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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231versão On-line ISSN 1646-6020

Aná. Psicológica vol.37 no.2 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.14417/ap.1534 

Tipologias de funcionamento familiar: Do desenvolvimento identitário à perturbação emocional na adolescência e adultez emergente

Typologies of family functioning: From identity development to emotional distress in adolescence and emerging adulthood

Ana Prioste1, Petra Tavares2, Eunice Magalhães3

1Escola de Psicologia e Ciências da Vida, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, Portugal / Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

2Escola de Psicologia e Ciências da Vida, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, Portugal

3ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, CIS-IUL, Lisboa, Portugal / Escola de Psicologia e Ciências da Vida, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

O funcionamento familiar contribui diferentemente para ajustamento psicológico, de acordo com as etapas de desenvolvimento e com as tarefas que lhes estão subjacentes. Através de um desenho quantitativo transversal, e com recurso a uma amostra de 387 participantes com idades compreendidas entre os 15 e os 25 anos (M=20.06, DP=3.21), este estudo pretendeu: identificar as tipologias de funcionamento familiar, a partir das dimensões coesão e conflito; e analisar a associação entre as tipologias de funcionamento familiar, os processos de desenvolvimento da identidade, a etapa desenvolvimental (adolescência e adultez emergente) e a perturbação emocional. Foram identificadas cinco tipologias de funcionamento familiar, correspondentes a famílias: Coesas, Desligadas, Equilibradas, Conflituosas e Emaranhadas. Tendo em conta a literatura, os participantes foram divididos em grupos, consoante a idade (adolescentes e adultos emergentes) e o nível de perturbação emocional (com e sem perturbação emocional). Os resultados mostram associações estatisticamente significativas entre as tipologias de funcionamento familiar, a etapa desenvolvimental, os processos de desenvolvimento da identidade e os grupos com e sem perturbação emocional. Especificamente, os resultados indicam que os adultos emergentes percepcionam o funcionamento das suas famílias como mais Coeso ou Emaranhado, em comparação com os adolescentes; e que o grupo com perturbação emocional percepcionou, maioritariamente, o funcionamento da sua família como Emaranhado. São discutidas as implicações para a prática e para a literatura nas áreas da Psicopatologia do Desenvolvimento e Psicologia da Família.

Palavras-chave: Adolescência, Adultez emergente, Funcionamento familiar, Desenvolvimento identitário, Perturbação emocional.

 

ABSTRACT

The family functioning contributes differently to psychological adjustment, according to the development stages and the tasks that underlie them. Through a quantitative cross-sectional design, and using a sample of 387 participants aged between 15 and 25 years (M=20.06, SD=3.21), this study aimed to: identify the typologies of family functioning, from the cohesion and conflict dimensions; and to analyse the association between the typologies of family functioning, the identity development processes, the developmental stage (adolescence and emerging adulthood) and the emotional distress. Five typologies of family functioning were identified, corresponding to: Cohesive, Disengaged, Balanced, Conflicting and Enmeshed. Taking into account the literature, the participants were divided into groups, according to age (adolescents and emerging adults) and the level of emotional distress (with and without emotional distress). The results show statistically significant associations between the typologies of family functioning, the developmental stage, the processes of identity development and the groups with and without emotional distress. Specifically, the results indicate that emerging adults perceive the functioning of their families as more Cohesive or Enmeshed, compared with the adolescents; and that the group with emotional distress perceived, for the most part, the functioning of their family as Enmeshed. The implications for the practice and the literature in the areas of Developmental Psychopathology and Family Psychology are discussed.

Key words: Adolescence, Emerging adulthood, Family functioning, Identity development, Emotional distress.

 

Introdução

A adolescência e a adultez emergente constituem-se como duas etapas desenvolvimentais distintas (Arnett, 2000), atendendo aos limites cronológicos que as circunscrevem e às tarefas desenvolvimentais que englobam. Releva-se a influência que o contexto socioeconómico assume na delimitação destas etapas (Arnett, 2015). Tendo em conta a literatura, neste trabalho, considerou-se o término da adolescência os 19 anos (OMS, 1997) e a adultez emergente foi definida como o período decorrente entre os 20 e os 25 anos (e.g., Arnett, 2000; Brandão, Saraiva, & Matos, 2012).

A contiguidade destas etapas permite perceber a transversalidade de algumas tarefas desenvolvimentais que lhes são comuns, nomeadamente, o processo de desenvolvimento da identidade (Luyckx & Robitschek, 2014) e o processo de autonomia (Arnett, 2000), com a separação crescente em relação à família de origem. Consideramos que a pertinência da análise destas duas etapas desenvolvimentais decorre de vários aspectos. As mudanças físicas, sociais, relacionais, cognitivas e psicológicas vivenciadas na adolescência, e a experienciação de níveis elevados de exploração e instabilidade (que implicam mudanças nos papéis sociais) na adultez emergente podem contribuir, diferentemente, quer para o desenvolvimento identitário, quer para a emergência de perturbações emocionais (Luyckx, Klimstra, Duriez, Van Petegem, & Beyers, 2013; Schulenberg, Sameroff, & Cicchetti, 2004). De acordo com a perspetiva da Psicopatologia do Desenvolvimento (e.g., Cicchetti & Cohen, 2006; Soares, 2000), sabemos que as variáveis ou contextos associados à emergência de perturbações emocionais na adolescência e na adultez emergente podem diferir.

O papel da família no ajustamento individual na adultez emergente tem sido subvalorizado, já que a maioria dos trabalhos se focam na importância do funcionamento familiar na infância e na adolescência. Esta questão torna-se particularmente relevante, atendendo ao progressivo prolongamento da coabitação dos filhos em casa dos pais – que caracteriza a geração canguru (Brandão et al., 2012) – e a outros stressores específicos associados à adultez emergente e às famílias com filhos nesta etapa.

A análise do desenvolvimento da identidade e da emergência de perturbações emocionais na adolescência e na adultez emergente só é melhor entendida à luz de uma compreensão aprofundada do papel do sistema familiar. Assim, atendendo à pertinência e ao interesse científico deste tópico, parece-nos relevante, a partir das dimensões coesão e conflito familiar, identificar tipologias de funcionamento familiar e compreender de que forma estas se relacionam com a perturbação emocional e os processos de desenvolvimento da identidade em ambas as etapas desenvolvimentais.

