual rules. On study 1 the participants were 50 poor spellers of 2nd grade that were divided on 5 groups. It was dictated a list of 20 words with a contextual rule at pre-test and post-test. Exp. Group 1 performed a complete sequence of tasks (DR – discovering the contextual rule through the analyse of a set of words and writing it down + CW – completing words from a text that include the rule and revising them consulting the rule + WT – writing down a text based on a set images where must be used words related to the rule). Other experimental groups performed partial sequences: Exp. Group 2 – DR+CW; Exp. Group3 – DR+WT; Exp. Group 4 – CW+WT. Fifth group was a control group. Our results show that experimental group 1, 2 evolved significantly more than experimental group 4 and control group on orthographic performance at post-test. There were no differences between experimental group 3, 4 and control group. On study 2 we reply this study with other 2 contextual rules, repeating the procedure with first 3 experimental groups and add another experimental group that only discover the rule. All groups evolve significantly and there were no differences between the groups.
Key words: Learning difficulties, Orthography, Pedagogical methods.
INTRODUÇÃO
Consciência explícita das regras ortográficas contextuais: A sua importância no desempenho ortográfico.
A correcção e acuidade da ortografia depende não apenas do conhecimento das relações grafo-fonéticas, mas também da compreensão das restrições contextuais (por exemplo: “m apenas se escreve antes de b e p”) e morfo-sintácticas, já que essas restrições têm implicações no valor fonético dos grafemas. Morais e Tebersosky (1994) demonstraram que, para o caso da língua portuguesa, as restrições contextuais e morfo-sintácticas diferem no grau de dificuldade, sendo mais fácil para as crianças explicitar as primeiras do que as segundas. Consequentemente as crianças apresentam mais erros ortográficos em palavras associadas ao segundo tipo de restrição.
A tomada de consciência e a capacidade de explicitação das restrições ortográficas parece ser um factor crítico para o desenvolvimento de competências ortográficas, nomeadamente em relação à escrita de palavras com uma ortografia inconsistente ou irregular (Morais & Tebersosky, 1994). Este ponto de vista parece ser consistente com o modelo teórico de Karmiloff-Smith (1992), no qual a autora defende que o desenvolvimento de qualquer conhecimento implica uma “redescrição” das representações. Os níveis inferiores de “redescrição” seriam meras cópias das representações do conhecimento. Os níveis superiores não reflectiriam uma mera duplicação dos níveis inferiores, antes implicariam uma crescente explicitação e acessibilidade de informações mais detalhadas. O modelo defende que “Aqueles aspectos de desenvolvimento abertos a uma ‘redescrição’ das representações estão submetidos parcialmente, num primeiro momento, a restrições sequenciais. Posteriormente o conhecimento passa a ser representado sob uma forma flexível o que permite relações entre as representações” (op. cit., p. 193).
A aplicação deste modelo à aprendizagem da ortografia sugere a necessidade de se desenvolverem actividades metalinguísticas nas situações de ensino de forma a que as crianças tomem consciência das restrições contextuais e morfo-sintácicas associadas a uma correcta ortografia das palavras. Este ponto de vista traduz a ideia de que no decurso da aprendizagem as crianças não deveriam limitar-se a reproduzir regras ortográficas, antes deveriam compreender o modo como as regras funcionam através da análise da sua função no código, tornando aos poucos as restrições impostas pelo código mais explícitas (Bousquet, Cogis, Ducard, Massonet, & Jaffré, 1999). Um estudo de Morais e Tebersosky (1994) realizado no quadro da língua portuguesa confirma esta perspectiva. Neste estudo era pedido a crianças do 3º ano de escolaridade que cometessem deliberadamente erros na ortografia de um certo número de palavras. Os autores verificarem que as crianças que mais transgrediam e que eram capazes de explicitar o modo como haviam quebrado a regra, eram aquelas que apresentaram um melhor desempenho ortográfico numa tarefa de ditado.
Na mesma linha, neste caso para a língua inglesa, Treiman e Kessler (2002) demonstraram a importância da sensibilidade ao contexto fonológico para uma ortografia correcta, encontrando uma relação entre medidas de sensibilidade ao contexto e o desempenho ortográfico. Esta conclusão estendeu-se a crianças e a adultos. Por outro lado, Treiman, Kessler, e Bick (2003) confirmaram que as crianças que apresentam melhor desempenho ortográfico são mais sensíveis às restrições contextuais do que as crianças com pior desempenho.
