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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica v.28 n.2 Lisboa abr. 2010
Estudo exploratório sobre burnout numa amostra portuguesa: O narcisismo como variável preditora da síndrome de burnout
Miguel Tecedeiro (*)
RESUMO
Este estudo teve como objectivo testar a hipótese de que traços narcísicos de personalidade são um factor facilitador de burnout, uma síndrome psicológica de exaustão emocional associada ao stress profissional crónico. Seguindo um delineamento correlacional, aplicou-se a uma amostra de 68 colaboradores de duas agências multinacionais de publicidade a escala Maslach Burnout Inventory e a Escala de Características Narcísicas de Personalidade de Leon Crochick. Os resultados suportaram, pelo menos parcialmente, a hipótese proposta. Quando os níveis de narcisismo são baixos ou médios a relação entre narcisismo e burnout segue linearmente o previsto no modelo: quanto mais fortes as características de personalidade narcísica do sujeito, maiores são os scores nos diversos factores de burnout, com uma incidência particularmente significativa na exaustão. Quando os níveis de narcisismo são elevados a relação parece estabelecer-se de forma contingente com a variável realização profissional. Enquanto o sujeito se sente profissionalmente realizado, o narcisismo funciona como uma variável protectora contra o burnout e o stress profissional. Quando o sentimento de insucesso profissional se torna impossível de negar, o sujeito fortemente narcísico desenvolve níveis elevados de burnout. Contudo o valor explicativo desta dimensão da personalidade foi menor do que outras dimensões de cariz organizacional.
Palavras-chave: Burnout, MBI, Narcisismo, Personalidade narcísica, Publicidade, Stress laboral.
ABSTRACT
This research, aimed at studying the relationship between narcissistic personality characteristics and burnout, tests a central hypothesis that narcissistic personality traits are a burnout facilitating factor. Following a correlacional design, the Maslach Burnout Inventory and the Crochick’s Scale of Narcissistic Personality Factors were given to a sample of 68 workers of two multinational advertising agencies. Results were compatible, at least partially, with the proposed hypothesis. When narcissism levels were low or average the relationship between narcissism and burnout followed what was predicted by the model: higher narcissistic personality characteristics led to higher scores in the different burnout factors, particularly exhaustion. When narcissism levels were high, the relationship seemed to follow a contingent relationship with Professional Efficiency. If the subject felt professionally successful, narcissism worked as a protective variable against burnout and job stress. If feelings of professional failure were predominant the highly narcissistic subject developed high levels of burnout. However, the overall explanatory power of the narcissist personality factor was lower than organisational factors.
Key-words: Advertising, Burnout, Job Stress, MBI, Narcissism, Narcissistic personality.
INTRODUÇÃO
A primeira definição de burnout foi proposta por Freudenberger (1974, citado por Freudenberger & Richelson, 1985), para quem este é um estado de fadiga ou frustração provocado pela devoção a uma causa, modo de vida ou relação que não produziu as recompensas desejadas. A este sentimento central de fadiga ou exaustão podem associar-se outros sintomas: sentimento de conflito entre um self verdadeiro e um self de fachada, cinismo, irritabilidade e impaciência, distanciação emocional, aborrecimento, sentimentos de omnipotência, de não ser apreciado, vivências paranóides, depressão e múltiplas queixas psicossomáticas. O desajustamento entre expectativas e realidade, quando a pessoa mantém os seus esforços para alcançar essas expectativas, cria um conflito interno que desgasta as energias e reduz a vitalidade e a capacidade de funcionar.
Maslach (1993, 1998) propôs aquela que é hoje a mais comummente aceite definição de burnout, uma resposta prolongada a stressores interpessoais crónicos no trabalho, composta por três dimensões-chave: exaustão emocional, definida como uma sobre-solicitação ou esgotamento dos recursos emocionais da pessoa; despersonalização, entendida como uma distanciação afectiva, indiferença emocional ou insensibilidade para com os outros, nomeadamente aqueles que são muitas vezes a razão de ser da actividade profissional (pacientes, clientes, colegas, etc.); e redução da realização pessoal, vista como a diminuição dos sentimentos de competência e de prazer associados ao desempenho de uma actividade profissional. O burnout resultaria de um desajustamento entre necessidades individuais e exigências profissionais em seis áreas distintas (Maslach, 1998; Maslach & Leiter, 1997): excesso de trabalho, falta de controlo sobre os factores que influenciam o desempenho profissional individual, recompensas insuficientes, quebra da comunidade, falta de justiça, conflitos de valores.
