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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.29 no.2 Lisboa abr. 2011

 

A contratransferência na clínica psicanalítica contemporânea

Cíntia Wolff*; Denise Falcke**

* Psicóloga graduada pela Universidade do Vale do Rio dos SINOS (UNISINOS);

** Psicóloga, Doutora em Psicologia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

Correspondência

 

RESUMO

Atualmente, a contratransferência tem adquirido relevância no contexto terapêutico, passando a ser vista como instrumento de trabalho do psicoterapeuta. O objetivo deste trabalho foi compreender como a contratransferência vem sendo utilizada por psicoterapeutas psicanalíticos, a fim de aprofundar o conhecimento sobre como ela se manifesta na prática clínica. Foram entrevistados três psicoterapeutas, escolhidos pelo critério de conveniência. Os relatos foram dispostos em quatro categorias definidas a priori a partir da revisão bibliográfica e dos objetivos traçados para a pesquisa. Os resultados revelaram que a contratransferência foi considerada como uma ferramenta que auxilia na compreensão do paciente e daquilo que se passa na sessão. É utilizada como recurso terapêutico, mas seu uso suscita cuidados. Um dos entrevistados não revela sua contratransferência, enquanto os outros dois revelam em algumas situações. Raiva, irritação e impotência foram consideradas como sentimentos contratransferenciais de difícil manejo, assim como aqueles causados por pacientes com transtornos de caráter, perversão sexual e dependência química. Concluiu-se que os psicoterapeutas que participaram do estudo levam em consideração os sentimentos e significados inconscientes do que ocorre entre a dupla terapeuta-paciente, considerando que a pessoa real do psicoterapeuta também atravessa todo o processo analítico.

Palavras-chave: Contratransferência, Psicanálise, Psicoterapia.

 

ABSTRACT

Currently, the counter-transference has gained relevance in the therapeutic context, to be seen as a working instrument of the psychotherapist. The objective was to understand how the countertransference has been used by psychoanalytic psychotherapists in order to deepen the knowledge on how occurs in clinical practice. We interviewed three psychotherapists, chosen by the criterion of convenience. The reports were arranged in four categories defined a priori from the literature review and goals for research. The results showed that the counter-transference was regarded as a tool that helps in understanding the patient and what happens in the session. It is used as a therapeutic resource, but its use raises care. One of the interviewees did not reveal his counter-transference, while the other two reveal in some situations. Anger, irritation and impotence were considered difficult feelings of counter-transference, as well as those caused by patients with disorders of character, sexual perversion and addiction. It was concluded that psychotherapists who participated in the study take into account the feelings and the unconscious meanings of what occurs between therapist-patient, whereas the real person of the psychotherapist also through the entire analytical process.

Key-words: Conter-transference, Psychoanalysis, Psychotherapy.

 

INTRODUÇÃO

A discussão sobre o tema contratransferência passou por várias etapas, iniciando com a criação do termo por Freud em 1910. Seguiram-se a publicação do artigo de Paula Heimann e as contribuições de Heirich Racker na década de 40, a utilização, nos anos 70 e 80, do conceito totalístico de contratransferência e, por fim, o entendimento de contratransferência atual, que se foca na revisão e cautela de sua utilização.

A contratransferência pode ser chamada de diversas formas, como por exemplo: identificação projetiva, campo analítico, terceiro analítico, conceito de personagens e mundos possíveis na sessão e contra-identificação projetiva (Zaslavsky & Santos, 2006). Após sua criação por Freud, em 1910, o conceito de contratransferência ocupou, durante 40 anos, um lugar periférico dentro da psicanálise. O construto criado estava relacionado às reações emocionais inconscientes despertadas no analista pelo paciente. Esta concepção até hoje pode ser aceita, porém, naquela época, Freud (1910/1990), por considerar que a contratransferência se formava através de sentimentos e reações neuróticas inconscientes do analista, a julgou prejudicial ao tratamento e considerou que ela deveria ser evitada. Zaslavsky e Santos (2006), estudando os postulados de Freud, consideram que ele a caracteriza como resistencial, pois estaria ligada ao que denominou de “pontos cegos” do terapeuta.

Provavelmente esse seja um dos motivos que fez com que, durante muito tempo, a contratransferência fosse deixada de lado do contexto clínico (Bernardi, 2002). Ampliando tal entendimento, Etchegoyen (1987) acredita que o “desinteresse” pela contratransferência estaria também ligado ao fato de que é muito incômodo o terapeuta se ver e se reconhecer no paciente que trata, pois, dessa forma, se abandona a ilusória idéia de superioridade frente ao analisando. Racker (1986), por sua vez, destaca ainda que esse esquecimento poderia ter ocorrido em função da resistência dos analistas em relação aos seus próprios sentimentos e a representação da contratransferência.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, de acordo com Leitão (2003), os analistas começaram a atender pacientes com diversos problemas mentais e isso fez com que eles experimentassem emoções perturbadoras. Assim sendo, alguns autores começaram a relatar fenômenos contratransferenciais. Em 1949/1978, Winnicott escreve “Ódio na Contratransferência”, não se detendo em descrever a contratransferência, mas refletindo sobre como lidar com determinados sentimentos que o paciente desperta no terapeuta.

Apesar da existência de alguns estudos entre as décadas de 10 e 40, muitos autores atribuem a Paula Heimann e Henrich Racker o mérito de “descobridores” da contratransferência (Eizirick & Lewkowics, 2005; Etchegoyen, 1987; Zaslavsky & Santos, 2005). Paula Heimann publicou um artigo, em 1950, onde descrevia a contratransferência como uma criação do paciente. Sendo assim, os sentimentos despertados no terapeuta provinham do próprio analisando. Ela acreditava que a contratransferência era instrumento de investigação dos processos inconscientes do paciente (Heimann, 1950/1995). Entretanto, seus estudos não foram tão aprofundados quanto os de Racker. Dedicando-se ao estudo da contratransferência, Racker (1986) acreditava que transferência e contratransferência não podem ser vistas como algo separado e estão sempre se inter-relacionando. Suas contribuições ainda hoje são estudadas e utilizadas.