A ideia de que a aquisição das regras ortográficas contextuais pode implicar um processo de reorganização das representações ortográficas onde especificações explícitas são acrescentadas fundamenta, do ponto de vista do ensino, a necessidade de actividades de instrução que incidam sobre a tomada de consciência das restrições contextuais, as quais podem ser uma importante ajuda para as crianças com dificuldades de aprendizagem Juul (2005). Como referem Bousquet et al. (1999, p. 34) “Devem ser desenvolvidas actividades metalinguísticas que melhorem a explicitação das regras e que conduzam à tomada de consciência das formas ortográficas das palavras”.
Seguindo este ponto de vista Silva (2004) submeteu um grupo de crianças com dificuldades de aprendizagem a um programa de intervenção que incluía a descoberta de regras contextuais, exercícios de consolidação através de completamento de lacunas e produção textual com revisão de palavras-alvo relacionadas com as regras trabalhadas. As crianças deste grupo melhoraram significativamente o seu desempenho ortográfico quando comparadas a um outro grupo a quem foi ensinada a regra, tendo realizado posteriormente exercícios de consolidação através de cópias. Por outro lado, o desempenho ortográfico deste último grupo de crianças não diferiu significativamente do desempenho das crianças de um grupo de controlo que apenas efectuaram desenhos.
Os resultados foram particularmente surpreendentes na medida em que as crianças do primeiro grupo experimental, trabalhando apenas duas sessões por cada uma das regras ortográficas contextuais sobre as quais o estudo incidiu, evoluíram para um desempenho quase correcto, o que foi confirmado numa prova ditado efectuada um mês depois da intervenção experimental ter terminado. O programa de treino aplicado às crianças do primeiro grupo experimental envolvia, contudo, tarefas de natureza diferente: descoberta e explicitação da regra ortográfica com registo escrito da mesma por parte das crianças, exercícios de consolidação com preenchimento de lacunas e produção de um texto a partir de imagens, implicando a mobilização de palavras relacionadas com a regra ortográfica trabalhada. Tendo em conta a diversidade das tarefas pareceu-nos importante explorar em mais detalhe o impacto relativo de cada uma das actividades para a construção do conhecimento ortográfico e a sua influência na subsequente evolução do desempenho. Por outro lado, e tendo em conta o trabalho de Morais e Teberosky (1994) anteriormente referido, considerámos ainda importante analisar o efeito específico da tarefa “descobrir a regra” assumindo a hipótese de que essa actividade seria a mais relevante para a tomada de consciência das regras e consequentemente para a evolução do desempenho ortográfico.
ESTUDO 1
Este estudo tem como objectivo analisar o impacto das várias actividades de aprendizagem (descoberta e explicitação da regra ortográfica; exercícios de consolidação com preenchimento de lacunas e produção textual) na evolução do desempenho ortográfico em palavras relacionadas com uma regra ortográfica contextual.
DESENHO EXPERIMENTAL
Trata-se de um estudo experimental onde as crianças foram submetidas a um pré e a um pós-teste com o objectivo de avaliar o desempenho ortográfico em relação a uma regra ortográfica específica (“m antes de b e p”). Foi escolhida esta regra por se tratar de uma regra contextual universal, sem excepções na língua portuguesa.
Foram criados 4 grupos experimentais e 1 de controlo, homogéneos em relação ao desempenho ortográfico e à inteligência. O G. Experimental 1 foi objecto de uma intervenção que incluía a descoberta e explicitação da regra ortográfica; exercícios de consolidação com preenchimento de lacunas e produção de um texto com base numa sequência de imagens. O
G. Experimental 2 foi submetido às primeiras duas tarefas enunciadas e o G. Experimental 3 foi submetido à primeira e à última tarefa enunciada. Ao G. Experimental 4 foi apresentada a regra verbalmente e depois realizou as duas últimas tarefas. O G. de Controlo realizou desenhos. Os programas de intervenção experimental foram iniciados uma semana após o pré-teste e o pós-teste foi realizado três semanas após fim da intervenção experimental. Nestes dois momentos avaliativos foi utilizado o mesmo instrumento.
