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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231
Aná. Psicológica vol.33 no.2 Lisboa jun. 2015
https://doi.org/10.14417/ap.991
Descodificação dos comportamentos autolesivos sem intenção suicida – Estudo qualitativo das funções e significados na adolescência
Joana Calejo Jorge1, Otília Queirós1, Joana Saraiva1
1Departamento de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Centro Hospitalar do Porto
RESUMO
Os comportamentos autolesivos sem intenção suicida devem ser vistos como um modo de expressão de um conflito ou dificuldade vivencial do adolescente e, por isso, carecem de uma “descodificação” atenta. O presente estudo qualitativo teve como principal objetivo conhecer os significados e funções subjacentes a estes comportamentos numa amostra clínica de adolescentes. A amostra foi constituída por 25 participantes, recrutados na consulta externa do Serviço de Adolescência do Departamento de Psiquiatria da infância e da adolescência do Centro Hospitalar do Porto. A análise de conteúdo revelou a existência de funções intrapsíquicas e interpessoais, estando os comportamentos ao serviço de mais do que uma função, na maioria dos casos. Estas enquadraram-se em diferentes modelos explicativos teóricos, sendo possível identificar o predomínio de funções de alívio da tensão emocional e tentativa de fuga/retirada, ambas pertencentes ao modelo de Regulação emocional, e de funções interpessoais, enquadradas no modelo Ambiental. Embora exploratórios, estes resultados tendem a apoiar a investigação existente, apontando, contudo, para algumas especificidades. Evidenciam, ainda, a importância da avaliação atenta e compreensiva destes comportamentos de forma a aprimorar o seu tratamento.
Palavras-chave: Comportamentos autolesivos, Adolescência, Funções, Significados.
ABSTRACT
“Decoding” “non suicidal self-injury” – a qualitative study of its functions and meanings in adolescence Non suicidal self-injury should be seen as a way of expression of a conflict or experiential difficulty of adolescents and therefore they require a close “decoding”. This qualitative study intends to understand the meanings and functions underlying these behaviors in a clinical sample of adolescents. The sample consisted of 25 participants, recruited from the adolescence outpatient clinic of the Department of Child and Adolescent Psychiatry, at the Oporto Medical Centre. The content analysis revealed the existence of intrapsychic and interpersonal functions and the behaviors service more than one function in most cases. These may be framed in different theoretical explanatory models, and it is possible to identify the prevalence of relief functions of emotional tension and attempted escape/removal, both belonging to the emotional adjustment model, and interpersonal functions, framed in Environmental model. Although exploratory, these findings tend to support existing research, pointing out, however, at some specifications. It shows also the importance of careful and comprehensive assessment of these behaviors in order to improve their treatment.
Key-words: Non suicidal self-injury, Adolescence, Functions, Meanings.
Introdução
Diante das mudanças que se operam no seu corpo, o adolescente vive um período particularmente vulnerável, no qual existe uma potencialidade acentuada de mudança mas também de desequilíbrio. Carecendo de possibilidades de simbolização e de representatividade do caos interno, numa tendência à passagem ao ato como forma de dispensar a mentalização, a autolesão surge como uma alternativa em situação de conflito.
Existem algumas divergências na comunidade científica relativas à definição dos comportamentos autolesivos. No presente trabalho, utilizamos a definição correspondente à definição anglo-saxónica de “non suicidal self-injury” para nos referirmos aos comportamentos autolesivos sem intenção suicida na adolescência como os atos de autodestruição direta do corpo sem intenção suicida associada que se refere apenas à destruição do tecido corporal do próprio na ausência de intencionalidade de morrer, incluindo apenas cortes (self-cutting) e comportamentos associados (p. ex., queimaduras, arranhões, etc.) (Nock, Joiner Jr., Gordon, Lloyd-Richardson, & Prinstein, 2006).