 

Desenvolvimento da identidade e perturbação emocional

A identidade pode ser definida como um conjunto de características biológicas, psicológicas e sociodemográficas, que abrange diversos aspetos resultantes da interação entre o desenvolvimento pessoal e os contextos sociais (Vignoles, Schwartz, & Luyckx, 2011). Têm sido propostos diversos modelos teóricos ao longo das últimas décadas, sendo que o presente estudo se posiciona a partir do modelo integrativo desenvolvido por Luyckx e colaboradores (2008). Esta proposta concetual distingue cinco processos de identidade específicos, relacionados com a exploração e o compromisso: exploração em amplitude, exploração em profundidade, exploração ruminativa, compromisso e identificação com o compromisso. Estes processos podem ser analisados a partir de dois ciclos. O primeiro ciclo, designado por formação do compromisso, foca-se nos processos através dos quais os sujeitos exploram diferentes alternativas da identidade (exploração em amplitude) e, posteriormente, aderem a compromissos de identidade (compromisso, i.e., adesão a crenças, objetivos e valores). O segundo ciclo – avaliação do compromisso – centra-se em processos através dos quais os sujeitos reavaliam os seus compromissos de identidade atuais (exploração em profundidade, i.e., avaliação e exploração dos seus compromissos) e avaliam até que ponto é que se identificam e se sentem seguros com os seus compromissos (identificação com o compromisso, i.e., grau em que os compromissos se integram no seu sentido de self) (Luyckx, Goossens, Soenens, & Beyers, 2006). O processo de exploração ruminativa foi, posteriormente, adicionado ao modelo, tendo sido identificado como um bloqueador do desenvolvimento identitário por se considerar um processo inadaptativo. Deste modo, os indivíduos com níveis elevados de exploração ruminativa tendem a questionar-se constantemente, a experimentar níveis elevados de incerteza e incompetência, ansiedade e depressão, ficando bloqueados/estagnados no processo de desenvolvimento identitário (Luyckx et al., 2008; Luyckx, Schwartz, Goossens, Beyers, & Missotten, 2011).

A adolescência e a adultez emergente, enquanto etapas desenvolvimentais, têm sido associadas ao surgimento de perturbações emocionais (e.g., distress) e de quadros psicopatológicos específicos (e.g., perturbações depressivas) (Kessler et al., 2005). De acordo com a perspectiva da Psicopatologia do Desenvolvimento (Cicchetti & Cohen, 2006; Soares, 2000), o insucesso na realização das tarefas desenvolvimentais associadas a cada etapa poderá traduzir-se na emergência de perturbação emocional (i.e., distress e mau-estar psicológico) refletindo, assim, a diferenciação entre trajectórias desenvolvimentais inadaptativas e adaptativas (Cummings, Davies, & Campbell, 2000). Assim, importa analisar o papel da etapa desenvolvimental em que o indivíduo se encontra, considerando as diferenças ao nível das tarefas que lhes estão subjacentes. Para além disso, realça-se a relevância de considerar que os sistemas em que o indíviduo se encontra integrado podem contribuir diferentemente para a (in)adaptação das trajectórias desenvolvimentais (Bronfenbrenner, 1986; Cicchetti & Cohen, 2006).

 

Contributos da perspectiva ecológica para a compreensão do desenvolvimento identitário e da perturbação emocional

No sentido de tornar mais claros os pressupostos de base para este trabalho, apresentamos na Tabela 1 uma sistematização dos fatores associados aos resultados de desenvolvimento identitário e de ajustamento psicológico a diferentes níveis eco-sistémicos, de acordo com o Modelo Ecológico de Desenvolvimento Humano (Bronfenbrenner, 1986).

 

 

Ao nível macrossistémico (Tabela 1), realça-se a influência dos processos sociais (e.g., fatores sociais, económicos, políticos e culturais) no ajustamento psicológico e no desenvolvimento da identidade. Neste sentido, é de realçar as alterações familiares, nomeadamente do ponto de vista da estrutura, papéis e configuração familiar (Benvenuti et al., 2016; Francisco et al., 2016), que desempenham um papel importante na emergência de perturbações psicológicas.

Ainda a este nível, é também de salientar o atraso no processo de autonomização e o prolongamento na transição para a idade adulta resultantes do impacto da ausência ou escassez de medidas sociais de apoio à independência dos adultos emergentes portugueses (Andrade, 2016). Em Portugal, constata-se a presença de percursos educativos mais longos (e.g., aumento do número de jovens a ingressar no ensino superior), a inserção cada vez mais tardia no mercado de trabalho (caraterizado por níveis elevados de exigência e competitividade), o prolongamento da coabitação com a família de origem e dependência financeira desta, e o adiamento de projetos familiares, traduzidos no aumento da idade média para casar e para o nascimento do primeiro filho, principalmente em adultos emergentes com formação académica superior. Estes fatores podem ter um impacto negativo no desenvolvimento identitário, dificultando o processo de autonomização e independência através da manutenção do “ninho cheio” (Brandão et al., 2012; Mendonça et al., 2009).

Ao nível microssistémico, releva-se o papel da família enquanto sistema mais influente ao longo de todo o ciclo de vida (Bronfenbrenner, 1986). O contexto familiar é considerado um sistema essencial para o desenvolvimento humano (Alarcão & Gaspar, 2007), sendo que este representa o primeiro grupo social em que a pessoa se desenvolve (Alarcão, 2000; Sprinthall & Collins, 2003). A família pode ser definida como um conjunto de elementos, uma unidade social, que evolui ao longo de várias etapas do ciclo vital. Cada etapa implica um conjunto de tarefas e mudanças que podem afetar a família no seu todo e a cada um dos elementos (Alarcão, 2000; Dias, 2011), influenciando o desenvolvimento da identidade na adolescência e na adultez emergente (Luyckx et al., 2008; Matheis & Adams, 2004; Sandhu, Singh, Tung, & Kundra, 2012; Scabini & Manzi, 2011).

A individuação e a socialização são duas funções centrais da família, particularmente relevantes na etapa famílias com filhos adolescentes, permitindo que os filhos se preparem para assumir papéis adultos nos âmbitos social, relacional, afetivo e profissional (Alarcão, 2000). Este período tem sido estendido com o prolongamento da coabitação com os pais (Alarcão, 2000; Relvas, 2006; Silveira & Wagner, 2006). Segundo Vieira e Rava (2012), o prolongamento da coabitação na adultez pode apresentar um carácter disfuncional, na medida em que promove a dependência em relação à família, dificultando o compromisso social e perpetuando a condição de “adolescentes” (Jablonski & Martino, 2013).

Ao nível do cronossistema (Tabela 1), importa salientar que o processo de desenvolvimento identitário da adolescência à adultez emergente tem sido perspetivado de diversas formas. Alguns autores têm apontando para que o início do desenvolvimento da identidade envolva inicialmente a experimentação de várias possibilidades de vida (e.g., exploração em amplitude) e implique, gradualmente, a tomada de decisões duradouras (e.g., compromisso, exploração em profundidade), tendo este processo início na adolescência e estabilizando na idade adulta (Arnett, 2000; Klimstra et al., 2010).

Estas mudanças, tal como o papel que a família desempenha no processo desenvolvimental dos indivíduos, podem estar associadas à emergência de perturbações psicológicas, pelo que se torna necessário compreender melhor o papel das relações familiares no desenvolvimento de psicopatologia na adolescência (Pratta & Santos, 2007) e na adultez emergente.