Participantes
Neste estudo participaram 50 crianças do 2º ano de escolaridade. A média de idades das crianças era de 7 anos e 6 meses com um desvio padrão de 3 meses.
As crianças já haviam recebido instrução formal sobre as regras ortográficas contextuais Todas as crianças seleccionadas apresentavam pelo menos 50% de erros numa lista de palavras relacionadas com a regra a ser trabalhada (“m antes de b e p”) e tinham sido classificadas pelos respectivos professores como crianças com dificuldades na ortografia. Para proceder a esta selecção foram testadas 177 crianças de forma a identificar apenas crianças com fraco desempenho ortográfico.
As crianças seleccionadas foram divididas em cinco grupos emparelhados pelo nível da inteligência e do desempenho ortográfica. Os resultados da ANOVA confirmam a equivalência dos grupos experimentais e de controlo quanto ao nível intelectual [F(4,45)=.0951, p>=.05] e desempenho ortográfico [F(4,45)=.0726, p>.05].
As crianças frequentavam duas escolas diferentes de Lisboa, mas antes da respectiva selecção foram entrevistados os professores no sentido de assegurar uma relativa uniformidade dos métodos de ensino na ortografia.
Procedimentos
Avaliação do desempenho ortográfico
Para a avaliação do desempenho ortográfico pediu-se às crianças para escreverem uma lista de 20 palavras que incluíam a regra “m antes de p e b”. Só foram contabilizados os erros que incidiam especificamente nesta regra. A mesma lista de palavras foi utilizada nos momentos do pré e pós-teste. Nenhuma palavra desta listagem foi apresentada durante o treino.
Avaliação do nível intelectual
O nível intelectual foi avaliado através das Matrizes Progressivas de Raven (Raven, Raven, & Court, 1998), seguindo-se os procedimentos estandardizados.
Programas de intervenção
Tarefas e procedimentos
Tarefa 1 – Descoberta da regra (DR): Nesta tarefa as crianças analisavam uma listagem de palavras que implicavam a regra ortográfica “m antes de p e b”, sendo discutida a ortografia das palavras. O experimentador colocava várias questões sobre a relação entre a posição das letras e o respectivo valor fonético com o objectivo de induzir a descoberta da restrição ortográfica. A tarefa terminava quando a criança verbalizava a regra e a escrevia pelas suas próprias palavras.
Tarefa 2 – Completamento de lacunas (CL): Nesta tarefa as crianças exercitavam a regra através do completamento de palavras apresentadas num texto. No exercício as crianças eram encorajadas a rever as palavras de acordo com a regra escrita pelas suas próprias palavras.
Tarefa 3 – Produção de um texto com base em imagens, implicando a mobilização de palavras alvo relacionadas com a regra (PT): Nesta tarefa as crianças escreviam um texto a partir de uma sequência de imagens. Após a produção do texto as crianças eram incentivadas a rever a ortografia das palavras com a consulta da regra que haviam escrito com as suas próprias palavras.
Sequência de aplicação das tarefas em cada grupo
De seguida descreve-se a sequência de aplicação das tarefas nos diferentes grupos experimentais:
– G. Experimental 1: Realizou as tarefas DR, CL e PT – G. Experimental 2: Realizou as tarefas DR e CL (com 2 exercícios CL) – G. Experimental 3: Realizou as tarefas DR e PT (com 2 exercícios PT) – G. Experimental 4: Foi lido um cartão com a regra e realizou as tarefas CL e PT.Cada sujeito esteve presente em duas sessões de cerca de 30 minutos onde interagiu individualmente com o experimentador. Por outro lado, nos Grupos Experimentais 2 e 3 procedeu-se a uma duplicação, respectivamente das tarefas CL e PT de forma a que os tempos de trabalho de exercitação da regra fossem idênticos em todos os grupos.
O Grupo de Controlo realizou desenhos, tendo estado com o experimentador igualmente em duas sessões.
RESULTADOS
As estatísticas descritivas apontam para ganhos importantes no desempenho ortográfico nos Grupos Experimentais 1, 2 e 3 (Quadro 1). Os resultados do teste t para amostras emparelhadas confirma que os Grupos Experimentais 1, 2 e 3 apresentaram ganhos significativos entre o pré e o pós-teste no desempenho ortográfico [G. Experimental 1 (t(8)=9,160; p<.001); G. Experimental 2 (t(8)=11,353; p<.001); G. Experimental 3 (t(8)=3,773; p<.001)]. Não se registam diferenças entre o pré e pós-teste para o G. Experimental 4 (t(8)=1,510; p>.05) e para o Grupo de Controlo (t(8)=4,012; p>.05).