Dessa forma, da década de 50 em diante, a contratransferência voltou a ser estudada e passou a ser vista como um dos principais fatores de mudança no tratamento analítico e um instrumento de trabalho. Zaslavsky e Santos (2005) apontam que os estudos sobre o tema mudaram consideravelmente o paradigma da psicanálise, pois se passou a questionar e criticar o trabalho do analista. Agora, o que acontece no processo analítico não diz respeito somente ao paciente, mas aquilo que a dupla (terapeuta/paciente) está produzindo (Bernardi, 2002; Etchegoyen, 1987; Gabbard, 1998; Laplanche & Pontalis, 1991; Manfredi, 1998; Zaslavsky & Santos, 2005). Neste sentido, pode-se considerar que o analista não é apenas um intérprete, mas também objeto de transferência (Etchegoyen, 1987). Se assim for, transferência é aquilo que o paciente traz e contratransferência seria a resposta do analista a esse material. Para Zaslavsky e Santos (2005), a contratransferência não diz respeito somente aos sentimentos que são despertados no analista pelo paciente, mas a forma como o terapeuta utiliza sua subjetividade para poder compreender melhor o que está se passando na sessão. Os mesmos autores ainda nos colocam que através dos sentimentos do analista, pode-se perceber não somente aquilo que o paciente diz, mas, principalmente, aquilo que ele não diz. Manfredi (1998) acrescenta que o certo sobre a contratransferência é que ela tem as mesmas raízes da transferência, formando um único processo.

A contratransferência, então, seria o resultado das identificações que o terapeuta faz com o paciente, podendo ter três significados: obstáculo, instrumento de compreensão do paciente e, por fim, campo onde o analisando pode adquirir uma experiência viva e diferente da que teve originalmente (Racker, 1986). Na visão de Eizirick e Lewkowics (2005), Racker apresentou uma visão mais totalística da contratransferência, incluindo seus aspectos conscientes e inconscientes.

Racker (1986), aprofundando ainda mais a análise do fenômeno contratransferencial, criou os conceitos de contratransferência indireta e direta, que, por sua vez, se dividem em identificação concordante e complementar. Contratransferência indireta seria aquela que está relacionada a pessoas próximas ao paciente (família, amigos, colegas de trabalho) e a direta se refere às respostas do próprio analista diante do paciente. Quando aquilo que é do outro se internaliza no terapeuta, através das projeções do analisando, chamamos de identificação concordante. Já na identificação complementar, o terapeuta se identifica com o objeto interno do paciente, pois passa a ser tratado como tal (Bernardi, 2002; Eizirick & Lewkowics, 2005 Etchegoyen, 1987; Leitão, 2003; Racker, 1986; Zaslavsky & Santos, 2005). Etchegoyen (1987) contribui ainda com a idéia de que a identificação concordante está ligada à empatia e expressa a compreensão do analista, enquanto que a complementar está ligada a uma maior quantidade de conflito.

Grinberg (1995) postula que, por conta das identificações projetivas do paciente voltadas para o analista, este último se vê forçado inconscientemente a assumir um determinado papel. A esse fenômeno ele deu o nome de contra-identificação projetiva. Na sua concepção, fica evidente que o analista não participa com seus conflitos; pois todo o material é entendido como sendo proveniente das projeções do paciente. Contrariando o pensamento de Grinberg, a noção de campo psicanalítico, enfatizada por Baranger (1992), propõe a criação, no campo analítico, de uma nova formação que é produzida por um compartilhamento de pensamentos fantasmáticos. Isso quer dizer que a história pessoal de ambos os participantes (terapeuta e paciente) está presente e que cada um irá ocupar um papel imaginário estereotipado na sessão (Bernardi, 2002).

Partindo desse pressuposto, a sessão analítica passa a ser vista como aquilo que acontece entre paciente e terapeuta e não somente diz respeito a um ou a outro (Bernardi, 2002) e a estrutura dessa dupla “se constitui pelo interjogo de identificações projetivas e introjetivas, com seu corolário de contra-identificações” (Zaslavsky & Santos, 2005, p. 3).

Corroborando tal idéia, Odgen (1996) afirma que, num contexto analítico, não há separação entre paciente e terapeuta; eles, na realidade, não existem se não for entre si. Cria então o conceito de “terceiro analítico”, que seria “o produto de uma dialética única produzida por entre as subjetividades separadas do analista e do analisando dentro do setting analítico” (p. 60). Para que ocorra um bom processo terapêutico, este “terceiro analítico” deve ser superado e as subjetividades dos indivíduos em separado, porém interdependentes, devem ser reapropriadas. Nesse meio tempo, cada um dos participantes (terapeuta e paciente) vai desempenhar um papel inconsciente na fantasia do outro, ou seja, entre terapeuta e paciente se cria um espaço subjetivo e é nesse mesmo espaço que vão surgir os fenômenos inconscientes e conscientes.

Partilhando de concepção semelhante, Ferro (1997) acredita que o campo analítico, criado nestas circunstâncias, está habitado por personagens e é onde circulam papéis, criando espaços para a mudança. A cada sessão, estes elementos mudam, dando espaço para a criação das mais diferentes narrativas. Sampaio (2005), dissertando sobre a concepção de campo analítico, considera que é “um lugar espaço-temporal no qual são narradas histórias criadas em um conjunto a partir das ‘turbulências emocionais’ ativadas pelo encontro analítico” (p. 3). Por sua vez, Figueiredo (2003) entende que a contratransferência é uma resposta do analista frente às transferências do paciente e considera que uma condição básica dentro do trabalho analítico, embora traga alguns obstáculos, é “deixar-se colocar diante do sofrimento antes mesmo de saber do que e de quem se trata” (p. 2).

Esta característica da contratransferência como sendo algo inter-relacional e intersubjetiva é um modelo dominante nas práticas psicanalíticas atuais. Ela dá ênfase ao que acontece entre o terapeuta e o paciente e leva em consideração aquilo que está se passando na mente dos dois. Isso faz com que a pessoa do analista se torne presença inevitável, pois há uma comunicação inconsciente acontecendo na sessão (Saad, 2007). Nesse sentido, pode-se dizer que:

a pessoa real do analista está no centro da psicanálise contemporânea e refere-se à influência que as suas características pessoais têm sobre o processo da análise. O analista é ‘revelado’ no processo, nos seus silêncios e nas suas falas, como o é na escrita e nos relatos clínicos que faz. E o é até mais do que desejaria (Saad, 2007, p. 3).

