Portugal é um dos países da Europa com as taxas mais elevadas de perturbações de ansiedade - 16.5% (Caldas-Almeida & Xavier, 2013). Identificar os fatores de risco precoces para o desenvolvimento de perturbações futuras é essencial para prevenir a sua ocorrência e mitigar os seus custos, a nível individual, familiar e social (Chronis-Tuscano et al., 2018). Entre esses fatores de risco encontra-se a inibição comportamental (IC), em idade pré-escolar, que pode ser definida como um padrão de retraimento, medo e evitamento biologicamente determinados, durante a exposição a pessoas, situações e objetos novos (Fox et al., 2005).
A caracterização da IC teve os seus primórdios nos estudos longitudinais, liderados por Kagan, baseados na observação em laboratório do comportamento inibido, e com o registo de medidas fisiológicas obtidas perante estímulos visuais e auditivos desconhecidos (Zentner & Bates, 2008). Embora este conjunto de estudos laboratoriais sejam uma referência na literatura, Perez-Edgar e Fox (2018) salientam a importância de se analisar a IC das crianças, de idade pré-escolar, nos contextos onde será possível analisar uma maior variabilidade de comportamentos que ocorrem no dia-a-dia, e não apenas de grupos de crianças com padrões extremos de IC (gerados com base em pontos de corte). Outros autores enfatizaram, ainda, a importância de avaliar os relatos parentais sobre a IC, na medida em que os pais têm oportunidade de observar as crianças por períodos de tempo mais prolongados, e em diferentes contextos (Bishop et al., 2003). Contudo, a avaliação dos relatos parentais deve basear-se em medidas multidimensionais válidas, uma vez que a IC não é um conceito unitário, podendo a sua frequência e intensidade variar em diferentes contextos (Bishop et al., 2003; Dyson et al., 2011).
A investigação existente sobre os relatos parentais de IC, em função das características sociodemográficas da criança, revelou resultados inconsistentes. Bishop e colaboradores (2003) evidenciaram que as mães percecionam as raparigas como mais inibidas do que os rapazes nas situações de desempenho; porém, este estudo não evidenciou diferenças de sexo nas perceções maternas quanto às manifestações de IC nos restantes contextos ou quanto aos níveis globais de IC. Por sua vez, os estudos de Kim e colaboradores (2011) e Broeren e Murris (2010) mostraram que as mães percecionam as raparigas como mais inibidas perante desafios físicos e os rapazes como mais inibidos em situações de desempenho e separação. No que se refere à influência da idade, os estudos de Broeren e Muris (2010) e Mernick e colaboradores (2018) não revelaram a existência de diferenças significativas nas perceções parentais dos níveis globais de IC. No entanto, Broeren e Muris (2010) evidenciaram que os pais tendem a níveis mais elevados de IC perante situações de desempenho e desafio físico, à medida que a idade da criança avança. Asendorpf (1986) mostrou que as mães percecionam os primeiros filhos e os filhos únicos como mais tímidos do que os segundos/terceiros filhos e as crianças que têm irmãos. Outros estudos não identificaram a presença de diferenças significativas nas perceções maternas acerca da timidez em idade pré-escolar, em função da posição da criança na fratria (e.g., Graham & Coplan, 2012).
Face à multidimensionalidade do constructo de IC, Fox e colaboradores (2005) reconheceram que é possível que existam diferentes subgrupos de crianças inibidas e que a distinção destes subgrupos ajude a melhor compreender trajetórias (in)adaptativas ao longo do desenvolvimento. No entanto, os estudos que têm procurado identificar diferentes subgrupos de crianças, com base nas diferentes dimensões de IC, utilizando amostras comunitárias, são reduzidos. Com base nos níveis de afeto positivo/negativo e nos comportamentos de aproximação/evitamento observados numa situação laboratorial estandardizada, investigações anteriores conduzidas com crianças de 24 meses (Putnam & Stifter, 2005) e 42 meses (Dollar et al., 2017) identificaram três subgrupos: (1) crianças inibidas; (2) crianças exuberantes; e (3) crianças pouco reativas ou moderadamente propensas à aproximação.