QUADRO 1
Médias e desvios padrões do desempenho ortográfico para a regra "m antes de p e b" no pré e pós-teste e dos ganhos no pós-teste em função dos grupos
Procedeu-se ainda ao cálculo dos ganhos entre o pré e o pós-teste. Sobre esses ganhos efectuámos uma ANOVA. Os resultados corroboram a ideia que existem diferenças significativas nos ganhos obtidos nos diferentes grupos [F(4,45)=7.133; p<.001]. A análise Post-hoc dos ganhos evidencia a existência de diferenças significativas, por um lado entre o G. Experimental 1 (que realizou a sequência completa de tarefas) e o G. Experimental 4 (que realizou apenas a tarefa de Preenchimento de Lacunas e de Produção Textual). Por outro lado, foram ainda encontradas diferenças entre o G. Experimental 1 e o G. de controlo. O mesmo padrão de diferenças se regista para o G. Experimental 2 (que realizou a tarefa Descoberta da Regra e a tarefa de Preenchimento de Lacunas), ou seja encontraram-se diferenças significativas nos ganhos em relação ao G. Experimental 4 e ao Grupo de Controlo. Não foram encontradas diferenças entre o G Experimental 3 (que realizou as tarefas de Descoberta da Regra e de Produção Textual) os Grupos Experimentais 1, 2 e 4, assim como entre o G. Experimental 3 e o Grupo de Controlo. Também não foram encontradas diferenças entre o G. Experimental 4 e o G. de controlo.
DISCUSSÃO
O conjunto dos resultados sugere que os Grupos Experimentais 1, 2 e 3 apresentaram uma evolução significativa entre o pré e o pós-teste, mas os programas de intervenção com os dois primeiros grupos revelaram-se mais eficazes, tendo as crianças apresentado poucos erros no ditado do pós-teste. Apesar dos progressos registados pelo Grupo Experimental 3 serem significativos, não foram encontradas diferenças em relação ao Grupo de Controlo nos ganhos obtidos. A intervenção efectuada com o G. Experimental 4 (que não trabalhou a tarefa Descoberta da Regra, apenas fez as tarefas de Preenchimento de Lacunas e Produção Textual) não se revelou eficaz já que não se registou uma evolução significativa no G. Experimental 4 entre o pré e o pós-teste e os ganhos obtidos não diferem dos do Grupo de Controlo.
Estes resultados deverão ser analisados atendendo à natureza das actividades efectuadas. Assim descobrir a regra e exercitá-la com o preenchimento de lacunas e posterior produção de texto e revisão ou descobrir a regra e exercitá-la apenas com o preenchimento de lacunas é igualmente eficaz. Descobrir a regra e proceder de imediato à produção textual parece ser menos eficaz. Isso dever-se-á provavelmente ao facto da produção textual implicar a articulação de conhecimentos ortográficos com a estrutura das frases, aumentando a sobrecarga da memória de trabalho (Bourdin & Fayol, 1994), e consequentemente diminuindo o espaço de atenção dedicado à dimensão ortográfica. No entanto, essa sobrecarga poderá ser ultrapassada se, numa primeira fase, a atenção das crianças incidir em palavras isoladas como aconteceu com as crianças do G. Experimental 1 ao realizarem a tarefa de lacunas. Por outro lado a ausência de progressos significativos no G. Experimental 4 (que trabalhou a sequência completa sem a descoberta da regra) e a comparação deste grupo com G. Experimental 1 faz realçar a importância da actividade “descoberta da regra”, reforçando o ponto de vista dos vários autores (Bousquet, Cogis, Ducard, Massonet, & Jaffré, 1999; Morais & Tebersosky, 1994) que defendem a importância da tomada de consciência explícita das regras ortográficas no desempenho ortográfico. Assim estes dados sugerem a necessidade das crianças desenvolverem uma reflexão metalinguística sobre o carácter contextual da relação grafo-fonética subjacente à regra como pré-condição para a evolução dos conhecimentos ortográficos.
