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Análise Psicológica
versão impressa ISSN 0870-8231versão On-line ISSN 1646-6020
Aná. Psicológica vol.38 no.2 Lisboa dez. 2020
https://doi.org/10.14417/ap.1610
Vingança e perdão: Dois lados de uma mesma moeda?
Revenge and forgiveness: Two sides of the same coin?
Darlene Pinho Fernandes de Moura1, Sophia Lóren de Holanda Sousa1, Isabele Negreiros de Queiroz Pereira1, Mariana Gonçalves Farias1, Quésia Fernandes Cataldo1, Walberto Silva dos Santos1
1Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil
RESUMO
O desejo de punir alguém que tenha causado sofrimento se caracteriza como vingança. Entretanto, é possível que alguém apresente mudanças pró-sociais em relação ao ofensor, o que configura o perdão. Estudos apontam que perdão e vingança podem ser compreendidos de maneira oposta e também compartilharem uma dimensão comum. Nesse sentido, este estudo objetivou comparar o ajuste de um modelo bifator para perdão e vingança com explicações alternativas de modelos de um fator e dois fatores. Contou-se com a participação de 195 pessoas, a maioria do sexo feminino (66.7%), heterossexual (83.2%), solteira (80.8%), com ensino superior incompleto (68.4 %) e com idades entre 18 e 82 anos (M=27.26; DP=11.50), que responderam à Escala de Disposição para Perdoar e à Escala de Atitudes Frente à Vingança. Os resultados apontaram que o modelo bifator se mostrou mais adequado [χ2(102)=175.639, p<0,001; χ2/gl=1.54, SRMR=0.06, CFI=0.94, RMSEA=0.061 (IC90%=0.04-0.07), TLI=0.93]. Os resultados encontrados sugerem que, além de compartilharem um fator comum, as variáveis parecem ter legitimidade como construtos distintos, dando suporte empírico para a promoção de estratégias voltadas para se intervir tanto em elementos gerais como específicos relacionados aos construtos.
Palavras-chave: Vingança, Perdão, Bifator.
ABSTRACT
The desire to punish someone who has caused suffering is characterized by revenge. However, it is possible for someone to present pro-social changes in relation to the offender, which constitutes forgiveness. Studies point out that forgiveness and revenge can be understood in the opposite way and also share a common dimension. In this sense, this study aimed to compare the adjustment of a two-factor model for forgiveness and revenge with alternative explanations of one-factor and two-factor models. 195 people participated, the majority female (66.7%), heterosexual (83.2%), single (80.8%), with incomplete higher education (68.4%) and with ages between 18 and 82 years (M=27.26; SD=11.50), who to the Willingness to Forgive Scale and the Vengeance Scale. The results showed that the two-factor model was more appropriate [χ2(102)=175.639, p<0.001; χ2/gl=1.54, SRMR=0.06, CFI=0.94, RMSEA=0.061 (CI90%=0.04-0.07), TLI=0.93]. The results found suggest that, in addition to sharing a common factor, the variables seem to have legitimacy as distinct constructs, providing empirical support for the promotion of strategies aimed at intervening in both general and specific elements related to the constructs.
Key words: Revenge, Forgiveness, Bifactor.
Introdução
Diversos delitos e formas de agressão podem ser motivados pelo desejo de vingança (Chester & DeWall, 2015), como é caso dos homicídios (Zeoli, Grady, Pizarro, & Melde, 2015), dos massacres em escolas (Vossekuil, Fein, Redy, Borum, & Modzeleski, 2002) e, mais recentemente, do «revenge porn»1 (Pina, Holland, & James, 2017). A vingança pode ser definida como um desejo pessoal de punir alguém que causou sofrimento com o intuito de fazer com que este receba uma consequência merecida pelo que fez (Giammarco & Vernon, 2014; Gollwitzer & Denzler, 2009).