A prevalência destes comportamentos é difícil de determinar, contudo, a maioria dos estudos existentes revelam taxas elevadas na adolescência. Dados recentes de amostras comunitárias apontam para que 10% dos adolescentes apresente comportamentos autolesivos pelo menos uma vez ao longo da vida, sendo consistentemente mais frequentes em raparigas (Hawton, Saunders, & O’Connor, 2012). Entre populações clínicas de adolescentes, a prevalência destes comportamentos é ainda superior, com taxas atingindo os 82% (Washburn et al., 2012).
“Descodificação” dos comportamentos autolesivos
Os comportamentos autolesivos sem intenção suicida na adolescência surgem como um modo de expressão do corpo, pelo corpo e que devem ser “descodificados”.
Encontram-se evidências na literatura de que os comportamentos autolesivos desempenham variadas funções e estão ao serviço de diferentes finalidades em diferentes pessoas e em diferentes fases da vida (Suyemoto, 1998; Klonsky, 2007, 2011). Não desprezando a unicidade de cada indivíduo e de cada comportamento autolesivo, parecem existir semelhanças, encontrando-se várias tentativas de conceptualização dos comportamentos baseadas em diferentes correntes teóricas e que estão na origem de diferentes modelos explicativos (Nock, 2010). Nenhum destes modelos diferencia a adolescência da idade adulta, contudo, tendo a maioria dos casos início na adolescência (Hamza, Stewart, & Willoughby, 2012) e persistência na idade adulta, pressupõe-se que os modelos se aplicam às duas faixas etárias.
Entre os vários modelos explicativos dos comportamentos autolesivos sem intenção suicida na adolescência, destaca-se a sistematização teórica realizada por Suyemoto (1998) que, com base na revisão da literatura, definiu seis modelos explicativos distintos: modelo ambiental, modelo de regulação emocional, modelo anti-dissociativo, modelo sexual, modelo anti suicídio e modelo interpessoal.
O modelo ambiental focaliza-se na interação entre o adolescente e o ambiente, atribuindo aos fatores externos importante papel no aparecimento e manutenção dos comportamentos autolesivos. Estão implicados processos de reforço comportamental e fenómenos de contágio, imitação, socialização e seleção entre os pares (Favazza & Rosenthal, 1990). Alguns autores acrescentam que os comportamentos autolesivos desempenham um papel de sinalização social, sendo utilizados como meio de comunicação quando as estratégias de comunicação falham devido a um défice comunicacional ou à má qualidade ou clareza do sinal emitido (Wedig & Nock, 2007).
O modelo de regulação emocional conceptualiza os comportamentos autolesivos como uma forma de expressar e externalizar emoções intensas e avassaladoras e uma forma de apreensão do controlo das suas emoções (Suyemoto, 1998). É um dos modelos dos comportamentos autolesivos mais proeminentes e com mais evidências recentes (Klonsky, 2007; Messer & Fremouw, 2008).
Segundo o modelo anti-dissociativo, os comportamentos autolesivos representam uma forma de terminar um estado de despersonalização ou dissociação, permitindo abandonar uma sensação de irrealidade e entorpecimento emocional e retomar a sua existência pela dor física que o faz sentir vivo (Gunderson,1984, citado em Klonsky, 2007; Suyemoto & MacDonald, 1995).
Tendo por base a teoria psicanalítica, o modelo sexual postula que estes comportamentos desempenham um papel de punição de pulsões sexuais ou de controlo do desejo ou da maturação sexuais (Suyemoto & MacDonald, 1995). Woods (1988, citado em Messer & Fremouw, 2008) sugeriu que a autolesão pode ser uma forma de gratificação sexual, à semelhança da masturbação.
Atendendo aos conceitos de pulsão de vida e de pulsão de morte, também numa visão psicanalítica, os comportamentos autolesivos constituem uma solução de compromisso de uma luta entre os impulsos agressivos e o instinto de sobrevivência (Suyemoto & MacDonald, 1995). Esta visão constitui o modelo anti suicídio, segundo o qual os adolescentes que realizam comportamentos autolesivos não procuram morrer, mas sim o retorno a um estado de normalidade, sendo uma forma de apaziguar conflitos internos (Favazza, 1990).
