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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica vol.31 no.1 Lisboa jan. 2013
A elaboração da psicologia sócio histórica cultural: As cartas vigotskianas
João Batista Martins* e Nara Akemi H. P. Alves*
* Departamento de Psicologia Social e Institucional, Universidade Estadual de Londrina, Brasil
RESUMO
O artigo tem como objetivo analisar as cartas de Lev Semenovich Vigotski, escritas no período de 1926 à 1934 e publicadas no Journal of Russian and East European Psychology. Esta é uma oportunidade de conhecermos um pouco mais sobre a realidade em que Vigotski viveu, e acessarmos seu itinerário intelectual, identificando os círculos de suas relações, suas preocupações acadêmicas e suas reflexões teóricas acerca da construção da teoria sócio histórica cultural. Tal tarefa ocorreu em dois momentos, primeiramente, na tradução e sistematização das cartas e, posteriormente, na análise dessas, embasada no referencial teórico de estudiosos da teoria vigotskiana. Após breve introdução do momento histórico da psicologia soviética, traçamos três perspectivas que nos auxiliaram a analisar as cartas: (1) a situação de sua saúde e os impedimentos para realizar seu trabalho; (2) uma reflexão crítica sobre a psicologia, com vistas a criar as condições para a emergência de uma nova psicologia; (3) a consolidação do grupo de trabalho, afastamentos e rupturas, em torno de questões relativas a psicologia e seus desdobramentos teóricos e metodológicos. Enfatizamos a maneira humanista com que Vigotski vivenciou esses momentos.
Palavras-chave: Cartas, Psicologia sócio histórica cultural, Vigotski.
ABSTRACT
The article is intended to analyze the letters of Lev Semenovich Vygotsky, written during the period from 1926 to 1934 and published in the Journal of Russian and East European Psychology. This is an opportunity to know a little more about the times in which he lived, and to access his intellectual itinerary, identifying their circles and their relationships; their theoretical academic concerns and their reflections about the construction of the socio cultural and historical theory. This task took place in two stages, first, in the translation and systematization of letters and, subsequently, in the analysis of these, based on theoretical referential vygotskian theory scholars. After a brief introduction of the historic moment of Soviet psychology, draw three perspectives which we helped to analyze the letters: (1) the situation of his health and the impediments to accomplish its work; (2) a critical reflection on the psychology, with a view to creating the conditions for the emergence of a new psychology; (3) working group consolidation, departures and ruptures, around issues of psychology and its theoretical and methodological developments. We emphasize the humanist way with that experienced these moments Vigotski.
Key-words: Letters, Socio cultural historical psychology, Vigotski.
Este trabalho se inscreve num projeto mais amplo que tem como objetivo compreender a trajetória que Vigotski percorreu para construir a teoria sócio histórica cultural. Nossos esforços têm-se concentrado na leitura dos trabalhos do autor de uma forma cronológica, tentando abarcar toda a obra, e, acompanhando essa leitura, temos procurado identificar os momentos de construção e desconstrução da teoria, assim como as situações vividas por Vigotski, articulando-o com o seu tempo.
Tal perspectiva teórica se aproxima de uma proposta indicada pelo próprio Vigotski, quando ele afirma que as explicações sobre as mudanças e o desenvolvimento de novas ideias num determinado campo científico deveriam estar relacionadas:
(1) com o substrato sócio-cultural da época, (2) com as leis e condições gerais do conhecimento científico, (3) com as exigências objetivas que a natureza dos fenômenos objetos de estudo coloca para o conhecimento científico no estágio atual da investigação. Ou seja, em última instância, com as exigências da realidade objetiva que a ciência em questão estuda. (Vigotski, 1927/2004:219)
Esta perspectiva, por sua vez, também se articula com um movimento que tem apontado para novas formas de fazer história, seja do ponto de vista interpretativo, seja do ponto de vista metodológico. Nesse sentido, nos identificamos com a posição de Farr (2002) que, ao explicitar a história da psicologia social, recorre para história dos fatos, das instituições e das pesquisas publicadas; situações que, cada uma, a seu modo, circunscreveram o aparecimento e a evolução deste campo de pesquisa. O autor observa que tal opção deixa de lado “um fazer história” que se pauta na identificação de nomes de autores ou de fundadores.
Também temos nos identificado, no que tange aos trabalhos desenvolvidos em torno da obra de Vigotski, com os trabalhos de Anton Yasnitsky e Elena Iu. Zavershneva. O primeiro, superando a “história oficial” da psicologia soviética do início do século passado, que localiza nas figuras de Vigotski, Luria e Leontiev – a “tróica” – os fundadores da psicologia sócio histórica cultural, nos remete para uma outra dinâmica denominada por ele de “Círculos Vigotskianos” (Yasnitsky, 2009, 2011). Yasnitsky focaliza seu estudo nos grupos de pesquisadores que mantiveram algum tipo de contato com Vigotski e que o influenciaram na construção de suas proposições teóricas.
Os trabalhos de Zavershneva, por sua vez, nos fazem olhar para os contextos em que a obra de Vigotski foi construída, uma vez que ela organiza suas pesquisas em torno dos arquivos de Vigotski que ainda não foram publicados, tais como notas, blocos de anotações, diários, etc. (Zavershneva, 2010a,b,c)1.
A partir dessas considerações iniciais, objetivamos em nosso trabalho analisar um conjunto de cartas escritas por Vigotski, no período de 1926 a 1934 – articulando-as com suas proposições teóricas. Este período corresponde àquele em que ele trabalhou no Instituto de Psicologia de Moscou. Estas cartas foram publicadas em 2004 na revista Vestnik Moskovskogo Universiteta, Series 14, Psychology, na língua nativa de Vigotski – o russo; e em 2007, no Journal of Russian and East European Psychology, traduzidas para o inglês, material este que utilizamos para elaborar estas reflexões (Vygotsky, 2007).
A importância da análise dessas cartas está na possibilidade de um melhor entendimento do momento histórico ao qual esse autor estava inserido, do universo de relações que estabeleceu, o que nos permite ampliar nosso conhecimento acerca do contexto em que ele construiu sua obra. Entendemos também que este trabalho nos permite uma interpretação mais segura acerca da teoria de Vigotski. Cabe lembrar que ele não conseguiu concluir seu projeto e que grande parte de sua obra foi reeditada após sua morte, tal situação tem possibilitado várias interpretações acerca de sua teoria, o que, em alguns casos, trouxe muitas distorções na compreensão da mesma (Koshmanova, 2007)2.
Antes de discutirmos as cartas, traremos algumas informações acerca do momento histórico em que Vigotski estava vivendo, e suas possibilidades para a construção de uma nova psicologia.
DA PSICOLOGIA SOVIÉTICA – OS ANOS 1920 E 1930
Tendo em vista as demandas sociais vivenciadas pelo povo russo, observa-se um rápido desenvolvimento das ciências na União Soviética após a Revolução de 1917, trazendo o Zeitgeist da transformação revolucionária as próximas gerações. Esse período foi caracterizado pelo crescimento da produção científica, pautada em um ideário marxista e, motivada pela necessidade da construção de uma nova sociedade e de um novo homem, tema recorrente em algumas obras de Vigotski (Vigotski, 1926/2004; Vygotsky, 1930/1994).
No âmbito doutrina filosófica marxista – doutrina oficial encampada pelos dirigentes da União Soviética – segundo Bakhurst (1991), a questão da relação entre o ser e o pensamento – a questão da consciência – era respondida a partir de duas formas: a idealista e a materialista. Enquanto o materialismo afirmava que o ser é anterior para e primário em relação ao pensar, o idealismo assegurava o oposto e argumentava que o mundo é (em algum sentido) idêntico para, ou uma consequência do, pensamento, consciência, ou ideia. Os filósofos soviéticos foram unânimes ao endossar o ponto de vista materialista.