Esse desejo pessoal pode suscitar atos vingativos que, segundo Stuckless e Goranson (1992), correspondem à imposição de algum dano como forma de retaliação a um erro percebido (Brown, Serovich, & Kimberly, 2018; Ribeiro, Butori, & Nagard, 2018; Şantaş, Uğurluoğlu, Özer, & Demir, 2018). Neste sentido, a vingança pode constituir um ato agressivo que, embora, para alguns autores, possa ser justificado pela busca de justiça e igualdade (Çoklar, 2015), é comprometido pelos vieses e preconceitos do sujeito que se vinga, o que resulta em uma reação específica, exagerada ou não ética em resposta à aflição gerada (Stillwell, Baumeister, & Del Priore, 2008).
Com o objetivo de compreender o tema, estudos têm observado a relação entre vingança enarcisismo (Fatfouta, Gerlach, Schröder-Abé, & Merkl, 2015), personalidade (Chester & DeWall, 2017), gênero (Cota-McKinley, Woody, & Bell, 2001), saúde psicológica e física (Ysseldyk, Matheson, & Anisman, 2017), bem como com os sintomas de depressão e estresse pós-traumático em mulheres vítimas de abuso (Ysseldyk et al., 2017). Além desses fatores, a vingança tem sido frequentemente associada ao perdão (Barber, Maltby, & Macaskill, 2005; McCullough, Kurzban, & Tabak, 2013; Satici, Uysal, & Akin, 2014; Ysseldyk et al., 2017).
O perdão pode ser definido de diversas formas (Enright, Gassin, & Wu, 1992; McCullough, Worthington Jr, & Rachal, 1997; Menezes, 2009). Alguns autores, por exemplo, definem perdão como um conjunto de mudanças em alguém que promove a diminuição da disposição para vingar uma agressão e para manter a desavença pelo agressor, enquanto promovem também a conciliação com o ofensor (Antonucci, Ajrouch, Webster, & Birditt, 2018; McCullough, Worthington Jr, & Rachal, 1997). Já Enright et al. (1992) e Kato (2016) estabelecem perdão como a superação de um afeto negativo do indivíduo pelo infrator, por meio do esforço de vê-lo com compaixão e benevolência, e não por meio da negação desse sentimento negativo. Menezes (2009), de forma similar, apresenta o perdão como a capacidade de superar um ressentimento ou um sentimento de mágoa em relação ao ofensor. Apesar das diferenças, essas definições apresentam um aspecto em comum: o estímulo a mudanças pró-sociais em relação ao ofensor (McCullough, Fincham, & Tsang, 2003).
Dados têm apontado a relevância das estratégias baseadas em perdão na promoção de benefícios relacionados à depressão, ansiedade, sintomas de estresse pós-traumático e autoestima (Akhtar & Barlow, 2016; Lin, Mack, Enright, Krahn, & Baskin, 2004; Reed & Enright, 2006). Nesse sentido, o perdão contribui para o bem-estar e a saúde psicológica dos indivíduos, e, portanto, tem se configurado como um fator importante na prevenção dos atos vingativos (Griffin et al., 2015; Lawler-Row, Karremans, Scott, Edlis-Matityahou, & Edwards, 2008; Van Der Wal, Karremans, & Cillessen, 2016; Van Tongeren et al., 2015).
Em contrapartida, de um ponto de vista teórico, tem sido apontada a possibilidade da vingança e do perdão serem mecanismos adaptativos com funções complementares, nas quais a vingança tem o objetivo de estancar danos e o perdão tem o objetivo de resolver problemas relacionados à preservação de relações valiosas (McCullough et al., 2013). Estudos têm apresentado o perdão e a vingança como construtos negativamente correlacionados (Barber et al., 2005; Satici et al., 2014) e importantes para o desenvolvimento de estratégias para lidar com eventos estressantes (Ysseldyc et al., 2017). Na mesma direção, alguns autores afirmam que, em muitos aspectos, perdão é considerado o inverso da vingança (Goldring & Strelan, 2017; Thompson et al., 2005) e que para alcançá-lo é necessário anular a resposta de rancor (vingança reduzida), ou seja, o indivíduo provavelmente perdoa quando ele não deseja mais a vingança (Burnette et al., 2013; McCullough, Bellah, Kilpatrick, & Johnson, 2001; Scull, 2015). A partir disso, infere-se que um componente central para entender o perdão é a redução na motivação para vingar-se.