ESTUDO 2
Este estudo tem como objectivo analisar o impacto específico da tarefa “descobrir a regra”, comparando o efeito isolado desta tarefa com os programas de intervenção desenvolvidos no estudo anterior. O desenho experimental utilizado foi semelhante, tendo, neste caso, sido organizados apenas 4 grupos experimentais e nenhum de controlo, uma vez que se pretendeu comparar o efeito da tarefa “descobrir a regra” com o efeito dos programas de intervenção referidos para os três primeiros grupos do estudo anterior.
Participantes
Neste estudo participaram 44 crianças do 2º ano de escolaridade. A média de idades das crianças era de 7 anos e 6 meses com um desvio padrão de 4 meses.
As crianças já haviam recebido instrução formal sobre as regras ortográficas contextuais Todas as crianças seleccionadas apresentavam pelo menos 50% de erros numa lista de palavras relacionadas com as regras a serem trabalhadas (“C or Qu para representar o fonema /k/” e “S com valor de /s/ e /z/ e S e ss para representar /s/”) e tinham sido classificadas pelos respectivos professores como crianças com dificuldades na ortografia. Para proceder a esta selecção foram testadas 347 crianças de forma a identificar apenas crianças com fraco desempenho ortográfico.
As crianças seleccionadas foram divididas em quatro grupos emparelhados pelo nível da inteligência e do desempenho ortográfica. Os resultados da ANOVA confirmam a equivalência dos grupos experimentais e de controlo quanto ao nível intelectual [F(3,42)=.069, p>.0.5] e desempenho ortográfico em relação às duas regras ortográficas, respectivamente [F(3,42)=.373, p>.05] e [F(3,42)=.726, p>.05].
Procedimentos
Avaliação do desempenho ortográfico
Para a avaliação do desempenho ortográfico pediu-se às crianças para escreverem uma lista de 20 palavras que incluíam a regra (“C ou Qu para representar o fonema /k/” e 15 palavras que incluíam a regra “S com valor de /s/ e /z/ e S e ss para representar /s/”. Só foram contabilizados os erros que incidiam especificamente nas regras. A mesma lista de palavras foi utilizada nos momentos do pré e pós-teste, o qual foi realizado três semanas após o fim da intervenção experimental. Nenhuma palavra desta listagem foi apresentadas durante os treinos.
Avaliação do nível intelectual
O nível intelectual foi avaliado através das Matrizes Progressivas de Raven (Raven, Raven, & Court, 1998), seguindo-se os procedimentos estandardizados.
Tarefas e procedimentos
As tarefas de instrução foram as mesmas utilizadas no Estudo 1. Para descrever a sequência a que cada grupo foi submetido serão usadas as iniciais com que cada tarefa foi anteriormente nomeada.
– G. Experimental 1: Realizou as tarefas DR, CL e PT. – G. Experimental 2: Realizou as tarefas DR e CL. – G. Experimental 3: Realizou as tarefas DR e PT – G. Experimental 4: Realizou a tarefa DR.Cada sujeito esteve presente em duas sessões de cerca de 20 minutos para cada uma das regras trabalhadas onde interagiu individualmente com o experimentador. No Grupo Experimental 4 dividiu-se a lista de palavras a analisar de forma a corresponder sensivelmente ao mesmo tempo de interacção.
RESULTADOS
Comecemos por analisar os resultados para a regra ortográfico “C or Qu para representar o fonema /k/”. As estatísticas descritivas apontam para ganhos importantes sobretudo nos Grupos Experimentais 1 e 2 (Quadro 2). Os resultados do teste t para amostras emparelhadas demonstram, contudo, que todos os grupos experimentais apresentaram ganhos significativos entre o pré e o pós-teste no desempenho ortográfico de palavras que implicavam esta regra [Exp.G.1 (t(9)=5,590; p<.001); Exp.G.2 (t(9)=6,708; p<.001); Exp.G.3 (t (9)=3,3634; p <.005); Exp.G.4 (t(9)=3,530; p<.005]. Procedeu-se ainda ao cálculo dos ganhos entre o pré e o pós-teste e sobre os ganhos efectuámos uma ANOVA. Os resultados corroboram a ideia de que não existem diferenças significativas nos ganhos obtidos nos diferentes grupos [F(3,42)=1.040; p>.05].