 

Relação entre funcionamento familiar, desenvolvimento identitário e perturbação emocional

A literatura sugere que diversas variáveis familiares desempenham um papel fulcral no ajustamento individual e no desenvolvimento da identidade (e.g., funcionamento familiar, parentalidade, relação entre pais e filhos) (Luyckx et al., 2008; Matheis & Adams, 2004; Sandhu et al., 2012). O funcionamento familiar refere-se às características sociais e estruturais do clima familiar, abarcando, assim, as interacções e relações intrafamiliares (Teodoro, Allgayer, & Land, 2009), nomeadamente os níveis de coesão, conflito, adaptabilidade, organização e qualidade de comunicação (Lewandowski, Palermo, Stinson, Handley, & Chambers, 2010).

Com efeito, um desenvolvimento identitário adaptativo, caracterizado por níveis elevados de compromisso e de identificação com o compromisso, tende a emergir em contextos familiares caraterizados por níveis elevados de coesão e reduzidos de conflito (e.g., famílias descritas como mais apoiantes e menos conflituosas; Matheis & Adams, 2004). Do mesmo modo, menores níveis de coesão e maiores níveis de conflito encontram-se associados ao desenvolvimento de uma identidade difusa (Matheis & Adams, 2004). Estudos baseados no modelo de estados identitários (Marcia, 1980) revelaram associações entre climas familiares percecionados como desligados e o desenvolvimento dos estados identitários moratório, difuso ou fechado, bem como entre climas familiares percecionados como coesos e o desenvolvimento de uma identidade realizada na adolescência e adultez emergente (e.g., Sandhu et al., 2012). Além disso, tem sido evidenciado que a coesão e proximidade emocional familiar, associadas ao estímulo da individualidade e da autonomia, são fatores cruciais para o desenvolvimento da identidade (Alarcão, 2000).

Por outro lado, existe um corpo consistente de evidências empíricas que associa o funcionamento familiar a trajetórias (in)adaptativas (e.g., Stocker, Richmond, Rhoades, & Kiang, 2007). A perceção do funcionamento familiar como conflituoso está positivamente associada ao desajustamento psicológico (e.g., Cruz, Narciso, Pereira, & Sampaio, 2014; Cusimano & Riggs, 2013), nomeadamente a perturbações do humor (e.g., Riggs & Han, 2009) e a perturbações da alimentação e ingestão (e.g., Crowther, Kichler, Sherwood, & Kuhnert, 2002). Por outro lado, a perceção do clima familiar como coeso está associado negativamente à emergência de sintomatologia depressiva (e.g., Inguglia, Ingoglia, Liga, Coco, & Cricchio, 2015).

Sabemos, também, que os processos de desenvolvimento da identidade propostos por Lucky e colaboradores (2008) emergem associados à sintomatologia psicológica, ao funcionamento psicossocial e ao bem-estar (Luyckx et al., 2013). Trabalhos anteriores realizados com amostras de adolescentes e de adultos emergentes mostraram que a identificação com o compromisso e o compromisso estão positivamente associados ao bem-estar psicológico (e.g., Schwartz et al., 2015) e negativamente associados à sintomatologia depressiva (e.g., Luyckx et al., 2008) e ansiosa (e.g., Sica, Sestito, & Ragozini, 2014). Em relação aos processos de exploração, a literatura tem mostrado que a exploração em amplitude está positivamente associada à sintomatologia depressiva e a exploração em profundidade está negativamente associada ao consumo de substâncias (e.g., Luyckx et al., 2006). A exploração ruminativa tem sido identificada como um fator de risco para o desenvolvimento de uma identidade adaptativa (e.g., Beyers & Luyckx, 2016), predizendo menores níveis de bem estar e maiores níveis de psicopatologia (e.g., Luyckx & Robitschek, 2014; Schwartz et al., 2013).

 

Funcionamento familiar: Abordagens dimensional e tipológica

A maioria dos estudos tem recorrido a uma abordagem dimensional da família, centrando-se em dimensões que avaliam o funcionamento familiar, como a coesão, conflito, hierarquia, e adaptabilidade (Teodoro et al., 2009). Por outro lado, e de forma consistente com as propriedades da totalidade e da circularidade (Cicchetti & Cohen, 2006), a abordagem tipológica do funcionamento familiar baseia-se nos pressupostos de que: as dimensões do funcionamento familiar estão relacionadas entre si e os efeitos de uma dimensão do funcionamento familiar são dependentes dos níveis de outras dimensões. Assim, a interdependência das dimensões do funcionamento familiar é diferente da soma das dimensões individuais; sendo que, se há fluidez e inter-influência mútua entre as dimensões do funcionamento familiar, o estudo de uma dimensão específica, enviesa a influência de outras dimensões e da relação entre elas na perceção do funcionamento da família. Neste sentido, o presente trabalho recorrerá a uma abordagem tipológica do funcionamento familiar, a partir das dimensões coesão e conflito.

Assumindo uma abordagem tipológica, neste trabalho, as tipologias de funcionamento familiar foram identificadas a partir das dimensões de coesão e conflito familiares, à semelhança de estudos anteriores (e.g., Prioste, Narciso, Gonçalves, & Pereira, 2015, 2016). Assim, com base na literatura revista (e.g., Minuchin et al., 1975; Nichols & Schwartz, 2004; Olson, 2000; Sturge-Apple, Davies, & Cummings, 2010), foram definidos os seguintes critérios para a identificação das tipologias de funcionamento familiar: (a) as famílias coesas apresentam tendencialmente valores elevados de coesão e baixos de conflito; (b) as famílias conflituosas apresentam tendencialmente valores elevados de conflito e baixos de coesão; (c) as famílias equilibradas apresentam tendencialmente valores médios de conflito e coesão, em relação aos restantes grupos; (d) as famílias desligadas apresentam tendencialmente baixos valores de coesão e conflito; e (e) as famílias emaranhadas apresentam tendencialmente elevados valores de coesão e conflito.

 

Objetivos

A partir da revisão de literatura descrita identificou-se um conjunto de problemas a que pretendemos dar resposta neste trabalho, nomeadamente, o facto da maioria dos estudos recorrer a uma abordagem dimensional do funcionamento familiar e analisar o papel do sistema familiar no ajustamento na infância e na adolescência.

Pretendemos, neste trabalho, com recurso a uma amostra de adultos emergentes com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos: (1) identificar as tipologias de funcionamento familiar, a partir das dimensões de coesão e conflito familiar; e (2) analisar a associação entre as tipologias de funcionamento familiar, os processos de desenvolvimento da identidade, a etapa desenvolvimental (adolescência e adultez emergente) e a perturbação emocional.