As investigações conduzidas até à data com base em relatos parentais utilizaram medidas gerais de temperamento, tendo obtido resultados inconsistentes quanto ao número de perfis identificados, remetendo a sua distinção para crianças difíceis, resilientes/adaptadas e receosas (Gartstein et al., 2017). Deste modo, o presente estudo visa contribuir para colmatar estas lacunas.
Inibição comportamental e sintomas de ansiedade
Segundo o modelo desenvolvimental e transacional (Rubin et al., 2009), a IC em idade pré-escolar pode desencadear comportamentos de sobreproteção parental que tendem a reforçar o retraimento da criança. Este retraimento pode manifestar-se sob a forma de um isolamento autoimposto na presença dos pares, que tende a comprometer a aquisição de competências socioemocionais características da idade, a gerar reações negativas pelos pares e a conduzir à internalização de autoperceções negativas. Caso não ocorram mudanças nestas influências transacionais ao longo do tempo, a IC elevada e estável pode conduzir ao desenvolvimento de perturbações de ansiedade.
O reconhecimento da importância de uma abordagem multifatorial para a compreensão da IC (Fox et al., 2005), conduziu ao desenvolvimento de investigações longitudinais, no sentido de compreender as associações entre a IC, na primeira infância, e a emergência de sintomas de ansiedade futuros. Com base em 27 estudos, a meta-análise de Sandstrom, Uher e Pavlova (2020) concluiu que a IC na primeira infância triplica a probabilidade de desenvolver uma perturbação de ansiedade subsequente. No entanto, a magnitude do efeito destas associações variou de pequeno para a fobia específica a grande para a fobia social.
São menos os estudos que examinam as associações entre a IC e a sintomatologia ansiosa em idade pré-escolar. Porém, aprofundar a natureza destas associações é importante, devido à neuroplasticidade precoce (Hirshfeld-Becker & Biederman, 2002) e ao potencial para minimizar níveis de sofrimento e invalidação mais significativos (Rapee, 2002) que tornam a idade pré-escolar um período ótimo para intervir. A maioria dos estudos existentes analisou estas relações operacionalizando a IC como um constructo unidimensional. Shamir-Essahow et al. (2005) evidenciaram que as crianças, em idade pré-escolar, classificadas como muito inibidas (em laboratório), são percecionadas pelos pais como tendo níveis mais elevados de sintomatologia ansiosa, por comparação com as crianças classificadas como desinibidas. Com base em medidas de relato parental, Vreeke et al. (2013), e Fernandes, Santa-Rita, Martins e Faísca (2019) identificaram associações positivas entre a IC e os sintomas de ansiedade, que revelaram ser de maior magnitude para a ansiedade social.
Do nosso conhecimento, apenas Putnam e Stifter (2005) examinaram os problemas de internalização (em que se incluem a ansiedade) em diferentes subgrupos de crianças classificadas como inibidas, exuberantes e pouco reativas, com base numa situação de observação laboratorial. Este estudo mostrou que as crianças inibidas são percecionadas pelos pais como tendo mais problemas de internalização, por comparação com as crianças pouco reativas.
Assim, este estudo teve como objetivos (1) identificar diferentes perfis de comportamento inibido, numa amostra comunitária, de crianças em idade pré-escolar, com base numa medida multidimensional de relato parental, que avalia os contextos sociais e não-sociais em que este tipo de comportamento se manifesta; (2) comparar estes perfis no que se refere às características sociodemográficas das crianças, nomeadamente a idade, o sexo, a (in)existência de irmãos e a posição na fratria; e (3) comparar estes diferentes perfis no que se refere aos sintomas de ansiedade. Com base na evidência empírica anterior, espera-se encontrar três perfis de comportamento inibido, isto é, crianças com níveis elevados, médios e baixos de IC (H1). Devido à inconsistência dos estudos empíricos anteriores, não estabelecemos hipóteses relativamente à existência de diferenças entre os perfis de comportamento inibido, em função das características sociodemográficas. Espera-se, ainda, que as crianças com níveis elevados de IC apresentem mais sintomas de ansiedade, comparativamente com as crianças com níveis médios e baixos de IC, e que estas diferenças sejam de maior magnitude para a ansiedade social (H2).