Do ponto de vista organizacional têm sido identificados inúmeros factores de risco para o burnout, cobrindo praticamente todo o tipo de aspectos negativos do ambiente de trabalho ou da cultura organizacional (Demerouti, Bakker, Nachreiner, & Schaufeli, 2001; Lloyd, King & Chenoweth, 2002; Shirom, 1989; Winnubst, 1993).
A procura de variáveis relacionadas com o sujeito que representem factores de risco para o burnout tem-se revelado de um modo geral pouco promissora, encontrando-se relações pouco significativas ou por vezes contraditórias. A motivação com que o sujeito inicia a tarefa ou actividade profissional apresenta-se como a mais relevante, sendo todos os autores unânimes em reconhecer o seu valor preditor em relação ao burnout: quanto maior a motivação com que se inicia uma actividade, maior o risco de este se desenvolver (Pines, 1993, 2002; Schaufeli, Enzmann, & Girault, 1993). A idade tem apresentado relações contraditórias com o burnout; alguns autores concluem que pessoas mais velhas são menos susceptíveis de burnout (Maslach, Jackson, & Leiter, 1996), enquanto outros encontram um aumento do burnout com a idade (Bakker, Demerouti, & Schaufeli, 2002). Este estudo encontrou também uma associação entre género e burnout, com as mulheres a apresentarem níveis mais elevados. Contudo, quando se controla a influência de outras variáveis tais como a experiência profissional ou o estatuto laboral, as diferenças devido ao sexo ou à idade tendem a desaparecer (Bakker et al., op. cit; Maslach, 1998). Usando como referência o modelo de cinco factores de personalidade de Costa e McRae, Piedmont (1993) constatou que o neuroticismo e a agradabilidade estavam associados a níveis elevados de exaustão e despersonalização, enquanto a conscienciosidade se associava à dimensão da realização pessoal.
No presente estudo pretendeu-se determinar se os níveis de burnout podem ser determinados por características narcísicas da personalidade, um conjunto de traços e atitudes relacionais que incluem auto-admiração e auto-importância excessivas, medos de perda de amor ou de falhar, exibicionismo, sentimentos de omnipotência, intolerância à crítica, fantasias de sucesso ilimitado ou grandioso, e uma certa crença em se ser especial ou único (Raskin & Terry, 1988). Se o burnout está associado a um nível elevado de motivação inicial, será de esperar que sujeitos com características narcísicas de personalidade, que abordam cada tarefa com expectativas grandiosas de sucesso que pouco ou nada têm a ver com a realidade da situação, apresentem níveis mais elevados de exaustão emocional e de despersonalização e mais baixos de realização pessoal.
MÉTODO
Participantes
Constituiu-se por conveniência uma amostra de 68 sujeitos, 52 mulheres e 16 homens, de idades compreendidas entre os 23 e os 60 anos (média 35,6 anos), trabalhadores de duas agências multinacionais de publicidade com escritórios na zona da Grande Lisboa. Nove destes sujeitos exerciam funções de chefia, com um número de subordinados que variou entre um e cinco.
Instrumentos
Para medir o burnout escolheu-se o Maslach Burnout Inventory na versão General Survey (MBI-GS)1, escala que é o instrumento mais utilizado na investigação sobre burnout, e com qualidades psicométricas bastante investigadas e confirmadas (Gil-Monte, 2002; Maslach, Jackson, & Leiter, 1996; Schaufeli, Bakker, Hoogdoin, Schaap, & Kladler, 2001; Schutte, Toppinen, Kalim, & Schaufeli, 2000; Taris, Scheurs, & Schaufeli, 1999). Esta versão é composta por 16 questões seguindo a forma de uma escala de auto-administração de Likert, com sete possibilidades de frequência, de nunca a todos os dias, pertencentes a três sub-escalas, de acordo com o modelo dos seus criadores (Maslach, Jackson, & Leiter, 1996): exaustão (Ex), com cinco itens que exploram sentimentos de exaustão e fadiga, sem referenciar as pessoas como sendo as causadoras desses sentimentos e com menos ênfase nas emoções; cinismo (Cy), sentimentos de indiferença ou distanciamento em relação à actividade profissional, com cinco itens que abordam a distanciação em relação ao trabalho mas não os relacionamentos pessoais no trabalho; eficácia profissional (PE ou professional efficiency), explorando, em seis itens, opiniões de realização profissional, sentimentos de auto-eficácia e expectativas para com a eficácia profissional. Esta escala não permite calcular uma pontuação global de burnout, preconizando os autores que a distribuição de cada sub-escala seja dividida em três terços, e considerando-se existir burnout quando um sujeito obtém pontuações no terço superior das escalas de exaustão e cinismo e no terço inferior da escala de eficácia profissional (Maslach, Jackson, & Leiter, 1996).