Não obstante, a literatura tem apontado que o perdão e a vingança apresentam construtos correlatos semelhantes, mudando apenas a direção das associações (Gouveia et al., 2015; Satici et al., 2014). No estudo de Gouveia et al. (2015), por exemplo, observou-se que bem-estar, amabilidade e saúde psicológica apresentam-se positivamente associados ao perdão e negativamente associados à vingança. Na mesma direção, em outro estudo também se observou que o perdão apresentou correlação positiva com afetos positivos, enquanto a vingança se associou positivamente aos afetos negativos (Satici et al., 2014).
Paralelo a isso, também se tem explorado a ideia de que perdão e vingança não apresentam apenas uma relação direta de oposição. Brown (2004), por exemplo, afirma que uma pessoa que perdoa muito também pode ser muito vingativa e vice-versa. Dessa forma, uma pessoa que não endossa comportamentos relacionados à vingança não significa, necessariamente, que ela perdoa facilmente alguém que a ofendeu (Brown, 2003). Satici et al. (2014) afirmam ainda que indivíduos que apresentam uma tendência a sentir a angústia de outras pessoas, têm menor disposição ao perdão e, portanto, é possível que essas pessoas tenham maior probabilidade de buscar vingança. O mesmo estudo encontrou que o efeito de perdão em vingança é alterado quando há a presença da variável gratidão mediando essa relação (Satici et al., 2014).
Assim, por um lado, há estudos que afirmam que perdão e vingança são construtos correlatos, evidenciando que a vingança tem um papel importante no ato de perdoar e que pessoas vingativas perdoam menos e ruminam mais, assim como também mantêm o desejo de se vingar por mais tempo do que pessoas menos vingativas (McCullough et al., 2001). Por outro lado, tem-se discutido que perdão e vingança não são apenas construtos opostos, mostrando que indivíduos que pontuam alto em perdão podem, simultaneamente, pontuar alto em vingança e que pessoas que não perdoam podem ou não ser vingativas (Brown, 2004).
Nessa compreensão, pode-se pensar que, embora possam ter atributos específicos que os tornam distintos e independentes (Brown, 2004; McCullough et al., 2001), a vingança e o perdão também parecem compartilhar uma dimensão geral (Barber et al., 2005; Satici et al., 2014). Essa discussão permite levantar a hipótese de que perdão e vingança podem ser explicados por um modelo bifator. De modo geral, observa-se que não há um consenso na literatura acerca da relação entre vingança e perdão, e a maioria das evidências empíricas se limitam a discussões teóricas e estudos correlacionais, sendo ainda necessárias pesquisas que sugiram modelos explicativos acerca do tema (Barber et al., 2005; McCullough et al., 2013; Satici et al., 2014). Assim, a proposta bifator torna-se uma opção na medida em que possibilitará uma compreensão mais robusta acerca da dimensionalidade dos construtos, contribuindo para a observação de componentes específicos e gerais envolvidos nessa relação (Reise, Bonifay, & Haviland, 2013; Reise, Scheines, Widaman, & Haviland, 2013).
