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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231versão On-line ISSN 1646-6020
Aná. Psicológica vol.35 no.3 Lisboa set. 2017
https://doi.org/10.14417/ap.1065
Expressividade emocional da criança e expressividade emocional atribuída às personagens nas narrativas das crianças maltratadas e não maltratadas
Mariana Lopes de Sousa1, Orlanda Rodrigues Cruz1
1Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
RESUMO
Este estudo tem como objetivo analisar a expressividade emocional nas narrativas das crianças maltratadas e não maltratadas. Participaram, nesta investigação, 100 crianças, entre os 5 e os 8 anos. Destas, 50 sofreram experiências de mau-trato e encontravam-se institucionalizadas, enquanto as restantes 50 não sofreram mau-trato e viviam com a família biológica. Foi apresentado às crianças um conjunto de seis inícios de histórias, que lhes era pedido para completar. A intensidade da expressividade emocional da criança e da expressividade atribuída às personagens, bem como a coerência entre ambas, foi analisada com base no Sistema para Codificar as Emoções na Attachment Story Completation Task. Foram, também, avaliadas a competência cognitiva verbal e não-verbal das crianças. Não foi observado um efeito do mau-trato na expressividade emocional, mas foi observado um efeito estatisticamente significativo da competência cognitiva não-verbal na expressividade emocional negativa da criança. Os resultados deste estudo apontam para a existência de semelhanças entre os dois grupos de crianças e contribuem para a compreensão do desenvolvimento emocional de crianças provenientes de populações de risco.
Palavras-chave: Expressividade emocional, Conhecimento emocional, Mau-trato.
ABSTRACT
This study aims at analyzing emotional expressiveness in the narratives of maltreated and nonmaltreated children. A hundred children aged between 5 and 8 years old have participated in this study: 50 have been maltreated and were institutionalized, while the other 50 have not suffered maltreatment and lived with their biological families. Children were asked to complete a set of six story-stems. The intensity of the character’s emotional expressiveness, as well as the coherence between them, was analysed with Emotions Coding System in the Attachment Story Completation Task. Children’s verbal and nonverbal cognitive competence was also assessed. There was no significant effect of maltreatment on emotional expressiveness, but a statistical significant effect of the nonverbal cognitive competence on children’s negative emotional expression was observed. These results highlight the existence of similarities between the two groups of children and contribute to understand emotional development in children from risk populations.
Key words: Emotional expressiveness, Emotional knowledge, Maltreatment.
A experiência de mau-trato potencia a estruturação de trajetórias específicas de desenvolvimento emocional (Shipman & Zeman, 2001). A literatura mostra que as crianças maltratadas expressam emoções negativas mais precocemente (Ayoub et al., 2006). Estas diferenças são já identificáveis aos três meses de idade, quando as crianças vítimas de abusos físicos apresentam expressões de medo, zanga e tristeza, na interação com a mãe (Gaensbauer, Mrazek, & Harmon, 1981), que, de acordo com os padrões normativos, tendem a emergir entre os sete e os nove meses (Gaensbauer & Hiatt, 1984; Sroufe, 1997). Aos 30 meses, as crianças maltratadas são mais reativas às expressões faciais de zanga (Cicchetti & Curtis, 2005). Na idade pré-escolar, expressam níveis mais elevados de zanga, durante tarefas instrucionais (Erickson, Egeland, & Pianta, 1989) e, na idade escolar, reconhecem a expressão facial de zanga com mais facilidade (Pollak, Klorman, Thatcher, & Cicchetti, 2001). Apresentam, assim, uma hipervigilância aos estímulos agressivos, o que as leva a expressar mais agressividade (Ayoub et al., 2006). A investigação neste domínio baseia-se, preponderantemente, em situações experimentais, em que são apresentados estímulos imagéticos que ilustram expressões faciais, sendo a investigação com base em narrativas quase inexistente. Para colmatar esta lacuna, este estudo pretende analisar a expressividade emocional de crianças maltratadas e não maltratadas, durante a construção de narrativas. Para tal, foram apresentados às crianças inícios de histórias, que as confrontam com dilemas que implicam emoções conflituantes, sendo-lhes pedido que os completassem e, desta forma, resolvessem o conflito a eles associados.
Entre os instrumentos que utilizam inícios de histórias como estímulo elicitador para a construção de narrativas, destaca-se a MacArthur Story Stem Battery (MSSB) (Bretherton, Oppenheim, Buchsbaum, Emde, & MacArthur Transition Network Narrative Group, 1990). A MSSB consiste num conjunto de dilemas sociomorais que é pedido à criança para resolver. Cada início de história consiste numa situação de conflito, solicitando-se à criança que o complete, resolvendo esse conflito.