Para avaliar a variável narcisismo escolheu-se a Escala de Características Narcisistas da Personalidade de José Leon Crochík e Maria de Fátima Severiano (Crochík, 2000). Trata-se de uma escala de auto-administração tipo Likert em língua portuguesa, com 42 itens que são avaliados em seis alternativas de resposta, da concordância total à discordância total, incluindo dois pares de itens idênticos como forma de controlar a atenção do inquirido. No estudo de validação citado, os autores encontraram elevadas consistência interna (alpha=0,91) e estabilidade temporal (teste-reteste com três semanas de intervalo=0,94). A escala é composta por seis sub-escalas: prestígio, imagem, auto-preservação, individualismo, inadequação, ausência de projectos. Os alphas das sub-escalas variam entre 0,49 e 0,58 (Crochík, 2000). Esta escala foi aplicada a uma população portuguesa, no quadro de um estudo sobre comportamentos de risco na condução (Baltazar, 2002), tendo sido feitas ligeiras adaptações à formulação dos itens para os adequar aos hábitos linguísticos de Portugal. No presente estudo usou-se essa adaptação.
Procedimento
Foi pedido a cada participante que preenchesse um protocolo de investigação composto por um inquérito sócio-demográfico e laboral e pelas duas escalas. Não foram comunicados dados sobre a natureza do trabalho ou das hipóteses, explicando-se tratar-se de um estudo universitário sobre satisfação profissional, de participação voluntária e com anonimato assegurado.
Os dados recolhidos foram tratados com recurso ao software de tratamento de dados SPSS 13.0. Os testes estatísticos utilizados foram sempre sujeitos à verificação prévia dos seus pressupostos. No estudo usou-se como critério de significância um α<0,05.
Para testar a estrutura factorial das escalas optou-se por um método exploratório, uma vez que a dimensão da amostra impediu o uso de métodos confirmatórios. Recorreu-se a um método de componentes principais com rotação Varimax, usando-se como critério de adequação do método factorial à amostra usada um valor de Kayser-Mayer-Olkin (KMO)>0,7 (Maroco, 2003).
Como indicador de consistência interna usouse o alpha de Cronbach, considerando-se aceitáveis valores superiores ou iguais a 0,7 (Anastasi & Urbina, 1997).
Face aos baixos valores de consistência interna das sub-escalas encontrados pelos seus autores (Crochík, 2000), optou-se por tratar a Escala de Características Narcisistas da Personalidade como unidimensional.
Foi feita uma análise de clusters pelo método de Ward com recurso ao quadrado das distâncias euclidianas e estandardização das variáveis, para determinar um número ideal de clusters, seguido de um procedimento não-hierárquico k-means usando esse número de clusters para melhorar a solução classificatória; esta sequência de procedimentos é considerada a mais adequada (Gómez-Suaréz, 1999, citado por D’Ancona, 2002).
A associação entre dimensões foi feita através da correlação de Pearson. O teste da diferença de médias entre grupos foi feito com recurso aos métodos paramétricos T de Student e ANOVA Oneway. A influência de variáveis independentes intervalares sobre as variáveis dependentes do estudo foi determinada com recurso a testes de regressão linear (Maroco, 2003). Em todas as utilizações verificaram-se previamente os pressupostos estatísticos de normalidade das distribuições e homogeneidade das variâncias.