Manfredi (1998) acrescenta que as tendências atuais da contratransferência são: (1) acreditar que ela não é mais produto só do paciente; (2) entender que uma das grandes dificuldades é diferenciar uma contratransferência normal de uma patológica; (3) acreditar que apenas tolerar a contratrans ferência já pode ser visto como terapêutico; (4) tentar fazer o processo inverso e ver o que tem do terapeuta no paciente e (5) refletir sobre se a contratransferência deve ser revelada ou não ao paciente.

Considerando que a contratransferência tem adquirido maior relevância no contexto terapêutico nos dias atuais, passando a ser vista como instrumento de trabalho do psicoterapeuta, sendo ele psiquiatra, psicoterapeuta ou psicanalista, este estudo buscou explorar como ela vem sendo utilizada por profissionais da área, visando aprofundar o conhecimento sobre como se manifesta na prática clínica.

MÉTODO

O estudo constitui-se numa pesquisa de natureza qualitativa, realizada através de um estudo exploratório com psicoterapeutas clínicos que se utilizam do referencial psicanalítico na sua prática profissional.

Participantes

Participaram da pesquisa três psicoterapeutas clínicos que utilizam em sua prática o referencial psicanalítico. Suas idades variaram entre 30 e 46 anos. Cada um deles possui consultório próprio, onde foram realizadas as entrevistas. Um dos entrevistados era do sexo masculino e duas do sexo feminino.

Instrumento

Para coleta de dados, foi realizada uma entrevista semi-estruturada contendo perguntas cujo foco era investigar de que forma a contratransferência estava presente em sua prática clínica. As perguntas foram as seguintes:

– O que você entende como contratransferência?
– De que forma você usa este recurso em sua prática clínica?
– Você revela sua contratransferência para o paciente?
– Em sua opinião, que tipo de sentimentos contratransferenciais é de difícil manejo?

Além disso, foi solicitado ao profissional que ele relatasse algum caso que havia atendido e os sentimentos contratransferenciais despertados.

Procedimentos de coleta e análise de dados

Os participantes foram escolhidos pelo critério de conveniência, através da indicação de conhe cidos. Inicialmente, foi estabelecido contato telefônico com os psicoterapeutas, convidando-os para participar do estudo. As entrevistas foram agendadas e realizadas, por solicitação deles, no consultório de cada um. Cada participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, demonstrando concordância com o estudo. As entrevistas tiveram a duração, em média, de 21 (vinte e um) minutos. Todas foram gravadas e posteriormente transcritas. Foi realizada uma análise de conteúdo (Bardin, 1991) para a descrição e compreensão dos dados. A autora sugere a organização da análise dividida em três etapas:

Pré-análise: É a fase em que são sistematizadas e operacionalizadas as idéias iniciais. Trata-se de uma etapa de organização ainda não estruturada. Tem como objetivo fazer com que o material a ser analisado seja preparado, para que se possam elaborar indicadores para a interpretação propriamente dita;

Exploração do material: É o momento da realização dos passos previamente desenvolvidos, configurando a definição das categorias de análise. Para que os dados sejam devidamente levantados é necessário proceder de modo sistemático e fazer uma exploração adequada.

Tratamento dos resultados: Os resultados brutos, já levantados, agora são trabalhados de forma a se tornarem significativos. Se forem significativos, efetivamente se pode propor inferências e realizar a interpretação a propósito dos objetivos do estudo.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A partir da realização das entrevistas e da leitura exaustiva do material, os dados foram analisados conforme quatro categorias de análise criadas a priori, a partir dos dados da revisão bibliográfica e dos objetivos definidos para o estudo, a saber: conceito de contratransferência, forma de utilização da contratransferência na prática clínica, revelação e dificuldade de manejo da contratransferência. A seguir são apresentadas as categorias, com exemplos ilustrativos do conteúdo trazido pelos participantes, ao mesmo tempo em que já se apresenta a integração com os pressupostos teóricos descritos na revisão bibliográfica.

A categoria 1 está ligada ao conceito de contratransferência e abrange os conteúdos relacionados ao entendimento que os terapeutas têm sobre a definição do conceito de contratransferência. A contratransferência foi definida pelos participantes como “um conjunto de emoções e sentimentos que despertam no terapeuta, causados pela relação transferencial do paciente” (terapeuta 3). Palhares (2008) aponta que a relação transferencial induz o terapeuta a uma resposta emocional frente ao analisando, ou seja, os afetos do analista se tornam presentes na sessão, constituindo a contratransferência. Joseph (1995), citado por Zaslavsky e Santos (2005), acredita que muito do que se entende da transferência do paciente está ligado à compreensão da forma como ele age sobre o terapeuta. O analisando aciona algo na transferência para que o terapeuta possa vivenciar o que ele vivencia e, com isso, fazer com o mesmo atue que nem ele. Desta forma, o analista só capta a transferência através de sua contratransferência, ou seja, pelos sentimentos que o paciente despertou nele.

Indo mais além, a terapeuta 2 a considerou como a “capacidade de se disponibilizar pro outro [...] essa capacidade de sermos um ‘para excitação’, de acolhermos aquilo em nós, identificarmos e traduzirmos ao paciente, para poder usar na transferência, na terapia [...] essa disponibilidade de sermos um pano de fundo, algo que o paciente vai poder usar do jeito dele”. Soares (2005) chama isso de empatia, ou seja, em parte o terapeuta precisa se identificar com o paciente e poder observar suas próprias reações. Para Sampaio (2005), a contratransferência pode ser vista como um instrumento na elaboração de insights e no conhecimento do paciente. A empatia, a responsabilidade e o cuidado para com o outro impulsionam esse mecanismo. O terapeuta deve estar disposto a receber e conter as projeções do paciente (Etchegoyen, 1987).