Finalmente, o modelo interpessoal associa os comportamentos autolesivos à tentativa de demarcação de limites do próprio self dos outros como forma de manter o sentido de identidade (Suyemoto, 1998). Atendendo ao papel de barreira protetora do self desempenhado pela pele, o ato de cortar a pele pode ser visto como uma forma de delimitar as fronteiras do corpo e de reintegrar o sentimento de um self fragmentado ao reativar a experiência tátil do ego corporal (Favazza, 1990).
Numa tentativa de descodificação destes comportamentos, foi desenvolvido o presente trabalho com vista a uma abordagem compreensiva das funções e significados subjacentes aos comportamentos autolesivos sem intenção suicida na adolescência.
Objetivos
O presente estudo qualitativo teve como principal objetivo conhecer os significados e funções subjacentes aos comportamentos autolesivos numa amostra clínica de adolescentes.
De forma específica, este estudo procurou (1) descrever as funções dos comportamentos e (2) identificar a frequência com que estas funções são expressas.
Métodos
Participantes
A amostra foi constituída por 25 adolescentes, com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos (M=15.08, DP=1.38), na sua maioria do sexo feminino (92%) e nível socioeconómico médio (60%) (de acordo com a Classificação Social de Graffar).
Os participantes foram recrutados na consulta externa do Serviço de Adolescência do Departamento de Psiquiatria da infância e da adolescência do Centro Hospitalar do Porto.
Foram incluídos os adolescentes que apresentavam antecedentes de comportamentos autolesivos nos últimos 6 meses, de forma repetida (duração superior a um mês), excluindo aqueles que evidenciavam défice cognitivo ou uma perturbação do espetro do autismo.
O estudo foi autorizado pela Comissão de Ética e pelo Gabinete Coordenador de Investigação do Centro Hospitalar do Porto.
Caraterização clínica
Considerando o eixo I da Classificação multiaxial DSM IV-TR (2000), 44% dos adolescentes preenchiam critérios para o diagnóstico de perturbação de adaptação (n=11), 36% para o diagnóstico de perturbação de humor (n=9), 16% para o diagnóstico de perturbação de ansiedade (n=4) e 4% para o diagnóstico de perturbação de hiperatividade e défice de atenção (n=1).
Apenas 20% dos adolescentes preenchiam critérios para um diagnóstico no eixo II (DSM-IV-TR). Entre estes, 60% para perturbação borderline da personalidade (n=3) e 40% para perturbação histriónica da personalidade (n=2).
32% dos adolescentes referiram consumos de tóxicos (canabinóides): 20% de uma forma regular e 12% de uma forma esporádica.
No que respeita à existência atual de ideação suicida, em 44% dos casos, esta foi verbalizada quando diretamente inquirida (n=11), existindo antecedentes de tentativas de suicídio em 52% da amostra (n=13). Quando presente, a ideação suicida não era associada pelos adolescentes aos seus comportamentos autolesivos.
A idade média de início dos comportamentos autolesivos foi de 13.6 anos (DP=1.44).
40% dos adolescentes referem ter efetuado os comportamentos autolesivos no ultimo mês (n=10).
Relativamente à localização das autolesões, todos os adolescentes as fazem nos antebraços, seguindo-se os pulsos e as coxas como as zonas do corpo mais vezes escolhidas.
As lâminas de giletes e de afias são os instrumentos mais utilizados, sendo frequentemente verbalizado o livre acesso aos objetos como a razão para esta escolha.
A maioria dos adolescentes realizam os comportamentos de forma impulsiva e não ritualizada, identificando-se em apenas dois casos uma ritualização e exaltação do comportamento.
Instrumentos
Além de um questionário de caraterização clínica e sociodemográfica, foi utilizado um guião de entrevista semiestruturado construído com base na revisão da literatura e nos objetivos delineados e composto por duas partes:
– primeira parte: perguntas fechadas para identificar as condições temporais e espaciais em que é realizada a autolesão, os rituais e os instrumentos utilizados, as zonas do corpo lesadas;
– segunda parte: perguntas abertas e semiabertas que, por um lado, permitem a identificação de experiências e vivências pessoais e, por outro lado, dão lugar a questões adicionais não planeadas.