Portanto, nesse estudo tem-se o objetivo de comparar o ajuste do modelo bifator para perdão e vingança com explicações alternativas baseadas em modelos de um fator e de dois fatores. Para tanto, destaca-se que o perdão e a vingança foram operacionalizados por meio das variáveis «disposição para perdoar» e «atitudes frente à vingança». A disposição para perdoar se apresenta como uma variável contingencial que reúne aspectos relativamente duradouros e está relacionada a uma predisposição para liberar ressentimento frente a transgressões interpessoais (Gouveia et al., 2015); enquanto as atitudes frente à vingança como a mensuração de respostas individuais diante de contextos de vingança (Stuckless & Goranson, 1992).
Método
Participantes
Contou-se com a participação de 195 pessoas, a maioria do sexo feminino (66.7%), heterossexual (83.2%), solteira (80.8%), com ensino superior incompleto (68.4%) e na faixa etária de 18 e 82 anos (M=27.26; DP=11.50). Tal amostra foi não probabilística, participando aquelas pessoas que, ao serem convidadas, concordaram em colaborar com a pesquisa.
Instrumentos
Os participantes responderam a um livreto, composto pelos seguintes instrumentos:
Escala de Disposição para Perdoar (EDP): composta por doze cenários que descrevem situações específicas que são apresentadas aos participantes para que apontem o quanto estão dispostos a perdoar. Parte-se da premissa de que a atitude inicial dos participantes sobre a vontade de perdoar em determinada situação pode ser crucial para saber o seu nível de predisposição para o perdão (DeShea, 2003; Gouveia et al., 2009, 2015). Por exemplo, diante do cenário: «Seu (sua) namorado (a), com quem você esteve se relacionando durante dois anos, diz para você que quer se separar e admite que esteve envolvido (a) com outras pessoas durante todo o tempo que vocês namoraram», questiona-se o quanto o respondente estaria disposto a perdoar. Para tanto, utiliza-se de escala do tipo Likert de seis pontos, que varia de 0 (nada disposto) a 6 (totalmente disposto). Trata-se de uma medida com estrutura unifatorial e alfa de Cronbachd e 0.85 (Gouveia et al., 2015). Para esta amostra específica, a escala apresentou alfa de Cronbach de 0.89.
Escala de Atitudes frente à Vingança: proposta por Stuckless e Goranson (1992) e partindo do pressuposto que a vingança é um fenômeno único, esta escala é composta por 20 itens em forma de afirmativas (sendo 10 itens invertidos), que expressam um conjunto de opiniões, predisposições e julgamentos morais e éticos acerca da vingança (por exemplo, «Quem me provoca (desafia), merece sofrer uma pena», «Para mim, a vida é olho por olho e dente por dente»). Tais itens são respondidos em escala do tipo Likert de sete pontos, com os extremos: 1=Discordo Totalmente e 7=Concordo Totalmente (Coelho et al., 2018; Stuckless & Goranson, 1992). No Brasil, Coelho et al. (2018) propuseram duas versões reduzidas da escala (10 e 5 itens). Nesse estudo, optou-se, por utilizar a versão reduzida de 5 itens (composta pelos itens 01, 02, 06, 07 e 09 da versão original), uma vez que esta se configura como uma versão parcimoniosa com bons parâmetros psicométricos (α=0.88, unifatorial) em contexto brasileiro (Coelho et al., 2018). Para a presente amostra, o alfa de Cronbach foi de 0.86.
Questionário Sociobiodemográfico: cujo objetivo foi obter informações sobre o respondente e caracterizar a amostra. Essa parte do livreto reunia, entre outras questões, informações a respeito do gênero, do nível de escolaridade e da idade do respondente.
Procedimento
A coleta de dados se deu por meio de questionários impressos e foi realizada em locais públicos da cidade com aqueles que aceitassem participar da pesquisa. Foi solicitada a todos os participantes, também, a assinatura do Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE), garantindo o caráter anênimo e voluntário da pesquisa. Além disso, o aplicador permaneceu presente no momento da aplicação para o esclarecimento de possíveis dúvidas. Portanto, assegura-se que todos os procedimentos éticos foram adotados.