RESULTADOS
A estrutura factorial do MBI-GS foi previamente testada com recurso a uma análise factorial exploratória pelo método de componentes principais com rotação Varimax, forçada a três factores (KMO=0,725), tendo-se encontrado uma solução factorial próxima da proposta pelos autores, com as seguintes alterações (para mais detalhes ver Tecedeiro, 2004): um factor constituído por 6 itens relativos à exaustão emocional (itens: 1, 2, 3, 4, 6 e 9) com um alpha de 0, 87, um segundo factor constituído por 5 itens referentes à eficácia profissional (itens: 7, 10, 11, 12 e 16), possuidor de um alpha de 0,79 e um factor constituído por 4 itens relativos a cinismo (itens: 8, 13, 14 e 15) e com um alpha de 0,67. As poucas alterações encontradas prenderam-se com a eliminação do item 5 (por não saturar em nenhum factor acima de 0,40) e com a passagem do item 9 do factor cinismo para o factor da exaustão emocional. Esta solução factorial explica 64,1% da variância total dos dados. Não foi efectuado um estudo semelhante para a escala de narcisismo dado que a amostra se revelou de dimensão inadequada face ao número de itens (KMO=0,462). Tratada como unidimensional, a escala apresentou um alpha de Cronbach de 0,875.
Em seguida procedeu-se a uma análise de clusters tendo como variáveis os três factores de burnout e o narcisismo, como forma de determinar se existiam na amostra grupos de sujeitos que se caracterizassem por um “comportamento” comum nestas quadro dimensões. Dada a natureza adhoc da análise de clusters, testaram-se soluções com diferentes números de clusters, acabando por se reter uma solução com 4 clusters (Tabela 1), por ser aquela que apresentou melhor potencial heurístico.
TABELA 1
Estatística descritiva: Caracterização dos clusters
Dos quatro clusters, dois são compostos por sujeitos com score de narcisismo superior à média (clusters 2 e 4) e dois por sujeitos abaixo da média (clusters 1 e 3). Os sujeitos do cluster 4 possuem níveis de Eficácia Profissional superiores à média e níveis de exaustão e de cinismo inferiores à média. Os sujeitos do cluster 2 possuem também scores de narcisismo superiores à média (embora não tão elevados quanto os do cluster 4) e apresentam níveis de eficácia profissional abaixo da média e níveis de exaustão e cinismo superiores à média. Este cluster é o único dos quatro clusters que apresenta níveis de eficácia profissional abaixo da média e, por isso, é o único cujo perfil se aproxima da caracterização da síndrome de burnout.
O passo seguinte consistiu na realização de uma análise de clusters para quatro clusters recorrendo a métodos não hierárquicos (K-means), cujos resultados se encontram na Tabela 2.
TABELA 2
K-Means: Centros dos clusters finais
Só um cluster (cluster 4) apresenta valores de narcisismo inferiores à média, e é o que apresenta valores de exaustão e cinismo mais distantes da média e valores de eficácia profissional mais acima da média; ou seja, é aquele que mais se situa no pólo oposto ao perfil da síndrome de burnout. Um perfil que se aproxima do da síndrome de burnout só é encontrado num único grupo (cluster 3), que tem um resultado intermédio na escala de narcisismo e um nível fortíssimo de exaustão emocional.
O teste à associação entre a escala de narcisismo e as três dimensões do MBI-SS revela uma correlação positiva significativa embora fraca entre narcisismo e exaustão emocional (Tabela 3).
TABELA 3
Correlação de Pearson: Relação entre narcisismo e os factores do burnout
Seguindo um critério idêntico ao proposto por Maslach, Jackson, e Leiter (1996), as distribuições da escala de narcisismo foram divididas nos percentis 33 e 66, dando origem a três grupos: baixo, médio e alto narcisismo. As diferenças de pontuação entre grupos em relação às sub-escalas do MBI-GS foram testadas com recurso a uma ANOVA One Way (Tabela 4).
TABELA 4
ANOVA: Comparação do resultado dos factores do MBI-GS em cada nível de narcisismo
Constata-se que o grupo de alto narcisismo tem resultados mais baixos que o grupo intermédio nos factores de exaustão emocional e queixas somáticas e sensivelmente idênticos a esse grupo nos factores eficácia profissional e cinismo. As diferenças entre grupos só são significativas no factor cinismo, embora não seja possível determinar quais os pares de grupos que são estatisticamente distintos (Scheffé, p>0,08).
Testou-se em seguida a existência de diferenças de narcisismo (escala integral) entre os grupos com resultados baixos, médios e altos em cada factor do MBI-GS separadamente (Tabela 5).