Procedimentos
Os participantes foram convidados a participar no estudo durante uma consulta de seguimento. Antes do início da entrevista, era apresentado ao participante e ao seu responsável legal o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, onde constavam os objetivos e procedimentos do estudo e, por fim, se convidava o participante. As entrevistas foram realizadas pela mesma investigadora e com o adolescente sozinho, tendo uma duração aproximada de 45 minutos. Todas as entrevistas foram transcritas forma integral e o mais fiel possível ao que foi dito e o seu conjunto constituiu o “corpus” de estudo deste trabalho. De seguida, foram tratadas no programa de análise de dados qualitativos NVivo versão dez.
Partindo da revisão da literatura, especificamente dos modelos explicativos de Suyemoto (1998), foram construídas categorias de análise com o objetivo de identificar as principais funções associadas. Foram definidas como categorias de análise os seis modelos funcionais: modelo ambiental, modelo de regulação emocional, modelo anti-dissociativo, modelo sexual, modelo anti suicídio e modelo interpessoal.
A análise do “corpus” de estudo serviu para confirmar, ou não, a existência das categorias, nas narrativas dos adolescentes. No entanto, não se colocou de parte a possibilidade de novas categorias surgirem, através da exploração das entrevistas.
Resultados
Foi construída uma grelha de análise categorial que serviu de base para a análise e interpretação dos dados (Figura 1).
De seguida, apresentamos excertos das entrevistas dos adolescentes, codificadas em cada subcategoria, de forma a melhor ilustrar a elaboração da nossa grelha de análise categorial.
Funções ambientais
Esta categoria constituiu-se a partir do modelo ambiental (Suyemoto, 1998).
Entre a nossa amostra, não se identificaram significativos fenómenos de contágio, predominando antes as funções relacionadas com a necessidade de expressar um estado emocional, transmitir uma mensagem ou de apelo. Foram codificadas as seguintes subcategorias: sinalização de mal--estar, agressão do outro (manifestação de raiva e desejo de atingir os limites do outro) e, em menor número, validação social.
Sinalização de mal-estar
“Não estava bem, sentia-me sozinha, precisava de ajuda, mas não sabia como o fazer, estava sem saídas e sem conseguir respirar... caía tudo sobre mim e não aguentava mais” (género feminino, 15 anos).
Agressão do outro
“Para me vingar de mim mesma e dos meus pais, não sei. Acho que as coisas estão mal por minha causa, já toda a gente espera isto de mim, eu sei, desiludi os meus pais. Sinto-me zangada e... sozinha, como se precisasse de me castigar, ou os meus pais, não sei” (género feminino, 13 anos).
Validação social
“Não estava bem, lembrei-me de os fazer. A Demi Lovato fazia-o, não foi para imitar, mas queria experimentar, tinha amigas que também os faziam, queria saber se realmente acalmava como ela dizia” (género feminino, 14 anos).
Funções de regulação emocional
Na nossa amostra, as funções de regulação emocional, enquadradas no modelo de regulação emocional (Suyemoto, 1998), foram amplamente representadas, sendo identificadas em específico as funções de alívio emocional, fuga a emoções intensas ou retirada para um estado de conforto, controlo emocional e substituição de dor emocional por dor física.
Alívio de tensão emocional
“Faço-os quando já não aguento mais, quando estou pior (...)
Não consigo explicar porque os faço, sinto-me mal com tudo, que valho pouco, que tudo me corre mal... Naqueles momentos em que sinto ódio de tudo, até de mim (...) com vontade de gritar mas sem conseguir. E enquanto os faço é bom pois fico relaxada” (género feminino, 16 anos).
Retirada/fuga
“É difícil explicar, porque não faz sentido, mas é como se conseguisse esquecer tudo, dou descanso à minha cabeça, como se desaparecesse por uns minutos... depois? Volta tudo ao normal, volto a estar mal com as coisas, mas sinto que valeu a pena” (género feminino, 16 anos).
