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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica vol.29 no.4 Lisboa nov. 2011
A adaptação ao cancro da mama nas fases de diagnóstico e sobrevivência: Será o investimento na aparência um factor explicativo relevante?
Helena Moreira* e Maria Cristina Canavarro*
* Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra
RESUMO
O investimento na aparência é um factor importante na explicação das diferenças individuais na adaptação às alterações corporais associadas ao cancro da mama. Esta variável refere-se à importância atribuída pelo indivíduo à sua aparência física e engloba as facetas saliência auto-avaliativa (SAV; grau em que o indivíduo considera que a sua aparência integra a sua identidade e permite aferir o seu valor pessoal) e saliência motivacional (SM; grau em que o indivíduo está atento ou valoriza a gestão da aparência, de forma a acentuar a sua atractividade física). Este estudo pretende analisar o papel destas duas facetas na adaptação às fases de diagnóstico e sobrevivência da doença. A amostra engloba 82 mulheres recentemente diagnosticadas com cancro da mama e 86 sobreviventes. Verificou-se a ausência de diferenças significativas entre os grupos nas duas facetas do investimento. Simultanea mente, constatou-se que ambas as facetas contribuíram para a explicação de diversos indicadores de adaptação, particularmente no grupo de sobreviventes, estando a SM associada a resultados mais adaptativos e a SAV a resultados mais disfuncionais. Este trabalho demonstra que a compreensão do valor que a mulher atribui à sua aparência é extremamente importante para a sua adaptação, em ambas as fases do cancro da mama.
Palavras-chave: Adaptação, Cancro da mama, Investimento na aparência, Saliência auto-avaliativa, Saliência motivacional.
ABSTRACT
Appearance investment is an important factor for the explanation of individual differences in the adjustment to breast cancer-related appearance changes. It concerns the importance an individual places on their appearance and encompasses the self-evaluative salience facet (SES; the importance an individual places on physical appearance for their definition of self-worth) and motivational salience facet (MS; the individual’s efforts to be or feel attractive). This study aims to analyse its role on the adjustment to the diagnosis and survival phases of the disease. The sample encompasses 82 newly-diagnosed breast cancer patients and 86 breast cancer survivors. No differences were observed between groups on both facets of investment. Additionally, both facets contributed to the explanation of several adjustment indicators, particularly among survivors, with SM being associated with more adaptive indicators and SES with more dysfunctional outcomes. This study demonstrates that understanding the value that women attributes to their appearance is extremely important for their adjustment, in both phases of breast cancer.
Key-words: Adjustment, Appearance investment, Breast cancer, Motivational salience, Self-evaluative salience.
INTRODUÇÃO
O cancro da mama é um acontecimento adverso e potencialmente traumático, que tem, habitualmente, um impacto muito significativo no funcionamento psicossocial da mulher e na sua qualidade de vida (QdV; Breitbart & Holland, 1993; Hewitt, Herdman, & Holland, 2004). Efectivamente, esta doença pode conduzir ao desenvolvimento de níveis elevados de perturbação emocional, não só por ser percepcionada pela mulher como uma ameaça à sua vida mas, também, por estar associada a um conjunto de tratamentos, geralmente prolongados e aversivos.
Os tratamentos para o cancro da mama, tal como a quimioterapia ou a mastectomia, implicam, na maioria dos casos, alterações significativas na imagem corporal da mulher (Hopwood, Fletcher, Lee, & Al-Ghazal, 2001; Rumsey & Harcourt, 2005). Estas modificações, nomeadamente a alopécia ou a amputação da mama, são frequentemente sentidas pelas doentes como mais pertur badoras e com maior interferência no seu bem-estar psicológico do que outros efeitos secundários dos tratamentos como, por exemplo, as náuseas ou a fadiga (White, 2002). Simultaneamente, podem funcionar como lembranças vívidas e constantes da doença e dos tratamentos, intensifi cando o medo de uma recidiva (Rumsey & Harcourt, 2005; White, 2002).
No processo de adaptação às alterações corporais existem importantes diferenças individuais. Se algumas mulheres sentem grandes dificuldades em lidar com estas modificações, outras apresentam uma boa adaptação quando confrontadas com as mesmas situações (Petronis, Carver, Antoni, & Weiss, 2003; White, 2000, 2002). Por este motivo, é importante identificar e compreender as razões subjacentes a uma maior vulnerabilidade ou resiliência perante as referidas alterações, identificando potenciais factores protectores e de risco. De acordo com Petronis et al. (2003), estes factores podem incluir, por exemplo, o tipo de cirurgia, o tipo de tratamento adjuvante, algumas características de personalidade (e.g., optimismo/pessimismo), as estratégias de coping ou as diferenças no autoesquema sexual. Segundo os mesmos autores, um outro importante factor na explicação destas diferenças individuais, e sobre o qual se centra o presente trabalho, diz respeito ao investimento na aparência, ou seja, à importância cognitiva, emocional e comportamental atribuída pelo indivíduo à sua imagem corporal (Carver et al., 1998; Cash, 2002; Cash & Labarge, 1996).
O investimento na aparência é um componente central do conceito de imagem corporal. Actualmente e, em grande medida, devido ao contributo do modelo desenvolvido por Cash (2002), considera-se que a imagem corporal é um constructo multidimensional, constituído por duas dimensões essenciais: por um lado, as percepções e, por outro, as atitudes relativas ao próprio corpo (Cash, 2002; Cash & Labarge, 1996). Enquanto a primeira dimensão diz respeito à avaliação do indivíduo relativamente ao seu corpo, a segunda, relaciona-se com os sentimentos (componente avaliativa/afectiva) e com os pensamentos e crenças associados à sua imagem corporal (componente cognitiva/de investimento) (Cash, 2002; Cash & Szymanski, 1995).