Tal forma de pensar também ressoava nos meandros da psicologia soviética. Os psicólogos viviam em constante tensão entre as ambas as correntes: a idealista e a materialista, tensão esta evidenciada nos debates ocorridos durante o I Congresso Pan-Russo de Psiconeurologia, realizado em Leningrado no ano de 1923. Os psicólogos que se identificavam com o ideário da revolução de outubro entendiam que nem a psicologia subjetiva proposta por Tchelpanov, nem as tentativas muito simplificadas para reduzir a complexidade da atividade consciente a simples esquemas reflexos, proporcionavam um modelo satisfatório da psicologia humana (Teixeira, 2004).
Tchelpanov foi substituído no cargo de diretor do Instituto por Kornilov que, ao assumir o cargo, apresenta uma posição diferente da instituída até então, identificando-se com a filosofia marxista. Foi nesse Instituto que os jovens Alexander Romanovich Luria e Alexis Nicolaievich Leontiev começaram realizar seus estudos e, posteriormente em 1924, Lev Semenovich Vigotski integrou a equipe. No que tange a esse momento histórico, Luria comenta:
Encontrei em Moscou uma cidade que, como Kazan, estava entusiasticamente engajada no trabalho de reconstrução. Mas, à diferença de minhas condições de trabalho em Kazan, os psicólogos moscovitas tinham metas bem estabelecidas e meios adequados à pesquisa especializada. Reuni-me a um pequeno grupo acadêmico, cuja tarefa era reconstruir a psicologia russa, a fim de aproximá-la das metas revolucionárias. (Luria, 1979:28)
Com a chegada de Vigotski, outras perspectivas se abriram para os pesquisadores:
Quando Vygotsky chegou a Moscou, eu ainda estava realizando estudos pelo método motor combinado com Leontiev, que havia sido discípulo de Tchelpanov, a quem me associei desde então. Reconhecendo as habilidades pouco comuns de Vygotsky, Leontiev e eu ficamos encantados quando se tornou possível incluílo em nosso grupo de trabalho, que chamávamos de “tróica”3. Com Vygotsky como líder reconhecido, empreendemos uma revisão crítica da história e da situação da psicologia na Rússia e no resto do mundo. Nosso propósito, superambicioso como tudo na época, era criar um novo modo, mais abrangente, de estudar os processos psicológicos humanos. (Luria, 1979:39-40)
Nesse mesmo ano, após a morte de Lenin (Vladimir Ilitch Ulianov), Josef Stálin (Josef Vissarionovitch Djugashvili) assume o cargo de Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Seu governo foi marcado pela violência, como ele mesmo alegava, em defesa do socialismo. Os que discordaram de suas posições foram presos, torturados ou assassinados e ainda obrigados a confessar, publicamente, seus “crimes” contra o povo soviético. Porém, foi a partir de 1929, com a consolidação de seu governo, que a liberdade científica na União Soviética sofrera grande ataque. O intuito era eliminar da ciência socialista influências pequeno burguesas do ocidente, como as escolas psicológicas ocidentais: da Gestalt e do Behaviorismo (Teixeira, 2004).
Vigotski nunca deixou de reconhecer a importância dessas escolas para a psicologia, seus trabalhos tiverem grande influência de ambas às tendências, porém, não há como negar o cunho marxista de suas obras, no plano ontológico sua tese sobre o desenvolvimento da consciência humana encontra ressonância com a tese criada por Marx e Engels em Ideologia alemã, no plano filosófico seu trabalho se enraíza no materialismo histórico e dialético, na medida em que operacionaliza as leis da dialética no entendimento do desenvolvimento humano.
DAS CARTAS VIGOTSKIANAS
As cartas de Vigotski que utilizamos para realizar este trabalho foram escritas no período de 1924 a 1934. Este material é extremamente importante pois, com ele, acessamos os meandros do labora tório criativo de Vigotski, suas preocupações intelectuais, seu cotidiano profissional, suas tarefas, etc.
Quando nos propusemos a analisar estas cartas – após sua publicação em 2007 na língua inglesa – tivemos como primeira tarefa fazer uma tradução do texto, e, após uma leitura mais refinada, elencamos alguns temas que percorrem todo seu conteúdo.
Assim, identificamos algumas preocupações com (1) sua situação de sua saúde e os impedimentos para realizar seu trabalho; (2) uma reflexão crítica sobre a psicologia, com vistas a criar as condições para a emergência de novos parâmetros para a criação de uma psicologia geral; (3) a consolidação do grupo de trabalho em torno de questões relativas a psicologia e seus desdobramentos teóricos e metodológicos.
A saúde e os comprometimentos para com o trabalho
Segundo alguns dados biográficos disponíveis sobre Vigotski (Leontiev, 1991; Luria, 1976, 1979; Shuare, 1990), ele contraiu tuberculose em 1920 e, durante toda vida ele esteve submetido a um tratamento da doença, vindo a falecer em 1934.
Na visão de Puzyrei (2007), sua doença era vivenciada por de uma maneira bastante promissora. Segundo ele
A integridade com que Vygotsky controlou sua própria vida e a subordinou ao seu trabalho e percurso era tal que ele ainda foi capaz, até mesmo, de colocar sua própria doença (tuberculose crônica e progressiva) a “serviço” de seus objetivos gerais de sua vida e de seus valores, os quais se mantiveram inabaláveis durante toda sua vida adulta. Talvez não seja acidental que a escrita das obras mais importantes de Vygotsky [...] coincidiu as vezes com a exacerbação de sua doença, mas parece que, para Vygotsky, esta doença foi uma constante reflexão de sua percepção da vida, seu “memento mori” não tanto como uma espécie de “doping” que o ajudou constantemente “sublimar” seus poderes intelectuais e o forçou a se apressar e a não esperar pelo depois, mas também como uma maneira existencial de “aumentar a perspectiva da situação”. Diante de uma morte inevitável, [...], Vygotsky adquiriu uma capacidade de “ver a situação corretamente” e avaliar os eventos e situações de forma adequada, e, assim, adquiriu a habilidade de “superá-los”, para alcançar uma liberdade em relação a eles [...]. A doença de Vygotsky serviu-lhe como um meio de controlar sua mente e afiá-la, “ajudando-o” a se manter firme em situações críticas, não apenas como um cientista, mas também como um ser humano. (Puzyrei 2007:13)
Após sua primeira e única viagem ao exterior, para uma conferência em Londres (ver alguns detalhes dessa viagem em van der Veer & Zavershneva, 2011), Vigotski teve que ficar hospitalizado, durante vários meses entre 1925 a 1926, por causa de uma crise de tuberculose. Na carta à Sakharov, de 15 de fevereiro de 1926, ele relata ao amigo o difícil momento em que estava passando:
Eu tenho estado [no hospital] há uma semana em grandes enfermarias, com seis pacientes gravemente doentes cada, com barulho e gritos, sem qualquer mesa, e assim por diante. As camas são dispostas lado a lado sem espaço entre elas, como em um quartel. Além disso, eu me sinto terrível fisicamente e estou deprimido e desmotivado psicologicamente. (Vygotsky, 2007:15)
Por causa de sua situação, ele encontrava-se desanimado em relação à perspectiva de seu futuro e trabalho e, principalmente com a psicologia da época. No entanto, continua produzindo e incentivando os amigos e colaboradores em pró ao projeto comum maior: reformular a teoria psicológica, através de um viés marxista (como veremos mais a frente).