Controlo emocional
“Faço-os porque preciso, às vezes é demais e não consigo controlar tudo o que se passa à minha volta e na minha cabeça. Quando os faço, sinto-me bem porque sou eu que mando no que sinto, ponho um ponto final” (género feminino, 17 anos).
Subjacente a esta função de controlo emocional, está frequentemente presente a função de transformação de uma dor passiva numa dor ativa, passível de ser controlada, dando origem à subcategoria “Substituição de dor emocional pela dor física”.
“É uma forma de sentir outro tipo de sofrimento, como se a dor que sinto, quando arde, por exemplo, conseguisse apagar a dor que tenho dentro de mim” (género feminino, 15 anos).
Funções de interrupção de estados dissociativos
Tendo por base o modelo anti-dissociativo (Suyemoto, 1998), identificámos na nossa amostra a função de interrupção de estados dissociativos.
“Parece que fico desesperada, fico branca, tenho os olhos como se estivessem mortos, fico a tremer e fico muito fixa a fazer força nas mãos, parece que deixo de existir, que paro no tempo. E nem me lembro muito bem como acontece, sei que fico aliviada, como se o sofrimento saísse pelo sangue e voltasse a existir. No fim, é que percebo o que está a acontecer, só depois consigo controlar, como se entrasse em mim, o que é que eu estou a fazer? Sinto raiva por não ter parado, sinto-me ainda pior, sinto-me muito cansada, de rastos, como se a força tivesse acabado” (género feminino, 17 anos).
Funções de origem sexual
A partir do modelo sexual (Suyemoto, 1998), identificámos na nossa amostra duas funções: a de auto punição, como forma de “purificação” do excesso pulsional que assola o aparelho psíquico revelando-se o retorno da agressividade como a única possibilidade de contenção, e a de obtenção de prazer. Nesta última subcategoria, destaca-se a dimensão prazerosa que advém da substituição da tensão psicológica por uma tensão biológica. Com efeito, associado ao ato de cortar a pele, alguns adolescentes descrevem excitação ao ver a pele ser rasgada pela lâmina e o aparecimento de prazer.
Auto punição
“(...) acho que mereço sofrer, tenho sentimentos estranhos... Depois, sinto-me melhor, porque sinto que deixei para trás aquilo que me fez sofrer, como se arrumasse tudo, sinto-me limpo” (género masculino, 17 anos).
Obtenção de prazer
“Sentia ansiedade no meu corpo, mal-estar, como se não o controlasse. Enquanto me corto, não sinto dor, sinto-me anestesiado, tranquilo e com prazer. Sentia-me satisfeito quando o fazia e pensava nela” (género masculino, 17 anos).
Funções de prevenção de condutas suicidas
À luz do modelo anti suicídio (Suyemoto, 1998), os comportamentos autolesivos são considerados uma estratégia para evitar o suicídio, tendo sido encontrada a representação desta função em alguns adolescentes da nossa amostra.
“Sinto que é a única forma de me controlar, não consigo deixar de pensar em fazê-lo (suicídio) e sei que fazendo os cortes também pode sempre acontecer alguma coisa, uma fantasia, eu sei, mas pode acontecer” (género feminino, 17 anos).
Funções de demarcação do sentido de identidade
Tendo por base o modelo interpessoal (Suyemoto, 1998), a análise de conteúdo das entrevistas revelou na nossa amostra funções de demarcação do sentido de identidade.
“Não quero morrer nem estou deprimida... Eu simplesmente gosto de sentir. Por exemplo, à noite, gosto de me deitar na terra ou na calçada pois faz-me sentir parte da terra. Sinto-me, muitas vezes, desconectada, sinto que não faço parte de nada e não sinto nada. Depois, também é bom, porque fica a cicatriz (...) Acho que ficam bem no meu corpo, dão-me sentido” (género feminino, 16 anos).