A seleção das histórias da MSSB é norteada pelas necessidades específicas de cada investigação. Este instrumento tem sido, prevalentemente, utilizado para analisar os modelos representacionais, as estratégias de regulação emocional e de resolução de dilemas sociomorais das crianças. Os sistemas de codificação existentes incidem, de forma preponderante, sobre estas três dimensões (e.g., Bretherton et al., 1990; Robinson, Mantz-Simmons, Macfie, Kelsay, & the MacArthur Narrative Working Group, 2001).
As narrativas como veículo de acesso à expressividade emocional da criança
As narrativas têm sido analisadas sob diferentes perspetivas, entre as quais se destacam a análise: (i) dos scripts da criança para responder a dilemas sociomorais, (ii) das representações sobre as figuras parentais e as dinâmicas que as pautam e (iii) das estratégias de regulação emocional da criança (Laible, Carlo, Torquati, & Ontai, 2004). No presente estudo, assumimos a expressividade emocional da criança, durante a construção das narrativas, como estando associada às suas estratégias de regulação emocional, enquanto a expressividade emocional atribuída às personagens parece refletir as representações mentais da criança.
A expressividade emocional nas narrativas construídas pela criança pode ser analisada com base em três eixos. O primeiro eixo refere-se à expressividade emocional da própria criança durante a construção da narrativa, que traduz a forma como esta gere as emoções quando é confrontada com conflito e enquanto o resolve. A expressividade emocional da criança está, possivelmente, ligada à sua capacidade para regular as emoções geradas pelo conflito. A literatura oferece evidência sobre as diferenças entre crianças maltratadas e crianças não maltratadas. As crianças maltratadas expressam mais afeto negativo (Gaensbauer, 1982), sobretudo zanga (Erickson et al., 1989), e são, também, mais reativas às expressões faciais de zanga (Cicchetti & Curtis, 2005; Pollak et al., 2001). Apresentam mais dificuldade em descodificar as emoções negativas (Shipman & Zeman, 2001), bem como uma hipervigilância aos estímulos agressivos, o que as leva a expressar mais agressividade (Ayoub et al., 2006) e, por conseguinte, a evidenciar dificuldades na regulação emocional. Desta forma, a hostilidade, a inconsistência nas respostas emocionais e a negligência que pautam a parentalidade maltratante parecem funcionar como entrave ao desenvolvimento das competências de regulação emocional (Cicchetti & Rogosch, 2001; Maughan & Cicchetti, 2002; Shipman et al., 2007).
O segundo eixo diz respeito às emoções atribuídas pela criança às personagens e às interações que entre estas se tecem, no contexto da narrativa verbal e não-verbal que constrói a partir de cada início de história. A narrativa verbal e não-verbal da criança está associada à sua capacidade para descodificar o conflito inicial e atribuir emocionalidade às personagens. A capacidade de descodificar conflitos e a emocionalidade por eles despoletada é influenciada pelas representações mentais da criança sobre si própria e o outro, e tem, ao mesmo tempo, impacto nestas representações (Oppenheim, 2006). A investigação mostra que as crianças maltratadas têm mais dificuldade em descodificar as emoções do outro (Koizumi & Takagishi, 2014; Pears & Fisher, 2005) e que apresentam uma atenção seletiva aos estímulos negativos, o que restringe os seus recursos atencionais para processar os estímulos positivos (Pollak, Cicchetti, Hornung, & Reed, 2000; Pollak, Cicchetii, & Klorman, 1998). Com efeito, as crianças vítimas de mau-trato físico, não só reconhecem, com maior precisão, as expressões de zanga, como tendem a identificar esta emoção, quando confrontadas com expressões ambíguas, em contextos em que não seria esperado que ela surgisse (Pollak et al., 2001). Contudo, têm mais dificuldade em reconhecer as expressões de tristeza e de alegria do que as crianças não maltratadas (Pollak & Kistler, 2002; Pollak et al., 2001; Pollak & Sinha, 2002). De notar que estes estudos se centram na capacidade de reconhecer e nomear as emoções em estímulos imagéticos discretos que ilustram expressões faciais, em detrimento da capacidade de associar a emoção ao contexto. Por contraposição, os inícios de histórias permitem avaliar a capacidade da criança atribuir emoções às personagens no contexto da narrativa. Há, por conseguinte, uma lacuna na investigação neste domínio, o que reforça a pertinência do presente estudo.