Os destinos da psicologia
Em um desabafo à A. R. Luria, na carta de 5 de março de 1926, enquanto ainda estava no sanatório, ou seja, em pleno processo de recuperação, ele demostra preocupação com o destino científico da psicologia e com os seus interlocutores:
Caro Alexander Romanovich, eu queria escrever-te há algum tempo, mas a situação em torno de mim, nesses tempos, tem sido de tal forma que é estranho e difícil pegar uma caneta e eu não tenho sido capaz de pensar com calma. Fiquei muito feliz em receber seu artigo alemão. Eu estou orgulhoso por você ter ido além dos limites estreitos do profundo provincialismo em que nossa literatura psicológica se encontra. Claro, isso é apenas um “sintoma”, eu não estou superestimando a importância do trabalho, mas isto é muito, um sintoma muito impor tante, uma tentativa de encontrar um leitor realmente interessado no problema científico. Quem nos lê aqui? Chelpanov, a fim de contar os erros e, em seguida, gritar de alegria; Frankfurt, a fim de avaliar a confiabilidade e definir um índice sobre essas bases. [...] Quão seriamente precisamos pensar em nosso destino (científico) e sobre o destino da causa, que temos empreendido se K. N. [Kornilov] e outros “líderes” não estão dispostos a pensar nisso. Sinto-me em algum lugar fora da vida, ou, mais precisamente entre a vida e a morte; eu não estou desesperado ainda, mas eu abandonei à esperança. Por esta razão, meus pensamentos de alguma forma não conseguem se concentrar em questões relacionadas com a minha vida futura e trabalho...” (Vygotsky, 2007:17).
Este trecho da carta dirigida a Luria deixa claro que Vigotski considerava o seu trabalho em psicologia como uma “causa”, ele via a necessidade de reestruturar radicalmente a psicologia, o que se desdobraria, mais tarde no programa metodológico que se esboçou em “O significado histórico da crise da psicologia: uma investigação metodológica” (terminado em 1927 e publicado somente em 1982).
Um ponto que nos chamou atenção neste trecho é aquele em que ele avalia que a psicologia russa está enraizada num “profundo provincialismo”. Duas questões podem estar subsidiando esta afirmação. A primeira é sua consideração de que a superação da crise da psicologia não poderá ser solucionada exclusivamente nos limites da psicologia soviética. Isto fica explicito no artigo: “Sobre el artículo de K. Koffka ‘La introspección y el método de la psicologia’ – A modo de introducción”, publicado em 1926, material que foi publicado como uma introdução a um artigo de Kofka, inserido no livro de Kornilov intitulado: “Problemas de psicologia atual”.
Vigotski assim se expressa:
Cuando los compiladores de esta obra seleccionaron el artículo de K. Koffka “La introspección y el método de la psicología», les estaba guiando la consideración de que para construir un sistema psicológico marxista es necesario orientarse correctamente entre las actuales corrientes psicológicas. Hace mucho ya que la ciencia y su desarrollo han salido del estado en que cada país podía elaborar sus problemas por separado, de forma aislada y relativamente independiente. No puede haber mayor error para comprender la actual crisis de la psicología que reducirla a los límites y fronteras del pensamiento científico ruso. Y ése es el modo en que reflejan la cuestión los representantes de nuestra psicología empírica: si les diéramos crédito, en la psicología de Occidente todo permanecería tan inmutable y tranquilo como “la mineralogía, la física y la química”, mientras que nosotros los marxistas hemos emprendido nada menos que la reforma de la ciencia. Volvemos a repetir: no se puede presentar el estado real de las cosas bajo un aspecto más falso y tergiversado. (Vygotski, 1926/1997:61)
A outra questão que pode estar sendo vinculada a essa afirmação de Vigotski, diz respeito a maneira pela qual os estudiosos de seu tempo estavam articulando a psicologia com o marxismo, qual seja, introduzindo em suas teorias conceitos marxistas, sem uma reflexão epistemológica e metodológica mais profunda4. Vigotski, opondo-se a esses autores, assinala que a psicologia marxista, aquela que se subsidia no materialismo dialético ainda está para ser construída, mas
É preciso, antes, criar a teoria do materialismo psicológico, e no entretempo ainda não se pode escrever manuais de psicologia dialética. Mas, em nosso caso, também no nível do raciocínio crítico carecemos de um critério fundamental. A forma com que hoje se estabelece, como se se tratasse do escritório de marcas e patentes, se determinada doutrina concorda com o marxismo, não vai além do método da “superposição lógica” ou seja, de contrastar a coincidência de formas, de traços lógicos (monismo etc.). Mas é preciso saber o que se pode e o que se deve buscar no marxismo. Não se trata de adaptar o indivíduo ao sábado, mas o sábado ao indivíduo; o que precisamos encontrar em nossos autores é uma teoria que ajude a conhecer a psique, mas de modo algum a solução do problema da psique, a fórmula que contenha e resuma a totalidade da verdade científica. (...) O que sim pode ser buscado previamente nos mestres do marxismo não é a solução da questão, e nem mesmo uma hipótese de trabalho (porque estas são obtidas sobre a base da própria ciência), mas o método de construção [da hipótese – R.R]. Não quero receber de lambuja, pescando aqui e ali algumas citações, o que é a psique, o que desejo é aprender na globalidade do método de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique. (Vigotski, 1927/2004:395)
As questões que Vigotski apresenta nessa carta, que se referem ao processo de construção de uma psicologia que se subsidie no materialismo dialético e no materialismo histórico, podem também ser vislumbradas em outras duas cartas. Ambas foram dirigidas a Leontiev uma em 15 de abril de 1929 e a outra em 23 de julho do mesmo ano.
Na primeira carta Vigotki escreve a Leontiev assinalando a necessidade de se considerar teoricamente as relações entre as funções psicológicas superiores, tarefa ainda a ser feita:
Caro Aleksei Nikolaevich, muito obrigado pela carta. Primeiro e mais importante, nós devemos conquistar a percepção, devemos conceituar e compreender a natureza da percepção dos homens cultos, de percepção voluntária intencional (compare com o excelente artigo de Jaensch sobre por que os verbos ver, ouvir, e outros são seguidos de acusativo, ou seja, como acontece com verbos de movimento). Na maior parte, o caminho que você escreve sobre isso está correto, mas 1,001 por cento questiona e uma falta de clareza reina nas considerações até o momento presente, embora isto seja basicamente o que nós teremos que esclarecer teórica e heuristicamente no verão. Mais importante, nós ainda não temos a conexão; a integração de funções no sentido cultural, não é a mesma como no sentido natural: atenção + memória + percepção, e assim por diante. O caminho em si, repito, está correto e a ideia está correta, tanto em teoria e prática: ou Montessori ou cultura S [enso] M[otor sistema] no sentido próprio da palavra (c-u-l-t-u-r-a). (Vygotsky, 2007:22)
A solução para a questão levantada nesta carta junto à Leontiev – a da conexão e a integração das funções psicológicas superiores – foi dada por Vigotski no trabalho “Sobre os sistemas psicológicos”, apresentado em 1930 na Clínica de Doenças Neurológicas (publicado somente em 1982). Neste trabalho Vigotski articula a ideia de uma estrutura sistêmica das funções mentais superiores e uma gênese social dessas funções e coloca a tarefa de estudar sistemas funcionais e seus resultados (ver Vigotski, 1930/2004).
Em carta dirigida a Luria em 11 de julho de 1931, Vigotski retoma essa questão indicando, para seu interlocutor, o avanço significativo que tal proposta representa para a compreensão dos fenômenos psicológicos.