QUADRO 2
Médias e desvios padrões do desempenho ortográfico para a regra"m antes de p e b" no pré e pós-teste e dos ganhos no pós-teste em função dos grupos
Em relação à regra ortográfica “S com valor de /s/ e /z/ e S e ss para representar /s/” as estatísticas descritivas sugerem mais uma vez que os ganhos mais importantes foram nos Grupos Experimentais 1 e 2 (Quadro 3). Os resultados do teste t para amostras emparelhadas demonstraram, contudo, que todos os grupos experimentais apresentaram ganhos significativos entre o pré e o pós-teste no desempenho ortográfico em palavras que implicavam esta regra [Exp.G.1 (t=7,507; p<.001); Exp.G.2 (t=6,083; p<.001); Exp.G.3 (t=2,197; p<.005); Exp.G.4 (t=3,675; p<.005]. Também neste caso se procedeu ao cálculo dos ganhos entre o pré e o pós-teste e sobre os ganhos efectuámos uma ANOVA. Os resultados corroboram a ideia de que não existem diferenças significativas nos ganhos obtidos nos diferentes grupos [F(3,42)=.975; p>.05].
QUADRO 3
Médias e desvios padrões do desempenho ortográfico para a regra “S com valor de /s/ e /z/ e S e ss para representar /s/” no pré e pós-teste e dos ganhos no pós-teste em função dos grupos
DISCUSSÃO
Tal como no estudo anterior foram encontrados ganhos significativos com a implementação dos programas de intervenção experimental no desempenho ortográfico. Contudo, os ganhos não foram tão impressionantes como em relação aos obtidos no Estudo 1, provavelmente, devido ao facto de se tratar de regras mais complexas e também pelo facto de as crianças terem realizado menos exercícios de consolidação que no estudo anterior.
O aspecto mais relevante deste estudo decorre do facto de não se terem encontrado diferenças significativas entre os ganhos obtidos no desempenho ortográfico em relação às duas regras trabalhadas. Estes resultados fundamentam a importância da tarefa de aprendizagem “Descobrir a Regra”. A actividade metalinguística desencadeada pelas perguntas do experimentador poderá ter ajudado na construção de noções mais explícitas sobre as regras e esse procedimento parece ser particularmente relevante para o processo de aprendizagem. Os dados obtidos parecem consistentes com o ponto de vista de Morais e Teberosky (1994) sobre a relação entre consciência explícita das regras ortográficas e desempenho ortográfico. Os exercícios proporcionados aos Grupos Experimentais 1, 2 e 3 após a descoberta da regra parecem ajudar as crianças a consolidar a função das regras no código escrito (portanto, os ganhos nestes grupos foram ligeiramente superiores), mas o ponto de partida do processo de aprendizagem parece ser a tomada de consciência da regra.
DISCUSSÃO GERAL
Os resultados dos dois estudos apresentados proporcionam importantes pistas para a intervenção pedagógica em crianças com dificuldades de aprendizagem da ortografia. Foram apresentados alguns programas de treino que, em apenas duas sessões, melhoraram significativamente o desempenho infantil na escrita de palavras cuja ortografia correcta implicava o conhecimento de algumas regras ortográficas contextuais.
Os resultados do Estudo 1 permitem-nos apontar para algumas diferenças nos ganhos obtidos através dos vários programas de intervenção uma vez que os Grupos Experimentais 1 e 2 (que realizaram, respectivamente, a sequência completa de tarefas e a “Descoberta da Regra” seguida da tarefa Preenchimento de Lacunas) e registaram ganhos significativos em relação ao grupo de controlo. No Grupo Experimental 3 (que efectuou a Descoberta da Regra seguida de tarefas de Produção Textual) não se verificarem diferenças significativas nos ganhos em relação aos anteriores grupos experimentais, mas, por outro lado, não se registaram diferenças significativas nos seus ganhos em relação ao Grupo de Controlo. Este padrão de resultados proporciona-nos algumas pistas sobre a sequência das tarefas de ensino para uma melhor eficiência na aprendizagem da ortografia. Assim, após “a descoberta da regra”, a consolidação dos conhecimentos ortográficos parece realizar-se mais facilmente, se forem efectuados primeiro, exercícios com palavras isoladas do que se passar de imediato à produção de textos. Estes resultados revelam-se plausíveis tendo em conta que a produção de textos implica uma maior sobrecarga na memória de trabalho. Contudo, os resultados obtidos no Grupo Experimental 1 do estudo sugerem que ambos os exercícios são úteis do ponto de vista da consolidação do conhecimento, respeitando a sequência “exercícios com palavras isoladas” e “produção de textos”. É importante que, do ponto de vista pedagógico, se retenha esta conclusão já que a produção de textos pode ser integrada em actividades de escrita com funções comunicativas, as quais são mais motivantes para as crianças do que tarefas descontextualizadas de aprendizagem da ortografia (Mata, 2003). Por outro a eficácia dos exercícios de consolidação propostos estará sem dúvida associada aos procedimentos de revisão induzidos através da consulta da regra e com a actividade de reflexão metalinguística que lhe está inerente (Allal, 1997).