 

Método

 

Participantes

A amostra é constituída por 387 participantes, com idades compreendidas entre os 15 e os 25 anos (M=20.06; DP=3.21), dos quais 253 são do género feminino (65.4%) e 126 do género masculino (32.6%). Quanto à etapa desenvolvimental, 162 dos participantes (41.9%) são adolescentes (15-19 anos) e 225 adultos emergentes (58.1%), i.e., com idades compreendidas entre 20 e 25 anos. Ao nível da escolaridade, 4.1% tem entre 6 a 9 anos de escolaridade, 29.2% tem entre 10 a 12 anos de escolaridade, 51.7% frequenta o ensino superior e 14% concluiu o ensino superior. No que concerne à zona de residência, 2.6% reside na zona norte de Portugal, 3.4% reside no Alentejo, 2.1% reside no Algarve, 0.8% reside nos Açores, 6.5% reside na Madeira, 17.1% reside na zona centro e 57.4% reside na zona da grande Lisboa.

 

Procedimento de recolha de dados

A divulgação do estudo e a recolha de dados decorreram após a aprovação do projeto de investigação pela Comissão de Ética e Deontologia em Investigação Científica da Escola de Psicologia e de Ciências da Vida da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. A amostra foi selecionada a partir de uma amostra de 426 participantes, de um estudo mais alargado na linha de investigação da Psicopatologia e Identidade. Foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão no presente estudo: (a) capacidade de compreensão e expressão da língua portuguesa; e (b) ter idades compreendidas entre os 15 e os 25 anos. Uma amostra de 387 participantes cumpriu estes critérios, tendo sido integrada neste estudo. Foram excluídos os participantes que não tinham nacionalidade portuguesa.

Os dados foram recolhidos entre de fevereiro de 2016 e março de 2017, através de uma técnica de amostragem não probabilística. A amostra foi recolhida através da técnica “bola-de-neve”, recorrendo a duas estratégias: (a) 76.7% da amostra respondeu ao protocolo de investigação na presença da(s) investigadora(s), em grupo em contexto de sala de aula ou individualmente; (b) 23.3% da amostra preencheu o questionário online, através da plataforma GoogleDocs, divulgado nas redes sociais. Os participantes colaboraram voluntariamente e sem remuneração, após a explicitação dos objetivos do estudo e obtenção do consentimento informado. Os responsáveis legais dos participantes com idades inferiores a 18 anos assinaram um termo de consentimento informado e os participantes assinaram o assentimento informado.

 

Instrumentos

 

Questionário de dados sociodemográficos. Este questionário centra-se em informações acerca dos dados pessoais dos participantes, tais como, género, idade, nível de escolaridade e zona de residência.

 

Escala das Dimensões do Desenvolvimento Identitário (Dimensions of Identity Development Scale, DIDS; versão original: Luyckx et al., 2008; tradução e adaptação para a população portuguesa: Prioste, Lugar, Paulino, Jongenelen, & Rosa, in press). Este instrumento de autorrelato avalia cinco processos de desenvolvimento da identidade: exploração em profundidade, que avalia a exploração de alternativas após a adesão a compromissos (e.g., “Falo com outras sobre os meus planos para o futuro”); exploração em amplitude, que mede a exploração de alternativas previamente à adesão a compromissos (e.g., “Estou a pensar em diferentes estilos de vida que podem ser bons para mim”); compromisso, que avalia a adesão a compromissos (e.g., “Tenho uma imagem sobre o que vou fazer no futuro”); identificação com o compromisso, que se centra no grau de segurança e de identificação em relação aos compromissos (e.g., “Os meus planos para o futuro dão-me autoconfiança”); e exploração ruminativa, que avalia a exploração progressiva de diversas alternativas e a não adesão a compromissos (e.g., “Tenho dúvidas sobre o que quero realmente alcançar na vida”). O instrumento é composto por 25 itens respondidos numa escala de Likert de cinco pontos (1=discordo fortemente a 5=concordo fortemente), sendo que cada processo de desenvolvimento da identidade é avaliado por cinco itens.

No estudo de validação da DIDS de Luyckx e colaboradores (2008), as dimensões da escala revelaram níveis de consistência interna adequados, quer para a amostra de adultos emergentes (com α a variar entre .79 para a dimensão exploração em profundidade e .86 para as dimensões compromisso, identificação com o compromisso e exploração ruminativa), quer para a amostra de adolescentes (com α a variar entre .80 para a dimensão exploração em profundidade e .86 para a dimensão exploração em amplitude). No estudo de adaptação para a população portuguesa, com uma amostra de 403 participantes com idades compreendidas entre os 15 e os 29 anos, os níveis de consistência interna relevaram-se adequados, variando entre .68 para a dimensão exploração em profundidade e .87 para a dimensão identificação com o compromisso (Prioste et al., in press).

 

Inventário de Sintomatologia Psicológica (Brief Symptom Inventory; BSI; Versão original: Derogatis, 1982; tradução e adaptação para a população portuguesa: Canavarro, 1999). Neste instrumento de autorrelato com 53 itens é pedido ao participante que qualifique a intensidade em que foi afetado por um conjunto de sintomas, durante a última semana, através duma escala de Likert de cinco pontos (0=nunca a 4=muitíssimas vezes). Esta escala avalia nove dimensões (somatização, obsessão-compulsão, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade, ansiedade fóbica, ideação paranoide e psicoticismo) e três índices globais (índice geral de sintomas, índice de sintomas positivos e total de sintomas positivos) que medem a perturbação emocional.

No presente estudo, foi utilizado o índice de sintomas positivos (ISP) para discriminar a saúde mental, já que, este é o índice que melhor permite distinguir os indíviduos que apresentam perturbação emocional daqueles que não apresentam, de acordo com Canavarro (2007). Neste sentido, Canavarro (2007) definiu, a partir do cálculo das médias e dos desvios-padrão das nove dimensões e dos três índices globais, como ponto de corte o valor de 1.7. Considerando este valor, no presente estudo, foi definido que os participantes com um valor de ISP igual ou superior a 1.7 pertenciam ao grupo com perturbação emocional, e que os participantes com um valor de ISP inferior a 1.7 pertenciam ao grupo sem perturbação emocional.

No estudo de validação de Canavarro (1999), com uma amostra composta por 551 participantes, o BSI apresentou níveis de consistência interna adequados, entre α=.62 na dimensão psicoticismo e α=.80 na dimensão somatização. No presente estudo, a escala total revelou também um nível de consistência interna adequado (α=.97).