Caro Alexander Romanovich, estou lhe escrevendo, literalmente, [no] emphasia, em uma espécie de fervor que eu raramente experiencio. Eu recebi o relatório nº 3 e os registros dos experimentos. Não me lembro da última vez em que tive um dia tão brilhante e alegre. Isto é, literalmente, como uma chave que abre as fechaduras de uma série de problemas psicológicos. Essa é a minha impressão. Para mim, a importância do primeiro ranking dos experimentos é, fora de dúvida, a nossa nova direção que foi agora conquistada (por você) não apenas na teoria, mas na prática, experimentalmente. (...) Um novo capítulo na psicologia está agora aberto para nós, um capítulo concreto; as operações em si mesmas, respectivamente, as funções individuais agora surgem sob uma nova luz no contexto do todo compreendido. Eu tenho um sentimento de gratidão, alegria e orgulho. (...) Não é psicologia de operações individuais, mas a psicologia dos sistemas. (Vygotsky, 2007:41-42)
A euforia de Vigotski também é expressa na carta de 01 de agosto de 1931:
Caro Alexander Romanovich, estou escrevendo um cartão postal, porque é impossível obter um envelope aqui ou goma arábica, a fim de fazer um. Anteriormente eu enviei cartas para Samarkand e Fergana sobre a enorme impressão, totalmente incomparável que seus relatórios e registros deixaram em mim. Este é um enorme passo decisivo, fundamental em nossa pesquisa em direção a um novo ponto de vista. Mas mesmo em qualquer contexto da investigação europeia, uma pesquisa dessa natureza seria um evento. Este estudo será a viagem para Tenerife. Estou experimentando uma sensação de euforia, no sentido literal da palavra, de estar à beira de um grande sucesso interno. Eu recebi o relatório nº 5, e também, como todo o resto (fiquei menos entusiasmado com o Relatório nº 1), marca um evento: um estudo sistemático das relações sistêmicas em psicologia histórica, na filogênese da vida, algo que ninguém nunca fez antes, a partir de qualquer ponto de vista. Para nossa clínica e nossas experiências com crianças, este é um novo e inesperado (para mim, eu admito) capítulo alegre e brilhante. (Vygotsky, 2007:42)
Na carta de 23 de julho de 1929, escrita para Leontiev, Vigotski aborda algumas questões metodológicas que afetam, de certa forma, o encaminhamento de suas pesquisas no âmbito do grupo de pesquisadores que coordena.
Caro Aleksei Nikolaevich, obrigado pela carta. Eu estou plenamente de acordo com seus sentimentos. Há algum benefício para uma situação na qual p[sicologia] i[nstrumental] acaba nas categoria de atividades não rentáveis. Em particular, não posso dizer com força suficiente como valorizo (em termos éticos também) o pensamento de que a ideia deve ser tão pura e rigorosa quanto possível. Esta é a nossa principal tarefa – lutar contra as ideias confusas e “nos tornar confortáveis”. Eu estou revisando a s[egunda] parte de “macaco”. Ai! O p[rimeiro] capitulo foi escrito inteiramente de acordo com os freudianos (e nem mesmo de acordo com Freud, mas de acordo com V. F. Schmidt (seus materiais), M. Klein e ou[tras] estrelas de segunda magnitude); então o Piaget impenetrável é transformado em algo absoluto além de qualquer medida; instrumento e sinal são misturados ainda mais, e assim por diante. Isso não é culpa de A. R. [Luria], pessoalmente, mas de toda uma “época” de nossa mentalidade. (...) Coisas que, do nosso ponto de vista, ainda não estão claras em termos de como elas devem ser refinadas em vista a tornar-se uma parte orgânica de nossa teoria, não devem ser incluídas no sistema. Vamos adiar. Que haja o mais rigoroso, monástico regime de pensamento; reclusão ideológica, se necessário. E vamos exigir o mesmo dos outros. Vamos explicar que estudar psicologia cultural não é brincadeira e não é algo a fazer em momentos ímpares ou, entre outras coisas, e não é terreno para conjecturas próprias de cada pessoa nova. Da mesma forma o mesmo esquema de organização externamente. Temos de abordar as coisas de tal forma que os erros de “macaco”, do artigo de A. R. [Luria], do paralelismo Zankov, e assim por diante se tornem impossíveis. Eu vou ficar feliz se conseguirmos alcançar a máxima clareza e precisão sobre este assunto. Estou contando firmemente com sua iniciativa e papel em evitar isso. (Vygotsky, 2007:25-27)
Neste trecho da carta, mais uma vez Vigotski expressa suas preocupações com os destinos da psicologia. Uma diz respeito aos aspectos teóricos e metodológicos utilizados pelos membros do grupo coordenado por Vigotski, que demandam mais refinamento e uma elaboração menos confusa. É o caso do “macaco”, livro que Vigotski escreveu com Luria, intitulado “Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança” (Vygotsky & Luria, 1930/1996). Na carta, Vigotski reconhece o caráter contraditório de sua própria teoria, assim como a interpretação dada por Luria e indica o caminho da pesquisa e da reflexão para superar as dificuldades teóricas na compreensão dos fenômenos psicológicos (ver também Akhutina, 2003).
Ele expressa também a seriedade necessária com que os membros do grupo devem enfrentar a tarefa que lhe cabe, qual seja: a de construir uma nova psicologia. Assim, ele sugere que os membros do grupo se envolvam com as atividades em regime monástico, e em reclusão ideológica, se necessário.
Como temos assinalado em outro lugar (Martins, 2010), a teoria de Vigotski é uma teoria em devir. Nas cartas que estamos analisando, podemos perceber esse movimento, tanto no que tange a elaboração de sua teoria, que vai se consolidando ao longo do tempo, como nos seus interesses de pesquisa.
Até agora, temos vislumbrado nas cartas analisadas preocupações de Vigotski referente a aspectos teóricos e metodológicos da psicologia em devir. Mas as cartas também nos dizem sobre a emergência de novos interesses, novas perspectivas de pesquisa, que serão cruciais para o desenvolvimento de sua teoria. É o que se evidencia na carta escrita para Leontiev, de 23 de julho de 1929. Aqui, Vigotski, se referindo às possibilidades de trabalho com Leontiev, comenta: “Se você vai se candidatar para se tornar um assistente, eu faria isso. Falaremos sobre isso no outono. Eu tenho o meu próprio interesse, aqui (por exemplo, delírios da fala com relação ao problema do significado)” (Vygotsky, 2007:27).
Em carta à Luria, datada em 12 de junho de 1931, ele se apresenta apreensivo com relação aos estudos sobre o significado das palavras, especialmente com relação aos aspectos metodológicos:
Todo mundo estava feliz em ver que você está novamente de volta ao trabalho na mente e no coração e fazendo pesquisa. Esse é o aspecto mais importante, e isso é tudo. Contra a minha vontade, meu conselho a respeito do estudo do significado das palavras é muito seco e pobre: o que posso dizer, antes de ter pensado sobre as coisas? No entanto: (1) um teste seletivo algo chama-se tal e tal, porque (1)... (2)... (3)... (4)... – Pode ser bastante interessante, e (1), (2), (3) e (4) deve incluir menções...
(Estou sentado para continuar esta carta, pela terceira vez, em 16 de junho, com a firme intenção de concluir, ainda que de forma um pouco abreviado)... – as causas da similaridade do som – os atributos, as conexões com outras coisas, os motivos aleatórios, talvez, “isto que é o que as pessoas chamam.” (2) conversas clínicas à la Piaget, a fim de esclarecer o quadro clínico de pensar sobre as palavras e os nomes dos objetos. (3) mudanças de nome e uma discussão com estes significados alterados. (4) Finalmente, os significados – um jogo, como acontece com [NG] Morozova. Isso é tudo que posso dizer sobre isso agora. (Vygotsky, 2007:35)
Em outra carta, também dirigia à Luria, datada de 20 de junho de 1931, ele retoma as possibilidades dos estudos referentes aos significados das palavras:
Eu lhe escrevi anteriormente sobre os significados das palavras: Isto é imensamente valioso, o mesmo é verdadeiro para as metáforas. Consegui exatamente a mesma coisa com surdos mudos há alguns dias: eles podem compreender frases e provérbios conhecidos, mas não podem entendê-los na tradução. (Vygotsky, 2007:41)
O interesse de Vigotski pela questão do significado é compreendido, por alguns autores (Minick, 1987; Rey, 2007), como a etapa final de seu trabalho, onde a noção de mediação semiótica é consolidada.