Intrinsecamente associado ao conceito de investimento, encontra-se o conceito de esquemas da aparência, desenvolvido por Cash e Labarge (1996). Este, baseia-se na definição de autoesquema de Markus (1977), segundo a qual um auto-esquema consiste nas “generalizações cognitivas acerca do self, que derivam da experiência passada e que organizam e guiam o processamento de informação relacionada com o self” (p. 64). Assim, os esquemas da aparência referem-se às generalizações cognitivas acerca da importância, do significado e dos efeitos que a aparência tem na vida do indivíduo (Cash & Labarge, 1996), desempenhando, deste modo, um importante papel no processamento de informação, ao influenciarem a atenção, a memória e a interpretação de informação relacionada com a aparência física (Altabe & Thompson, 1996; Cash & Labarge, 1996; Cash, Melnyk, & Hrabosky, 2004; Hargreaves & Tiggemann, 2002).
De acordo com Cash (2002), o investimento é constituído por duas facetas distintas: a saliência auto-avaliativa (SAV) e a saliência motivacional (SM). A SAV diz respeito ao grau em que o indivíduo considera que a sua aparência integra a sua identidade e permite aferir o seu valor pessoal e o seu auto-conceito, bem como a crenças de que a sua aparência desempenha um papel instru mental nas suas experiências emocionais e sociais (Cash, Melnyk, & Hrabosky, 2004; Ip & Jarry, 2008; Jakatdar, Cash, & Engle, 2006). Por sua vez, a SM refere-se ao grau em que o indivíduo está atento ou valoriza a gestão da aparência, de forma a acentuar a sua atractividade, ou seja, está relacionada com os esforços dirigidos para a melhoria ou manutenção de um determinado nível de atractividade física (Cash, Melnyk, & Hrabosky, 2004; Ip & Jarry, 2008).
A investigação tem mostrado que entre estas duas dimensões do investimento existem diferenças fundamentais. Enquanto a SAV parece reflectir atitudes tendencialmente disfuncionais, a SM parece não ser necessariamente patológica se o objectivo do indivíduo for apenas manter um determinado nível de atractividade, desde que os esforços implementados sejam independentes de crenças sobre a importância da aparência para o auto-valor (Cash, Phillips, Santos, & Hrabosky, 2004; Ip & Jarry, 2008). Efectivamente, alguns estudos têm evidenciado que a SAV é mais disfuncional, associando-se a um maior número de distorções cognitivas relacionadas com a imagem corporal (Jakatdar et al., 2006), a maior insatisfação corporal (Cash, Phillips, et al., 2004), a menor auto-estima (Cash, Melnyk, & Hrabosky, 2004) e interferência em várias áreas do funcionamento psicossocial (Cash, 2005; Ip & Jarry, 2008). Em doentes com cancro da mama têm sido encontrados resultados semelhantes. Por exemplo, Moreira, Silva e Canavarro (2010) verificaram que uma maior SAV estava associada a uma pior QdV social e psicológica e a níveis superiores de depressão, tendo-se verificado associações opostas com a SM. Num estudo posterior, Moreira e Canavarro (2010) observaram ainda que a SAV e a SM avaliadas numa fase inicial da doença prediziam a sintomatologia depressiva na fase de recuperação, estando a SAV associada a níveis superiores de depressão e a SM, pelo contrário, a níveis inferiores.
Embora a investigação em Psico-oncologia tenha vindo a dedicar-se cada mais à compreensão do impacto das alterações corporais na adaptação individual e mesmo relacional à doença, o papel do investimento tem sido largamente negligenciado, tendo sido abordado maioritariamente de forma indirecta. Carver et al. (1998) foram pioneiros nesta área, ao estudarem directamente o papel desta variável numa amostra de doentes com cancro da mama. Os seus resultados corro boraram a sua hipótese inicial de que o impacto emocional da cirurgia seria maior nas mulheres cuja auto-estima depende em grande medida da sua aparência, ou seja, mostraram que o investimento pode ser um factor de vulnerabilidade para um conjunto de dificuldades psicológicas após a cirurgia. Contudo, verificaram também que esta variável funcionou igualmente como um factor protector ou “recurso psicológico” (p. 172), na medida em que atenuou o impacto negativo da doença na percepção de atractividade e de desejabilidade sexual da mulher (Carver et al., 1998).
Petronis et al. (2003) procuraram replicar os resultados encontrados por Carver et al. (1998), utilizando para esse efeito uma amostra maior de mulheres com cancro da mama. No entanto, constataram que o investimento na aparência não predizia níveis superiores de perturbação emocional, o que, segundo os autores, levanta algumas questões sobre a importância desta variável enquanto factor de vulnerabilidade para uma pior adaptação à doença (Petronis et al., 2003). No entanto, os autores chamam a atenção para algumas limitações do seu estudo que poderão ter condicionado os resultados referidos, particularmente o momento em que as doentes foram avaliadas (pouco tempo após o término dos tratamentos adjuvantes, altura em que, segundo os autores, poderá não ser a mais apropriada para avaliar esta variável).
Também Lichtenthal, Cruess, Clark e Ming (2005) procuraram avaliar a influência do investimento na adaptação de doentes ou pessoas em risco de melanoma maligno, tendo observado que os sujeitos que investiam mais na sua aparência apresentavam níveis inferiores de adaptação, medida pela fadiga e stress percebido.