Método
Participantes
Cento e oito (N=108) mães de crianças de idade pré-escolar, residentes na região da Grande Lisboa, participaram no estudo. Como critérios de inclusão, foi tido em conta: (1) idade da criança (3-6 anos); e (2) capacidade dos pais em ler e compreender o português. Foram excluídos os pais que identificaram a existência de um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo ou outra perturbação do desenvolvimento na criança. As mães tinham, em média, 37.84 anos (DP=4.79). A maioria das mães era casada/união de facto (n=93, 86%), tinha habilitações literárias superiores (n=81, 75%), e trabalhava (n=99, 92%). A idade das crianças variava entre os 36 e os 72 meses (M=53.79, DP=10.84). Cinquenta e oito crianças (54%) das crianças eram de sexo masculino. A maioria das crianças era primogénita (n=72, 67%) e tinha irmãos (n=72, 67%).
Instrumentos
Behavioral Inhibition Questionnaire (BIQ) - Versão Pais (Bishop et al., 2003; Fernandes et al., 2017): Este questionário de autorresposta, é composto por 30 itens, que avalia a perceção das figuras parentais acerca da frequência de IC da criança, em seis contextos, subdivididos em dois domínios: novidade social (adultos, pares e situações de desempenho), e novidade situacional (situações desconhecidas, separação e desafios físicos). Para cada item, é solicitado aos pais para responderem numa escala de Likert de 7 pontos, variando de 1 (Quase Nunca) a 7 (Quase Sempre). Os resultados parciais de cada uma das subescalas (referente aos seis contextos), e para a escala total calculam-se pela média das respostas aos itens. Valores médios mais elevados indicam que os pais percecionam uma maior frequência de IC nos diferentes contextos considerados. Os estudos psicométricos nacionais indicam uma boa consistência interna da escala (α=.91, para o score total). Na presente amostra, os valores de alfa de Cronbach variaram entre .66 (Desafios Físicos) e .89 (Situações Novas).
Preschool Anxiety Questionnaire (PAS) - Versão Pais (Almeida & Viana, 2013; Spence et al., 2001): Este questionário, composto por 28 itens, avalia a perceção das figuras parentais acerca da presença de problemas relacionados com cinco tipos de perturbações de ansiedade: ansiedade generalizada, ansiedade social, ansiedade de separação, medo de dano físico e perturbação obsessivo-compulsiva. Seis itens adicionais avaliam a presença de sintomas de perturbação de stress pós-traumático. A resposta a cada item é dada numa escala tipo Likert de 4 pontos, variando de 0 (Nunca) a 4 (Sempre). Os resultados parciais e o resultado global calculam-se pelo somatório das respostas aos itens. Resultados global e parciais mais elevados indicam que os pais percecionam um maior número de sintomas de ansiedade na criança. Os estudos psicométricos nacionais indicam a boa consistência interna do score total da escala (α=.88) e a consistência interna satisfatória das subescalas, variando desde .63 (perturbação obsessivo-compulsiva) a .73 (medo do dano físico). Neste estudo, utilizamos apenas as subescalas de ansiedade generalizada, ansiedade social, ansiedade de separação e medo de dano físico que foram identificados como os sintomas de ansiedade mais comuns em idade pré-escolar (Whalen et al., 2017). Na presente amostra, os valores de alfa de Cronbach variaram entre .66 (Medo de Danos) e .85 (Ansiedade Social).
Procedimento
Este estudo enquadra-se num projeto de investigação, aprovado pela Comissão de Ética do ISPA - Instituto Universitário. A recolha de dados decorreu entre janeiro de 2018 e abril de 2020, no âmbito do procedimento online utilizado para o despiste de crianças elegíveis para integrar um programa de intervenção dirigido à IC (n=50, 46%), presencialmente num jardim-de-infância de Lisboa (n=21, 20%), e através de um procedimento complementar de recolha de dados online em amostra comunitária (n=37, 34%), devido às restrições impostas pela pandemia de covid-19.
Em todos os procedimentos, as mães foram informadas, por escrito, dos objetivos do estudo e do carácter voluntário e confidencial da participação. Após a obtenção do seu consentimento informado, as participantes foram convidadas a preencher os questionários de autorresposta.