 

Inventário do Clima Familiar (versão original: Teodoro et al., 2009; versão portuguesa para investigação: Francisco, 2015). Este instrumento de autorrelato é composto por 22 itens e avalia quatro dimensões do clima familiar numa escala de Likert de cinco pontos (1=discordo completamente a 5=concordo completamente): conflito, que inclui seis itens relacionados com a relação agressiva, crítica e conflituosa entre os membros da família (e.g., “Discute-se por qualquer coisa.”); hierarquia, que engloba seis itens que analisam a diferenciação de poder dentro da família, onde os mais velhos possuem mais influência nas decisões (e.g., “Uns mandam e outros obedecem”); apoio, composta por cinco itens que medem o suporte material e emocional recebido pelos familiares (e.g., “Procuramos ajudar as pessoas da nossa família quando percebemos que estão com problemas”); e coesão, que integra cinco itens quem definem o vínculo entre os familiares (e.g., “As pessoas gostam de passear e de fazer coisas juntas”). Tal como foi previamente referido, no presente trabalho foram apenas utilizadas as dimensões coesão e conflito.

No estudo de validação deste inventário (Teodoro et al., 2009), com uma amostra composta por 276 indivíduos, o ICF apresentou níveis de consistência interna adequados, variando entre α=.71 na dimensão apoio e α=.84 na dimensão conflito. No presente estudo, as dimensões coesão e conflito também apresentaram valores de consistência interna adequados (α=.79 e α=.88, respetivamente).

 

Procedimento de análise de dados

A análise de dados foi realizada com recurso ao software Statistical Package for the Social Sciences versão 22. Foram criadas as variáveis etapa desenvolvimental e perturbação emocional. Como já foi referido, no que concerne à variável etapa desenvolvimental, os participantes com idades compreendidas entre os 15 e os 19 anos foram integrados no grupo adolescents e os participantes com idades compreendidas entre os 20 e os 25 anos foram integrados no grupo adultos emergentes. Em relação à variável perturbação emocional, tal como já foi referido, os participantes foram agrupados de acordo com o valor de ISP, atendendo ao ponto de corte 1.7, proposto por Canavarro (2007).

Foi realizada uma análise de clusters para identificar as tipologias de funcionamento das famílias dos adolescentes e dos adultos emergentes, a partir das dimensões coesão e conflito. Considerando as tipologias de funcionamento familiar como uma variável, foram identificados cinco grupos, através do método não hierárquico k-means (Hartigan & Wong, 1979). Para identificar as variações nas tipologias, foi conduzido um conjunto de análises de variância multivariada (MANOVAs) usando os cinco grupos que foram definidos pela análise de clusters como fatores inter-sujeitos e as medidas de coesão e conflito como variáveis dependentes. De seguida, realizaram-se análises univariadas (ANOVAs com testes de Duncan) para facilitar a interpretação do significado de cada cluster identificado. Para melhor compreender as características de cada grupo e as suas diferenças no que se refere às dimensões do processo de desenvolvimento identitário e à perturbação emocional, realizou-se um conjunto de MANOVAs, seguido de ANOVAs com testes de Duncan para perceber o efeito das diferenças.

Por último, para analisar se a distribuição das tipologias de funcionamento familiar varia em função das etapas (adolescentes e adultos emergentes) e perturbação emocional (com e sem), recorreu-se ao teste de Qui-quadrado, após a codificação da variável “tipologias de funcionamento familiar”, de acordo com os grupos identificados na análise de clusters.

 

Resultados

 

Identificação e descrição das tipologias de funcionamento familiar identificadas

A Tabela 2 apresenta os perfis dos clusters identificados em relação às perceções do funcionamento familiar. A análise de variância multivariada revelou um efeito significativo dos clusters nas variáveis coesão e conflito [F(2,381)=248.35, p<.01, ηp2=.72]. As análises subsequentes sobre os efeitos univariados (e.g., ANOVAs) revelaram que as diferenças entre os grupos são significativas [Fcoesão(4)=49.01, p<.001, ηp2=.72; Fconflito(4)=58.38, p<.001, ηp2=.77].

 

 

Os perfis dos clusters que foram identificados em relação ao funcionamento familiar podem ser designados por: Grupo 1, famílias com funcionamento Coeso – este grupo inclui 42.1% dos participantes que percecionam as famílias com níveis mais elevados de coesão e mais baixos de conflito, em relação aos restantes grupos; Grupo 2, famílias com funcionamento Conflituoso, que inclui 5.7% dos participantes que percecionam as famílias com níveis mais elevados que conflitos e mais baixos de coesão, em comparação com os restantes grupos; Grupo 3, famílias com funcionamento Equilibrado, que é composto por 26.9% dos participantes que percecionam as famílias com níveis médios de conflito e de coesão, em comparação com os restantes grupos; Grupo 4, famílias com funcionamento Desligado, que integra 11.6% dos participantes que percecionam as famílias com níveis baixos de conflito e de coesão; e Grupo 5, famílias com funcionamento Emaranhado, composto por 13.7% dos participantes que perceciona as famílias com níveis elevados de conflito e de coesão.

 

Associação entre as tipologias de funcionamento familiar, os processos de desenvolvimento da identidade e o nível de perturbação emocional

A Tabela 3 apresenta as pontuações médias e os desvios-padrão dos processos de desenvolvimento identitário e de perturbação emocional para cada tipologia de funcionamento familiar identificada. As diferenças significativas entre os grupos foram analisadas através do teste Duncan, tal como foi referido.

 

 

Em relação à perturbação emocional, a análise de diferenças entre as tipologias mostrou que: os participantes das famílias com um funcionamento Conflituoso apresentam o valor mais elevado de perturbação emocional e que os participantes de famílias com um funcionamento Coeso e Desligado apresentam o nível de perturbação emocional mais baixo, em comparação com as outras tipologias. Os participantes das famílias com um funcionamento Emaranhado apresentam um nível de perturbação emocional mais elevado que os participantes das famílias com um funcionamento Equilibrado, Desligado e Coeso. Os participantes das famílias com um funcionamento Equilibrado apresentam um nível de perturbação emocional mais elevado que os participantes das famílias com um funcionamento Coeso. Não há diferenças no nível de perturbação emocional entre os participantes de famílias com um funcionamento Equilibrado e Desligado e entre as que são descritas com um funcionamento Desligado e Coeso.

No que concerne aos processos de desenvovimento da identidade, especificamente à dimensão exploração em profundidade, verificou-se que os participantes de famílias com um funcionamento Emaranhado apresentam os níveis mais elevados e que os participantes de famílias com um funcionamento Desligado e Conflituoso apresentam os níveis mais baixos de exploração em profundidade, em comparação com as outras tipologias. As famílias com um funcionamento Coeso, Equilibrado e Desligado apresentam valores de exploração em profundidade mais baixos que as famílias com um funcionamento Emaranhado.

Relativamente à exploração em amplitude observou-se que os participantes de famílias com um funcionamento Emaranhado e Coeso apresentam os níveis mais elevados e que os participantes de famílias com um funcionamento Desligado apresentam os níveis mais baixos de exploração em amplitude, em comparação com as outras tipologias. Não há diferenças no nível da exploração em amplitude entre os participantes de famílias com um funcionamento Conflituoso e Equilibrado com as restantes tipologias familiares.