Para além dos estudos referidos, este constructo foi também considerado no modelo teórico cognitivo-comportamental de compreensão da imagem corporal em doentes oncológicos, desenvolvido por White (2000, 2002). De acordo com este modelo, para os indivíduos cuja autoimagem é fundamental na determinação do seu valor pessoal, as alterações resultantes de uma doença oncológica irão ter, com maior probabilidade, um impacto negativo maior, podendo determinar uma pior adaptação à doença (White, 2000).
Objectivos e hipóteses
Dada a escassa investigação sobre o investimento na aparência no campo da Psico-oncologia e, especificamente, em doentes com cancro da mama, este estudo foi desenvolvido com o principal objectivo de explorar o papel desta variável na adaptação psicossocial de uma amostra de mulheres recentemente diagnosticadas com cancro da mama e sobreviventes desta doença.
A adaptação foi operacionalizada através de diferentes indicadores. Actualmente, não existe ainda uma definição consensual de adaptação, embora vários autores considerem que esta diz essencial mente respeito à QdV e aos estados emocionais (Bárez, Blasco, Fernández-Castro, & Viladrich, 2009; Butler et al., 2006; Stanton, Danoff-Burg, & Huggins, 2002). Contudo, uma compreensão mais abrangente da adaptação a uma doença, nomeadamente o cancro da mama, exige que se considerem também outros aspectos ou áreas de vida que poderão, igualmente, ser influenciados pela doença. Neste sentido, foram incluídos não só os indicadores de adaptação habitualmente analisados na Psico-oncologia, como a QdV psicológica e a adaptação emocional (sintomatologia ansiosa e depres siva), mas também outras variáveis, como o medo da avaliação negativa dos outros e o desconforto com a aparência física.
Especificamente, o presente trabalho apresenta os seguintes objectivos:
- (1)
- Comparar dois grupos distintos de doentes, correspondentes a duas fases do cancro da mama (fase de diagnóstico recente e sobrevivência), relativamente às duas facetas do inves timento. Considerando que o investimento é definido como uma variável estrutural e, por isso, estável, não são esperadas diferenças entre os dois grupos avaliados.
- (2)
- Explorar o contributo da SAV e da SM para a explicação de diversos indicadores de adaptação, em ambas as fases da doença. O investimento na aparência pode ser um impor tante factor na explicação das diferenças individuais na adaptação à doença e às alterações na imagem corporal, podendo funcionar não só como um factor de vulnerabilidade para diversas dificuldades psicológicas, mas também, como Carver et al. (1998) salientaram, como um factor protector, atenuando o impacto da doença em algumas áreas. O papel da faceta SM, quanto potencial factor protector e o papel da faceta SAV, quanto potencial factor de vulnerabilidade, serão explorados. Assim, esperamos que a SM funcione como um factor protector, predizendo melhores resultados adaptativos, nomeadamente, uma melhor QdV psicológica, níveis inferiores de ansiedade e depressão, menor medo da avaliação negativa dos outros, e menor desconforto com a aparência; contrariamente, esperamos que a SAV funcione como um factor de vulnerabilidade, predizendo uma pior QdV psicológica, níveis superiores de ansiedade e depressão, maior ansiedade social e maior desconforto com a aparência física.
METODOLOGIA
Participantes e procedimento
A amostra é constituída por um total de 168 mulheres, distribuídas por dois grupos distintos:
(1)
82 mulheres recentemente diagnosticadas com cancro da mama; e (2) 86 mulheres sobrevi ventes de cancro da mama, consideradas livres de doença.
O grupo de mulheres recentemente diagnosticadas com cancro da mama (G1) foi recrutado no serviço de Ginecologia dos HUC, aquando o seu internamento para realização de cirurgia da mama (mastectomia ou cirurgia conservadora). Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: (1) diagnóstico primário de cancro da mama;
(2)
tempo máximo de diagnóstico da doença de 4 meses;
- (3)
- não realização anterior de qualquer tratamento neo-adjuvante; (4) idade igual ou superior a 18 anos; e (5) capacidade para ler e escrever Português. As doentes foram convidadas a participar no estudo durante o período em que estavam internadas, tendo-lhes sido explicados, numa entrevista individual, os objectivos da investigação, o papel do investigador e do participante e as normas de confidencialidade subjacentes ao estudo. Nesta entrevista, e quando as doentes aceitavam participar no estudo, eram preenchidos o consentimento informado e a ficha de dados sociodemo gráficos, dadas as instruções de preenchimento dos questionários e esclarecidas quaisquer dúvidas relacionadas com estes. O protocolo de avaliação era preenchido posteriormente pela doente e entregue aos investigadores durante o período de hospitalização. A informação clínica das doentes foi obtida através da consulta dos respectivos processos clínicos hospitalares. Todas as doentes tinham já conhecimento prévio do seu diagnóstico e a sua inclusão no estudo era do conhecimento da equipa médica responsável.
O grupo de sobreviventes de cancro da mama (G2) foi recrutado nas diversas extensões da associação de voluntariado “Movimento Vencer e Viver”, do Núcleo Regional do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro (n=52) e no Serviço de Ginecologia dos HUC (n=34). Foram utilizados como critérios de inclusão: (1) ausência de diagnóstico actual de recidiva da doença ou de uma qualquer outra doença oncológica; (2) não realização de tratamentos adjuvantes (quimioterapia ou radioterapia) há pelo menos um ano; (3) idade igual ou superior a 18 anos; e (4) capacidade para ler e escrever Português. As participantes recrutadas no “Movimento Vencer e Viver” eram voluntárias nessa mesma associação ou mulheres que se dirigiram ao movimento para adquirir algum material disponibilizado na mesma (e.g., prótese mamária). A todas as participantes foram explicados os objectivos do estudo, o papel do investigador e do respondente e as regras de confidencialidade subjacentes à investigação. Àquelas que concordaram participar foi entregue o protocolo de avaliação, o consentimento informado e um envelope pré-pago e endereçado, para que posteriormente devolvessem os questionários preenchidos por correio. A informação clínica foi auto-relatada pelas respondentes. Paralelamente, foi recrutado no Serviço de Ginecologia dos HUC um grupo de sobreviventes que se encontravam internadas para cirurgia de reconstrução da mama ou ooforectomia (ablação cirúrgica dos ovários). A recolha dos dados seguiu os procedimentos anteriormente descritos para o mesmo hospital.