Análise de dados
O tratamento estatístico dos dados foi realizado com o IBM SPSS Statistics, versão 25. Para a caracterização sociodemográfica dos participantes, foram utilizadas estatísticas descritivas: médias e desvios-padrões para as variáveis contínuas; frequências e percentagens para as variáveis categoriais.
No que se refere às análises preliminares, a comparação das características sociodemográficas, da IC e dos sintomas de ansiedade das crianças recrutadas através do procedimento de despiste para o programa de intervenção, do procedimento presencial e do procedimento online foi explorada com recurso a ANOVAs (para as variáveis contínuas), seguidas de testes a posteriori com correções de Bonferonni e a testes de qui-quadrado (para as variáveis nominais).
A identificação dos diferentes perfis de crianças, com base nas dimensões de comportamentos de inibição foi realizada através de um procedimento de agrupamento composto por duas fases (Hair & Black, 2000). Foi conduzida uma análise de clusters hierárquica para obter a solução inicial, utilizando a distância euclidiana para avaliar a distância entre as observações individuais e o método de Ward para constituir os clusters. A solução foi selecionada com base nas distâncias reescalonadas no dendograma da análise de clusters hierárquica, na percentagem de mudança em cada passo da análise de clusters e em critérios concetuais. De seguida, foi aplicado um método de agrupamento não-hierárquico (k-means) para otimizar a distribuição dos participantes em cada cluster.
A comparação dos diferentes perfis de crianças identificados no que se refere às características sociodemográficas foi realizado com base em testes t de Student (para as variáveis contínuas) e testes de qui-quadrado (para as variáveis nominais).
Devido à violação da homogeneidade da matriz de covariâncias avaliada através do teste de Box, foi conduzida uma MANOVA não-paramétrica (Marôco, 2018) para examinar a existência de diferenças entre os perfis de crianças identificados ao nível das dimensões de comportamentos de inibição e nas dimensões de sintomatologia ansiosa. Na presença de um efeito multivariado, foram conduzidas ANOVAs de Kruskal-Wallis para averiguar as dimensões de comportamentos de inibição e de sintomas de ansiedade em que são observadas diferenças estatisticamente significativas entre os perfis identificados. O nível de significância considerado foi p<.05.
Resultados
Análises preliminares
Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre as crianças recrutadas através do procedimento de despiste para o programa de intervenção, do procedimento presencial e do procedimento online, no que se refere à idade (F=1.46, p=.23), ao sexo (χ 2 =0.95, p=.62) da criança e ao score total de sintomas de ansiedade (F=2.45, p=.09). Porém, as crianças recrutadas através dos diferentes tipos de procedimentos distinguiram-se significativamente no que se refere ao score total de IC (F=22.96, p<.001). Os testes a posteriori com correções de Bonferonni revelaram que as crianças recrutadas no âmbito dos procedimentos de despiste para o programa de intervenção apresentaram scores globais de IC significativamente mais elevados por comparação com as crianças recrutadas através dos procedimentos presencial (p<.001) e online (p<.001).
Identificação dos diferentes perfis de crianças
Foram identificados dois perfis de crianças, com base nas dimensões de IC: Perfil 1 - Crianças com Níveis Elevados de Inibição (n=47); e Perfil 2 - Crianças com Níveis Médios de Inibição (n=61).
Comparação das características sociodemográficas dos perfis identificados
Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre os perfis em função do sexo (χ 2 =0.01, p=.54), da idade (t=1.41, p=.16), da posição na fratria (χ 2 =0.30, p=.58) e da (in)existência de irmãos (χ 2 =0.01, p=.92).
Comparação dos comportamentos de IC dos perfis identificados
A MANOVA não-paramétrica revelou a presença de um efeito multivariado significativo entre os dois perfis de crianças quanto às dimensões de IC, Pillai’s Trace=0.96, χ 2 (6)=102.72, p<.001. A Tabela 1 mostra que as ANOVAs de Kruskal-Wallis subsequentes revelaram a existência de diferenças estatisticamente significativas entre as Crianças com Níveis Elevados de Inibição (Perfil 1) e as Crianças com Níveis Médios de Inibição (Perfil 2) em todas as dimensões de IC. Especificamente, as Crianças com Níveis Elevados de Inibição (Perfil 1) evidenciaram níveis significativamente mais elevados nas dimensões de adultos, pares, performance, situações novas, separação e desafios físicos por comparação com as Crianças com Níveis Médios de Inibição (Perfil 2).