Os terapeutas, nas entrevistas, de certa forma, demonstram confusão sobre a origem do material: “a relação tem dois lados, porque da mesma maneira que a gente vai conhecendo as reações do paciente, ele também vai reconhecendo as nossas. Ele também vai criando sentimentos contratranferenciais nele e chega um momento que não fica bem claro o que pertence a quem” (terapeuta 3); “eu procuro ver o que está se passando comigo, para identificar se esse material não é exclusivamente do paciente ou se é só do paciente. Penso, sim, isso, transferencialmente, é só do paciente” (terapeuta 1). Observa-se que, na maioria das vezes, procuram situá-lo como material do paciente. Com relação a este tópico, Heiman (1950/1995) já colocava que a contratransferência é vista como algo complexo, contendo projeções do analista e da relação transferênciacontratransferência no aqui-e-agora. O que tem se buscado hoje, não é somente o entendimento das projeções e identificações do analisando. Cada vez mais, se olha para o processo entre terapeuta e paciente. A nova estrutura que será criada não pertence a um ou a outro, mas àquilo que está sendo criado entre eles (Bernardi, 2002). Brenner (1982), citado por Gabbard (1998), ainda acrescenta que a contratransferência no terapeuta e a transferência do paciente são processos similares e o que os difere é a forma como elas serão manejadas.

A contratransferência foi considerada por todos os entrevistados como uma ferramenta que auxilia no entendimento do inconsciente do paciente. “É uma ferramenta que nos auxilia a entender o inconsciente do paciente” (terapeuta 2); “ela é uma ferramenta fundamental em todo o processo terapêutico” (terapeuta 1). Esta definição está de acordo com a de vários autores que também valorizam a utilização da contratransferência como importante instrumento de trabalho do terapeuta (Eizirick & Lewkowics, 2005; Etchegoyen, 1987; Gabbard, 1998; Heiman, 1950/1995; Sampaio, 2005; Soares, 2005; Zaslavsky & Santos, 2005, 2006). Com isso, ela auxilia na investigação dos processos inconscientes do paciente, assim como seu diagnóstico e grau de regressão. Para que isto aconteça, o analista deve consultar sempre sua resposta emocional, levando em conta tanto elementos inconscientes como as pessoas reais do terapeuta e do paciente. Esse processo se torna mais difícil e demanda mais atenção para perceber as manifestações emocionais e comportamentais da dupla (Eirizick & Lewkowics, 2005).

Com relação ao que foi descrito acima, Racker (1986) acredita que podemos sentir e compreender o que o paciente sente e faz na relação com o analista através da contratransferência e que, portanto, o terapeuta pode intervir ou interferir no processo terapêutico. O principal instrumento de trabalho do terapeuta é ele mesmo. Sendo assim, a forma como ele utiliza as teorias e técnicas psicanalíticas atravessa todo o encontro analítico. Um analisando e um terapeuta não existem de forma separada. A contratransferência torna o terapeuta mais responsável pelo seu trabalho; ele não fica à margem do processo, pelo contrário, participa dele (Etchegoyen, 1987; Ogden, 1996; Soares, 2005; Zaslavsky & Santos, 2006).

A categoria 2 relaciona-se ao entendimento da forma como os terapeutas se utilizam da contratransferência em sua prática clínica, assim como alguns cuidados pertinentes a essa utilização. A contratransferência pode ser sentida através de um mal estar e é necessário tentar entender qual o papel do paciente nisso e ocupar-se em pensar no efeito do retorno dessa perturbação do terapeuta sobre o paciente (Zaslavsky & Santos, 2005). Antes de realizar qualquer intervenção baseada em seus sentimentos sobre o paciente, o terapeuta deve, em primeiro lugar, tolerar e elaborar seus próprios impulsos, sempre pensando de que forma eles se relacionam com aquilo que está sendo sentido (Eizirick & Lewkowics, 2005).

Como exemplo disso, o terapeuta 3 fez algumas contribuições: “Primeiro assim: quando um paciente desperta um sentimento em mim, eu tento ver as coisas que ele me traz de relações com outras pessoas. Se esse sentimento que ele desperta em mim, ele desperta nas outras relações, aí confirma a contratransferência [...] Um paciente que dá sono, cansaço, a gente se desinteressa. De repente, ele é um chato que, quando ele vai falar, as outras pessoas também se desinteressam. Então esse sentimento que eu tenho em mim, eu tento ver se nas relações que ele me traz se repetem”. Gabbard (1998) acrescenta que a contratransferência precisa de uma monitorização constante do terapeuta, que tem de estar ligado a todos os tipos de sentimentos despertados pelo paciente durante a sessão. Além disso, ele precisa estar sempre fazendo uma análise da raiz desses sentimentos dentro do contexto de suas relações passadas. A história pessoal de cada um dos envolvidos na análise (que inclui as intensidades, a irracionalidade, as reações inadequadas, exageradas, defensivas – tanto hostis como amorosas) deve ser valorizada no contexto. A partir do momento em que terapeuta e paciente se encontram, ali também se encontram as vivências de acontecimentos passados de ambas as partes, que será atualizada no tempo analítico (Palhares, 2008).

A terapeuta 2 revelou a utilização da contratransferência inclusive na definição das estratégias terapêuticas: “Eu acho que a contratransferência, não ajuda só a identificar o que se passa com o paciente e na relação, como ela ajuda a dar o enquadre pro tratamento, por exemplo, de quanto em quanto tempo tu vais ver aquela pessoa. Porque, se ela ta agredindo, é porque o processo está indo rápido demais pra ela. Então, temos que ir mais devagar. Nesse sentido, ajuda a ver o tipo de intervenção que vamos utilizar”. De uma forma ou de outra, o terapeuta participa da construção intersubjetiva do setting analítico, dando contornos para aquilo que está sendo vivenciado pela dupla (Ogden, 1996). Bernardi (2002) julga necessário que aconteçam dois olhares dentro da sessão analítica e que eles não devem acontecer de formas separadas. O primeiro está ligado ao material associativo trazido pelo paciente e o segundo é uma auto-observação do analista na relação com o mesmo. Dessa relação surgem as bases para a condução do processo terapêutico.