Enquadrada na função acima apresentada, identificámos a relevante carga simbólica atribuída pelos adolescentes às suas cicatrizes. Quando abordadas, deparámo-nos, na sua maioria, com “cortes escondidos” dos olhares do outro, em especial do adulto que os vê com hostilidade, crítica e incompreensão. O caráter irreversível do ato de cortar, pela criação da cicatriz, representa para muitos adolescentes da nossa amostra fonte de desagrado e de angústia por “reviverem” aquilo que procuraram esquecer ou apaziguar. Para outros, representam uma tentativa de alcançar a estabilidade na identidade subjetiva, marcando a separação entre ele e o outro (Mieli, 2002) e assegurando a marca permanente dessa mesma separação, se quisermos, individuação.
Tal como mencionado previamente, partindo da exploração das entrevistas, outros conteúdos emergiram como significativos, tendo sido identificadas outras categorias, tais como a existência da dimensão aditiva atribuída pelos adolescentes e de fenómenos de sensibilização comportamental.
Dimensão aditiva atribuída pelos adolescentes
Partindo da questão “Já tentaste alguma vez parar de os fazer?”, constatámos a existência do desejo transversal a quase todos os adolescentes de abandonar estes comportamentos, sendo descritas tentativas sem sucesso. Espontaneamente, alguns adolescentes verbalizaram um estado de dependência psicológica. Noutros, em que foi necessário colocar a questão: “Sentes-te viciado nos cortes?”, encontrámos reações diferentes. Não obstante as atitudes iniciais de negação, a maioria dos adolescentes da nossa amostra verbalizaram a perceção subjetiva da compulsão irresistível para se autolesionarem. À semelhança da adição de uma substância, os adolescentes descrevem uma dependência psicológica evidente na incapacidade de assumirem outro comportamento face à intolerância à frustração e à incapacidade de lidar com afetos negativos.
“Viciada? Não! Eu sei que não o devia fazer mas não consigo parar... nesse sentido, sim, talvez esteja viciada. É como se não encontrasse outra saída para aquele momento, parece um vício calmante, sei que me faz mal mas faço-o novamente e quanto mais faço mais quero fazer” (género feminino, 16 anos).
Fenómenos de sensibilização comportamental
Associada a esta dependência psicológica e irresistibilidade pelo ato de se autolesionarem, identificámos, em alguns adolescentes, a progressiva diminuição da intensidade dos stressores desencadeantes dos comportamentos autolesivos, sugerindo a existência de um fenômeno de sensibilização comportamental.
“... e parece que fica pior, isto é, se antes precisava de uma coisa muito má para os fazer, agora, parece que os faço por coisas mínimas, como se não fosse preciso quase nada para ter vontade de os fazer” (género feminino, 17 anos).
Frequências das funções identificadas
O Quadro 1 sumaria a frequência e a extensão das categorias e subcategorias das funções dos comportamentos autolesivos sem intenção suicida.
A função nomeada pelo maior número de participantes foi a de Alívio de tensão emocional, seguida da Fuga/retirada. Logo de seguida, identificou-se a função de Sinalização de mal-estar, a Prevenção de condutas suicidas, a Agressão do outro e a Interrupção de estados dissociativos. Em menor número, foram identificadas as funções de Controlo emocional, Validação social, Autopunição, Obtenção de prazer e Demarcação do sentido de identidade.
Na maioria dos casos, 72% da amostra, os comportamentos autolesivos desempenham mais do que uma função.
Entre os casos em que apenas se identificou uma função, 28% da amostra, as funções de Regulação Emocional foram as dominantes (n=4), seguidas das funções Ambientais (n=2) e das funções de Prevenção de condutas suicidas (n=1).
A dimensão aditiva dos comportamentos autolesivos atribuída pelos adolescentes foi identificada em 68% da amostra (n=17), identificando-se, em 36% da amostra (n=9), fenómenos de sensibilização comportamental (Quadro 2).
Discussão
O presente estudo teve como objetivo compreender as funções e significados dos comportamentos autolesivos sem intenção suicida numa amostra clínica de adolescentes. Os nossos resultados foram, de um modo geral, consistentes com a investigação existente, quanto ao seu conteúdo e frequência.