O terceiro eixo reporta-se à coerência entre o primeiro e o segundo eixos, isto é, entre as emoções expressas pela criança, enquanto narradora, e as emoções atribuídas às personagens, durante a construção da narrativa. Considerando as dificuldades das crianças maltratadas no primeiro eixo, relativo à regulação emocional (Cicchetti & Rogosch, 2001; Shipman et al., 2007), e no segundo eixo, relativo à descodificação emocional (Koizumi & Takagishi, 2014; Pears & Fisher, 2005; Sullivan, Carmody & Lewis, 2010), é expectável que estas crianças expressem mais emoções inconsistentes face à emocionalidade que atribuem às ações das personagens.
Numa tentativa de suprir as lacunas da investigação sobre a expressividade emocional, com recurso às narrativas construídas por crianças vítimas de mau-trato, este estudo tem como objetivo analisar comparativamente a expressividade emocional das crianças maltratadas e não maltratadas, com base na análise das narrativas por elas construídas. Pretende-se, assim, comparar as emoções expressas pela criança, as emoções por ela atribuídas às personagens, e a coerência entre ambas. Considerando os estudos comparativos acima referidos, espera-se que, durante a construção das suas narrativas, as crianças maltratadas: (1) expressem mais emoções negativas e menos emoções positivas; (2) atribuam menos emoções positivas e mais emoções negativas às personagens; (3) expressem mais emoções incoerentes face às emoções atribuídas às personagens. A par destes objetivos, este estudo visa, ainda, aferir a validade interna do sistema de codificação utilizado, na esteira dos estudos já realizados pelos autores deste sistema (e.g., Ferreira, Maia, Pinto, Santos, & Fernandes, 2010).
Considerando que a expressividade emocional é resultado de um processo de avaliação cognitiva (Lazarus, 1991), a capacidade da criança descodificar o conflito e a emocionalidade a ele subjacente implica, de forma estreita, a competência cognitiva (Rhea, Hernandez, Taylor, & Johnson, 1996). Por este motivo, a competência cognitiva verbal e não-verbal das crianças será controlada neste estudo, como acontece na investigação baseada em narrativas (Rebelo, Verissimo, Maló-Machado, & Silva, 2013; Toth, Maughan, Manly, Spagnola, & Cichetti, 2002). De modo análogo, a literatura mostra que os pais de nível socioeconómico baixo tendem a utilizar um vocabulário menos diversificado e complexo, envolvendo-se, menos frequentemente, em interações verbais com a criança (Bradley & Corwyn, 2002), o que pode funcionar como entrave à sua aprendizagem emocional. Assim, o nível de escolaridade dospais será controlado na análise comparativa entre os grupos.
Método
Participantes
Participaram, neste estudo, 100 crianças, com idades compreendidas entre os 5 anos e 9 meses e os 8 anos e 11 meses (M=7.00; DP=.95), sendo 52 do sexo feminino e 48 do masculino. Destas, 50 sofreram experiências de mau-trato e encontravam-se institucionalizadas em Centros de Acolhimento Temporários (CAT) e Lares de Infância e Juventude (LIJ), enquanto as restantes 50 não vivenciaram abusos e viviam com a família biológica. Os dois grupos de crianças apresentam características semelhantes, no que respeita ao sexo e à idade.
As crianças maltratadas foram recrutadas com base numa lista de CAT e LIJ do Instituto da Segurança Social do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, enquanto as crianças não maltratadas foram recrutadas em agrupamentos de escolas do distrito do Porto. Efetuou-se um contacto telefónico com os diretores técnicos das instituições e as equipas diretivas dos agrupamentos, após o qual foi enviado, por e-mail, o pedido formal de autorização. Através da mediação dos técnicos das instituições e dos professores titulares de turma, foram entregues aos pais as declarações de consentimento informado. Acresce que, antes do início da observação, foi solicitada à criança a sua autorização para a administração dos instrumentos e para a gravação em vídeo.
As crianças não maltratadas foram emparelhadas com as maltratadas, em função do sexo e da idade. Procurou-se, também, o emparelhamento quanto ao nível de escolaridade dos pais. Contudo, apesar do esforço empreendido, as crianças maltratadas (M=4.92, DP=2.83) e não maltratadas (M=7.54, DP=2.99) diferem significativamente no nível de escolaridade do cuidador, t(98)=4.50, p=.00.