Análise de dados
Foram testados três modelos: o modelo de um fator (Modelo 1) parte do pressuposto de que a disposição para perdoar e as atitudes frente à vingança são apenas elementos opostos de um mesmo contínuo, formando um fator único. O modelo de dois fatores (Modelo 2) representa a hipótese de que atitudes frente à vingança e disposição para perdoar são aspectos independentes, cada um com seu próprio contínuo. Por fim, o modelo bifator (Modelo 3) agrega as discussões anteriores, uma vez que, além de permitir a existência um fator geral, também coloca a possibilidade de se observar componentes específicos relacionados aos construtos avaliados, que, nesse caso, poderiam representar características peculiares da vingança e do perdão separadamente.
Os dados foram analisados pelo IBM SPSS (versão 21) e software R 3.343 (pacote lavaan). Além das estatísticas descritivas para caracterização da amostra, utilizou-se Modelagem por Equação Estrutural (SEM) para a testagem de diferentes modelos, tomando-se em conta a matriz de covariância e adotando o estimador ML (Maximum Likelihood).
Para a avaliação do ajuste dos modelos, calculou-se o teste qui-quadrado e seus respectivos graus de liberdade [χ2(gl)], bem como foram avaliados os seguintes índices de ajuste (Byrne, 2001; Tabachnick & Fidell, 2001): SRMR (<0.10; Standardized Root Mean Square Residual), RMSEA (<0.80, ajuste aceitável; Root Mean Square Error of Approximation), CFI (>0.90; Confirmatory Fit Index) e o TLI (>0.90; Tucker-Lewis).
Resultados
Inicialmente, procedeu-se o teste dos modelos de um fator (Modelo 1), dois fatores (Modelo 2) e bifator (Modelo 3). Os resultados dos indicadores de ajuste podem ser visualizados na Tabela 1.
Com base nos resultados apresentados, observou-se que o Modelo 1 (um fator) apresentou indicadores de ajuste pouco favoráveis (e.g., SRMR=0.11, CFI=0.67, RMSEA=0.102 (IC90%=0.09-0.11), TLI=0.65) e, portanto, foi descartado. O Modelo 2 (dois fatores) apresentou melhores indicadores de ajuste quando comparado ao Modelo 1 (um fator), entretanto, alguns índices ainda se apresentaram abaixo do recomendado pela literatura (CFI=0.85, TLI=0.84).
Assim, com o propósito de verificar um modelo alternativo, foi testada a hipótese de um modelo bifator (Modelo 3). A proposta se apresentou mais adequada [χ2(102)=175.639, p<0.001; χ2/gl=1.54, SRMR=0.06, CFI=0,94, RMSEA=0.061 (IC90%=0.04-0.07), TLI=0.93] quando comparada aos modelos 1 e 2, e, portanto, recomendou-se o modelo bifator como o mais plausível para compreensão da disposição para perdoar e das atitudes frente à vingança.
No que diz respeito às cargas fatoriais da disposição para perdoar no modelo bifator, a maioria dos itens apresentaram cargas fatoriais negativas e satisfatórias (>0.30) no fator geral, exceto os itens 9 e 10. Em relação ao fator específico (Fator 1), quase todos itens da disposição para perdoar apresentaram cargas fatoriais positivas e satisfatórias (>0.30), o único item que teve carga fatorial inferior foi o item 2. Os resultados podem ser observados na Tabela 2.
Em relação às cargas fatoriais das atitudes frente à vingança do modelo bifator, todos os itens apresentaram cargas positivas e satisfatórias (>0.30) no fator geral e específico, conforme pode ser visualizado na Tabela 3.
Um resumo do modelo proposto pode ser visualizado na Figura 1.
Discussão
O presente estudo teve como objetivo testar modelos da relação entre vingança e perdão. Para tanto, foi testada a possibilidade dos construtos compartilharem uma única dimensão (modelo de um fator); dimensões independentes (modelo de dois atores), ou, por fim, um fator geral e, ao mesmo tempo, uma variância específica (modelo bifator).