Foram levantados aspectos com relação aos cuidados com a utilização dessa ferramenta. As falas dos terapeutas revelaram alguns receios em relação ao momento e ao jeito de utilizar a contratransferência: “Jamais eu uso em paciente que está em avaliação. Com o paciente em início de tratamento, a contratransferência é perigosa” (terapeuta 1); “A contratransferência serve para conseguirmos pensar ‘isso aqui é um sintoma, isso aqui não é pra mim, então vamos ver o que eu posso fazer com isso’. Mas, às vezes, quando ela vem muito forte é um momento em que eu tento me cuidar ao máximo pra não fazer nenhuma intervenção baseada nela [...] Esse é o problema de quando a gente não conhece os nossos sintomas, de que eles nos paralisem. Quando a gente conhece, ótimo, a gente consegue ajudar o paciente melhor”. É necessário fazer uma diferenciação daquilo que pertence à realidade interna do terapeuta e aquilo que pertence ao paciente, pois, se olharmos somente por um ângulo, isso pode gerar erros (Manfredi, 1998). Em alguns momentos, o terapeuta corre o risco de perder sua empatia e neutralidade. Se isso ocorrer e ele não conseguir superar, significa que o paciente lhe projetou algo que torna o terapeuta inadequado para aquele caso em particular (Etchegoyen, 1987).

Etchegoyen (1987), assim como Zaslavsky e Santos (2005), nos alerta que o terapeuta deve analisar primeiro seu conflito, ver o ele tem de relação com o conflito do paciente e observar como aparece nesse último. Quando esse processo se cumprir, o terapeuta poderá ter condições de interpretá-lo para o paciente, pois assim ele não estará mais falando de si, mas daquilo que aconteceu com o paciente. Caso contrário, ele só estará tentando se livrar da perturbação sentida. O terapeuta 3 contribui nesse sentido: “Quando tu vai fazer uma interpretação contratransferencial, geralmente ela tem que ser uma interpretação centrada no terapeuta e não no paciente, para não passar só pra ele a responsabilidade”.

Os terapeutas 1 e 2 ainda falaram sobre quando a contratransferência pode paralisar ou “destruir” o processo terapêutico: “A contratransferência é melhor quando bloqueia, do que quando destrói. Prefiro que bloqueie, que a gente pare com aquilo ali e que nada aconteça e que se possa, em alguns momentos, fazer um corte e dizer: ‘a gente continua na outra semana, porque eu acho que hoje não vai dar mais’. Mas têm pacientes que vão se sentir extremamente agredidos ou abandonados e tu não pode agir assim, tem que ficar ali até o fim da sessão, porque ele quer viver aquilo ali contigo então é melhor que não se faça nada, porque às vezes a sensação está pra além da nossa capacidade de gestão psíquica. Então, é melhor bloquear do que o terapeuta atuar também” (terapeuta 2); “Pode chegar a um ponto de criar um obstáculo, de travar [...] mas, à medida que se entende o que ocorre, se torna mais fácil. O terapeuta consegue diminui essas travas” (terapeuta 1).

Com relação às citações acima, Sampaio (2005) coloca que quando o terapeuta se vê perdido em seus sentimentos, ele precisa se perguntar a função que essa perturbação emocional desempenha no interior do paciente e que tipo de afeto o mesmo está demonstrando no momento. Se for momentâneo e se desfizer, a contratransferência está funcionando bem. Caso contrário, se os sentimentos permanecem, é porque o terapeuta não soube tolerá-los e pode então voltá-los para si mesmo ou projetar no paciente. O terapeuta tem de estar ciente de seus próprios limites, pois algumas de suas dificuldades, por mais empenho que o mesmo faça, continuarão a existir. Os limites do terapeuta, em conluio com os limites do paciente, podem provocar impasses no andamento do processo terapêutico (Saad, 2007).

Outras vezes, interpretações prematuras podem provocar culpa no paciente, rechaço, aumentando as defesas, promovendo regressões e até causando a interrupção do tratamento. Uma avaliação errada sobre o paciente pode até mesmo influenciar e distorcer a contratransferência do analista, levando-o a atitudes irritadas ou ressentidas, o que se reflete, por sua vez, no comportamento do analisando (Saad, 2007; Soares, 2005). Etchegoyen (1987) disserta que o conteúdo e a forma da interpretação expressam, às vezes, a contratransferência. A maioria das reações contratransferenciais, quando não é transformada em instrumentos técnicos, é encaminhada para uma interpretação errada ou então mal formulada.

Considerando a possibilidade de “destruição” pelo uso inadequado da contratransferência, o terapeuta 3 trouxe um caso em que ela pode ter sido mal utilizada e, portanto, atuada: “Tem uma paciente que tem dificuldade de se vincular. Então ela veio para terapia contando uma história de que precisava muito se tratar, mas muito vazio, e ela não me convenceu de que ela precisava de tratamento. Então eu intervi assim: ‘Eu não estou convencido de que tu precisas de tratamento’[...] Ela não voltou na próxima sessão. Talvez foi uma atuação da minha contratransferência. Foi uma contratransferência mal utilizada, porque na cabeça da paciente, o fato de ela me procurar, vir na consulta, era manifestação de um desejo. Sendo assim, ou eu coloquei mal, ou eu percebi uma contratransferência. Hoje eu tenho essa dúvida, se foi uma contratransferência, ou se de fato eu percebi que ela não estava motivada para se tratar, até onde era contratransferência e até onde não era”.

Outra questão que foi apontada quanto à utilização da contratransferência diz respeito ao saber diferenciar o que é do paciente e o que é do terapeuta. A terapeuta 2 faz uma contribuição nesse sentido: “não é excluir, é utilizar o que é meu junto, para poder entender o que é dele [paciente] e o que é meu, porque sempre tem coisas nossas”. Nesse sentido, os terapeutas consideram que a identificação da origem do material (apesar de confusa, como descrita na categoria anterior) é importante de ser realizada para que se utilize da contratransferência terapeuticamente. Racker (1986) nos fala da contratransferência concordante, que seria uma contratransferência onde o ego do terapeuta identifica-se com o ego, o id e o superego do paciente, conseguindo diferenciar o que pertence a si e o que pertence ao paciente. Porém, em algum outro momento, pode surgir o que Grimberg (1995) chamou de contra-identificação projetiva. Este conceito está relacionado ao fato de o terapeuta não perceber, conscientemente, a identificação projetiva maciça do paciente, passando a desempenhar o papel, mesmo que inconscientemente, que o paciente incitou dentro de si.