Relativamente às crianças maltratadas, 66% das crianças residia na instituição há mais de um ano. Quanto ao tipo de mau-trato sofrido, do total de 50 crianças maltratadas, três foram vítimas de mau-trato emocional (6%), 28 de negligência (56%), duas de mau-trato físico e emocional (4%), 11 de mau-trato físico e negligência (22%) e seis de mau-trato físico, emocional e negligência (12%). Verifica-se, como esperado, uma sobreposição entre os diferentes tipos de mau-trato, embora a negligência seja o tipo de mau-trato dominante.
Medidas
Dados sociodemográficos. Foi solicitado aos técnicos das instituições e aos professores o preenchimento de um questionário sociodemográfico, para recolher os dados identificatórios e familiares, que, no caso das crianças maltratadas, incluía, ainda, questões referentes a quatro dimensões: processo de institucionalização, contacto com a família biológica, rede de suporte social (formal e informal) e história médica (doenças/problemas físicos).
Competência cognitiva não-verbal. Foi administrada a versão aferida para a população portuguesa das Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (MPCR; Simões, 2000). Este instrumento visa avaliar a capacidade intelectual não-verbal (Raven, Court, & Raven, 1986) em crianças entre os 5 e os 12 anos. Os resultados brutos foram situados em relação às normas para a população portuguesa (Simões, 2000), tendo sido obtidos os respetivos percentis. Estes percentis foram transformados numa variável intervalar com seis valores: (1) inferior ou igual ao percentil 5; (2) superior ao percentil 5 e inferior ou igual ao percentil 25; (3) superior ao percentil 25 e inferior ou igual ao percentil 50; (4) superior ao percentil 50 e inferior ao percentil 75; (5) igual ou superior ao percentil 75 e inferior ao percentil 95; (6) igual ou superior ao percentil 95.
Competência cognitiva verbal. Foi administrado o subteste de Vocabulário da versão aferida para a população portuguesa da Escala de Inteligência de Wechsler para Crianças – 3ª edição (WISC-III; Wechsler, 2003). Este instrumento dirige-se a crianças/jovens entre os 6 anos e os 16 anos e 6 meses e tem como objetivo avaliar o funcionamento cognitivo. Foram utilizados os resultados padronizados, tendo-se observado um coeficiente alfa de .76, indicador de uma consistência interna razoável.
Expressividade emocional. A expressividade emocional da criança e a expressividade emocional atribuída às interações entre as personagens foram avaliadas durante o processo de construção das narrativas, a partir de seis inícios de histórias, cinco extraídas da MacArthur Story Stem Battery (MSSB; Bretherton et al., 1990) e uma do Family Stories Completation Task (FAST; Shamir, Schudlich, & Cummings, 2001). As histórias foram selecionadas, entre um leque existente na literatura, com vista a confrontar a criança com dilemas que permitem analisar a sua capacidade para descodificar conflitos e regular as emoções por eles despoletados. Após a apresentação de uma história introdutória (Festa de anos), que visa a familiarização da criança com o material e o procedimento requerido, foram administrados os seguintes inícios de histórias: (1) Dor de cabeça da mãe (empatia face à necessidade expressa pela figura materna versus empatia face ao desejo expresso por um par), (2) Roubo do chocolate (evitamento versus responsabilização face às consequências da transgressão), (3) Passeio no parque (evitamento versus confronto com um desafio), (4) Frasco das Bolachas (lealdade para com a/o irmã(o) versus lealdade para com os pais) e (5) Cozinhado/Penso (resposta à necessidade de prestação de cuidados da criança versus estabelecimento de limites face à infração).
A expressividade emocional foi cotada com recurso ao Sistema para Codificar as Emoções na Attachment Story Completation Task (Ferreira, Maia, Veríssimo, & Santos, 2009). Este sistema incide sobre as emoções expressas pela criança, durante a construção das narrativas, e as emoções por ela atribuídas às personagens, verbalmente ou através da dramatização da ação narrada. O processo de codificação implica o visionamento do vídeo da administração, sendo a cotação das narrativas efetuada para cada uma das histórias. A cotação baseia-se na observação da expressão e gestualidade da criança (i.e., postura corporal, forma de manipulação dos materiais, dramatização da ação e/ou da emoção narradas) e da forma como esta dimensão não-verbal se articula com o conteúdo e a sequência da narrativa. Tem em consideração a frequência, intensidade, duração e clareza das emoções expressas.