Porém, a magnitude das diferenças entre os dois perfis revelou ser maior para as dimensões de separação e pares.
Comparação da sintomatologia ansiosa dos perfis identificados
A MANOVA não-paramétrica evidenciou a presença de um efeito multivariado significativo entre os dois perfis de crianças no que se refere às dimensões dos sintomas de ansiedade, Pillai’s Trace=0.90, χ 2 (4)=96.3, p<.001. A Tabela 2 mostra que as ANOVAs de Kruskal-Wallis revelaram a existência de diferenças estatisticamente significativas entre as Crianças com Níveis Elevados de Inibição (Perfil 1) e as Crianças com Níveis Médios de Inibição (Perfil 2) nas dimensões de sintomas de ansiedade geral, de ansiedade social e de medo de danos. Especificamente, as Crianças com Níveis Elevados de Inibição evidenciaram mais sintomas de ansiedade geral, ansiedade social e medo de danos comparativamente com as Crianças com Níveis Médios de Inibição.
A magnitude das diferenças observadas entre os dois perfis foi maior para a ansiedade social.
Discussão
A identificação de diferentes subgrupos de crianças inibidas em idade pré-escolar pode ajudar a melhor compreender trajetórias (in)adaptativas ao longo do desenvolvimento (Fox et al., 2005). Assim, o presente estudo teve como objetivos identificar diferentes perfis de comportamento inibido e comparar os sintomas de ansiedade que lhe estão associados, numa amostra de crianças em idade pré-escolar, com base nos relatos maternos. Os resultados obtidos corroboram parcialmente a nossa primeira hipótese de investigação (H1), na medida em que foram identificados dois perfis de crianças - crianças com níveis elevados e médios de IC. Por outro lado, os nossos resultados foram consistentes com a nossa segunda hipótese de investigação (H2), mostrando que as crianças com níveis elevados de IC apresentam mais sintomas de ansiedade generalizada, ansiedade social e relacionados com o medo de danos, comparativamente com as crianças com níveis médios de IC. A magnitude das diferenças entre os dois perfis de crianças foi mais elevada para os sintomas de ansiedade social.
Contrariamente aos estudos de Putnam e Stifter (2005) e de Dollar e colaboradores (2017), não identificámos um terceiro subgrupo de crianças, caracterizado por níveis reduzidos de retraimento, medo e evitamento perante a exposição a contextos sociais e não-sociais. A investigação anterior sobre as perceções maternas acerca do temperamento das crianças conduzida com base em medidas gerais também evidenciou inconsistências quanto ao número de perfis identificados (Garstein et al., 2017). Estas diferenças em relação aos estudos anteriores podem ser explicadas com base em dois fatores. Em primeiro lugar, o nosso estudo envolveu crianças mais velhas (54 meses) por comparação com os estudos anteriores (25 e 42 meses) que procuraram identificar diferentes perfis de comportamento inibido (Dollar et al., 2017; Putnam & Stifter, 2005). Segundo o modelo desenvolvimental e transacional (Rubin et al., 2009), é possível que as crianças mais velhas tenham sido mais expostas a influências familiares (sobreproteção parental) e sociais (exclusão pelos pares) negativas que contribuem para a manutenção e generalização da IC a vários contextos. Além da composição etária, o enfoque do instrumento utilizado no nosso estudo em dimensões de funcionamento negativo pode ter contribuído para que não nos fosse possível identificar um subgrupo de crianças tradicionalmente descritas como exuberantes (Dollar et al., 2017; Putnam & Stifter, 2005).
Apesar da divergência quanto ao número, observámos semelhanças com os estudos anteriores relativamente à natureza dos dois perfis de crianças identificados (Dollar et al., 2017; Putnam & Stifter, 2005). Estes subgrupos de crianças revelaram distinguir-se quanto às manifestações de IC em todos os contextos sociais e não-sociais considerados.