A categoria 3 de análise abarca o posicionamento dos entrevistados sobre o costume de revelar ou não seus sentimentos contratransferenciais para o paciente e os motivos que os levam a tal ato. Com relação a este quesito, os entrevistados tiveram respostas bem diferentes: “Não, eu não revelo, acho perigoso revelar” (terapeuta 1); “Depende muito da situação. É claro que nunca se revela na hora.” (terapeuta 2) e “Tenho o costume de revelar. Não todas as vezes, mas, em algumas vezes, eu revelo” (terapeuta 3). Manfredi (1998), Eizirick e Lewkowics (2005) apontam que uma das controvérsias atuais se refere, predominantemente, a melhor maneira de utilizar a contratransferência, bem como a todos os cuidados necessários para a inclusão no processo de entender os acontecimentos do campo, incluindo sua revelação.

Interpretar qualquer tipo de material vindo do paciente merece cuidado. Chama-se de interpretação toda intervenção verbal, por meio da qual, o terapeuta torna consciente o material inconsciente do paciente, de uma maneira afetiva e significativa para o último. Ela deve ser comunicada ao paciente, quando este for capaz de entendê-la, não só intelectualmente, mas principalmente com afetos correspondentes (Soares, 2005). Bernardi (2002) acredita que ela sirva como recurso no processo analítico que faz com que o paciente tenha insights. Baranger (1992) nos fala que a escolha do momento de interpretar (ponto de urgência) deve levar em consideração o que está se passando dentro do campo intersubjetivo, que engloba ambos os participantes.

Os motivos de não revelar a contratransferência variaram entre: “Eu acho perigoso. Tecnicamente, a gente está fugindo da neutralidade, da abstinência, está revelando questões nossas... a não ser uma contratransferência de emoção” (terapeuta 1); “Eu acho que, para certos pacientes, uma interpretação é uma agressão. Então, a contratransferência te ajuda muito a poder entender a situação para alguns pacientes mais inteiros. [...] Mas tem paciente que o terapeuta só vai utilizar a contratransferência para saber o que o paciente está precisando, que tipo de postura temos que ter” (terapeuta 2). Manfredi (1998) e Etchegoyen (1987) revelam que a maioria dos terapeutas é contra a revelação, mas acreditam que ela aconteça com bastante freqüência na prática clínica dos mesmos. Manfredi (1998), declarando que também é contra essa prática, acredita que, fazendo isso, estaria colocando preocupações para o paciente que não vem dele. Porém, tentar esconder alguns sentimentos que ficam transparentes para o paciente pode fazer com que o paciente acredite que o analista não tem coragem de enfrentar aquilo que está acontecendo no setting. Além desse argumento contra a revelação, a mesma autora ainda cita outros: (1) pode gratificar em demasia o paciente; (2) ela só serve para atender as necessidades do analista, pois tudo que o analista consegue “resistir” e “tolerar” ajuda também ao paciente e (3) o analista pode alcançar o que deseja por outros meios que não a revelação.

O terapeuta 3 comentou que tem o costume de revelar sua contratransferência em certas ocasiões. Ele apontou como justificativa para a revelação o enriquecimento do processo terapêutico: “Eu acho que enriquece o processo terapêutico e também nos ajuda a lidar com a situação e com os sentimentos que estão dentro da gente. Então, quando eu consigo devolver para o paciente, eu consigo tirá-lo de dentro de mim. Eu devolvo para que ele consiga compreender. Ele vai poder examinar se isso que aconteceu na relação comigo não acontece em outras relações da vida dele e, com isso, ele vai ter um conhecimento”. Sampaio (2005, p. 1) acredita que:

instrumentalizando seu próprio inconsciente para a interpretação, o analista introjeta a comunicação do paciente e elabora as informações captadas, compre endendo o paciente dentro de si, oferece-lhe sentido.

Além disso, o paciente pode descobrir, através da revelação dos sentimentos do terapeuta, o que ele provoca nas outras pessoas com as quais convive. Isso auxiliaria a função continente do terapeuta, demarcando uma margem, um limite que o paciente não pode atravessar sem sofrer outras perdas (Etchegoyen, 1987; Manfredi, 1998; Zaslavsky & Santos, 2006).

Outros motivos que levam alguns terapeutas a expor seus sentimentos contratransferenciais para o paciente podem ser listados, segundo Manfredi (1998) e Zaslavsky e Santos (2006), como: (1) a revelação confirma ao paciente seu senso de realidade diante de algumas situações; (2) mostra ao paciente a honestidade e a humanidade do analista; (3) se o terapeuta admitir sua própria transferência, isso abriria portas para que o paciente se sentisse encorajado para fazer o mesmo e (4) revelar pode por fim a alguns impasses criados na relação paciente-terapeuta, que não puderam ser resolvidos de outra forma.

Corroborando a idéia de confirmação do senso de realidade do paciente, o terapeuta 3 exemplifica: “O terapeuta diz: ‘realmente eu me irritei contigo, então vamos examinar o porque eu fiquei irritado. Tu percebeu bem’. Eu não posso dizer que eu não fiquei irritado, porque se não o paciente vai achar que eu estou atacando o senso de realidade dele. Se eu digo: ‘Ah não, eu não estou irritado contigo’ e, na verdade, tive alguma reação, eu fico como se estivesse delirando junto com ele. Então tem que ter um cuidado, porque justamente para estes pacientes mais graves, o terapeuta negar o senso de realidade e o sentimento que ele despertou em ti pode estar agravando o lado psicótico”. Winicott (1949/1978) não se preocupava em esconder, por exemplo, sua raiva ou sua intolerância e isso, muitas vezes, só confirmava a percepção que o paciente tinha do que estava acontecendo. Assim, essa revelação ajudava o paciente a resistir a sua própria raiva e realimentava o senso de realidade do mesmo.