As características clínicas e sociodemográficas da amostra são apresentadas no Quadro 1.
Relativamente às principais características sociodemográficas, não foram encontradas dife renças estatisticamente significativas entre os grupos. De uma forma geral, todas as participantes apresentam uma idade média entre os 52 e os 54 anos, sendo maioritariamente casadas ou unidas de facto e apresentando, na sua maioria, um nível básico de escolaridade.
No que diz respeito às características clínicas, os grupos apresentaram diferenças significativas em algumas variáveis. Relativamente ao tempo decorrido desde o diagnóstico, o G1 apresentou um tempo médio de 1.48 meses e o G2 de 93.58 meses, tendo esta diferença sido estatisticamente significativa, F(1,146)=108.42, p≤.001. Embora o tipo de cancro mais frequente em ambos os grupos tenha sido o carcinoma ductal invasivo (CDI), verificaram-se diferenças estatisticamente significativas na distribuição pelas diferentes categorias de diagnóstico, χ²(4, N=115)=11.91, p=.036. Quanto ao tipo de cirurgia, enquanto a grande maioria das participantes do G1 realizou cirurgia conservadora, a maior parte das sobreviventes efectuou mastectomia, tendo, portanto, esta diferença sido também significativa, χ²(1, N=163)=53.17, p≤.001. Por fim, os grupos apresentaram-se significativamente diferentes entre si no tipo de tratamento, χ²(3, N=162)=132.84, p≤.001, uma vez que nenhuma doente do G1 tinha ainda iniciado qualquer tipo de tratamento adjuvante.
Instrumentos
Investimento na aparência. Para avaliar o investimento na aparência, foi utilizada a versão Portuguesa do Inventário de Esquemas da Aparência Revisto [ASI-R] (The Appearance Schemas Inventory – Revised; Cash, Melnyl, & Hrabosky, 2004; Versão Portuguesa: Nazaré, Moreira, & Canavarro, 2010). Trata-se de um questionário de auto-resposta constituído por 20 itens, divididos em duas subescalas: (1) a saliência auto-avaliativa (SAV), composta por 12 itens, refere-se às crenças que o indivíduo tem acerca da forma como o seu aspecto físico influencia o seu valor pessoal ou social e a sua identidade (e.g., A minha aparência é uma parte importante daquilo que sou); (2) a saliência motivacional (SM), que inclui 8 itens, avalia os esforços implementados pelo indivíduo para manter ou aumentar a sua atractividade física e gerir a sua aparência (e.g., Tento ser fisicamente tão atraente quanto consigo). As questões são respondidas com base numa escala de Likert de 5 pontos (1=Discordo fortemente a 5=Concordo fortemente), oscilando a pontuação final de cada subescala entre 1 e 5. Pontuações mais elevadas reflectem um maior nível de investimento esquemático na aparência. Na presente amostra, o G1 apresentou um valor de alpha de Cronbach para a faceta SAV de .74 e o G2 de .75; já na faceta SM, o G1 apresentou um valor de .75 e o G2 de .76.
Desconforto com a aparência. Para avaliar o desconforto ou inibição com a aparência foi utilizada a versão Portuguesa da The Derriford Appearance Scale 24 [DAS24] (Carr, Moss, & Harris, 2005). Este instrumento é constituído por 24 itens (e.g., Até que ponto se sente angustiado(a) quando se olha ao espelho ou vê o seu reflexo numa janela?; Evito despir-me em frente ao meu/à minha companheiro) e a pontuação final da escala oscila entre 10 e 96, sendo que 10 questões são cotadas de 1 a 4 e 14 questões de 0 (não aplicável) a 4. Pontuações mais elevadas reflectem um nível mais elevado de constrangimento com a aparência. Observaram-se níveis adequados de consistência interna (G1=.86 e G2=.91).
Medo da avaliação negativa dos outros. Foi utilizada a versão Portuguesa do instrumento Fear of Negative Evaluation [FNE] (Watson & Friend, 1969). Trata-se de um questionário de auto-resposta, constituído por 30 itens, que pretende avaliar a expectativa e o medo da avaliação negativa dos outros e o evitamento de situações sociais avaliativas (e.g., Receio com frequência que os outros notem os meus defeitos; Tenho receio que os outros não me aprovem). Ao contrário da versão original, que adopta uma escala de resposta do tipo verdadeiro/falso, a versão portuguesa é constituída por uma escala de tipo Likert, na qual os sujeitos devem posicionar-se relativamente à forma como o item caracteriza a sua maneira de ser (1=descreve de um modo nada característico a minha maneira de ser a 5=descreve de um modo muitíssimo característico a minha maneira de ser). A pontuação total varia entre 30 e 150, sendo que pontuações mais elevadas reflectem um maior medo da avaliação negativa dos outros. Na presente amostra o valor de alpha de Cronbach foi de .74 para o G1 e de .65 para o G2.