Na presente investigação, foram utilizadas as dimensões Valência da Emoção Expressa pela Criança, Valência da Emoção Expressa pelas Personagens e Emoções Inapropriadas. A Valência da Emoção Expressa pela Criança abrange as categorias expressividade emocional positiva e expressividade emocional negativa da criança, enquanto a Valência da Emoção Expressa pelas Personagens integra as categorias expressividade emocional positiva e expressividade emocional negativa das personagens, avaliadas numa escala de sete pontos (1 – muito incaraterístico; 7 – muito caraterístico). A expressividade emocional positiva da criança consiste em manifestações de alegria, contentamento, prazer, cuidado e carinho, observáveis no comportamento verbal, tom de voz, expressão facial e postura corporal. A expressividade emocional negativa da criança consiste em manifestações de tristeza, descontentamento, desprazer, nojo, mau-trato ou agressividade, hostilidade, raiva, zanga e frustração, observáveis no comportamento verbal, tom de voz, expressão facial e postura corporal. Por seu turno, as Emoções Inapropriadas dizem respeito ao grau de coerência entre as emoções expressas pela criança e as emoções atribuídas às personagens, nomeadamente quando durante a narração de situações de valência emocional negativa, as crianças apresentam uma expressividade emocional positiva. É também avaliada numa escala de sete pontos. Para cada uma das categorias, foi calculada a média das frequências das cinco histórias, tendo sido criadas cinco variáveis, que apresentam níveis de consistência interna bons ou razoáveis: expressividade emocional positiva na criança (α=.93), expressividade emocional negativa na criança (α=.84), expressividade emocional positiva das personagens (α=.75), expressividade emocional negativa das personagens (α=.79) e emoções inapropriadas (α=.79).
Procedimento
A administração das MCPR, do subteste de Vocabulário da WISC-III e dos inícios de histórias foi realizada por duas psicólogas com experiência na intervenção clínica com crianças, que receberam treino prévio nos procedimentos de administração. A duração média da observação rondou os 60 minutos, sendo 30 minutos despendidos na avaliação do funcionamento cognitivo e os restantes 30 na administração dos inícios de histórias. As observações foram realizadas nas instituições, no caso das crianças maltratadas, e no contexto escolar, no caso das crianças não maltratadas.
A cotação das narrativas foi realizada por dois investigadores, que desconheciam a história de vida da criança e que não tiveram qualquer contacto prévio com a mesma, sendo, por isso, cegos e independentes face à administração dos inícios de histórias e dos restantes instrumentos de avaliação psicológica mobilizados. Durante o treino da cotação, cada investigador cotou as narrativas de 10 crianças, que não integravam a amostra, num total de 50 narrativas, tendo-se obtido uma média nas correlações de Pearson de .73. Para efeitos do cálculo do acordo intercodificador, os dois investigadores cotaram as narrativas de 19 crianças, num total de 95 narrativas. O acordo intercodificador varia entre 65% e 79%, e as correlações de Pearson entre .87 e .95. Os desacordos foram alvo de discussão e decisão conjunta.
Plano analítico
Foram calculadas as estatísticas descritivas e correlacionais referentes às variáveis em estudo. Foram, também, comparadas as médias dos dois grupos, com recurso ao teste t de Student para amostras independentes. Com vista a analisar o efeito do mau-trato na expressividade emocional da criança, na expressividade emocional atribuída às personagens e nas emoções inapropriadas, foram realizadas análises de covariância (ANCOVA), em que a experiência de mau-trato (0=grupo de crianças não maltratadas; 1=grupo de crianças maltratadas) foi introduzida como fator fixo. Por sua vez, as variáveis competência cognitiva não-verbal, competência cognitiva verbal e nível de escolaridade dos pais foram inseridas como covariáveis.
Resultados
No Quadro 1, encontram-se sistematizadas as estatísticas descritivas no grupo de crianças maltratadas e não maltratadas. Os resultados mostram que não existem diferenças entre os dois grupos, na expressividade emocional, e que as crianças maltratadas tendem a ser menos competentes cognitivamente e a ter pais menos escolarizados.