Quando se escolhe comunicar ao paciente alguma interpretação baseada na contratransferência, é necessário primeiramente tentar ajudar o paciente a falar sobre o que está o deixando perturbado (Ogden, 1996). Não é adequado se utilizar dela quando os sentimentos despertados no terapeuta não estão de acordo com o material levantado pelo paciente, pois esse material pode não ter ligação direta com o paciente ou pode estar muito longe de sua consciência. Entretanto, o fato de o enquadre exigir que só falemos do paciente não exclui a possibilidade de enxergarmos nossos erros e nossos conflitos (Etchegoyen, 1987), pois “não se trata de aclarar o que o analista sentiu, mas de como o paciente sentiu e de respeitar o que ele pensou” (p. 161).

Por fim, a categoria 4 está relacionada a alguns sentimentos e tipos de patologia que são de difícil manejo para o terapeuta diante de sua contratransferência. Surgiram diversos sentimentos contratransferenciais que os terapeutas têm dificuldade de manejar entre eles a impotência, o sentimento de perda, o medo, a raiva, a irritação, o rechaço e o desprezo.

O enlace da transferência-contratransferência traz muitas inquietações para o analisando e também para o analista. A parte que cabe ao analista é a de poder suportar ser tocado na transferência, pela raiva, pela irritação, pela indiferença, pela repetição e, até mesmo, pelo amor, sem deixar de estar ligado com o outro (Palhares, 2008). Racker (1986) revela que uma conduta perversamente agressiva provoca certo grau de angústia perseguidora e agressão reativa no analista. Isso pode ocorrer porque o terapeuta se identificou com partes do ego do paciente que estão dissociadas ou projetadas sobre ele, ou com objetos internos próprios, o que fez com que ele se sentisse ameaçado ou atacado. Os terapeutas 2 e 3 revelaram dificuldade de manejo da contratransferência quando ela envolve sentimentos relacionados à agressividade: “acho muito difícil de lidar com a raiva” (terapeuta 2). “A irritação é um sentimento difícil de lidar, porque temos que sentir, absorver ela dentro de ti e transformar para que não chegue para o paciente como uma coisa de bateu, levou. [...] Mas essas questões mais agressivas, que fogem muito do controle, acho que isso é uma questão difícil. [...] Assim como o rechaço e o desprezo, porque o terapeuta vai querer se livrar daquela pessoa, não vai querer estar com ela.” (terapeuta 3).

Sampaio (2005) nos fala que as disfunções que aparecem no campo analítico podem ser sinalizadas por atuações do paciente, gerando também disfunções no funcionamento mental do analista. A introjeção profunda e prolongada do material do paciente muitas vezes sobrecarrega o terapeuta, gerando sentimento de incapacidade, impotência e reativando pontos não resolvidos no mesmo. Os terapeutas 1 e 2 falaram da dificuldade de lidar com os sentimentos de impotência: “a impotência, se sentir impotente em relação a uma situação” (terapeuta 1); “o medo é uma coisa que tenho dificuldade de lidar. Quando eu sinto que um paciente possa vir a se machucar, aparece o meu receio de não poder fazer nada, a impotência” (terapeuta 2).

A impotência também está associada às vivências de perda assinaladas pelo terapeuta 3: “Esse tipo de sentimento de perda, de impotência, de querer ajudar alguém que vai morrer, que tem um câncer ou uma outra situação, leva o terapeuta a também entrar no luto, porque se está investindo em alguém que vai morrer e o terapueta também vai perder afetivamente no tratamento. São sentimentos difíceis da gente lidar” (terapeuta 3). Saint-Martin (1998), ao descrever sua experiência com pacientes oncológicos graves, revela que a confrontação com sua impotência diante dos casos, e o esfacelamento do corpo, atingiam em cheio seus componentes narcísicos, dificultando o processo terapêutico.

Com relação a algum tipo de patologia que gere sentimentos contratransferenciais de difícil manejo, o terapeuta 3 pontuou: “Se aparece um pedófilo no consultório é uma dificuldade. Acho que para a maioria das pessoas. Ele vai te descrevendo aquela situação e o teraputa vai ficando com nojo. Então ele não quer estar ali, quer te livrar do paciente. A gente fica louco para que ele não volte na outra consulta. [...] Do mesmo modo nos casos de transtorno de caráter, perversão sexual, essas coisas. Eu acho bem mais difícil. [...] Atender uma histérica, se tu é meio inexperiente e não entende que aquilo ali é uma doença e que não é sexualizado, que não é tesão, que é uma necessidade pra ela te conquistar, é difícil porque favorece com que o terapeuta possa atuar e ir para as vias de fato, o que vai se tornar um problema grave”. Gomes e Neto (2006), ao relacionar sentimentos contratransferenciais com histeria, citam que o terapeuta possa alimentar sentimentos de culpa, de ser especial e admirado pelo paciente, mas principalmente se sente desesperançoso e impotente. No atendimento de pacientes com patologias graves, onde o processo transferência-contratransferência se torna mais intenso e regressivo, ativando partes soturnas do terapeuta, “a idéia de padrões de respostas ou papéis do analista em função dos padrões de comportamento e funcionamento do paciente” (Zaslavsky & Santos, 2005) se torna ainda mais importante.

Antonelli (2006), ao falar sobre os sentimentos despertados no analista diante de pacientes difíceis, mais especificamente, pacientes borderline, declara que a turbulência emocional disposta ali faz com que surjam sentimentos de amor e ódio para com o paciente. Em momentos onde a angústia toma conta do analista, é necessário que ele permaneça sendo continente para com o material que o paciente traz, abrindo caminho para a compreensão do mesmo. À medida que os sentimentos difíceis vão se acomodando dentro do terapeuta, ele abre espaço para visualizar outras formas de intervenções, que não são aquelas que o paciente inconscientemente incute nele. Nos dias atuais, de acordo com Manfredi (1998, p. 136):

[...] estamos enfrentando patologias mais graves, como estados limítrofes e distúrbios narcisistas de personalidade e para isso precisamos tirar de dentro de nós emoções mais violentas, estados de espíritos nada passageiros, pra não falar de tempestades contratransferenciais inconscientes.