Qualidade de vida psicológica. Para avaliar a QdV psicológica foi utilizada a versão breve do World Health Organization Quality of Life para Português de Portugal [WHOQOL-Bref] (WHOQOL group, 1998a, 1998b; Versão Portuguesa: Vaz Serra et al., 2006). Este instrumento é uma medida genérica, multidimensional e multicultural, que permite a avaliação subjectiva da QdV, podendo ser utilizada num vasto conjunto de perturbações psicológicas, doenças físicas e em indivíduos da população geral. É constituído por 26 questões, duas relativas à percepção geral de QdV e à percepção geral de saúde (que constituem a faceta geral), e as restantes 24 respeitantes a cada uma das 24 facetas específicas que constituem o instrumento (e.g., actividade sexual, dor e desconforto, apoio social). Estas facetas organizam-se em quatro domínios distintos: Físico, Psicológico, Relações Sociais e Ambiente. No presente trabalho apenas foi utilizado o domínio Psicológico da qualidade de vida. Este instrumento utiliza uma escala de resposta do tipo Likert de 5 pontos, sendo as questões respondidas através de quatro tipos de escalas (dependendo do conteúdo da pergunta): intensidade, capacidade, frequência e avaliação. A pontuação para cada domínio varia entre 0 e 100, sendo que valores mais elevados representam uma melhor QdV. Na presente amostra, a subescala de QdV Psicológica apresentou valores de alpha de Cronbach de .76 e de .77 para o G1 e o G2, respectivamente.
Sintomatologia depressiva e ansiosa. Para avaliar a presença de sintomatologia depressiva e ansiosa foi utilizada a escala de Depressão e Ansiedade Hospitalar [HADS] (Zigmond & Snaith, 1983; Versão Portuguesa: Pais-Ribeiro et al., 2007). Este instrumento é constituído por 14 questões, que se distribuem por dois factores (depressão e ansiedade) e utiliza uma escala de resposta de tipo Likert com quatro opções de resposta (0 a 3), variando a pontuação total para cada subescala entre 0 e 21. Pontuações mais elevadas correspondem a níveis mais elevados de sintomatologia depressiva e/ou ansiosa. Na presente amostra, o G1 apresentou um valor de consistência interna de .90 para a ansiedade e .80 para a depressão, e o G2 de .87 para a ansiedade e .74 para a depressão.
Dados sociodemográficos. Foi utilizada uma ficha de dados sociodemográficos e clínicos para avaliação de informações relevantes relacionadas com o contexto sociodemográfico das participantes e com aspectos centrais da sua doença e/ou tratamentos.
Análises estatísticas
O tratamento estatístico dos dados foi realizado recorrendo ao pacote estatístico SPSS, versão 17. Para a caracterização da amostra recorreu-se à estatística descritiva (frequências relativas, médias, desvios-padrão), tendo-se utilizado o teste do qui-quadrado e a análise de variância univariada (ANOVA) para a análise de diferenças nas características sociodemográficas e clínicas entre os grupos.
Para explorar as diferenças de médias nas facetas do investimento entre os dois grupos em estudo, efectuou-se uma análise de variância multivariada (MANOVA)”.
Com o objectivo de testar se a SM e se a SAV contribuem para a explicação da variância dos diferentes indicadores de adaptação, foram efectuadas análises de regressão linear hierárquica múltipla, para cada grupo clínico estudado. Previamente, foram calculadas as correlações de Pearson entre as variáveis sociodemográficas e clínicas contínuas e as variáveis dependentes, bem como as correlações point-biseral quando as primeiras eram dicotómicas, para avaliar a necessidade de controlar estatisticamente o seu efeito nas análises de regressão posteriores. O tipo de tratamento (com 4 categorias: quimioterapia, radioterapia, quimioterapia e radioterapia e nenhum tratamento) foi transformado em 3 variáveis dummy, utilizando como grupo de referência a não realização de qualquer tratamento adjuvante. Assim, as análises de regressão foram efectuadas em dois blocos, tendo sido introduzidas num primeiro bloco as variáveis sociodemográficas e/ou clínicas signi ficativamente correlacionadas com a variável dependente e, num segundo bloco, uma ou ambas as facetas do investimento (método enter). Apenas foram incluídas na equação as facetas significativamente correlacionadas com a variável dependente. Quando nenhuma covariável se correlacionava significativamente com a variável dependente, uma ou ambas as facetas do investimento foram introduzidas simultaneamente em apenas um bloco.
A significância estatística foi definida como p<.05, mas diferenças marginalmente significativas foram também reportadas, p<.10. O Eta quadrado parcial (ηp²) foi usado como medida da magnitude do efeito na MANOVA e o coeficiente de determinação (R²) nas regressões múltiplas.
RESULTADOS
O investimento na aparência em fases distintas da doença
Foram analisadas as diferenças entre os grupos nas pontuações médias das facetas SAV e SM. A MANOVA revelou que o efeito multivariado do grupo não é estatisticamente significativo, Pillai’s trace=.017, F(2,161)=1.42, p=.244, η²p=.02, não se tendo prosseguindo, deste modo, para a análise univariada em cada variável dependente.
Investimento e adaptação
Diagnóstico recente de cancro da mama. Através da análise das correlações entre as variáveis em estudo (ver Quadro 2), verificou-se que a faceta SAV apenas se encontra significativamente correlacionada com o medo da avaliação negativa dos outros (r=.30, p=.023) e com o desconforto em relação à aparência (r=.50, p≤.001). Por sua vez, a faceta SM apenas se correlaciona significativamente com a depressão (r=-.24, p=.045).