Relativamente à análise das correlações da expressividade emocional com a competência cognitiva não-verbal e verbal, a idade da criança, a escolaridade dos pais e o mau-trato (ver Quadro 2), observou-se uma associação negativa entre o mau-trato e a escolaridade dos pais, a competência cognitiva verbal e a competência cognitiva não-verbal. De notar que não se observam associações estatisticamente significativas entre o mau-trato e a expressividade emocional da criança, a expressividade emocional atribuída às personagens e as emoções inapropriadas. Observa-se, contudo, uma associação positiva da expressividade emocional positiva da criança com a expressividade emocional positiva das personagens e com a expressividade emocional negativa das personagens, mostrando que as crianças que expressam mais emoções positivas, durante a construção das suas narrativas, tendem a atribuir uma maior expressividade às personagens. Verifica-se, ainda, que a expressividade emocional negativa da criança está negativamente associada à expressividade emocional positiva das personagens e positivamente associada à expressividade emocional negativa das personagens. As crianças que expressam mais emoções negativas, durante a construção das suas narrativas, tendem a atribuir menos emoções positivas e mais emoções negativas às personagens. Acresce que as crianças mais competentes verbalmente tendem a ser mais expressivas, durante a construção das suas narrativas. Além disso, as emoções inapropriadas estão associadas positivamente às restantes variáveis de expressividade emocional, tendendo as crianças mais expressivas e que atribuem maior emocionalidade às personagens a apresentar mais expressões emocionais incoerentes face à ação narrada, isto é, aos eventos da narrativa.
Atendendo às correlações do mau-trato com o nível de escolaridade dos pais e a competência cognitiva verbal e não-verbal da criança, estas variáveis foram controladas na análise comparativa dos dois grupos. Os resultados da ANCOVA mostram que, após controlar a competência verbal e não-verbal da criança e o nível de escolaridade dos pais, não se verifica um efeito estatisticamente significativo do mau-trato nas variáveis da expressividade emocional, F(1,91) entre .00 e 2.69, p entre .11 e .99. Contudo, observa-se um efeito marginalmente significativo da competência cognitiva não-verbal na expressividade emocional negativa da criança, F(1,91)=3.55, p=.06.
Considerando as correlações entre as categorias (expressividade emocional da criança, expressividade emocional das personagens e emoções inapropriadas), no grupo de crianças maltratadas e não maltratadas (ver Quadro 3), foram observados padrões semelhantes de associação nos dois grupos. Importa, todavia, referir que, no grupo de crianças maltratadas, a intensidade da correlação positiva observada entre a expressividade emocional positiva da criança e a expressividade emocional positiva das personagens é forte, enquanto, no grupo de crianças não maltratadas, esta correlação é fraca. Acresce que, no grupo de crianças maltratadas, não se observa uma associação entre expressividade emocional positiva das personagens e as emoções inapropriadas, contrariamente ao que acontece no grupo de crianças não maltratadas e na amostra geral.
Discussão
Este estudo teve como objetivo analisar comparativamente a expressividade emocional da criança, a expressividade emocional atribuída às personagens e as emoções inapropriadas, nas narrativas construídas pelas crianças maltratadas e não maltratadas.
Não se observou um efeito do mau-trato na expressividade emocional da criança, na expressividade emocional atribuída às personagens, nem nas emoções inapropriadas, quando controlado o efeito da competência cognitiva verbal e não-verbal da criança, e do nível de escolaridade dos pais. Estes resultados infirmam as predições deste estudo, de acordo com as quais se esperava que as crianças maltratadas expressassem menos emoções positivas e mais emoções negativas, durante a construção das narrativas, e que atribuíssem menos emoções positivas e negativas às personagens. Considerando os três eixos de análise da expressividade emocional nas narrativas construídas pelas crianças previamente definidos, estes resultados não suportam a assunção de que as dificuldades de regulação emocional, frequentemente, observadas nas crianças maltratadas, condicionam a forma como descodificam e reagem emocionalmente às emoções associados aos conflitos subjacentes aos inícios de histórias, e a coerência entre a emoção dominante na narrativa e a emoção expressa. Contrariamente aos estudos atrás referidos, estes resultados mostram que as crianças maltratadas não tendem a expressar níveis mais elevados de zanga (Erickson et al., 1989), nem a evidenciar maior reatividade às expressões faciais desta emoção (Cicchetti & Curtis, 2005; Pollak et al., 2001) ou hipervigilância aos estímulos de valência emocional negativa (Ayoub et al., 2006). São, também, dissonantes face à investigação que mostra que as crianças maltratadas têm mais dificuldade na descodificação emocional do que as crianças não maltratadas (Koizumi & Takagishi, 2014; Pears & Fisher, 2005; Pollak et al., 2001), e que apresentam uma atenção seletiva aos estímulos negativos, em detrimento dos positivos (Pollak et al., 1998).