Na exploração ruminativa foram identificados valores mais elevados em participantes de famílias com um funcionamento Emaranhado e Equilibrado e valores mais baixos em participantes de famílias com um funcionamento Coeso e Desligado, em comparação com as outras tipologias. Não há diferenças no nível da exploração ruminativa entre os participantes de famílias com um funcionamento Conflituoso e as restantes tipologias de funcionamento familiar.

Por último, em relação aos processos compromisso e identificação com o compromisso, verificou-se que os participantes de famílias com um funcionamento Emaranhado e Coeso apresentam os níveis mais elevados e que os participantes de famílias com um funcionamento Desligado e Equilibrado apresentam os níveis mais baixos de ambos os processos, em comparação com as outras tipologias. Não há diferenças no nível do compromisso e identificação com o compromisso entre os participantes de famílias com um funcionamento Conflituoso com as restantes tipologias familiares.

 

Associação entre as tipologias de funcionamento familiar e as etapas desenvolvimentais

Foi encontrada uma associação significativa entre a tipologia de funcionamento familiar e etapa desenvolvimental [χ2(4)=12.87, p<.05]. A Tabela 4 apresenta a distribuição das tipologias de funcionamento familiar em função da etapa desenvolvimental.

 

 

Através da Tabela 4 observou-se que: das 163 famílias com um funcionamento Coeso, 59 (36.2%) são famílias com filhos adolescentes e 104 (63.8%) são famílias com adultos emergentes; das 22 famílias com um funcionamento Conflituoso, 12 (54.5%) são famílias com filhos adolescentes e 10 (45.5%) são famílias com adultos emergentes; nas 104 famílias com um funcionamento Equilibrado a frequência de famílias com filhos adolescentes e com adultos emergentes é equivalente (n=52; 50%); nas 45 famílias com um funcionamento Desligado, 24 (53.3%) são famílias com filhos adolescentes e 21 (46.7%) são famílias com adultos emergentes; por último, das 53 famílias com um funcionamento Emaranhado, 15 (28.3%) são famílias com adolescentes e 38 (71.7%) são famílias com adultos emergentes. Com base nos odds ratio (Field, 2009) a probabilidade de pertencer a uma família com um funcionamento: Coeso é 1.51 vezes superior se for adulto emergente; Conflituoso é 1.6 vezes superior se for adolescente; Equilibrado é 1.57 vezes superior se for adolescente; Desligado é 1.7 vezes superior se for adolescente; e Emaranhado é 2 vezes superior se for adulto emergente.

 

Associação entre as tipologias de funcionamento familiar e os grupos com e sem perturbação emocional

Foi encontrada uma associação significativa entre a tipologia de funcionamento familiar e o nível de perturbação emocional [χ2(4)=41.456, p<.001]. A Tabela 5 apresenta a distribuição das tipologias de funcionamento familiar em função dos grupos com e sem perturbação emocional.

 

 

Através da Tabela 5 observou-se que: das 163 famílias com um funcionamento Coeso, 134 (82.2%) são famílias com filhos sem perturbação emocional e 29 (17.8%) são famílias com filhos com perturbação emocional; das 22 famílias com um funcionamento Conflituoso, 7 (31.8%) são famílias com filhos sem perturbação emocional e 15 (68.2%) são famílias com filhos com perturbação emocional; nas 104 famílias com um funcionamento Equilibrado, 60 (57.7%) são famílias com filhos sem perturbação emocional e 44 (42.3%) são famílias com perturbação emocional; nas 45 famílias com um funcionamento Desligado, 32 (71.1%) são famílias com filhos sem perturbação emocional e 13 (28.9%) são famílias com filhos com perturbação emocional; por último, das 53 famílias com um funcionamento Emaranhado, 26 (49.1%) são famílias com filhos sem perturbação emocional e 27 (50.9%) são famílias com filhos perturbação emocional. Com base nos odds ratio (Field, 2009), a probabilidade de pertencer a uma família com um funcionamento: Coeso é 3.7 vezes superior num grupo sem perturbação emocional; Conflituoso é 4.3 vezes superior num grupo com perturbação emocional; Equilibrado é 1.7 vezes superior num grupo com perturbação emocional; Desligado é 1.27 vezes superior num grupo sem perturbação emocional; e Emaranhado é 2.45 vezes superior num grupo com perturbação emocional.

 

Discussão

Neste estudo pretendemos, numa amostra de adolescentes, com idades compreendidas entre os 15 e 19 anos, e adultos emergentes, com idades entre os 20 e 25 anos: identificar as tipologias de funcionamento familiar a partir das dimensões coesão e conflito; e analisar a associação entre estas tipologias, a etapa desenvolvimental, a perturbação emocional e os processos de desenvolvimento da identidade. Desta forma, pretendeu-se dar resposta aos problemas de investigação identificados, nomeadamente (a) a escassez de trabalhos que recorrem à abordagem tipológica para analisar o funcionamento familiar; e (b) a inexistência de estudos que analisem a associação entre tipologias de funcionamento familiar e os processos de desenvolvimento da identidade na adolescência e na adultez emergente.

Apesar de não existirem estudos que utilizem ipsis verbis as designações de funcionamento familiar propostas (e.g., Coeso, Conflituoso, Equilibrado, Desligado e Emaranhado) e que identifiquem tipologias de funcionamento familiar através das dimensões conflito e coesão, as diferenças observadas entre estas dimensões permitiram uma distinção adequada das tipologias. Ressalva-se, também, o facto de que as diferenças observadas vão ao encontro da literatura que mostra que as famílias com um funcionamento Emaranhado são caracterizadas por níveis muito elevados de coesão e conflito e as famílias com um funcionamento Desligado apresentam níveis muito reduzidos de coesão (Minuchin et al., 1975; Olson, 2000; Sturge-Apple et al., 2010).

Na globalidade, os resultados sugerem que a pertença a uma família com um funcionamento Emaranhado pode significar um desafio desenvolvimental acrescido, no que concerne ao desenvolvimento da identidade e à emergência de perturbação emocional. De facto, os dados sugerem que os participantes que pertencem a famílias com esta tipologia de funcionamento apresentam níveis elevados de perturbação emocional e dos processos pertencentes aos ciclos de formação e de avaliação da identidade. Os participantes que identificam o funcionamento das suas famílias como Emaranhado apresentam também níveis elevados de exploração ruminativa, sendo que este processo é perspetivado como um processo bloqueador do desenvolvimento identitário ou um processo inadaptativo (Luyckx et al., 2013). Os resultados apontam, assim, para que os adolescentes e adultos emergentes de famílias com um funcionamento Emaranhado, apesar de conseguirem explorar várias alternativas, de se comprometerem e se identificarem com elas, questionam-nas continuamente. Deste modo, hipotetizamos que os processos de desenvolvimento da identidade destes adolescentes e adultos emergentes sejam um reflexo do funcionamento das suas famílias em termos da intensidade e da coexistência de processos, aparentemente, díspares.