As cartas consideradas até aqui nos revelam os movimentos de Vigotski em torno da construção da psicologia sócio histórica cultural. Nesse sentido, concordamos com Zavershneva, que identifica, a partir de seus estudos sobre os arquivos não publicados pertencentes a família de Vigotski, a seguinte organização da obra vigotskiana:
As premissas da abordagem, é claro, estão contidas em todos os primeiros trabalhos de Vygotsky, mas foi somente em 1926 que elas foram reunidas e um núcleo sólido, assim, criadas para a teoria, ou seja, uma série de postulados sobre em que todo o programa de pesquisa repousa, e que foram posteriormente clarificadas e dadas novas formulações. Em 1930, elas foram suplementadas com o princípio sistêmico, e em 1932, com o princípio da estrutura semântica da consciência. Propomos precisamente este critério para o início da teoria histórico-cultural, no sentido estrito da palavra: a síntese de duas ideias, que até 1926 estavam sendo elaboradas sem uma ligação clara entre elas (o princípio de mediação semiótica, que posteriormente sofreu alterações significativas e diminuiu para o fundo da teoria, e a ideia do desenvolvimento cultural da psique). Foi previamente assumido que a fase crítica, o ano de transição, foi 1927; a correspondência de Vygotsky com seus colegas sugeriu que a pesquisa experimental na nova metodologia de estimulação dupla já estava em curso, no Verão de 19275, mas não estava sendo publicada. Agora nós sabemos que os princípios teóricos desta pesquisa foram formulados um ano antes. (Zavershneva, 2010c:27)
A consolidação dos grupos de pesquisa – Os Círculos Vigotskianos
Anton Yasnitsky, abordando a história da psicologia soviética no início do século XX – durante o período de 1924 a 1941, identifica vários grupos que participaram da vida de Vigotski – o que foi denominado por ele de Círculos Vigotskianos. Esse autor organizou tais Círculos tendo como suporte alguns autores que participaram das redes informais de pessoas que conviveram com Vigotski. Ele entende que tal abordagem traz novos elementos para compreendermos os processos de desenvolvimento da ciência. Nesse sentido, Mark B. Adams, que introduziu a noção de redes informais na historiografia do discurso de ciência, esclarece:
Aqui, não estou me referindo a qualquer coisa arcana ou técnica (...) mas o significado mais flexível, mais evocativo que a palavra chegou a ter na linguagem cotidiana, algo familiar para todo tipo de historiador: redes pessoais. Uma rede pessoal é mais flexível, uma ‘estrutura’ menos coerente do que uma instituição ou uma disciplina. Desenvolvidas fora da família ampliada, lações escolares antigos, experiência mútua, hobbies, paixões particulares e interesses compartilhados, tais redes envolvem ramificações de contatos que são múltiplos e complexos – como são todas as associações livres que perpassam a sociedade cívica. Eles também podem formar ‘nós’ ou ‘gânglios’ onde são feitas várias novas conexões e interfaces de redes – por vezes sob a forma de círculos informais, sociedades privadas, clubes, salões, noitadas e assim por diante, às vezes em formas, mais organizadas que vão desde coisas que poderíamos chamar de ‘movimentos’ para grupos de interesses, organizações políticas e até mesmo ‘máfias’. E alguns destes, por sua vez, podem eventualmente ganhar ainda mais estrutura como potenciais disciplinas ou proto-instituições. (Adams citado por Yasnitsky, 2011:426)
A partir das redes pessoais, Yasnitsky identificou quatro fases na inserção de Vigotski no campo da psicologia soviética no período de 1924 a 1934 (Yasnitsky, 2009, 2011).
A primeira fase (1924-1927) começa com a mudança de Vigotski de Gomel para Moscou, onde inicia suas atividades no Instituto de Psicologia e em vários institutos de defectologia e, começa a trabalhar com Luria e Leontiev. Ela é caracterizada pela procura de uma nova definição de programa e tema de pesquisa. A maioria dos participantes de seu círculo social e profissional, nesse período, foram seus primeiros estudantes de graduação: Zankov, Solov’ev, Sakharov, Varshava e colaboradores do Instituto de Psicologia de Moscou: Artemov, Dobrynin, Bernstein, Gellersein e Luria.
Ao propor a segunda fase dessa trajetória (1927-1931), o autor questiona a narrativa histórica tradicional onde se afirma que a psicologia de sócio histórica cultural foi desenvolvida primeiramente pela tróica (o trio: Vigotski, Leontiev e Luria). Yasnitsky questiona tal história assinalando que, do ponto de vista da articulação teórica e da produção conjunta, observa-se uma maior aproximação entre Vigotski e Luria, e não entre Vigotski e Leontiev.
A terceira fase (1931-1934) é caracterizada pela variedade de grupos de pesquisa envolvidos com a teoria vigotskiana, grupos que trabalhavam, paralelamente, em várias instituições nas cidades de Moscou, Karkov e Leningrado. Vigotski e Luria faziam o papel de mediadores desses grupos, coordenando as pesquisas clínicas, de patologia e de desenvolvimento. A fase quarto (1934-1936) é identificada como um momento de desintegração dos grupos, bem como do programa original de pesquisa proposto por Vigotski.
Nas cartas que estamos considerando, vamos observar um esforço muito grande de Vigostski na constituição destes grupos, estimulando um trabalho coletivo e colaborativo entre as pessoas que compartilhavam seus interesses.
Como relação a isso, na introdução do texto “Tool and sign” – publicado por Vigotski e Luria em 1930 (ver Vygotsky & Luria, 1930/1994) – Anna Stetsenko, afirma:
Vygotsky escreveu “Tool and Sign” em estreita colaboração e em discussões vívidas com um número de pessoas... Eles formaram o chamado Círculo de Vygotsky, que incluiu várias mulheres brilhantes, e eles realizaram projetos de investigação coletivamente. Isto é bastante revelador, a esse respeito, que até mesmo a autoria de “Tool and Sign” é contestada; há razões para acreditar que Vygotsky o escreveu juntamente com Luria... Qualquer que seja o caso da autoria deste trabalho específico, a natureza onipresentemente colaborativa do projeto Vygotsky em geral deve ser enfatizada, especialmente porque tal fato tem sido, muitas vezes, subestimado ou até mesmo ignorado nas considerações anteriores do seu patrimônio. (Stetsenko, 2004:502-503)
Isto significa dizer que a abordagem de Vigotski para com as questões da psicologia encarna, “em sua história de vida real, os próprios princípios teóricos centrais, tais como, a indissociabilidade do conhecimento e ação, teoria e prática e a natureza colaborativa da cognição” (Stetsenko & Arievitch, 2004:58).
A carta de Vigotski, de 5 de abril de 1929, para o grupo intitulado “os cinco”, demonstra esse caráter colaborativo de seu trabalho:
Meus caros amigos perdoem-me por escrever em prosa a resposta a seu verso e por ser demasiado sério e profundo em resposta a sua brincadeira: afinal, cada brincadeira contem um fundo de seriedade. [...] Eu li o encarte de vocês [...] com enorme satisfação, espero que minha Coleção de Trabalhos traga um dia, a cada um de vocês, a mesma satisfação. Em uma nota séria, deixe-me dizer resumidamente que a sua última linha diz algo que para mim é agora o lema principal do meu estado completo de saúde e “estado de vida”: A estrada é longa ... [...] Eu nunca me permitiria falar com tanta franqueza (eu tenho mantido esse lema para mim mesmo) se eu não sentisse que vocês também estão começando, de um ângulo, apreciar a enormidade do caminho abrindo-se diante do psicólogo que procura reconstruir os passos da história da psique mental. Este é um novo território. Quando eu percebi isso em vocês, eu fiquei muito surpreso: esse dia pareceu-me surpreendente que, nas circunstâncias e tendo em conta que muitos esboçoes são ainda pouco claros, pessoas que estão apenas escolhendo o seu caminho se lançaram nesta jornada especial. Eu experimentei um sentimento de surpresa enorme quando A. R. [Luria] foi o primeiro a sair nesta jornada, quando A. N. [Leontiev] o seguiu, e assim por diante. Agora, para minha surpresa, há a alegria acrescentada que, baseada nas faixas que foram descobertas, não apenas eu sozinho e não apenas nós três, mas cinco outras pessoas veem a grande avenida. (Vygotsky, 2007:21-22)
Mais uma vez fica evidente a posição de Vigotski frente à psicologia. Ele se vê diante de um longo caminho que deverá ser percorrido na construção de uma nova psicologia, com a perspectiva de superar o cataclismo em que se encontrava a disciplina no início do século XX. Em sua carta, fica também evidente sua surpresa com relação ao grupo que começa a se ocupar das tarefas que se apresentavam na construção de uma nova psicologia; surpresa essa acompanhada de um certo otimismo na consolidação deste trabalho.