Na sua maioria, os adolescentes realizam-nos de forma impulsiva em resposta a estados emocionais de elevada intensidade, o que está de acordo com outros estudos (Klonsky & Olino, 2008, 2011). Não obstante o caráter impulsivo do ato, este reveste-se de múltiplos significados, tal como revelou a análise de conteúdo das entrevistas.
Identificaram-se funções intrapsíquicas e funções interpessoais, estando os comportamentos autolesivos ao serviço de mais do que uma função, na maioria dos casos. Esta evidência tem sido descrita na literatura, ilustrando a complexidade e multifatoriedade destes comportamentos (Klonsky, 2011; Messer & Fremouw, 2008). O fato de se tratar de uma amostra clínica poderá ter acentuado esta tendência.
No que respeita às frequências encontradas, os resultados foram consistentes com a literatura (Klonsky, 2011; Messer & Fremouw, 2008; Suyemoto, 1998), ilustrando o predomínio de funções de regulação emocional, especificamente, o alívio da tensão emocional e a tentativa de fuga/retirada, e de funções ambientais de sinalização de mal-estar.
A reduzida frequência identificada na nossa amostra de fenómenos de contágio, melhor ilustrados na subcategoria de validação social, não é consistente com a literatura (Whitlock, Muehlenkamp, & Eckenrode, 2008) e poderá ser explicada pelo fato de se tratar de uma amostra clínica de adolescentes com comportamentos autolesivos de repetição, maioritariamente secretos, em que predominam funções de apelo e de regulação emocional.
Já a reduzida frequência encontrada das funções de demarcação de limites e sentido de identidade, enquadradas no modelo Interpessoal, está de acordo com a literatura (Klonsky, 2007). Com efeito, existem poucas evidências empíricas desta função, defendendo estes autores tratar-se antes de um desejo de controlo e domínio do corpo.
Na literatura, está descrita a função de indução de um estado dissociativo como forma de fuga a sentimentos e emoções negativas, sendo incluída no modelo da regulação emocional (Suyemoto, 1998). No universo da nossa amostra, não foi identificada esta função.
Ainda no presente estudo, destacamos a dimensão aditiva verbalizada pelos adolescentes o que, embora pouco referida na literatura (Selby, Bender, Gordon, Nock, & Joiner, 2011), se destacou como predominante e parece ilustrar a importante função de contenção e/ou amortecimento de angústias que estes comportamentos desempenham, afigurando-se como uma forma quase exclusiva de autoajuda.
Realizando-os de uma forma repetida, alguns participantes descrevem a progressiva diminuição da intensidade dos stressores desencadeantes dos comportamentos autolesivos, sugerindo, numa visão mais biológica, a existência de um fenómeno sensibilização comportamental algo semelhante ao fenômeno de kindling identificado na perturbação bipolar e nunca relatado nestes comportamentos (Post, 2007).
À semelhança de outros estudos, verificou-se a frequente associação dos comportamentos autolesivos à ideação suicida e tentativas de suicídio (Nock et al., 2006). Alguns autores defendem a sua inscrição numa mesma trajetória de risco, incluindo os comportamentos autolesivos no continuum do espetro suicidário (Wilkinson et al., 2011), os quais constituem um dos fatores de risco mais preditivos de tentativas de suicídio futuras (Hawton & Harriss, 2007; Wilkinson, Kelvin, Roberts, Dubicka, & Goodyer, 2011).
Contudo, existem também evidências de que nem todos os adolescentes exibem comportamentos autolesivos associados a ideação ou tentativas de suicídio, sendo a associação mais frequente em amostras clínicas (In-Albon, Rufa, & Schmidt, 2013; Nock et al., 2006) do que na comunidade (Guerreiro, Sampaio, Rihmer, Gondar, & Figueira, 2013), à semelhança do que se verificou na nossa amostra clínica. São necessários mais estudos da evolução longitudinal dos comportamentos autolesivos de modo a explorar quais os fatores se associam a um maior risco de tentativas de suicídio no futuro.