No que diz respeito às associações encontradas entre as variáveis sociodemográficas e clínicas e as variáveis dependentes significativamente correlacionadas com as facetas do investimento, observaram-se correlações significativas entre o medo da avaliação negativa dos outros, o estado civil (r=.27, p=.035) e a idade (r=-.32, p=.012) e entre o desconforto com a aparência e a duração da doença (r=.24, p=.044). Estas variáveis foram, assim, controladas nas análises de regressão posteriores.
Assim, relativamente ao modelo para o medo da avaliação negativa dos outros, F(3,55)=5.08, p=.004, pode verificar-se, no Quadro 3, que contribuiu para a explicação de 21.7% da variância total, tendo a SAV contribuído individualmente para 8.1% dessa variância. No que diz respeito ao desconforto com a aparência, o modelo final foi igualmente significativo, F(2,64)=16.22, p≤.001, explicando 33.6% da variância total, tendo a inclusão da SAV, no segundo bloco, contribuído para a explicação de 27.9% dessa mesma variância. Por fim, observou-se que 5.5% da variância total da depressão foi explicada pela faceta SM, num modelo igualmente significativo, F(1,71)=4.15, p=.045.
QUADRO 3
Análises de regressão – Diagnóstico recente de cancro da mama
R² | ΔR² | β Final | |
---|---|---|---|
Medo da avaliação negativa | |||
Bloco 1: Estado civila | .21 | ||
Idadeb | .136 | .136* | -.22 |
Bloco 2: SAV | .217 | .081* | .29* |
Desconforto com a aparência | |||
Bloco 1: Duração da doençac | .057 | .057* | .17 |
Bloco 2: SAV | .336 | .279*** | .53*** |
Depressão | |||
Bloco 1: SM | .055 | .055* | -.24* |
Nota. *p<.05, ** p<.01, *** p<.001; a0=solteira, divorciada ou viúva, 1=casada ou unida de facto, bidade em anos, cduração em meses.
Sobreviventes de cancro da mama. No grupo de sobreviventes encontraram-se diversas associações significativas entre as duas facetas do investimento e as variáveis dependentes em estudo (ver Quadro 2). Assim, a faceta SAV correlacionou-se significativamente com o medo da avaliação negativa dos outros (r=.44, p≤.001), com o desconforto com a aparência (r=.34, p=.004) e marginalmente com a ansiedade (r=.20, p=.077). Já a faceta SM apresentou associações significativas com o domínio psicológico da QdV (r=.27, p=.014), com a depressão (r=-.30, p=.007) e com a ansiedade (r=-.28, p=.012).
Relativamente às correlações entre as variáveis sociodemográficas e clínicas e as variáveis de adaptação correlacionadas com as facetas do investimento, constatou-se que o medo da avaliação negativa dos outros se associou significativamente com a variável dummy de tratamento “nenhum tratamento vs. quimioterapia” (r=.25, p=.039); o desconforto com a aparência com o estado civil (r=.25, p=.042); por fim, a depressão correlacionou-se com a realização de reconstrução (r=-.22, p=.046).
Tal como é possível observar no Quadro 4, foram encontrados diversos modelos preditores no grupo de sobreviventes. Assim, para o medo da avaliação negativa dos outros, o modelo observado, F(2,63)=10.23, p≤.001, contribuiu para a explicação de 24.6% da variância total, da qual 18.1% é explicada apenas pela faceta SAV. O modelo encontrado para o desconforto com a aparência foi também significativo, F(2,63)=7.23, p≤.001, explicando 18.7% da variância total, tendo a faceta SAV contribuído individualmente para a explicação de 13.9% dessa mesma variância.
QUADRO 4
Análises de regressão – sobreviventes de cancro da mama
R² | ΔR² | β Final | |
---|---|---|---|
Medo da avaliação negativa | |||
Bloco 1: Tratamento 1a | .065 | .065* | .23* |
Bloco 2: SAV | .246 | .181*** | .43*** |
Desconforto com a aparência | |||
Bloco 1: Estado civilb | .048 | .048† | .27* |
Bloco 2: SAV | .187 | .139** | .38** |
Domínio Psicológico QdV | |||
Bloco 1: SM | .073 | .073* | .27* |
Depressão | |||
Bloco 1: Reconstrução mamáriac | .047 | .047* | -.17 |
Bloco 2: SM | .116 | .069* | -.27* |
Ansiedade | |||
Bloco 1: SM Bloco 2: SAV | .202 | .202*** | -.45*** .39*** |
Nota. †p<.10, *p<.05, **p<.01, ***p<.001; aNenhum tratamento vs. quimioterapia, b0=solteira, divorciada ou viúva, 1=casada ou unida de facto, c0=não, 1=sim.
Já no que diz respeito à faceta SM, verificou-se contribuir significativamente para a explicação de 7.3% da variância do domínio psicológico da QdV, F(1,80)=6.33, p=.014. Relativamente à depres são, observou-se que a mesma faceta explicou individualmente 6.9% da variância, F(2,77)=5.06, p=.009. Por fim, também a ansiedade foi parcialmente explicada pela SM e pela SAV, tendo as duas variáveis contribuído para a explicação de 20.2% da variância total, F(2,76)=9.63, p≤.001.
DISCUSSÃO
O presente estudo teve como principal objectivo investigar o papel das duas facetas do investi mento na adaptação a duas fases distintas da doença, explorando simultaneamente as diferentes funções da SAV e da SM. De uma forma global, os resultados corroboraram a nossa hipótese de que a SAV funcionaria como um factor de vulnerabilidade, associando-se a piores resultados adaptativos, e de que a SM funcionaria como um factor protector, associando-se a melhores resultados a este nível. Estes dados vão, assim, ao encontro dos resultados encontrados em estudos anteriores, tanto naqueles conduzidos em amostras da população geral (e.g., Cash, 2005; Cash, Melnyk, & Hrabosky, 2004; Jakatdar et al., 2006), como nos estudos desenvolvidos com doentes com cancro da mama (Moreira & Canavarro, 2010; Moreira et al., 2010), evidenciando que estas duas facetas desempenham papéis distintos e mesmo opostos no processo de adaptação ao cancro da mama e às alterações corporais resultantes.