Por um lado, o subgrupo de crianças com níveis elevados de IC percebida pelas mães (Perfil 1) evidenciou níveis mais elevados de retraimento, medo e evitamento perante a exposição, quer a contextos sociais (adultos, pares, situações de desempenho), quer a contextos não-sociais (situações novas, separação dos cuidadores, desafios físicos com risco mínimo), por comparação com o subgrupo de crianças com níveis médios de IC. Este primeiro subgrupo de crianças apresenta características semelhantes às descritas nos estudos laboratoriais clássicos liderados por Kagan, nomeadamente um maior tempo de latência na interação com adultos e a inibição acentuada perante pessoas ou objetos desconhecidos (Zentner & Bates, 2008). Por outro lado, o segundo subgrupo de crianças evidenciou níveis médios de retraimento, medo e evitamento percebidos pelas mães perante a exposição a contextos sociais (adultos, pares, situações de desempenho) e não-sociais (situações novas, separação dos cuidadores, desafios físicos com risco mínimo). Estes resultados sugerem que os níveis médios e elevados de retraimento, medo e evitamento perante a novidade social e situacional também são percecionados pelas mães nos contextos do dia-a-dia.
As semelhanças observadas entre os dois subgrupos de crianças ao nível das características sociodemográficas são consistentes com a investigação anterior que evidenciou a ausência de diferenças significativas ao nível das perceções parentais sobre o comportamento inibido, em função do sexo (Bishop et al., 2003), da idade (Broeren & Murris, 2010; Mernick et al., 2018) e da posição da criança na fratria (Graham & Coplan, 2012).
Apesar de terem sido identificadas diferenças entre as crianças com níveis elevados e médios de IC em todos os domínios sociais e não-sociais, a magnitude destas diferenças revelou ser maior em relação à exposição a situações de separação no jardim-de-infância e aos pares. Estes resultados podem ter sido influenciados pelo facto de o informador no nosso estudo ser a mãe. De facto, as mães continuam a ser as principais responsáveis pela prestação de cuidados das crianças que implicam a interação direta com elas e a organização das suas rotinas (Monteiro et al., 2010, 2019). Assim, é possível que as mães estejam particularmente propensas a detetar os sinais de IC nas situações de separação no jardim-de-infância. Por sua vez, a magnitude mais acentuada das diferenças entre as crianças com níveis elevados e médios de IC na dimensão de pares pode, em parte, relacionar-se com a maior tendência feminina para valorizar comportamentos de afiliação (Rose & Smith, 2009). Assim, os nossos resultados espelham as perceções das mães acerca da IC dos seus filhos, que podem ser influenciadas por fatores individuais, familiares e socioculturais. Estas múltiplas influências devem ser investigadas em estudos futuros.
Os nossos resultados são consistentes com os estudos anteriores que revelaram a existência de associações positivas entre a IC e a sintomatologia ansiosa (Shamir-Essahow et al., 2005), associações essas que revelaram ser de maior magnitude para a ansiedade social (Fernandes et al., 2019; Vreeke et al., 2013). Embora conduzido numa amostra de crianças mais novas, estes resultados assemelham-se também aos encontrados por Putnam e Stifter (2005) que evidenciaram que as crianças identificadas como tendo um perfil inibido com base em observações laboratoriais apresentam mais problemas de internalização (incluindo problemas de ansiedade) por comparação com as crianças pertencentes a outros perfis.
As associações de maior magnitude entre a IC na primeira infância e a ansiedade social foram igualmente observadas em investigações longitudinais, sistematizadas na meta-análise de Sandstrom e colaboradores (2020). De acordo com esta meta-análise, estas associações podem ser explicadas por vários fatores, nomeadamente a existência de uma vulnerabilidade genética comum e de mais semelhanças entre a IC e a ansiedade social (i.e., timidez e evitamento social) do que com as outras perturbações de ansiedade, tais como a ansiedade generalizada (antecipação ansiosa excessiva de acontecimentos futuros) ou relacionada com medos de estímulos específicos (e.g., alturas ou insetos).