A elevada prevalência de psicopatologia encontrada na nossa amostra está de acordo com outros estudos com amostras clínicas, comprovando o risco elevado de psicopatologia geral evidenciado nesta população, tal como ansiedade, depressão, impulsividade e agressividade (Hawton, Saunders, & O’Connor, 2012). Nock et al. (2006) numa amostra de adolescentes com comportamentos autolesivos sem intenção suicida, verificaram que 87,6% apresentava critérios diagnósticos para patologia do eixo I da DSM-IV, sendo as perturbações mais frequentes: perturbação de conduta, perturbação de oposição e desafio, depressão major, perturbação pós stresse traumático, abuso ou dependência de cannabis (Nock et al., 2006). O nosso estudo revelou resultados concordantes no que respeita ao predomínio das perturbações de humor e de ansiedade. Curiosamente, as perturbações da conduta e de oposição-desafio, frequentemente associadas aos comportamentos autolesivos, foram muito pouco frequentes. A inexistência de perturbações de abuso ou dependência de cannabis na nossa amostra, patologias também frequentemente associadas a estes comportamentos, atribui-se, por um lado, a uma provável subestimação por ocultação por parte dos adolescentes, por outro lado, à atual referenciação dos adolescentes com esta problemática para serviços de saúde especializados (PIAC – Projeto Integrado de Apoio à Comunidade).
Salientamos a heterogeneidade diagnóstica subjacente a estes comportamentos o que eventualmente reforça a necessidade de autonomizar este tipo de fenómenos (Wilkinson et al., 2011), retirando-os do clássico confinamento nosográfico à perturbação borderline da personalidade (APA, 1994, 2000). Recentemente, foi incluída na DSM-5 uma nova entidade diagnóstica nomeada de “non-suicidal self-injury disorder”, que corresponde aos comportamentos autolesivos sem intenção suicida que ocorrem de forma repetida e na forma de apenas destruição do tecido corporal (APA, 2013). Não obstante a sua utilidade clínica de diferenciação destes fenómenos, esta nova categoria diagnóstica levanta elevada controvérsia para esta área de difícil consensualização.
O nosso estudo apresenta algumas limitações. Foi utilizada uma amostra de conveniência e de reduzida dimensão o que a constitui uma amostra não-representativa. Além disso, foi maioritariamente constituída por adolescentes do género feminino, o que, embora reproduzindo a distribuição de género destes comportamentos (Hawton, Saunders, & O’Connor, 2012), poderá ter condicionado os resultados obtidos.
Acima no texto, foram sendo apresentadas as limitações associadas ao fato de ter sido utilizada uma amostra clínica. Estudos com amostras não-clínicas seriam úteis para melhor aprofundar o conhecimento dos comportamentos autolesivos na adolescência.
Por último, não foi considerada a codificação por outros observadores o que possibilitaria averiguar a convergência dos resultados (Bloomberg & Volpe, 2008).
Considerações finais
Embora qualitativos, estes resultados tendem a apoiar a investigação existente, apontando, contudo, para algumas especificidades que importa aprofundar em investigações futuras.
Atendendo à sua complexidade, os comportamentos autolesivos revestem-se de múltiplos significados na adolescência, impondo-se como fundamental a avaliação atenta das motivações e significados subjacentes. Apesar de difícil operacionalização, os diferentes modelos explicativos complementam-se, permitindo uma melhor compreensão dos comportamentos autolesivos na adolescência e servindo de base na sua avaliação e tratamento.
Por fim, as autoras acreditam que a realização da entrevista acerca dos comportamentos autolesivos permitiu a cada adolescente a possibilidade de mentalização do seu sintoma e, deste modo, a melhor discriminação e tradução em palavras do que sentem.
Referências
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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Joana Calejo Jorge, Departamento de Psiquiatria da infância e da adolescência do Centro Hospitalar do Porto, Largo Prof. Abel Salazar 4099-001 Porto. E-mail: joanajg@gmail.com
Submissão: 12/12/2014 Aceitação: 05/01/2015