Quanto ao primeiro objectivo específico do presente trabalho, que passava por comparar os dois grupos de participantes relativamente às facetas do investimento, os resultados encontrados corroboraram a nossa hipótese inicial. Ou seja, não foram encontradas diferenças entre doentes recentemente diagnosticadas e sobreviventes de cancro da mama nas duas facetas que constituem o investimento na aparência. Esta é uma variável estrutural, que reflecte o conteúdo e a activação do esquema da aparência. De acordo com o modelo teórico de Cash (2002), este esquema resulta de aprendizagens e experiências passadas e consiste num conjunto de generalizações cognitivas, relativamente estáveis e solidificadas, sobre a importância e as funções da imagem corporal na vida do indivíduo. Não sendo um conceito estático, também não se caracteriza por uma mudança fácil ou rápida perante determinados acontecimentos, não sendo por isso de esperar a sua mudança ao longo do curso da doença. No entanto, é interessante observar que, não obstante esta semelhança, no grupo de sobreviventes, as facetas do investimento contribuíram para a explicação de um maior número de indicadores de adaptação, por comparação com o grupo de diagnóstico recente. Este resultado sugere-nos que, apesar da semelhança em termos das pontuações médias nas facetas do investimento, a importância que estas têm na explicação de diversos indicadores de adaptação é diferente consoante a fase da doença.
Assim, verificámos que, no grupo de mulheres sobreviventes de cancro da mama, a SAV associou-se particularmente às variáveis dependentes relacionadas com a adaptação à própria imagem corporal e com a ansiedade social (i.e., desconforto com a aparência e medo da avaliação negativa dos outros), variáveis estas mais próximas de constructos como a auto-estima e o auto-conceito. Assim, são as mulheres que mais fazem depender a sua auto-estima e o seu auto-valor da sua imagem corporal que se sentem mais constrangidas e desconfortáveis com a mesma, temendo uma avaliação negativa por parte dos outros em interacções sociais. As alterações físicas decorrentes da doença e dos tratamentos, que podem persistir durante anos (e.g., amputação da mama), parecem constituir uma ameaça acrescida para estas mulheres, dificultando a sua adaptação. Adicionalmente, tal como Petronis et al. (2003) assinalaram, o grau de ameaça imposto pelo cancro da mama depende do grau em que a doente investe na sua aparência, o que por sua vez, irá reflectir-se no seu bem-estar psicológico, social e sexual.
Já a SM, associou-se, neste grupo, aos indicadores gerais de adaptação, como a QdV psicológica e os estados emocionais. No entanto, é importante assinalar que a percentagem de variância explicada é reduzida, existindo, portanto, outros factores com maior influência na explicação destas variáveis, não explorados no âmbito deste trabalho. Ainda assim, os resultados parecem indicar que a implementação de esforços dirigidos à melhoria da imagem corporal, bem como uma atitude proactiva relativamente às alterações corporais vividas, contribui para uma melhor QdV psicológica, bem como para níveis inferiores de sintomatologia depressiva e ansiosa.
No grupo de mulheres recentemente diagnosticadas com cancro da mama, as facetas do investi mento contribuíram para a explicação de um menor número de indicadores. Assim, enquanto a SAV contribuiu para a explicação de níveis superiores de ansiedade social e desconforto com a aparência, a SM apenas se associou a níveis inferiores de depressão, explicando uma pequena percentagem da variância total desta variável. Assim, nesta fase inicial da doença, o investimento parece não desempenhar um papel tão relevante na adaptação da mulher, por comparação com a fase de sobrevivência. Tal como alguns autores têm assinalado (Bloom, Stewart, Johnston, & Banks, 1998; Fobair, Stwart, Chang, D’Onorio, Banks, & Bloom, 2005; Spencer et al., 1999), numa fase inicial do cancro da mama, as principais preocupações da doente tendem a relacionar-se com questões ligadas à sua saúde física e sobrevivência e não tanto com a sua imagem corporal, que apenas surge como tema central mais tarde. Outros factores, como as estratégias de coping, as representações da doença, o apoio social recebido, a relação conjugal, entre outros, poderão nesta fase adquirir maior poder explicativo, devendo, por isso, ser explorados em estudos posteriores, de forma a obter-se uma maior compreensão do processo de adaptação a esta fase do cancro da mama.
Em suma, ambas as facetas do investimento mostraram ser relevantes para a explicação da adaptação a esta doença. A SM parece funcionar como um factor protector, podendo proporcionar à mulher um sentimento de controlo sobre a sua imagem corporal. Por exemplo, a implementação de estratégias (e.g., uso de próteses capilares, maquilhagem, etc.) que lhe permitam melhorar a sua imagem pode ser perspectivada como uma estratégia de controlo sobre a sua aparência, conduzindo a resultados mais positivos, como melhor QdV psicológica e menor sintomatologia ansiosa e depressiva. Por outro lado, a SAV pode ser perspectivada como um factor de vulnerabilidade, predizendo piores resultados como, por exemplo, um maior desconforto com a aparência e maior ansiedade social. Efectivamente, acreditar que a aparência é um importante determinante do auto-valor e da auto-estima parece deixar a mulher mais vulnerável a uma maior insatisfação corporal e a uma maior preocupação com a avaliação dos outros.