As associações mais fortes entre a IC e a sintomatologia de ansiedade social também podem ser compreendidas à luz do modelo transacional e desenvolvimental de Rubin e colaboradores (2009). De facto, a IC elevada em múltiplos contextos na primeira infância pode aumentar o risco de a criança evidenciar comportamentos de retirada social no grupo de pares. Este isolamento autoimposto no grupo de pares pode comprometer a aquisição de competências socioemocionais ajustadas à idade. Estas reduzidas competências socioemocionais podem desencadear respostas negativas por parte dos pares que contribuem para a manutenção da IC, para a internalização de autoperceções negativas e para o aumento do risco de desenvolver sintomas de ansiedade social.
Porém, os nossos resultados não demonstraram a existência de diferenças estatisticamente significativas entre as crianças com níveis elevados e médios de IC no que se refere aos sintomas de ansiedade de separação. Estes resultados podem ser explicados por diferentes fatores. Por um lado, o estudo dos perfis de comportamento inibido (combinação de múltiplas dimensões de IC) pode ter contribuído para que as associações da IC com os sintomas de ansiedade de separação se esbatessem. Por outro lado, a maioria das crianças da nossa amostra estava a frequentar o jardim-de-infância. Neste contexto, é possível que as crianças inibidas tenham mais oportunidades de exposição a situações de separação dos seus cuidadores. A exposição gradual e continuada às situações receadas é uma das estratégias empiricamente validadas e reconhecida como eficaz na intervenção com crianças inibidas em idade pré-escolar para reduzir a sintomatologia ansiosa (Chronis-Tuscano et al., 2015). Tendo em conta que o desenvolvimento é influenciado por múltiplas influências cumulativas e bidirecionais (Rubin et al., 2009), estes fatores contextuais podem ter contribuído para as semelhanças observadas nos sintomas de ansiedade de separação entre os subgrupos de crianças com níveis médios e elevados de IC.
Limitações e implicações
Em primeiro lugar, a dimensão, a composição (i.e., maioria das mães tinham habilitações superiores) e o recrutamento da amostra com base num procedimento de amostragem por conveniência (maioritariamente online) limitam a sua representatividade e a generalização dos resultados. Além disso, não podemos ignorar que 46% da nossa amostra foi recrutada no âmbito do despiste de IC elevada para integrar um programa de intervenção. As crianças recrutadas com base neste tipo de procedimento revelaram níveis globalmente mais elevados de IC por comparação com aquelas que foram recrutadas através dos procedimentos presencial e online. Tal pode ter conduzido a uma sobre-representação do primeiro perfil na nossa amostra e pode ter dificultado a identificação de um subgrupo de crianças com níveis mais reduzidos de IC. Em segundo lugar, o presente estudo assenta apenas nos relatos maternos em relação à IC e aos sintomas de ansiedade em idade pré-escolar, limitando os resultados à perspetiva de um único informador (mãe) e a um único método de recolha de dados (questionário de autorresposta). A consistência interna (<.70) da dimensão de desafios físicos (Behavioral Inhibition Questionnaire) e das dimensões de ansiedade de separação e medo de danos (Preschool Anxiety Questionnaire) exige uma interpretação cautelosa. Por último, este estudo baseia-se num delineamento transversal que não permite estabelecer relações de causalidade entre as variáveis sob estudo.
Como proposta de estudos futuros, sugerimos a replicação do estudo com uma amostra de maior dimensão, com base numa abordagem multimétodos (questionários de autorresposta, entrevistas, observações em contexto natural), multi-informadores (mãe, pai, educador, observadores treinados) e multidomínios (áreas de funcionamento negativo e de bom funcionamento). Sugerimos, ainda, a condução de estudos longitudinais que nos permitam compreender as trajetórias desenvolvimentais em termos da sua estabilidade ou mudança e examinar as múltiplas influências transacionais (familiares, sociais, do meio) que, de acordo com o modelo de Rubin e colaboradores (2009), podem atuar como fatores de risco ou de proteção para o desenvolvimento de sintomas de ansiedade futuros, nomeadamente de ansiedade social.
Do ponto de vista da prática clínica, os nossos resultados reforçam a necessidade de sinalizar e intervir precocemente junto das crianças que evidenciam níveis elevados de IC. Neste sentido e tendo em conta as múltiplas dimensões da IC em idade pré-escolar, torna-se essencial desenvolver programas de intervenção dirigidos aos vários contextos onde a criança se insere, envolvendo pais e educadores.