Sobre a relevância do trabalho coletivo, Vigotski a expressa em carta dirigida a Nataliia Grigor’evna, datada de 29 de julho de 1930. Essa correspondência faz referência a uma situação de afastamento de Nataliia, em função de um estado de impotência e de tristeza. Em resposta a maneira com Nataliia se coloca diante do grupo, Vigotski diz:
Acho que foi neste tipo de estado que você escreveu a carta. E eu também acho que você sabe que você tem que lutar contra esses estados e que você pode superá-los. Um homem vence a natureza fora de si, mas também dentro de si mesmo, nisso reside a nossa psicologia e ética, não é? Assim você pode ver que eu não me oponho à sua carta, embora talvez eu tenha uma objeção. Tem a ver com o coletivo. Como você pode dizer que “vamos nos ajeitar” sem você, que o coletivo “vai se ajeitar” também, que você é uma individualista no coletivo e assim por diante. Tudo isso é fundamentalmente falso. Nós não vamos levar a vida sem você, não podemos passar sem você, o coletivo não vai passar sem você. Nosso coletivo, como qualquer coletivo, no verdadeiro sentido da palavra, não nega o individualismo, mas depende disso para apoio. Assim como um organismo depende da cooperação organizada de órgãos especializados e diferenciados (isto é, individualizadas). De fato, o coletivo consiste na cooperação das individualidades. Quanto maior o número dessas individualidades e quanto mais marcantes elas forem, mais elas estão repletas de auto-conhecimento, em outras palavras, quanto mais elas estão conscientes de si mesmos, como personalidades (e isso é o individualismo, bem entendido), maior é a coletividade. Portanto, não importa o quanto você pode estar perturbada, não importa o quanto isso possa ser “uma coisa depois da outra”, sempre saiba e lembre-se disso: firmeza e inflexibilidade são coisas que todo mundo deve ter nessa empreitada, uma conexão com os outros e com a causa. Aqui eu estou, como disse Lutero. Todo ser humano deve saber onde ele está. Você e eu também sabemos disso, e devemos permanecer firmes. (Vygotsky, 2007:27)
Em um tom quase paternal, ele finaliza esta carta dizendo:
[...] E agora, se você concorda comigo, peço-lhe para escrever concretamente, na íntegra, em detalhes, sem medo e sem constrangimento, sobre o que você está enfrentando, o que incomoda você, o que não está indo bem, o que aconteceu e como, o que te traz desespero. Espero muito isso e você tem a minha total atenção. (Vygotsky, 2007:27)
Nesta carta – assim como em várias outras – um aspecto das relações que Vigotski estabelece com seus parceiros fica bastante enfatizado: a do acolhimento, a do respeito, a do companheirismo.
Entre as cartas destacam-se duas que nos apontam para o rompimento teórico entre Vigotski e Leontiev. Sabemos que essa questão é bastante polêmica6 no campo da história da psicologia sócio histórica cultural, mas documentos recentemente publicados nos apontam para tal situação (ver Yasnitsky, 2009, 2011; Zavershneva, 2010a,b,c).
A primeira é datada de 13 de julho de 1932, e é dirigida à Luria. A carta diz respeito à abordagem sistêmica e à necessidade da investigação experimental que se desdobra com esta abordagem. Vigotski analisando o envolvimento de Luria e de Leontiev com tal perspectiva afirma:
Estou esperando bastante de você (não importa o quão cegamente, por assim dizer, os experimentos procedam), porque pensar na experimentação é pensar de forma mais produtiva, mesmo quando errar. E você está no caminho certo, como eu estou e como está A. N. [Leontiev], ele não entende, em parte, até de forma deliberada, a nova distinção nos experimentos, mas ele está desenhando essa distinção em sua pesquisa sobre o intelecto prático a partir de conexões com a fala e suas mudanças, sobre mudanças a partir do fim para o começo – que é uma dinâmica sistêmica. (Vygotsky, 2007:44)
Com esta carta podemos perceber, talvez, o início das divergências teóricas que se estabele ceram entre estes autores, uma vez que aqui Vigotski avalia o afastamento deliberado de Leontiev quanto ao seu engajamento dos procedimentos experimentais subsidiados pela visão sistêmica que se estabelecia. A ruptura entre eles fica explícita na carta de 2 de agosto de 1933:
Caro Aleksei Nikolaevich! Eu mantive a intenção de enviar uma carta através do A. R. [Luria], mas nunca vimos um ao outro antes de sua partida. Daí o atraso. Eu me senti em mais de uma ocasião em que nos encontramos, por assim dizer, à beira de algum tipo de discussão muito importante para nós dois e que, ao que parece, ainda estamos despreparados e, portanto, temos uma má compreensão em que ela deveria consistir. Mas agora temos visto o raio de verão disto muitas vezes, inclusive em sua última carta. Por esta razão, não posso deixar de lhe responder com o mesmo tipo de raio de verão, algo semelhante a uma premonição (vaga) de uma conversa futura. Seu destino externo aparentemente vai ser decidido no outono – por alguns anos. E ao mesmo tempo – o nosso (e meu próprio) destino, e em parte o destino da nossa causa. No entanto, subjetivamente você deve suportar o seu “exílio” para Kharkov, quaisquer alegrias que ele possa oferecer em compensação (no passado e ainda mais no futuro), sua partida final – objetivamente, em termos do seu real significado interno – é como interno, grave, e talvez um irreparável revés para nós, um revés decorrente de nossas ilusões e negligência pura e simples da tarefa que nos foi confiada. Parece que o que ocorreu uma vez nunca mais se repetirá, quer na sua biografia ou minha, ou na história da nossa psicologia. Ainda assim, estou tentando entender tudo isso de um modo como Spinoza, com tristeza, mas como algo necessário. Em meus próprios pensamentos, eu parto disso como de um fato existente. O destino interno de uma pessoa só pode ser decidido em associação com o destino externo, mas ele não é, naturalmente, decidido por ele completamente. Por essa razão, não é claro para mim, é confuso, a minha visão é obscurecida, e preocupa-me com a maior preocupação que tenho experimentado nos últimos anos. Mas dado que a sua posição interna, como você escreve, já está cristalizada num sentido pessoal e científico, a decisão externa também está pré-determinada até um certo ponto. Você está certo em dizer que primeiro você deve se livrar da necessidade de agir enganosamente. Seria possível fazer isso por meio de “abstrair” (à la Kharkov) ou “fissionar” (à la Moscou), independentemente das condições externas de qualquer um de nós. Penso, portanto, ele está certo, apesar do fato de eu avaliar tudo o que aconteceu com A. R. [Luria] de forma diferente (e não em um sentido favorável). Mas vamos falar sobre isso separadamente em algum momento.