Algumas limitações inerentes a este estudo devem ser consideradas na interpretação dos resultados. Em primeiro lugar, a natureza transversal do estudo limita a compreensão do processo dinâmico de adaptação e também o estabelecimento de conclusões sobre a relação causal entre o investimento na aparência e os diferentes indicadores de adaptação. Em segundo lugar, o grupo de sobreviventes é quase totalmente constituído por doentes mastectomizadas, ao contrário do grupo de doentes recentemente diagnosticadas, o que limita a comparação entre grupos e a generalização dos resultados a outras sobreviventes submetidas a outro tipo de cirurgia.
Apesar das limitações assinaladas, este estudo oferece dados importantes sobre o papel do investimento na aparência na adaptação de mulheres com cancro da mama ou sobreviventes desta doença. Para além de abordar uma área insuficientemente estudada, o presente trabalho apresenta como vantagens a inclusão de vários resultados de adaptação e a utilização do instrumento ASI-R, que permite a distinção entre as facetas SM e SAV.
Conclusões e implicações clínicas
A compreensão da importância e do valor que a mulher atribui à sua aparência física revelouse, assim, de extrema importância para um conjunto de indicadores de adaptação, corroborando a opinião de Pruzinsky e Cash (2002), de que qualquer avanço na compreensão da imagem corporal deve basear-se, em primeiro lugar, na compreensão fundamental da natureza do investimento, na medida em que a aparência objectiva não é necessariamente indicativa da experiência subjectiva da mesma. Como tal, estudos que tenham como objecto de estudo a imagem corporal, seja em doentes oncológicos, como noutro tipo de populações, deverão ter em conta esta premissa, procurando compreender e analisar a influência do investimento nos seus resultados.
A um nível prático, importa que os profissionais de saúde tenham em consideração que nem todas as mulheres reagem da mesma forma às alterações na aparência decorrentes da cirurgia e/ou dos tratamentos, existindo a este nível importantes diferenças individuais. Como tal, é muito importante que seja efectuada uma correcta avaliação da valorização que a mulher atribui à sua imagem para que ao longo das fases da doença possam ser implementadas, se necessário, estratégias adequadas a cada caso particular.
Os nossos resultados, ao mostrarem que a SAV se encontra associada a um conjunto de resultados inadaptativos apontam para a necessidade de se proceder a uma avaliação cuidada desta variável. Estas mulheres, que se encontram em maior risco de um percurso inadaptativo ao longo do curso da doença, poderão beneficiar de uma maior discussão (idealmente antes da cirurgia) das possíveis alterações que a sua aparência poderá sofrer, no sentido de, por um lado, prevenir possíveis dificuldades ao lidar com essas mesmas modificações e, por outro, trabalhar estratégias que facilitem a vivência das mesmas. Por exemplo, pode ser muito relevante para estas doentes que, no período de internamento hospitalar, a equipa de enfermagem e/ou de psicologia, prepare e acompanhe a doente no momento em que esta vê pela primeira vez a cicatriz após a cirurgia; mostre as próteses mamárias temporárias e ajude a doente a utilizá-las e adaptar-se a elas antes da alta hospitalar; transmita informação sobre as próteses mamárias definitivas (como utilizar, qual o seu aspecto, onde pode obtê-las, etc.), entre outros aspectos. É importante que estas estratégias sejam utilizadas por rotina, com todas as doentes; no entanto, consideramos que para as doentes que mais investem na sua aparência, estas podem assumir especial importância, podendo contribuir para a prevenção de futuras dificuldades. Parece-nos igualmente importante que as opções cirúrgicas sejam detalhadamente debatidas com estas doentes, apresentando-se a possibilidade de cirurgia reconstrutiva sempre que as doentes efectuem mastectomia.
Adicionalmente, julgamos que uma intervenção psicoterapêutica dirigida a estas doentes deverá contemplar um trabalho cognitivo sobre os esquemas da aparência que determinam, subsequente mente, o investimento feito sobre a mesma, bem como estratégias comportamentais que trabalhem a auto-estima e o valor pessoal da mulher. Ambas teriam como objectivo central desconfirmar o conteúdo do esquema e, deste modo, intervir sobre o processamento de informação, influenciando a atenção, a memória e a interpretação da informação relacionada com a aparência física (Cash & Labarge, 1996; Cash, Melnyk, & Hrabosky, 2004; Hargreaves & Tiggemann, 2002), bem como as emoções e as estratégias de coping relacionadas com a imagem corporal (Cash, 2002). Tendo em conta que qualquer intervenção psicoterapêutica deverá ser teoricamente sustentada, conside ramos que os modelos de Cash (2002) e de White (2002) poderão e deverão sustentar conceptual mente as estratégias referidas.
Os nossos resultados mostraram também que uma maior SM se encontra associada, de uma forma geral, a resultados mais adaptativos. Estes dados parecem, assim, apontar para a importância de incentivar a doente a implementar comportamentos dirigidos à manutenção ou melhoria da sua aparência física. Tal poderá passar por estratégias simples, como o cuidar da imagem e do vestuário, usar próteses mamárias ou efectuar cirurgia reconstrutiva, entre outras. Pela importância que estes comportamentos poderão ter na adaptação da mulher, os profissionais de saúde que acompanham a doente ao longo de diferentes etapas têm um papel muito importante na divulgação e no incentivo destas estratégias.
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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Helena Moreira, Grupo de Investigação Relações, Desenvolvimento e Saúde, Instituto de Psicologia Cognitiva e Desenvolvimento Vocacional e Social (IPCDVS), Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universidade de Coimbra, Rua do Colégio Novo, Apartado 6153, 3001-802 Coimbra. E-mail: hmoreira@fpce.uc.pt