TABELA 5
ANOVA: Comparação do resultado de narcisismo em cada factor do MBI-GS
Não foram encontradas diferenças no resultado do narcisismo entre os diversos grupos dos factores exaustão emocional e eficácia profissional. Foi encontrada uma diferença significativa entre os grupos do factor cinismo, verificando-se que o grupo de baixo cinismo tem um resultado médio (129,61) significativamente mais baixo que os grupos de cinismo médio ou alto (Scheffé, p=0,02 e 0,03 respectivamente).
Procurou-se determinar se existiam diferenças de narcisismo entre o grupo de burnout (cinismo e exaustão elevadas, realização baixa) e o grupo do pólo oposto (realização elevada, cinismo e exaustão baixas), pelo que se realizou uma comparação de médias entre grupos, constatando-se que o grupo de burnout apresenta um resultado médio de narcisismo significativamente mais elevado do que o outro grupo (Tabela 6).
TABELA 6
T de Student: Comparação entre grupo com burnout e grupo oposto nos resultados do narcisismo
Finalmente procurou-se averiguar, de um análises de regressão múltipla. O narcisismo só conjunto de variáveis independentes, quais eram surgiu como variável preditora em relação à preditivas dos resultados dos três factores do exaustão emocional (Tabela 7), embora a burnout. Para esse efeito, foram efectuadas variância explicada seja bastante baixa.
TABELA 7
Regressão múltipla – variável dependente: Exaustão emocional
DISCUSSÃO
O burnout é uma resposta prolongada a stressores interpessoais crónicos no trabalho, composta por três dimensões-chave: exaustão emocional, despersonalização e redução da realização pessoal (Maslach, 1993, 1998). Na sua origem estão factores de ordem tanto pessoal como organizacional, embora pareça ser claro que os factores organizacionais são preponderantes (Maslach & Leiter, 1997).
O presente estudo teve como objectivo testar a hipótese de o narcisismo ser uma característica de personalidade que representa uma vulnerabilidade para o burnout. Os resultados encontrados vão no sentido confirmatório desta hipótese, mas apenas de forma parcial e com alguns elementos contraditórios.
O narcisismo correlacionou de forma positiva e significativa com um dos factores da escala de burnout, a exaustão emocional, mas não com os outros. Teve um valor preditor deste factor, mas numa percentagem reduzida e só após serem excluídos factores organizacionais, não relacionados com as dimensões em estudo.
Numa análise entre grupos, verificou-se que os grupos de burnout diferem significativamente no seu grau de narcisismo, mas os grupos de narcisismo só diferiram significativamente na dimensão cinismo, não divergindo o grupo de elevado narcisismo do grupo de narcisismo médio.
A análise hierárquica de clusters encontrou uma configuração compatível com a hipótese proposta, acrescida do valor mediador da eficácia profissional – os sujeitos só se aproximaram do perfil de burnout quando possuíam resultados superiores à média na escala de narcisismo e se reduziu o seu sentimento de eficácia profissional. A análise de clusters por método não-hierárquico encontrou uma configuração sensivelmente diferente mas, de certo modo,
Do ponto de vista teórico, estes resultados parecem apontar para duas realidades distintas: níveis baixos ou médios de narcisismo, níveis elevados de narcisismo.
Quando os níveis de narcisismo são baixos ou médios, a relação entre narcisismo e burnout parece seguir linearmente o previsto. Quanto mais fortes as características de personalidade narcísica do sujeito, maiores os scores nos diversos factores de burnout, com uma incidência particularmente significativa na exaustão. Correlativamente, e no pólo oposto, os sujeitos com poucos traços narcísicos parecem pouco atreitos a desenvolver um processo de burnout, ou pelo menos a manter-se nele durante muito tempo.