Os resultados sugeriram que o modelo bifator apresentou o melhor ajuste dos dados, configurando-se, nesta pesquisa, como o modelo mais adequado. Tais achados trazem novas contribuições para o estudo do perdão e da vingança bem como de suas associações, sugerindo que, além de compartilharem um fator comum, as duas variáveis parecem ter legitimidade como construtos distintos (Wade & Worthington, 2003, 2005; Ysseldyk, Matheson, & Anisman, 2007).
Ainda é precoce delimitar teoricamente o fator geral encontrado, haja vista que os estudos que investigam especificamente essa relação ainda são incipientes (Barber et al., 2005; Brown, 2003, 2004; Satici et al., 2014). Entretanto, nesse estudo, o fator geral pode ser considerado como uma predisposição geral ou uma tendência a reagir diante de situações de transgressão interpessoal (como ameaças, ofensas, agressão), ao passo que os componentes específicos se configuram como duas das principais formas de reação: vingança e perdão (McCullough, Root, & Cohen, 2006). Portanto, confia-se que os resultados obtidos podem oferecer base empírica para novos estudos sobre o tema (Barber et al., 2005; McCullough et al., 2013; Satici et al., 2014).
De um modo geral, a maioria dos itens saturou tanto no seu fator específico como no fator geral, o que condiz com a hipótese bifator (Chen, Hayes, Carver, Laurenceau, & Zhang, 2012; Rodriguez, Reise, & Haviland, 2016). Entretanto, algumas inconsistências também foram encontradas, sobretudo na escala de disposição para perdoar. Observou-se, por exemplo, que o item 2 apenas saturou no fator geral e os itens 9 e 10 apenas saturaram no fator específico. Tais resultados podem ser discutidos a partir dos conteúdos dos itens, os quais podem não estar expressando ideias que agreguem ao mesmo tempo aspectos específicos e elementos comuns envolvidos na relação entre perdão e vingança, tal como é sugerido no modelo bifator (Chen et al., 2012; Rodriguez et al., 2016). O conteúdo do item 2 («Amigo que lê seu diário sem sua permissão»), por exemplo, parece não refletir uma situação corriqueira dos respondentes, sendo possível que, em decorrência disso, ele tenha causado confusão e que, dessa forma, não tenha saturado satisfatoriamente no fator específico.
Ao contrário, os itens 9, cujo tema central é «Amigo que deixa de fazer as coisas com você e ele que fica bravo», e 10 «Amigo íntimo que não quer mais sua amizade» apresentaram saturações insatisfatórias apenas no fator geral. Em face disso, é possível perceber que o controle da situação não parece estar sob domínio do indivíduo protagonista, não sendo, dessa maneira, necessária apenas sua disposição para perdoar. Nestes casos, parece haver maior necessidade de engajamento da outra pessoa e, além disso, em comparação aos outros cenários, fica menos evidente quem é, especificamente, o agressor e qual o dano causado. Em virtude disso, conjectura-se que os itens em questão não tenham saturado no fator específico, haja vista que não havia clareza de que a situação do cenário era determinada enquanto transgressão interpessoal.
Paralelo a isso, na escala de atitudes frente à vingança, todos os itens saturaram tanto no fator geral como fator específico. Tais resultados sugerem que estes itens, além de compartilharem um elemento específico da vingança, também abrangem características em comum com o perdão (Chen et al., 2012; Rodriguez et al., 2016). Apesar da relevância desses resultados, recomenda-se que, para além do perdão e da vingança, também sejam testadas outras características específicas que podem estar relacionadas ao estudo do tema, como é o caso das pessoas que, diante de situações de transgressão interpessoal, podem ter uma predisposição a se portar com indiferença (nem se vinga, nem perdoa) ou adotam uma posição de passividade/culpa, apresentando atitudes que, embora próximas, podem ser diferentes da definição de perdão e vingança comumente apresentada na literatura (Giammarco & Vernon, 2014; Gollwitzer & Denzler, 2009; McCullough, Worthington Jr, & Rachal, 1997). Alguns estudos, por exemplo, têm evidenciado a importância de se considerar variáveis como narcisismo (Fatfouta et al., 2015), personalidade (Chester & DeWall, 2017), evitação (McCullough, Root, & Cohen, 2006), ruminação da raiva (Karremans & Smith, 2010) e gratidão (Satici et al., 2014) na compreensão do mecanismo vingança-perdão.