 

Tipologias de funcionamento familiar e os processos de desenvolvimento da identidade

Os resultados em relação às diferenças na exploração em profundidade em função das tipologias de funcionamento familiar sublinham o papel dos vínculos afetivos e relacionais familiares na exploração de alternativas após a adesão a compromissos. Estes resultados mostram, assim, que as tipologias de funcionamento familiar que se caracterizam por níveis elevados e médios de coesão (i.e., Coesas, Emaranhadas e Equilibradas) favorecem o ciclo de avaliação do compromisso proposto por Luyckx e colaboradores (2008). Neste sentido, os dados sugerem que a proximidade relacional e afetiva pode funcionar como uma base segura para os adolescentes e adultos emergentes reavaliarem os seus compromissos de identidade atuais à medida que continuam a explorá-los. O facto de os participantes que percecionam o funcionamento das famílias como Conflituoso apresentarem níveis mais baixos de exploração em profundidade sugere que a conflituosidade per se (i.e., sem proximidade afetiva) dificulta a avaliação do compromisso e bloqueia o desenvolvimento de uma identidade adaptativa (e.g., Luyckx et al., 2008).

À semelhança dos resultados referentes à exploração em profundidade, os resultados da exploração em amplitude, compromisso e identificação com o compromisso reforçam também o papel da união familiar nos ciclos de formação e de avaliação do compromisso. Para além disso, estes dados mostram que os adolescentes e adultos emergentes que percecionam o funcionamento das famílias como Emaranhado e Coeso exploram diversas alternativas identitárias de uma forma pró-ativa, comprometendo-se e identificando-se com elas.

O facto de os participantes que percecionam o funcionamento das famílias como Desligado apresentarem os níveis mais baixos de exploração em amplitude corrobora os resultados de outros estudos que indicaram uma relação positiva entre um contexto familiar percecionado como desligado e o desenvolvimento de uma identidade fechada ou difusa (e.g., Sandhu et al., 2012). Neste sentido, os resultados sugerem que adolescentes e adultos emergentes de famílias com vínculos afetivos pobres tendem a desligar-se também da exploração de alternativas para as suas vidas.

No que concerne à exploração ruminativa, os resultados apontam para que este processo seja facilitado com a pertença a famílias que funcionam com níveis elevados ou médios de coesão e de conflito (tipologias de funcionamento Emaranhado e Equilibrado). Nestas famílias, a intensidade dos vínculos emocionais e afetivos pode funcionar como uma base segura para a exploração progressiva de diversas alternativas. Todavia, a perceção da conflituosidade pode dificultar a adesão a compromissos, o que corrobora os trabalhos que sugerem que uma associação positiva entre o conflito e a dificuldade no estabelecimento de objetivos (e.g., Luyckx et al., 2006). Os participantes que percecionam o funcionamento das famílias como Equilibrado e Desligado revelaram níveis mais baixos de compromisso e identificação com o compromisso, sugerindo que níveis médios ou baixos de coesão e de conflitos não facilitam a adesão e a valores, objetivos e crenças e a integração destes no seu sentido de self (Luyckx et al., 2008).

 

Tipologias de funcionamento familiar e as etapas desenvolvimentais

Os resultados mostraram uma associação entre a etapa desenvolvimental e as tipologias de funcionamento familiar, apontando para que na adolescência exista uma maior prevalência de famílias com um funcionamento Conflituoso, Equilibrado e Desligado e na adultez emergente uma maior prevalência de famílias com um funcionamento Coeso e Emaranhado. Os resultados em relação à adolescência apontam para que a etapa do ciclo de vida familiar esteja associada à frequência de conflitos familiares, apoiando o trabalho de diversos autores (e.g., Alarcão, 2000). A literatura tem sugerido que, tendencialmente, na adolescência, os filhos desafiam mais a autoridade parental, contribuindo para a rigidificação e conflituosidade da interação familiar (Relvas, 2006). Para além disso, neste período, os filhos tendem a passar menos tempo com os pais, manifestando um maior distanciamento em relação à família (Alarcão, 2000). Os resultados referentes às famílias com um funcionamento Equilibrado podem ser interpretados atendendo ao facto de o processo de autonomia ser experienciado de forma ambivalente, envolvendo, simultaneamente, a procura da independência (que pode aumentar o conflito) e a manutenção do vínculo afetivo com os pais que pode contribuir para o aumento/manutenção dos níveis de coesão. Para além disso, apesar de as etapas adolescência e famílias com filhos adolescentes serem habitualmente perspetivadas como período com muitas dificuldades emocionais e relacionais, a maioria dos adolescentes e das famílias não apresenta dificuldades significativas (Shaffer & Kipp, 2007), o que pode também justificar este resultado.

Os resultados em relação à adultez emergente podem ser explicados atendendo às tarefas desenvolvimentais desta etapa. Nesta fase, é expectável que o processo de autonomia em relação à família de origem se finalize/materialize com a saída de casa dos pais. Quando a coabitação é prolongada, os vínculos afetivos com a família podem aumentar ou fortalecer-se, tendo em conta o suporteeaproteção que a família proporciona aos filhos (Brandão et al., 2012). Contudo, o reforço da coesão poderá ser percebido como intrusividade e aumentar os níveis de conflito, o que justifica a percentagem de famílias com o padrão emaranhado. Neste tipo de famílias, o vínculo afetivo pode funcionar como um obstáculo para a própria individualização dos adultos emergentes, anulando o desenvolvimento da identidade e promovendo a disfuncionalidade familiar.

 

Tipologias de funcionamento familiar e perturbação emocional

Relativamente às diferenças nos níveis de perturbação emocional, em função das tipologias de funcionamento familiar, os resultados mostraram que os participantes que percecionam o funcionamento das suas famílias como Conflituoso e Emaranhado apresentam um nível de perturbação emocional mais elevado que os que percecionam o funcionamento das famílias como Equilibrado, Desligado e Coeso. Estes resultados corroboram outros estudos que evidenciaram a influência do contexto familiar no desenvolvimento de perturbações emocionais (e.g., Inguglia et al., 2015). Estes resultados reforçam a associação entre os níveis elevados de conflito familiar – que caracterizam as famílias com um funcionamento Conflituoso e Emaranhado – e o desajustamento psicológico apontada por diversos autores (e.g., Cusimano & Riggs, 2013).

Os resultados indicaram uma associação entre os grupos de perturbação emocional e as tipologias de funcionamento familiar, mostrando que os participantes sem perturbação emocional apresentam maior probabilidade de pertencer a famílias com um funcionamento Coeso ou Desligado e os que pertencem ao grupo com perturbação emocional apresentam maior probabilidade de integrar famílias com um funcionamento Conflituoso, Equilibrado ou Emaranhado. Estes resultados corroboram os trabalhos que mostram que a coesão está positivamente associada ao bem-estar dos filhos (e.g., Halloran, Ross, & Carey, 2002); contudo, não apoiam a literatura que associa positivamente o desligamento familiar e a ausência de coesão ao desajustamento psicológico (Olson, 2000). Neste sentido, poder-se-á hipotetizar que existem outras variáveis individuais (e.g., resiliência, estratégias de coping), sociais ou relacionais (e.g., suporte social) que possam funcionar como mecanismos explicativos desta relação, atenuando o impacto negativo do desligamento familiar.