Quando os níveis de narcisismo são elevados, o processo segue aparentemente um caminho diverso. Neste caso a relação já não é directa e linear, parecendo estabelecer uma relação contingente com a variável realização profissional. Nesta situação, e enquanto o sujeito se sente profissionalmente realizado, o narcisismo funciona como uma variável protectora contra o burnout e o stress profissional. Qual super-homem protegido por um escudo invisível, o narcisista vence obstáculos, ultrapassa barreiras, vence desafios, sem aparente cansaço ou sofrimento psíquico. O narcisismo cumpre assim a sua função defensiva e adaptativa. O problema surge quando a distância entre a realidade e a auto-imagem inflacionada se torna tão grande que a atitude denegativa se torna impossível de manter. Quando o sentimento de insucesso profissional se torna impossível de negar, o sujeito fortemente narcísico desenvolve níveis elevados de burnout, qual guerreiro desamparado que subitamente perdeu a couraça. Um narcisismo forte revela-se uma boa protecção, aparentemente temporária, é certo, contra o stress profissional e os sentimentos de exaustão profissional. No entanto, quando o sujeito entra em crise a relação volta a ser a prevista – níveis elevados de narcisismo vão de par com níveis elevados de burnout. Não deixa de ser tentador fazer a aproximação entre este processo e a noção de depressão narcísica proposta por Coimbra de Matos (Matos, 2001). Sendo o reinvestimento narcísico um dos movimentos defensivos contra a depressão, os resultados encontrados espelhariam os diversos avatares dessa equilíbrio instável.
Assim, o narcisismo surge como uma característica de personalidade com impacto no processo de burnout, à semelhança do que sucede com outros traços de personalidade como o Neuroticismo ou a Agradabilidade (Maslach, Schaufeli, & Leiter, 2001; Piedmont, 1997).
No entanto, parece-nos que devem ser assinalados algumas reservas e cuidados, que significam, de alguma forma, uma limitação à generabilidade das respostas às hipóteses apresentadas.
O primeiro tipo de reservas prende-se com a dimensão realtivamente reduzida da amostra, que impediu o teste da estrutura factorial da escala de narcisismo bem como o uso de Análise Factorial Confirmatória por modelização com recurso a equações estruturais, que requer amostras de uma dimensão incompatível com o quadro temporal do projecto. Esta reserva associada à dimensão da amostra aplica-se também aos resultados da escala de burnout. Dado o efectivo relativamente reduzido desta, pode-se pensar não existirem casos suficientemente afastados das tendências centrais em quantidade suficiente para validar graus de significância relevantes. Dito por outras palavras, as relações estão presentes mas a amostra não possui capacidade discriminativa suficiente. Este aspecto é particularmente significativo para o factor Eficácia Pessoal, que tem um desvio padrão mais reduzido e que surge como variável mediadora nos casos de narcisismo elevado. Uma amostra maior que mantivesse idênticos os indicadores centrais possuiria provavelmente mais casos nos extremos (ausência total de burnout, graus muito elevados de burnout), permitindo assim tornar mais claras as relações entre variáveis (o mesmo comentário poderia ser feito em relação à escala de narcisismo, embora com menos relevância, porque esta escala apresenta um grau maior de dispersão). Por outro lado, a escala de cinismo apresentou valores de consistência interna no limite do aceitável (0,67≅0,7), o que sublinha a necessidade de tomar estes resultados com alguma precaução.
Um segundo tipo de limitações prende-se com a natureza do instrumento usado para medir o narcisismo. Trata-se de uma escala pouco estudada e pouco utilizada, pelo que não se pode deixar de levantar alguma reserva em relação às suas qualidades métricas, não obstante a elevada consistência interna apresentada nesta amostra. A inexistência de uma estrutura factorial impede uma compreensão mais aprofundada e discriminante da realidade do narcisismo, que fica assim reduzido a uma mera apreciação quantitativa unidimensional. O mesmo lamento se aplica à inexistência de pontos que diferenciem quantitativamente graus de narcisismo, e nomeadamente em relação ao seu extremo nosográfico – a perturbação narcísica de personalidade (APA, 1996). Nunca é demais lembrar que o resultado paradoxal dos indivíduos com narcisismo elevado foi obtido graças a uma manipulação adhoc da escala, não prevista pelos seus autores, e cuja única justificação é o facto da outra escala utilizada seguir um procedimento semelhante.
Apesar de tudo, os resultados são suficientemente animadores para sugerir a relevância da replicação do estudo numa amostra de maior dimensão e com maior diversidade de actividades profissionais, utilizando uma escala de narcisismo cujas qualidades métricas tenham sido previamente estudadas.
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NOTAS
(*) ISPA – Instituto Universitário, Rua Jardim do Tabaco, 34, 1149-041 Lisboa, Portugal; E-mail: miguel.tecedeiro@ispa.pt
1 Autorização de tradução para investigação nº 13819, Consulting Psychology Press, Palo Alto CA 94303.