Em suma, não obstante às particularidades encontradas e dado o caráter inédito desse estudo, pode-se afirmar que a hipótese bifator foi corroborada, sendo possível inferir que, embora perdão e vingança se configurem como construtos com características peculiares, ainda assim parecem resguardar um elemento comum. A utilização de um modelo bifator pode contribuir para ampliar o conhecimento acerca dos dois construtos, ao evidenciar diversas características que aproximam perdão e vingança, mas que, em geral, são investigadas de modo isolado em estudos distintos, tornando difícil a sua identificação. Além disso, a consideração de um fator geral integrando vingança e perdão pode, por exemplo, ser importante para a identificação e diferenciação de determinados comportamentos ou eventos que geralmente levam a atos vingativos ou ao perdão. Ou seja, perdão e vingança podem, com efeito, se apresentarem como «dois lados de uma mesma moeda».
Considerações finais
Este artigo teve o objetivo de testar modelos acerca da relação entre vingança e perdão. De um modo geral, observa-se que tal objetivo foi atingido e as informações encontradas trazem evidências empíricas acerca da relevância de um modelo bifator para a compreensão de vingança e perdão. Não obstante a esses resultados, é preciso apontar algumas limitações que, embora não anulem as discussões anteriores, permitem contextualizar os dados obtidos.
A primeira diz respeito aos instrumentos utilizados para se avaliar perdão e vingança, os quais, embora avaliem dimensões semelhantes «disposição» (Escala de Disposição para Perdoar) e « atitudes» (Escala de Atitudes Frente à Vingança), os mesmos foram construídos por autores diferentes (De Shea, 2003; Stuckless & Goranson, 1992), são compostos por formatos de itens distintos e não se constituem como um único instrumento, o que impossibilita, por exemplo, o aprofundamentos nas inconsistências encontradas nos resultados. Sobre isso, recomenda-se que, em novos estudos, o teste do modelo bifator também seja realizado com medidas que avaliem conjuntamente a relação de perdão e vingança.
Destaca-se ainda que esse estudo levou em conta amostras não probabilísticas, o que restringe as generalizações dos resultados. Diante disso, sugere-se a ampliação da amostra e a inclusão de outras variáveis (como personalidade, ruminação e evitação), na compreensão da relação entre vingança e perdão. Aponta-se ainda a carência de estudos empíricos semelhantes que contribuam para a discussão e a interpretação dos resultados. Portanto, encoraja-se a replicação desse estudo em novos contextos com o propósito de comparar os resultados e ampliar a literatura da área.
Por fim, conclui-se que os resultados encontrados permitem um avanço teórico acerca da compreensão da relação entre vingança e perdão e dão suporte empírico para a promoção de estratégias voltadas para se intervir tanto em elementos gerais como específicos relacionados aos construtos.
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A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Darlene Pinho Fernandes de Moura, Universidade Federal do Ceará, Av. da Universidade, 2853, Fortaleza, Ceará 60020-181, Brasil. E-mail: darlene.fernandes@ufc.br
Submissão: 26/06/2018 Aceitação: 25/06/2020
NOTAS
1Termo usado para descrever quando alguém compartilha uma imagem ou um vídeo em um contexto de relacionamento íntimo e tem esse vídeo publicado na internet, sem a sua permissão (Burris, 2014).