A inexistência de diferenças em função do mau-trato, observada neste estudo, pode ser explicada, com base em três argumentos. Primeiramente, não foram controlados alguns fatores associados à parentalidade. Por exemplo, o facto de as crianças de ambos os grupos provirem de contextos familiares pautados pela precariedade económica e pela reduzida escolarização pode contribuir para diluir as diferenças entre os dois grupos. Esta assunção é parcialmente suportada pelo facto de, numa amostra normativa de crianças de nível socioeconómico médio e médio-alto, entre os 43 e os 91 meses, a média da expressividade emocional negativa atribuída às personagens ser mais baixa quase um valor (a média foi de 2.77, enquanto, no presente estudo, é de 3.67 e 3.79, nos grupos de crianças maltratadas e não maltratadas, respetivamente (Ferreira et al., 2010). Este desfasamento reflete, possivelmente, a importância do nível socioeconómico das famílias na expressividade emocional das crianças. Acresce que, no presente estudo, não foram controlados fatores de risco, como psicopatologia, consumo de estupefacientes ou álcool, que podem funcionar como potenciais mecanismos inibitórios do desenvolvimento e da aprendizagem emocional da criança (Conners et al., 2004). Não foi, também, recolhida informação sobre as práticas educativas dos pais das crianças ou a qualidade do ambiente familiar, o que inviabiliza a assunção do caráter normativo das interações familiares das crianças do grupo de crianças não maltratadas. As crianças cujos pais adotam comportamentos excessivamente severos, mas não estão sinalizadas como sendo vítimas de mau-trato ou negligência têm, porventura, dificuldades similares às crianças maltratadas (Sullivan et al., 2010).
Um segundo argumento prende-se com o facto de o tipo de mau-trato dominante no grupo de crianças maltratadas deste estudo ser a negligência. Nos estudos em que se observam diferenças na expressividade emocional de crianças maltratadas e não maltratadas, as crianças maltratadas são vítimas de mau-trato físico, e não de negligência (e.g., Pollak et al., 1998; Pollak & Kistler, 2002). É possível que nas crianças vítimas de negligência, a punitividade, a hostilidade e a expressão de afeto negativo surjam de forma mais atenuada e camuflada, não desenvolvendo estas crianças uma reatividade ou vigilância acrescida face aos estímulos de valência emocional negativa, ao contrário do que parece acontecer com as crianças vítimas de mau-trato físico (Pollak et al., 2000).
O terceiro argumento diz respeito ao potencial efeito protetor da instituição de acolhimento no desenvolvimento da criança, considerando que o tempo de institucionalização da maioria das crianças desta amostra é superior a um ano. Com efeito, a investigação mostra que o processo de institucionalização não tem, linearmente, um efeito negativo no desenvolvimento e ajustamento socioemocional (Knorth, Harder, Zandberg, & Kendrick, 2008). Embora a institucionalização seja, frequentemente, considerada como o ‘último recurso’ e como tendo um efeito intrinsecamente negativo no desenvolvimento da criança, alguns estudos mostram que esta pode ser uma boa alternativa para algumas crianças e jovens, em momentos específicos da sua trajetória desenvolvimental (Anglin & Knorth, 2004). A institucionalização pode, pois, funcionar como fator de proteção na trajetória desenvolvimental, potenciando, entre outros aspetos, a redução da sintomatologia associada a perturbações emocionais (Leichtman, Leichtman, Barber, & Neese, 2001).
A análise das covariáveis revelou um efeito tendencialmente significativo da competência cognitiva não-verbal na expressividade emocional negativa da criança. Para identificar, entre várias alternativas, o segmento que completa os padrões geométricos correspondentes aos itens da MPCR a criança tem de mobilizar competências de regulação atencional e comportamental. É, pois, possível que as crianças com melhor desempenho nesta tarefa, isto é, mais competentes na dimensão cognitiva não-verbal, descodifiquem, com maior destreza, os conflitos, o que ampliará a sua ressonância emocional face aos mesmos. Estes dados corroboram também o pressuposto de que a emoção é um processo mediado cognitivamente (Lazarus, 1991; Smith & Kirby, 2009). As crianças mais hábeis na leitura dos conflitos associados aos inícios de histórias, têm porventura, reações emocionais negativas mais intensas.