Eu sei e considero apropriado que interiormente você atravessou a estrada (final) até o amadurecimento nos últimos dois anos. Do fundo do meu coração, como eu desejo boa sorte a um amigo muito íntimo em momentos decisivos, desejo-lhe força, coragem e clareza de pensamento agora que você está diante de uma decisão no que diz respeito ao seu caminho na vida. O mais importante, tome essa decisão livremente. Sua carta se rompe naquela nota, e assim vou romper a minha naquela nota também – embora sem qualquer motivo externo. Eu firmemente, aperto sua mão. Com todo meu coração, teu, L. Vygotsky. (Vygotsky, 2007:46-47)
As cartas nos indicam que o rompimento entre Vigotski e Leontiev, se efetivou em torno dos desdobramentos da visão sistêmica (como nos referimos anteriormente e como ele propõe no texto Sobre os sistemas psicológicos de 1930). Tal indicação pode ser confirmada a partir do texto de Zavershneva onde, foram identificadas duras críticas às proposições de Leontiev uma vez que as análises de seus estudos implicavam numa redução do nível de generalização teórica, e por não levar plenamente em consideração os processos psicológicos superiores. Para Zavershneva
Vygotsky criticou Leontiev por perder o centro da investigação e por ter adotado uma abordagem espontânea. O passo para o lado que Leontiev estava fazendo era para ele não apenas um desvio do objetivo geral – a teoria da consciência –, mas também um passo para trás, em direção à análise das funções psicológicas, que foi dominante no Círculo Vygotsky entre 1928 e 1931. Cada componente da consciência naquele momento foi investigado separadamente, sem uma abordagem sistêmica: A. N. Leontiev estudou memória; L. S. Sakharov, Iu. V. Kotelova e E. I. Pashkovskaia estudou pensamento, e assim por diante. Vygotsky pode ter visto a investigação de Leontiev apenas como uma tentativa de estudar a dinâmica da ação como apenas uma outra função psicológica. O tempo tinha chegado, no entanto, de trazer todos os resultados em conjunto, sintetizálos e reinterpretá-los. (Zavershneva, 2010b:83)
Zavershneva indica tal ruptura apoiando-se em notas de Vigotski escritas em 1934, notas que foram escritas em função da apresentação do trabalho de Leontiev no grupo de pesquisa. Em uma das notas ele diz:
Há duas unidades de atividade dinâmica: o pensamento e a atividade real. Ambos têm seu aspecto dinâmico, isto é, existe um sistema dinâmico sui generis, de um certo tipo e variedade. Os dois tipos de dinâmica não existem in abstracto, sem atividade. Este é o ponto mais importante e fundamental...
Na verdade, o papel do pensamento na atividade consiste na introdução de novas possibilidades dinâmicas para a atividade. Dizer que o pensamento está prejudicado é o mesmo que dizer que os processos dinâmicos sutis e complexos da atividade estão prejudicados. (Entrada “Sehr wichtig. A unidade do afeto e intelecto” [Sehr wichtig. Edinstvo affektai intellekta], Arquivo familiar) (Vygotsky citado por Zavershneva, 2010b:83)
Complementando essa entrada do arquivo, a autora apresenta outras duas notas:
“NB! AN”, Vygotsky escreve sobre Leontiev (o item está marcado “!!!!!!”) que ele “olha para trás e não toma um passo decisivo para um novo nível de trabalho – análise semiótica. – Qual o significado de uma ação significante?” (Vygotsky citado por Zavershneva, 2010b:89, n. 35)
“Como inspirar o camarada Leontiev com a luz do problema de consciência!” (Vygotsky citado por Zavershneva, 2010b:89, n. 37)
A partir das referências acima podemos dizer que a divergência entre os autores se pauta fundamentalmente sob uma dimensão metodológica, entretanto, assevera Zavershneva:
Os argumentos contra Leontiev não iam além do debate científico. Em nenhum lugar, nem mesmo em notas para si mesmo, nós encontramos ataques pessoais sobre Leontiev, embora Vygotsky estivesse definitivamente a começar a perder a paciência. “Cada pessoa dá seu passo independentemente após partir de um ponto de partida comum. Mas onde é que ele colocou o pé?” (Zavershneva, 2010b:83)
Mais a frente ela continua
É difícil não perceber que eles estavam falando línguas diferentes. Vygotsky não parecia perceber que, além de argumentos científicos, o que estava por trás da decisão de Leontiev de dissociar-se da investigação sobre a consciência foram fatores aparentemente ideológicos. Ao concentrar-se na teoria ideologicamente mais complacente da atividade, A. N. Leontiev sobreviveu no ambiente complexo da “ciência reprimida” (termo de M. G. Yaroshevskii), e mais tarde tornou-se não apenas o criador de um grande movimento, mas também o fundador do departamento de psicologia na Universidade Estadual de Moscou. Devemos notar, no entanto, que a psicologia foi principalmente privada de seus trabalhos [de Vigotski] até a década de 1980, enquanto Leontiev assumiu cargos de liderança na ciência soviética. (Zavershneva, 2010b:83-84)
As cartas nos revelam também que, durante as décadas de 1920 e 1930, Vigotski passou por difíceis momentos, que fizeram com que o direcionamento de suas pesquisas ficasse sob influência de vários fatores: as pressões políticas do regime ditatorial Stalinista; sua doença, a tuberculose, a sobrecarga extra de compromissos que se estabelecia (traduções, publicações de artigos, prólogos de livros, participações em congressos, discussões acadêmicas entre os grupos etc.).
O trecho da carta para Luria, de 12 de junho de 1931, demonstra bem esse momento o qual Vigotski estava vivendo. Luria e Leontiev haviam se mudado para Karkov, enquanto ele se manteve em Moscou. Ele comenta como a sobrecarga de trabalhos extras estava afetando suas pesquisas científicas:
Nosso trabalho vai nem bem, nem mal, é medíocre. Tem sido muito difícil se concentrar depois do que aconteceu (desde a dissolução). Mas estamos trabalhando e vamos completar nossas pequenas tarefas. Levina se contenta em Kursk. Eu ainda estou envolvido com milhares de tarefas mesquinhas. A inutilidade do que faço muito me aflige. Meu pensamento científico está saindo para o reino da fantasia, e eu não posso pensar nas coisas de uma forma realista até o fim. Nada está dando certo: eu estou fazendo as coisas erradas, escrevendo as coisas erradas, dizendo que as coisas erradas. Uma reorganização é fundamental e desta vez eu irei realizá-la. (Vygotsky, 2007:35-36).
Nesta carta, Vigotski vivencia os desdobramentos da dissolução do grupo de seguidores que incluía uma parte do troika (Luria e Leontiev) e uma parte da pyaterka (os cinco) (Zaporozhets e Bozhovich) que foram para Kharkov, então capital do Ucrania soviética, para iniciar os trabalhos em uma nova unidade organizacional, o setor de psicologia a Academia de Psiconeurológica Ucraniana (UPNA).
Além disso, a situação política vivida por Vigotski é extremamente complexa, conforme podemos observar no seguinte comentário de van der Veer:
Para ser e permanecer um psicólogo profissional na União Soviética dos anos 1920 e 1930 era necessária sorte, flexibilidade e habilidades consideráveis. Em todos os livros sobre a história da psicologia soviética [...] podemos ler sobre os debates orquestrados que dominou a agenda científica (por exemplo, no reducionismo, dialética, dualismo, prática). Psicólogos individualmente tinham de tomar a posição correta sobre estas questões ou tinha riscos a sofrer as consequências. Em 1930, em particular, a pressão ideológica se transformou em terror de Estado genuíno e nenhum estudioso poderia estar certo de que ele ou ela tinha manifestado o e apenas o ponto de vista “correto” sobre um determinado tópico. Infelizmente, os pontos de vista oficiais infalíveis sobre esses tópicos se deslocavam repetidamente. É por isso que muitos intelectuais estavam preparados para o pior e sempre tinham uma mala pronta, caso da polícia secreta viesse prendê-los (eles invariavelmente vinham durante a noite). (van der Veer, 2000:3)
Podemos imaginar que sua situação fica mais tensa na medida em que levamos em consideração que, a partir de 1930, os debates em torno das ideias vigotskianas começaram a se tornar públicos, especialmente pela sua vinculação com a pedologia7, motivo de críticas e questionamentos (algumas destas críticas foram efetivadas por Abel’Skaaiand & Opikhonova, 1932/2000; Feofanov, 1932/2000; Talankin, 1930/2000).
Em 1936, após a sua morte, sua obra foi rechaçada pela inteligência soviética por conta desta vinculação, uma vez que os estudos dos pedólogos se tornaram ideologicamente suspeitos, considerados como uma pseudociência reacionária e burguesa (van der Veer & Valsiner, 1991). O decreto do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o “Decreto da Pedologia” de 1936, determinava abolição do ensino da pedologia como ciência das academias soviéticas e a censura das obras sobre essa área publicadas até julho de 1936 (Teixeira, 2004).