Os resultados relativos aos grupos com e sem perturbação emocional, ao mostrarem que as famílias com um funcionamento Conflituoso e Emaranhado estão associadas à perturbação emocional, reforçam os estudos que mostram que o conflito familiar contribui para o desenvolvimento de psicopatologia (e.g., Cruz et al., 2014), realçando o impacto negativo da hostilidade, crítica e agressividade nos percursos dos filhos. Para além disso, apoiam a literatura que mostra que o emaranhamento familiar pode ser um fator de risco para o bem-estar psicológico porque atrasa o processo de individualização e influencia negativamente o desenvolvimento identitário. Na sua globalidade, estes resultados ressalvam a dificuldade que os adolescentes e adultos emergentes têm em lidar adaptativamente com níveis elevados e médios de conflito familiar.

 

Implicações para a literatura e para a prática

Este estudo vem dar resposta à inexistência de estudos que analisem as tipologias de funcionamento familiar, a sua prevalência nas etapas desenvolvimentais e a sua associação à perturbação emocional e aos processos de desenvolvimento da identidade. Os resultados deste trabalho podem constituir um desafio aos pressupostos do modelo circumplexo de Olson (2000), ao mostrarem que os filhos das famílias que funcionam nos extremos de coesão e conflito (funcionamento Emaranhado, Conflituoso, Coeso e Desligado) podem não apresentar níveis superiores de dificuldades desenvolvimentais. Os resultados deste estudo, ao indicarem diferenças relativas a variáveis individuais (processos de desenvolvimento da identidade) e familiares (tipologias de funcionamento) em função das etapas desenvolvimentais analisadas, poderão contribuir para a literatura na área da Psicologia do Desenvolvimento, sublinhando as especificidades da adolescência e da adultez emergente. Os resultados, ao mostrarem que a probabilidade de pertencer a uma família Equilibrada é superior na adolescência, contribuem para a literatura que tem mostrado que a etapa da adolescência/famílias com filhos adolescentes também está associada a processos equilibrados e ajustados.

Do mesmo modo, os resultados obtidos, no presente estudo, reforçam o pressuposto de que o desenvolvimento humano, e especificamente o identitário, é complexo, decorrente da natureza potencialmente transacional entre o individuo e o contexto. Neste sentido, os resultados aqui discutidos sugerem a necessidade futura de exploração longitudinal destas associações, considerando perspectivas ecológico-transacionais do desenvolvimento humano. Além disso, considerando o crescente debate acerca das especificidades desenvolvimentais inerentes ao próprio período da adolescência, no futuro, torna-se fundamental alargar também o espectro etário dos adolescentes (com menos de 15 anos), com vista à compreensão destes processos a partir de uma perspetiva desenvolvimentista.

Por outro lado, os resultados aqui apresentados permitem-nos identificar um conjunto de implicações para a prática, no sentido de se adotar uma perspetiva ecossistémica e uma abordagem multidimensional, integrando a família (ou as representações familiares), no desenvolvimento de linhas de intervenção com adolescentes e adultos emergentes. Especificamente, atendendo ao facto de os resultados sugerirem que famílias com um funcionamento familiar emaranhado se constituem enquanto contexto favorável à exploração ruminativa, a intervenção familiar deve assim privilegiar a definição de fronteiras adequadas às necessidades desenvolvimentais, permitindo e potenciando a necessária exploração em profundidade e o compromisso dos adolescentes e adultos emergentes. Do mesmo modo, a natureza emaranhada destas relações deve ser alvo de particular atenção por parte dos profissionais, atendendo ao seu potencial papel negativo ao nível do ajustamento psicológico. Por outro lado, níveis mais elevados de perturbação emocional tendem a emergir no contexto de famílias conflituosas, sugerindo assim a necessidade de intervenção nestes contextos, quer ao nível do treino de competências comunicacionais quer de resolução adaptativa do conflito. Do mesmo modo, importa considerar a avaliação e intervenção adequada ao nível das estratégias de coping e de recursos internos, por parte dos adolescentes e adultos emergentes nestes contextos familiares caraterizados por níveis elevados de conflito. Finalmente, uma intervenção de natureza multidimensional e ecológica deve privilegiar a mobilização de recursos externos, a diferentes níveis e sistemas, com vista à minimização do dano potencial da exposição ao conflito e o equilíbrio necessário entre risco e proteção.

 

Limitações e estudos futuros

Embora o presente trabalho possa constituir-se como um contributo científico para as áreas suprarreferidas, importa referir algumas limitações. A amostra é de conveniência e foi recolhida através de uma técnica não probabilística, não permitindo a generalização dos resultados obtidos à população portuguesa. Sendo este um estudo transversal, não permite aceder ao processo de desenvolvimento dos processos identitários e do funcionamento familiar ao longo do tempo, pelo que não permite estabelecer relações causais nem analisar adequadamente a dinâmica do desenvolvimento identitário. Os instrumentos utilizados, como são medidas de autorrelato, podem enviesar os resultados através de processos de desiderabilidade social. Não foram analisados as estruturas das famílias (i.e., família nuclear intacta, monoparental, reconstituída).

Para colmatar as lacunas identificadas seria importante em estudos futuros incluir uma amostra mais alargada de forma a aumentar a validade externa, assim como considerar o potencial papel moderador de variáveis diádicas (e.g., qualidade da relação pais-filhos, qualidade da relação entre irmãos, ou outras fontes de suporte) na associação entre funcionamento familiar e ajustamento psicológico. Além disso, poder-se-iam incluir amostras clínicas e forenses para uma análise mais aprofundada das trajetórias desenvolvimentais na adolescência e adultez emergente. Seria também importante realizar estudos longitudinais que permitam obter resultados mais fidedignos e estabelecer relações de causalidade. Em estudos futuros poderiam ainda ser utilizados instrumentos de hetero-relato para colmatar problemas de desejabilidade social e triangular os dados (e.g., recolher dados com os pais). Tendo em conta as várias características sociais e estruturais que o funcionamento familiar integra, seria, ainda, relevante que os estudos futuros englobassem outras dimensões do clima familiar, nomeadamente a adaptabilidade e a qualidade de comunicação.

 

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Ana Prioste, Escola de Psicologia e Ciências da Vida, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Campo Grande, 376, 1749-024 Lisboa, Portugal. E-mail: anaprioste@gmail.com

 

Submissão: 31/01/2018 Aceitação: 29/11/2018

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