A análise das associações entre as diversas categorias permite aprofundar a compreensão dos constructos em estudo e contribui para suportar a validade do sistema de codificação. Neste âmbito, destacam-se três aspetos. O primeiro tem a ver com a associação positiva entre a expressividade emocional positiva da criança e a expressividade emocional positiva e negativa atribuída às personagens. As crianças que exprimem mais emoções positivas, durante a construção das narrativas, tendem a atribuir mais emoções, quer positivas, quer negativas, às personagens. A expressividade emocional positiva parece refletir o envolvimento da criança no exercício de construção das narrativas, estando as crianças que percecionam esta tarefa como prazenteira mais disponíveis para descodificar a emocionalidade das personagens. O segundo refere-se à associação positiva entre a expressividade emocional negativa da criança e a expressividade emocional negativa das personagens, bem como à associação negativa entre a expressividade emocional negativa da criança e a expressividade emocional positiva das personagens. A expressividade emocional negativa da criança parece refletir uma maior reatividade às emoções negativas associadas ao conflito subjacente aos inícios de histórias. Esta maior reatividade parece induzir a criança a ler mais a emocionalidade negativa e menos a positiva. O terceiro aspeto prende-se com a associação positiva entre expressividade emocional e as emoções inapropriadas. As crianças mais expressivas e que atribuem maior expressividade às personagens, expressam mais emoções incoerentes face aos eventos da narrativa. Parece, assim, que a maior intensidade da expressividade emocional está associada a mais dificuldades em adequar a emoção expressa ao enquadramento da narrativa e, por conseguinte, ao contexto, uma vez que expressam mais emoções positivas, quando estão a descrever ou dramatizar interações de valência emocional negativa. Este desfasamento entre a emoção expressa e a emoção narrada reflete, porventura, um mecanismo de regulação emocional, que visa atenuar o impacto da emocionalidade negativa da narrativa na criança, protegendo-a do confronto com a mesma.
Consideramos que este estudo tem um caráter inovador, porque propõe analisar a expressividade emocional das crianças maltratadas e não maltratadas, com base nas narrativas construídas pelas crianças. Todavia, apresenta dois tipos de limitações. A primeira consiste no reduzido número de sujeitos em cada tipo de mau-trato, que constitui um constrangimento à comparação das crianças maltratadas em função desta variável. Em estudos posteriores, será importante alargar este número e analisar as especificidades destes grupos e o impacto diferencial de cada tipo de mau-trato na expressividade emocional.
Uma segunda limitação remete para a necessidade de recolher informação adicional sobre as caraterísticas das crianças e das interações por elas estabelecidas com as figuras significativas de afeto, por forma a explicar as especificidades do desenvolvimento emocional das crianças maltratadas, quando comparadas com as crianças não maltratadas. Assim, em investigações futuras, será importante recolher indicadores adicionais sobre o comportamento expressivo e as caraterísticas temperamentais das crianças, bem como sobre a responsividade das mães e dos cuidadores na interação com as crianças. O efeito da experiência de mau-trato no desenvolvimento e aprendizagem emocional das crianças varia em função da natureza da sua interação com os cuidadores, podendo as especificidades destas interações introduzir nuances na forma como as crianças representam as figuras parentais. Por este motivo, a utilização de um sistema de codificação centrado na qualidade das representações da criança sobre as relações com as figuras parentais poderia ser útil, na medida em que viabilizaria o confronto das representações mentais da criança com a sua capacidade para descodificar e regular emoções. De modo análogo, afigura-se relevante analisar a qualidade das interações estabelecidas pelas crianças maltratadas na instituição, dado que a construção de uma rede relacional securizante neste contexto pode configurar uma experiência desconfirmatória dos modelos representacionais internalizados na interação com os pais maltratantes ou negligentes.
A terceira limitação suscetível de apontar a este estudo prende-se com o facto de não terem sido analisadas as diferenças na expressividade emocional, quanto à qualidade formal e aos temas emergentes nas narrativas. A inclusão destes aspetos na análise poderia permitir uma leitura mais integrada da expressividade emocional, ao considerá-la em articulação com os indicadores da estrutura e do conteúdo das narrativas.
Não obstante as limitações elencadas e as questões levantadas pelos resultados, esta investigação oferece um importante contributo para a compreensão do desenvolvimento emocional de crianças provenientes de populações de risco.
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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Mariana Lopes de Sousa, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Rua Alfredo Allen, 4200-135 Porto, Portugal. E-mail: marianals@netcabo.pt
Este trabalho é financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/69129/2010).
Submissão: 12/05/2015 Aceitação: 04/11/2016