Porém, isso não impediu que as pesquisas sobre a psicologia da criança continuassem avançando, os cientistas tiveram que criar subterfúgios de linguagem ou a não divulgação, para que pudessem continuar seus trabalhos (cf. Golder citado por Teixeira, 2004).
As obras de Vigotski foram censuradas, em 1936, juntamente aos materiais relacionados à pedologia. Durante 20 anos suas ideias foram transmitidas oralmente pelos seus discípulos, que as faziam circular clandestinamente. Em 1956, seus textos começaram a ser recuperados, e foram relançados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho pudemos confirmar a importância em levarmos em consideração o contexto social e pessoal de Vigotski que termos uma compreensão um pouco melhor de seu trabalho na construção de sua teoria.
As informações disponibilizadas em suas cartas nos permitiu retratar Vigotski não como um gênio solitário à frente de seu tempo e distante da realidade social, não acadêmica, mas inscrito em um projeto, pautado no ideário político da igualdade, justiça e mudança social e principalmente, na prática coletiva do mesmo (Stetsenko, 2004; Stetsenko & Arievitch, 2004).
Elas nos possibilitaram também enxergar as várias dimensões da vida intelectual de Vigotski, mas, mais ainda, pudemos vislumbrar como essas dimensões se mesclam e se movimentam no interior das relações e de sua vida. Há uma aproximação da dimensão profissional e particular; intelectual e emocional, privado e público; onde podemos perceber que ele estabelecia uma relação de amizade com seus colaboradores de trabalho, eles cresciam juntos, preocupavam-se e incentivavam-se uns aos outros, um grupo articulado em torno de um ideário comum.
Conforme alguns trabalhos nos indicam (Stetsenko 2004; Stetsenko & Arievitch, 2004), podemos considerar que, a prática profissional desenvolvida pelo grupo de Vigotski, era compatível com ideário marxista: eles viviam e inspiravam-se no espírito comunista em seu cotidiano. Procuravam soluções que respondessem as demandas do processo revolucionário, ao mesmo tempo em que se articulavam na criação de uma nova psicologia – essa era a causa do grupo.
Vigotski demonstra em sua obra ser um homem de imenso conhecimento cultural envolvendose com questões vinculadas à literatura, ao drama, às artes, à música etc. Recita passagens de poemas, romances e peças aos amigos e colaboradores. Tal vinculação se apresenta na carta dirigida à N. G. Morozova, de 07 de abril de 1930, onde ele demonstra solidariedade à amiga, recitando um trecho de um poema de F. I. Tiutchev, que condiz com o momento difícil ao qual essa está passando:
No pior dos casos, envie um sinal de socorro de rádio, como o SOS (Salvem nossas almas) dos navios afundando, e nós iremos salvar as vossas almas.”
Não importa o quão opressivo
É a mão do destino,
O que pode resistir ao sopro
E esse primeiro encontro com a primavera... Tiutchev
(Vygotsky, 2007:26-27)
A análise das cartas nos permitiu vislumbrar uma dimensão da vida de Vigotski muito afirmada entre seus comentadores, mas pouco explorada, que está relacionada com sua posição humanista diante do mundo. Tal posição é inerente à forma como enxergava a vida e na maneira como se relacionava profissional e pessoalmente. Apesar de todas as dificuldades do contexto ao qual estava vivendo, mostrava-se sempre atencioso e preocupado com pessoas em sua volta. Tal forma de ver a vida está presente na carta enviada à R. E. Levina, de 16 de junho de 1931, onde ele aconselha a amiga a enxergar a vida de uma forma mais profunda do que é expressa no exterior; em continua evolução, dando importância e a atenção à essa e a obtenção de uma filosofia para sustentá-la e baseá-la:
[...] Você queria tanto ir a algum lugar onde a própria vida, não apenas o seu trabalho, seria novo, educacional e revigorante. Mas Kursk não é ruim. Você vai em breve ser capaz de abandonar o local, tendo concluído a sua tarefa de trabalho institucional. As coisas que você escreve sobre o seu trabalho me deram pensamentos tristes sobre o que está sendo feito atualmente, onde você está, em nome do desenvolvimento infantil. O problema não é o afastamento ou o primitivismo, o problema reside na falsidade, na mentira, na obra fraudulenta. Mas isso não é tudo, é claro. Há núcleos de honestidade e verdade em qualquer trabalho, e temos de olhar para eles acima de tudo. Esses núcleos também estão, sem dúvida, presentes em seu trabalho em Kursk. Além disso, é, naturalmente, necessário prosseguir a pesquisa que irá nutri-lá e instruí-la, e dar-lhe alguma coisa para viver e respirar, e que seria necessário objectivamente, isto é, que levará a verdade.
[...] Sobre os problemas internos e dificuldades da vida. Acabei de reler (quase que por acidente) “Tri goda” [ThreeYears] do Chekhov. Você deve lê-lo também. Essa é a vida. Ela é mais profunda e mais ampla do que sua expressão exterior. Tudo sobre ela está em evolução. Tudo evolui. A coisa mais importante, agora e sempre, não é equacionar a vida com a sua expressão externa, ponto final. Então, quando você presta atenção a vida (e esta é a virtude mais importante, uma atitude um tanto passiva em primeiro lugar), você irá encontrar dentro de si mesmo, fora de si mesmo e em todas as coisas de tal maneira que nenhum de nós poderia contêlo dentro de nós mesmos. É, naturalmente, impossível viver sem ter um conceito de vida em um sentido intelectual. Sem a filosofia (uma filosofia pessoal de vida) pode haver o niilismo, o cinismo, o suicídio, mas não a vida. Mas o fato é que todo mundo tem uma filosofia. (Vygotsky, 2007:37-38)
A tarefa de reconstruir o escopo da história da psicologia sócio histórica cultural ainda está aberta. O artigo que aqui se encerra nos proporcionou um vislumbre sobre essa história, que nos mostrou que sua teoria está estreitamente relacionada com o trabalho colaborativo que Vigotski exercitou com seus companheiros – pessoas com grandes qualidades, que juntas compartilhavam um caminho comum, seja no campo profissional como no campo pessoal – projeto que se refletia tanto no modo como compreendiam a psicologia como em suas vidas.
Nesse sentido, concordamos com Souza Jr., Cirino e Gomes (2010) quando enfatizam a necessidade de aprofundarmos a análise histórica do processo de construção da obra do autor bielo-russo, o que pode competir para o incremento da compreensão atual do seu pensamento, além de auxiliar no desenvolvimento de aplicações mais alinhadas com os significados originais da produção intelectual vigotskiana.
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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: João Batista Martins. Departamento de Psicologia Social e Institucional, Universidade Estadual de Londrina, Caixa Postal 6001, Campus Universitário, Londrina, Paraná, Brasil, CEP 86000-000. E-mail: jbmartin@sercomtel.com.br
NOTAS
1 Yasnitsky (2010) localiza os trabalho de Zavershneva em torno da discussão do que tem sido denominada de “Archival Revolution”.
2 Ver também Mainardes e Pino (2000) para uma análise da situação das apropriações brasileiras da obra de Vigotski.
3 Yasnitsky (2009), problematiza a organização do grupo Vygotsky-Luria-Leontiev, descontruindo essa articulação.
4 Esta mesma avaliação encontramos em Leontiev, 1991.
5 Na carta de Vigotski para Luria de 26 de julho de 1927 ele afirma: “O único comentário sério é que todos devem trabalhar em seu campo de acordo com o método instrumental. Estou investindo todo o resto de minha vida e toda minha energia nisso” (Vygotsky, 2007:20)
6 Ver o texto de Tunes e Prestes (2009), onde defendem a ideia de que não houve uma ruptura entre as ideias de Vigotski e Leontiev.
7 Sobre o envolvimento de Vigotski com este campo de pesquisa, ver Schneuwly e Leopoldoff-Martin (2011).