Dependentes químicos ou pacientes com traços obsessivos também foram citados como patologias de difícil manejo. “O dependente químico, o traço de personalidade compulsivo, é algo com maior dificuldade. Os obsessivos compulsivos, as manias, elas são complicadas, porque daqui a pouco, se o terapeuta sentou diferente na poltrona, o paciente já fica extremamente ansioso com aquilo.” (terapeuta 1); “São traços da personalidade que acabam gerando uma depressão crônica, não orgânica, que o remédio vai ajudar, mas é aquela pessoa de mal com a vida, sempre reclamando, poucos amigos, carente de relação. Então é um sentimento muito difícil e que é muito comum hoje em dia [...] hoje é uma realidade que é o uso de crack e drogas. Como o principal mecanismo de defesa é negação, projeção e intelectualização é difícil” (terapeuta 3).

Occhini e Teixeira (2008) apontam que o tratamento de dependentes químicos é uma tarefa árdua que requer muito cuidado por parte dos profissionais envolvidos. Uma das dificuldades encontradas nesse processo é justamente a falta de reconhecimento do problema pelo próprio paciente, que espera quase sempre por uma cura milagrosa e menos trabalhosa. A resistência ao tratamento é presença constante, gerando muita frustração no profissional que cuida deste tipo de paciente.

Com base nos dados expostos acima e no seu embasamento teórico, podemos afirmar que a contratransferência realmente existe dentro do contexto analítico, se tornando parte essencial dele. Por todos os entrevistados, ela foi vista como ferramenta de trabalho que ajuda na compreensão do que se cria na sessão, ligando o que se passa na mente do paciente com o que se passa no analista. A utilização desse instrumento varia de profissional para profissional, o que pode estar ligado ao tempo de formação do terapeuta, assim como sua idade e experiência em atendimentos, dados estes não contemplados nessa pesquisa. Porém, como citado anteriormente, é imprescindível se ter cuidados com seu uso. O próprio fato de revelar ou não a contratransferência ao paciente já está ligado à utilização da mesma e nesta questão observou-se diferenças entre os terapeutas. Podemos citar a impotência, a raiva e a irritação como sentimentos contratransferenciais de difícil manejo e dependentes químicos, pacientes com transtornos de personalidade graves, perversões sexuais e traços obsessivos como aqueles que geram maior desconforto contratransferencial no terapeuta. Contudo, vale salientar que cada terapeuta tem sua história de vida e o que gera dificuldade em um pode não necessariamente gerar em outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contratransferência vem se constituindo, ao longo dos anos, como uma ferramenta indispen sável em todo e qualquer processo terapêutico. Embora tenha passado por algumas modificações, ela geralmente é conceituada como o conjunto de reações inconscientes que o paciente desperta no analista. Os três terapeutas entrevistados demonstraram conhecimento da conceituação, apesar de terem dificuldade em defini-la objetivamente. De acordo com Leitão (2003), os analistas reconhecem que descrever o conceito de contratransferência é uma tarefa muito complexa, pois está em jogo identificações tanto do paciente, quanto do terapeuta, incluindo aqui a história e a personalidade real desse último. Por este motivo, o foco atual está naquilo que a dupla produz entre si e não o que cada um produz separadamente (Leitão, 2003). Os terapeutas, apesar de falarem que o material da contratransferência é fruto da relação, quando tentaram exemplificar situações, acabaram preponderantemente situando os conteúdos como sendo do paciente, provavelmente ainda em uma tentativa de manterem a neutralidade. Por exemplo, a terapeuta 1 disse ter cuidado ao utilizar a contratransferência, pois isso estaria infringindo a regra da neutralidade.

Não se pode negar que ela existe e que deve ser utilizada como recurso terapêutico, porém, como descrito anteriormente, seu uso suscita cuidados. Umas das controvérsias atuais é qual a melhor forma de utilizá-la na prática clínica. Dentro dessa discussão, a revelação de sentimentos contratransferenciais divide opiniões. Este estudo evidenciou os diferentes pontos de vista, na medida em que cada um dos participantes tinha um posicionamento específico em relação à revelação. Manfredi (1998) acredita que, para se debater melhor este tema, é necessário que se incluam outros fatores, como o tipo de patologia, o tipo de caráter do terapeuta e a qualidade dos sentimentos contratransferenciais.

Diversos são os sentimentos despertados dentro de uma sessão, porém alguns deles são capazes de paralisar o andamento da psicoterapia. Paralisar ou “destruir”, como referiu a terapeuta 2, dependendo do quanto o terapeuta reconhece seus sentimentos e utiliza-os na contratransferência. Para que o terapeuta possa suportar até mesmo os sentimentos mais destrutivos, é necessário que ele conheça seus próprios limites, contando, para isso, com a ajuda de supervisão e análise pessoal, se for necessário (Saad, 2007; Zaslavsky & Santos, 2005). Foram citados como sentimentos mais difíceis de lidar a raiva, a impotência e a irritação, o que pode servir de alerta para que os terapeutas tomem cuidado em identifícá-los durante o processo analítico.

Ao final desse trabalho, a certeza que ficou é a de que a contratransferência segue com questões sem respostas. Traduzir a prática clínica em palavras é muitas vezes contraditório ao que realmente se passa nesse espaço. Isto porque as palavras tentam descrever algo que está na dimensão do comunicável e aquilo que se dá na vivência clínica ultrapassa o que se tenta objetivar na escrita. Portanto, a possibilidade de se descrever o que acontece na clínica está em manter a tensão entre aquilo que é partilhado e aquilo que não se compartilha a não ser através da arte ou da transferência (Palhares, 2008). Descrever algo sobre contratransferência não seria diferente.

 

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Correspondência

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Denise Falcke, Rua Alberto Silva, 1015/302, Vila Ipiranga – Porto Alegre/RS – Brasil, CEP 91370-001. E-mail: dfalcke@unisinos.br, dfalcke@yahoo.com

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