Uma análise mais centrada sobre as especificidades dos processos de aquisição de conhecimentos ortográficos relativos às regras contextuais estudos permite concluir que a apropriação infantil de regras contextuais parece implicar processos de reflexão metalinguística, os quais se revelam necessários à construção de noções mais explícitas sobre as regras. Esta conclusão pode ser sustentada pela conjugação de alguns resultados obtidos no Estudo 1 e 2. Assim se atendermos a ausência de ganhos significativos obtidos pelo Grupo Experimental 4 do Estudo 1 (onde a regra foi apresentada, mas não descoberta pelas crianças) com os ganhos obtidos pelo Grupo Experimental 4 do Estudo 2 (onde apenas foi implementada a actividade “descobrir a regra”), mesmo tendo em conta que a comparação não pode ser efectuada em termos absolutos já que forem trabalhadas regras diferentes nos dois estudos, podemos de facto confirmar a importância da tomada de consciência explícita das regras contextuais para os progressos no desempenho ortográfico (Morais & Teberosky, 1994; Treiman, Kessler, & Bick, 2002). Por outro lado, estes dados confirmam a necessidade de desenvolver actividades que implicam reflexão metalinguística durante o processo de aprendizagem. Esta conclusão é ainda concordante com os dados obtidos por Silva (2004) onde se fez a comparação de dois programas de intervenção experimental, em que num caso se ensinava a regra através de um método expositivo e no outro se induzia a descoberta da regra, e que indicou claramente a superioridade do segundo método para os progressos no desempenho ortográfico.
Estes estudos têm claras implicações do ponto de vista educacional uma vez que as tarefas de aprendizagem utilizadas podem ser transpostas com relativa facilidade para contextos de sala de aula.
REFERÊNCIAS
Allal, L. (1997). Acquisition de l´orthographe en situation de classe. In L. Rieben, M. Fayol, & C. Perfetti (Eds.), Des orthographes et leur acquisition (pp.181-206). Paris: Delachaux et Niestlé.
Bourdin, B., & Fayol, M. (1994). Is written language production more difficult than oral language production? A working memory approach. International Journal of Psychology, 29, 591-620.
Bousquet, S., Cogis, D., Ducard, D., Massonnet, J., & Jaffré, J.-P. (1999). Acquisition de l’orthographe et mondes cognitifs. Revue Française de Pédagogie, 126, 23-37.
Juul, H. (2005). Knowledge of context sensitive spelling as a component of spelling competence: Evidence from Danish. Applied Psycholinguistic, 26, 249-266.
Karmiloff-Smith, A. (1992). Beyond modularity: A developmental perspective on cognitive science. MA: MIT Press.
Mata, M. L. (2003). Literacia familiar. Dissertação de doutoramento. Universidade do Minho.
Morais, A., & Teberosky, A. (1994). Erros e transgressões infantis na ortografia do Português. Discursos, 8, 15-51.
[ Links ]Raven, J., Raven, J. C., & Court, J.H. (1998). Manual for Raven’s progressive matrices and vocabulary scale. Section I. General overview. Oxford: Oxford Psychologists Press.
Treiman, R., Kessler, B., & Bick, S. (2002). Context sensitivity in the spelling of English vowels. Journal of Memory and Language, 47, 448-468.
Treiman, R., Kessler, B., & Bick, S. (2003). Influence of consonantal context on pronunciation of vowels: A comparison of human readers and computational models, Cognition, 88, 48-78.
(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa.