Introdução
O abuso sexual de crianças e jovens é considerada uma problemática de saúde pública, tendo em conta que se trata de uma forma de mau trato com forte impacto negativo - a nível físico, psicológico e/ou social (Amazarray & Koller, 1998; Bagley & King, 1992; Hall & Hall, 2012) - não apenas nas vítimas (a curto, médio e longo prazos), mas também nas suas famílias e na comunidade (Habigzang et al., 2005; Kendall-Tackett et al., 1993).
Apesar de não existir uma definição única de abuso sexual, de uma forma geral, a literatura define-o como qualquer tipo de interação entre uma criança e outra pessoa (i.e., um adulto ou outra criança ou jovem), com um cariz sexual, que pode incluir contacto físico (carícias, contacto sexual oral, penetração vaginal ou anal), ou não, envolvendo ainda comportamentos como o voyerismo, exibicionismo, assédio ou exposição a pornografia (Berlinen & Elliott, 2002; Cohen & Mannarino, 2000; Habigzang et al., 2005). A literatura aponta também para o facto do abuso sexual poder ocorrer em diversas condições, nomeadamente, quando existe diferença de idade ou maturidade entre a vítima e o agressor, quando o agressor tem uma posição de autoridade, confiança ou responsabilidade com a criança, ou quando os comportamentos sexuais ocorrem contra a vontade da criança, que é vítima de violência ou engano, com comportamentos de duplo significado (Butchart et al., 2006; Finkelhor, 1999; World Health Organization [WHO], 1999). Desta forma, a criança é envolvida numa atividade sexual para a qual não está preparada ou que não compreende totalmente, pelo que se considera que não tem capacidade para prestar um consentimento informado (Butchart et al., 2006; WHO, 1999).
Do ponto de vista legal (Capítulo V da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto), estes crimes englobam comportamentos que são cometidos contra vítimas menores de 14 anos de idade, assumindo-se que, em razão da idade, não têm maturidade nem capacidade de discernimento para poderem prestar um consentimento informado.
Os dados dos últimos anos estimam que uma em cada cinco crianças europeias são vítimas de abuso sexual antes de completar os 18 anos de idade (Council of Europe, 2015). Outros dados distinguem esta estimativa em função do sexo da vítima, sugerindo que quatro em 10 raparigas e um em cada seis a 10 rapazes serão vítimas de abuso sexual até atingir os 18 anos de idade. Na grande maioria das situações, o início do abuso sexual parece ocorrer em crianças com idades compreendidas entre os cinco e os oito anos de idade (Habigzang et al., 2005; Maria & Ornelas, 2010; National Child Traumatic Stress Network, 2009), sendo que alguns estudos apontam para uma faixa etária mais alargada, i.e., entre os cinco e os 12 anos (Arcari, 2016). Em Portugal, segundo dados dos relatórios Anuais de Segurança Interna [RASI] de 2015 e 2016 (considerando-se o intervalo dos zero aos 13 anos de idade), constata-se um aumento na percentagem de vítimas com idades compreendidas entre os oito e os 13 anos (61,5% e 61,1%, respetivamente) e entre os quatro e os sete anos (19,9% e 22%, respetivamente) (Sistema de Segurança Interna, 2016, 2017).
Em Abril de 2020 o número de denúncias (4,1 milhões) no quadro europeu quadruplicou, quando comparado com o número do ano anterior, pelo que o Concelho e Parlamento Europeus consideram prioritárias estratégias efetivas de combate face ao abuso sexual de crianças e jovens (Council of Europe, 2020).
Apesar do número de denúncias, o processo de revelação do abuso sexual por parte da criança/jovem é, muitas vezes, sucessivamente adiado, podendo mesmo não chegar a ocorrer (Martyniuk & Dworkin, 2011). De acordo com Habigzang e colaboradores (2005), a maioria das situações de abuso sexual na infância são apenas reveladas durante a adolescência. Sobre a dificuldade em revelar uma vivência sexualmente abusiva, a experiência de diversas emoções negativas parece estar correlacionada com este adiamento, especialmente quando a vítima mantém com o agressor uma relação de proximidade afetiva e familiaridade (McElvaney, 2013). Segundo a mesma autora, quando os pais/cuidadores ou outros adultos se sentem confortáveis em abordar esta temática, criando oportunidades e contextos facilitadores, a revelação tem maior probabilidade de ocorrer. Ao mesmo tempo, a criança/jovem precisa sentir que a revelação tem um objetivo, ou seja, um motivo para ocorrer, acreditando que poderá ser acreditada e protegida (ver também Jensen et al., 2005).
Considerando a dificuldade que os adultos têm em abordar esta temática e, simultaneamente, da criança conseguir revelar, é urgente apostar em estratégias de prevenção universal (National Sexual Violence Resource Center, 2011). A prevenção universal visa facultar aos indivíduos e/ou grupos, em geral, conhecimentos e competências necessárias para lidarem com o risco associado a uma dada problemática (Townsend, 2008; WHO, 1999).
Da revisão de literatura efetuada, constata-se que a maioria dos programas de prevenção são de natureza universal, de tipo psicoeducativo e têm como principais objetivos: facultar informação que visa a proteção da criança através do reconhecimento da problemática do abuso sexual (e.g., bons toques/maus toques; partes do corpo: privadas e outras; segredos bons/segredos maus); facultar ferramentas que visem diminuir a probabilidade de ocorrência de abuso (e.g., dizer sim/dizer não/procurar ajuda/contar a um adulto de confiança); saber identificar um conjunto de emoções associadas a uma eventual situação de abuso sexual (Pellai & Caranzano-Maitre, 2015).
Na maior parte dos programas, estas temáticas são dinamizadas através de estratégias que visam o envolvimento ativo das crianças (e.g., role-plays e discussão em grupo) (Brassard & Fiorvanti, 2015; Lauren’s Kids, 2017; Maria & Ornelas, 2010; Martyniuk & Dworkin, 2011), tendo em conta que a literatura refere que essas estratégias são mais eficazes para a consolidação de conhecimentos e competências (Davis & Gidycz, 2000).
Numa das meta-análises mais recentes, publicada em 2015, Walsh et al., mostram que os programas de prevenção do abuso sexual relevam um conjunto de benefícios na aquisição de comportamentos de proteção e no conhecimento adquirido pelas crianças. A participação em programas desta natureza não gera ansiedade ou medo, podendo potenciar situações de revelação, mas é necessária investigação longitudinal.
Com a criação da Diretiva Europeia 2011/92 do Parlamento Europeu relativa à luta contra o abuso sexual, a exploração de crianças e a pornografia infantil, para crianças com idades compreendidas entre os três e os sete anos de idade, o Conselho da Europa, no âmbito da Campanha “Uma em cada cinco”, elaborou um conjunto de materiais (livro, vídeo) para serem usados nos diferentes Estados membros - “Kiko e a mãozinha” - em ações e iniciativas que abordem esta problemática. Este material, apesar de relevante, foca-se apenas numa das temáticas abordadas pelos diferentes programas - bons toques/maus toques - e numa faixa etária reduzida.
Em Portugal são ainda escassos programas ou materiais que abordem especificamente a problemática do abuso sexual. Destaca-se o Projeto Integrado de Prevenção do Abuso Sexual [PIPAS], desenvolvido em 2004 pela Casa Pia de Lisboa, destinado a crianças desde os cinco anos de idade até à adolescência (16 anos), e que contém diversos materiais lúdicos para o desenvolvimento de competências emocionais e psicossexuais (Alvarez et al., 2010). Em concreto, foram construídos quatro materiais lúdicos em função de diferentes faixas etárias. Os temas abordados são: auto-conhecimento (corpo, imagem), identidade de género e respetivos papéis, o reconhecimento e comunicação de emoções, a noção de respeito e limites, a distinção de diferentes tipos de contacto físico, diferentes níveis da relação humana, conhecimentos sobre o processo de reprodução humana, métodos anticoncetivos, a compreensão do abuso sexual e processos de ajuda.
Mais recentemente, foram desenvolvidos dois materiais lúdicos de prevenção primária do abuso sexual: o jogo de tabuleiro “Vamos prevenir! As aventuras do Búzio e da Coral” (Agulhas et al., 2016), dirigido para crianças dos seis aos 10 anos de idade, e o livro de atividades “Picos e Avelã à descoberta da floresta do tesouro!” (Alexandre et al., 2017), com uma versão em tabuleiro gigante, destinado a crianças em idade pré-escolar.
“Vamos prevenir! As aventuras do Búzio e da Coral”
“Vamos prevenir! As aventuras do Búzio e da Coral” é um jogo de tabuleiro destinado a crianças dos seis aos 10 anos de idade. O jogo tem como objetivos gerais aumentar conhecimentos acerca do abuso sexual de crianças, promover o desenvolvimento de competências para saber identificar e gerir adequadamente este tipo de situações, bem como capacitar as crianças, pais/cuidadores e técnicos de diversas áreas para identificar e saber lidar com esta problemática (Agulhas et al., 2016).
Não abordando diretamente a problemática do abuso sexual, o jogo tem por base a temática do mar, existindo duas personagens principais, o Búzio e a Coral, que acompanham a criança ao longo de 84 atividades distribuídas por seis temas. Cinco destes temas são referidos pela literatura como sendo os mais relevantes no âmbito da prevenção desta problemática (e.g., Martyniuk & Dworkin, 2011): (1) “Corpo/Toques”; (2) “Emoções”; (3) “Dizer Sim/Dizer Não!”; (4) “Segredos”, e (5) “Pedir Ajuda”. A estes temas, e decorrente do pré-teste efetuado aos materiais (Figueiredo, 2015) acresce um sexto tema, sobre os riscos associados ao uso da “Internet”. Considerando o desenvolvimento gradual da criança, cada um dos temas engloba dois níveis de “Atividades” - atividades de nível I, mais simples, dirigidas a crianças que jogam pela primeira vez o jogo, e que ocorrem no Mar das Conchas, e atividades de nível II, mais complexas, a realizar apenas depois de a criança ter completado duas atividades de nível I de cada tema, e que ocorrem no Mar Turbulento. Por sua vez, as atividades são dinamizadas recorrendo a diferentes estratégias, enquadradas em quatro categorias: “Pintar/Desenhar”, “Mímica” (Davis & Gidycz, 2000), “Contar” e “Identificar” (Topping & Barron, 2009). Desta forma, obtém-se um conjunto de atividades, complementadas com alguns materiais de apoio (p. ex., “Cartão Dado das Emoções”, “Cartões Mapa do Tesouro”, “Cartas de Emoções”, “Cartas de Expressões”, “Cartas de Segredos” e “Cartas de Situações”). O jogo foi desenvolvido para ser jogado com um número máximo de quatro crianças e sempre com a presença de um adulto de confiança, que assume o papel de facilitador (e.g., cuidador, professor). A possibilidade de jogar em pequeno grupo parece ser facilitadora da capacidade de expressão, exposição e reflexão (Maria & Ornelas, 2010), na medida em que este é, ainda, um tema pouco abordado e que remete para questões mais íntimas.
Considerando pesquisas sobre a eficácia dos materiais desenvolvidos para crianças (Martyniuk & Dworkin, 2011), o jogo apresenta um conjunto de reforços positivos que vão sendo dados à criança à medida que vai jogando. Em concreto, por cada duas atividades realizadas por tema, a criança ganha pequenas “pedras preciosas” que coleciona no seu “saco do tesouro”. No total, a criança poderá ganhar 12 “pedras preciosas” (seis no “Mar das Conhas” e seis no “Mar Turbulento”).
Em suma, o jogo aqui descrito não é globalmente inovador quanto às temáticas nas quais procura investir, tendo em conta que se foca, precisamente, nos temas que a literatura mostra como sendo fundamentais no âmbito da prevenção universal do abuso sexual; procurou, no entanto, adicionar a temática da internet (perigos), pelo facto de ser um tema não incluído nos programas publicados e recomendado pelos especialistas participantes (Figueiredo, 2015).
O desenvolvimento de programas e/ou materiais deve ser acompanhada por uma avaliação de resultados (Bandeira et al., 2007). Grazina (2016) e Moita (2016) fizeram uma primeira análise sobre quais os benefícios do jogo “Vamos prevenir! As aventuras do Búzio e da Coral”. Mais concretamente, Grazina (2016) avaliou o os benefícios do jogo em 14 crianças e pais/cuidadores, enquanto Moita (2016) fez a avaliação com uma amostra de 15 crianças, que jogaram em situação de grupo. Foi aplicado um questionário de conhecimentos antes e no final de as crianças jogarem o jogo (desenho pré e pós teste). Em ambos os estudos, verificou-se que as crianças apresentavam mais conhecimentos acerca do abuso sexual na fase pós-teste, sobretudo no tema “Dizer Sim, Dizer Não”, embora, na maioria dos itens do questionário tivessem respondido corretamente logo no primeiro momento de avaliação. Apesar da dimensão exígua da amostra em ambos os estudos, os mesmos permitiram estudar o questionário que foi construído para o efeito e que foi aplicado nos momentos pré e pós-teste do estudo que aqui se apresenta.
O presente estudo visa, deste modo, dar continuidade aos estudos citados anteriormente tendo, assim, como objetivo avaliar em que medida o jogo de prevenção primária do abuso sexual, “Vamos prevenir! As aventuras do Búzio e da Coral” promove a aquisição de conhecimentos ligados às temáticas abordadas no mesmo: (1) “Corpo/Toques”; (2) “Emoções”; (3) “Dizer Sim/Dizer Não!”; (4) “Segredos”, (5) “Pedir Ajuda”, e “Internet”. Complementarmente, pretende averiguar-se qual a avaliação global que as crianças fazem do jogo.
Método
Para responder ao objetivo proposto, optou-se por um desenho pré e pós-teste, sem grupo de controlo (Frey, 2018).
Participantes
A amostra era constituída por 101 crianças; destas, 57.4% eram do sexo feminino, sendo omissa esta informação para quatro das crianças. As crianças apresentavam idades compreendidas entre os seis e os 10 anos de idade (M=8.14; DP=1.22) estando, assim, todas elas dentro do intervalo etário de participação no estudo. Frequentavam maioritariamente o 1.º ciclo do ensino básico, sendo a o 4.º ano de escolaridade o mais prevalente. Apenas duas crianças frequentavam o ensino pré-escolar e uma criança o 5.º ano de escolaridade.
Instrumentos
Questionário para Crianças. Foi desenvolvido um questionário de auto-relato para as crianças, baseado nos estudos de Grazina (2016) e Moita (2016). O questionário incluí 14 afirmações, que remetem para os vários temas que o jogo aborda: Três itens do tema “Dizer sim, Dizer não” (Item 2, “Eu posso dizer «não» a um adulto, se ele fizer alguma coisa que me faça sentir mal”; Item 10, “Tenho que obedecer sempre aos adultos”; Item 14, “Se alguém que está a tomar toma conta de mim disser que me deixa ir para a cama mais tarde mas, em troca, eu devo tomar banho com ele/a, é fixe”); dois itens do tema “Corpo/Toques” (Item 4, “Se alguém tocar nas partes privadas do meu corpo e isso for uma brincadeira (por exemplo, cócegas), não há problema”; Item 7, “Se alguém me tocar de uma forma que eu não gosto, mas essa pessoa disser que gosta de mim, então não há problema”); cinco itens do tema “Segredos” (Item 3, “Quando me sinto mal, devo guardar apenas para mim esses sentimentos”; Item 5, “Se uma pessoa de quem gosto muito pedir para eu tirar a roupa e para guardar segredo, devo guardá-lo; Item 8, “Acho que devo guardar sempre todos os segredos”; Item 9, “Se um adulto/alguém mais velho que eu conheço fizer alguma coisa que me faça sentir mal e pedir segredo, não devo guardar esse segredo”; Item 12, “Se alguém me mostrar imagens ou vídeos que não são para a minha idade e me pedir segredo, devo guardar esse segredo”); dois itens do tema “Pedir Ajuda” (Item 1, “Se me perder na rua ou noutro local, devo aceitar ajuda de qualquer pessoa”; Item 13, “Se for dormir a casa de um/a amigo/a e alguém me fizer alguma coisa de que eu não gosto, devo dizer «não» e contar a uma pessoa de confiança”); um item para o tema das “Emoções” (Item 3, “Quando me sinto mal, devo guardar apenas para mim esses sentimentos), e dois itens para o tema “Internet” (Item 6, “É bom fazer amigos pela internet e poder trocar informações pessoais entre nós (por exemplo, onde vivemos, em que escola andamos”; Item 11, “Posso marcar um encontro com alguém que apenas conheço através da Internet”). As crianças respondem a cada uma das afirmações numa escala de resposta de três pontos: Verdadeiro, Falso, Não Sei. Para cada um dos pontos da escala de resposta fez-se corresponder um emoji, por forma a tornar mais atrativa a forma de responder.
Dos 12 itens utilizados por Grazina (2016) e Moita (2016) e incluídos neste questionário, três foram alterados, nomeadamente, aqueles para os quais a quase totalidade (>90%) das crianças participantes nestes estudos respondeu de forma adequada no pré-teste (e.g., “O meu corpo tem partes privadas que estão protegidas pela roupa interior e que não podem ser tocadas por qualquer pessoa”). A reformulação dos itens foi feita com base na literatura e na experiência profissional das autoras deste artigo.
O questionário incluía, ainda, na parte inicial questões que procuraram recolher informação sociodemográfica como o sexo, data de nascimento, idade e ano de escolaridade que a criança frequentava.
Questionário de avaliação global do jogo. Foram construídas sete questões que procuraram avaliar, de uma forma geral, o interesse, dificuldades e avaliação geral do jogo (e.g., “Ficaste com dúvidas sobre algum tema? Qual/quais?”). As respostas eram dadas numa escala de Likert de 4 pontos (e.g., 0=“nenhum interesse” a 3=“interesse elevado”).
Procedimento
O procedimento de recolha de dados foi feito em 2017 e envolveu o contacto com Comissões de Proteção de Crianças e Jovens [CPCJ] de todo o país, com o apoio da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens [CNPDPCJ]. Esta entidade enviou os pedidos de participação, via e-mail, anexando os questionários a aplicar à criança (Questionário para Crianças, um exemplar aplicado em pré-teste, i.e., antes de jogarem o jogo, e um exemplar em pós-teste, i.e., depois de jogarem o jogo), uma ficha de caracterização geral para o técnico, a descrição do estudo com instruções para participação no mesmo, bem como o Consentimento Informado a dar aos pais/responsáveis legais e à criança1. A todo o momento, as investigadoras mostraram-se disponíveis para prestar quaisquer esclarecimentos adicionais, de modo a garantir que todos os participantes, quer técnicos, quer crianças, conheciam os procedimentos a adotar.
O jogo foi distribuído previamente por todas as CPCJ do país, pela CNPDPCJ. Este estudo teve recetividade em 31 CPCJ de Portugal Continental, sendo dinamizado em 91% das situações pelo psicólogo da respetiva comissão. Nas restantes situações, o jogo teve como adulto dinamizador um professor, um educador, um animador ou um técnico de serviço social. Tendo em conta o registo dos técnicos, o jogo foi jogado entre uma (35% das situações) a duas vezes (30%), sendo critério de inclusão incluir na amostra crianças que tivessem jogado o jogo até ao fim (i.e., ter feito 12 atividades de nível I e 12 atividades de nível II). Apesar desta diferença, em média, os técnicos reportaram ter jogado entre 50 minutos a duas horas com as crianças.
Em termos de procedimento de análise dos dados, foi criada uma base de dados no software estatístico SPSS-22. Cada um dos itens das duas versões do Questionário para crianças foi recodificado numa outra variável, por forma a perceber-se se a resposta dada pela criança era correta ou incorreta. Nas análises efetuadas foram assim analisadas as respostas corretas, incorretas e as respostas para as quais as crianças reponderam “não sei”.
Resultados
Avaliação global do jogo
Em termos gerais, as crianças avaliaram o jogo de forma muito positiva (M=2.86, DP=0.35), referindo terem tido bastante interesse ao jogar o jogo (M=2.75, DP=0.47), não considerando que o seu nível de dificuldade fosse elevado (M=0.61, DP=0.78). A duração do jogo foi considerada positiva pelas crianças (M=2.36, DP=0.78).
Avaliação de resultados
Tendo em conta a natureza das variáveis e o desenho do estudo recorreu-se ao teste McNemar (Marôco, 2011). Num primeiro momento comparou-se a categoria de respostas “não sei” com a categoria “correto/incorreto” e em ambos os momentos (pré e pós teste). Tal como se pode constatar pela Tabela 1, seis dos 14 pares de itens registaram percentagens superiores a 90% na categoria de resposta “correto/incorreto”, pelo que não se realizou o teste McNemar para estes mesmos pares.
Usando o teste McNemar para os restantes pares (i.e., oito pares) verifica-se que a percentagem de respostas na categoria “não sei” diminui significativamente em três dos oito pares de itens existentes para análise: “Item 2 - Eu posso dizer não... (pré-teste) & Eu posso dizer não... (pós-teste)”; “Item 5 - Tirar a roupa... (pré-teste) & Tirar a roupa... (pós-teste)”; “Item 7 - Tocar-me... (pré-teste) & Tocar-me... (pós-teste) (Tabela 2).
Comparando agora a categoria de respostas “correto” com a categoria de respostas “incorreto” e recorrendo ao teste McNemar, verifica-se que as respostas incorretas diminuem significativamente no pós-teste em três dos pares de itens [Item 8 - Guardar segredos... (pré-teste) & Guardar segredos... (pós-teste); Item 9 - Se um adulto... (pré-teste) & Se um adulto... (pós-teste); Item 10
- Tenho que obedecer... (pré-teste) & Tenho que obedecer... (pós-teste), sendo essa diminuição parcialmente significativa para outros dois itens (Item 7 - Tocar-me... (pré-teste) & Tocar-me... (pós-teste); Item 14 - Tomar banho... (pré-teste) & Tomar banho... (pós-teste)] (Tabela 3).
Discussão
A prevenção universal do abuso sexual é uma temática que tem merecido particular atenção pela comunidade científica, a nível internacional, em geral, e a nível europeu, em particular, acompanhando a Estratégia do Conselho da Europa sobre os Direitos da Criança (2016-2021) (Conselho da Europa, 2016) e as diretivas europeias anteriores, nomeadamente, a da Convenção de Lanzarote (2014) (Conselho da Europa, 2013). Em Portugal, surgiu recentemente o jogo de tabuleiro “As Aventuras do Búzio e da Coral” (Agulhas et al., 2016), pensado para crianças a frequentar o 1º ciclo, tendo em consideração que os dados apontam para uma maior prevalência do abuso sexual entre os oito e os 13 anos de idade (Sistema de Segurança Interna, 2016, 2017). Se, por um lado, a construção de materiais é fundamental, ajustando-os aos contextos onde estes são aplicados, por outro importa acentuar o papel que deve ser atribuído à avaliação dos seus impactos ou benefícios, tendo em conta que o objetivo consiste em analisar se os participantes demonstram, efetivamente, aumento de conhecimentos e a promoção de competências para lidar com a problemática do abuso sexual (Walsh et al., 2015). Paralelamente, a avaliação de impacto permite validar a eficácia dos materiais, para posterior disseminação (Butchart et al., 2006).
O objetivo do presente estudo consistiu, deste modo, em avaliar em que medida o jogo de tabuleiro “As Aventuras do Búzio e da Coral”, promove a aquisição de conhecimentos ligados às temáticas abordadas no mesmo: (1) “Corpo/Toques”; (2) “Emoções”; (3) “Dizer Sim/Dizer Não!”; (4) “Segredos”, (5) “Pedir Ajuda” e (6) Internet. Os resultados indicam uma maior certeza das respostas do pré-teste para o pós-teste e uma diminuição das respostas incorretas depois de jogado o jogo (pós-teste). Estes resultados vão na linha de outros estudos que mostram, por exemplo, que as crianças aumentam os seus conhecimentos sobre toques adequados e desadequados, bons segredos e maus segredos, e desenvolvem competências de segurança pessoal que as tornam menos vulneráveis a potenciais situações abusivas (Wurtele, 2002; Wurtele & Kenny, 2010).
Um conjunto de limitações deve ser, no entanto, apontado a este estudo: por um lado, o facto de a amostra aqui considerada poder não ser equivalente, tendo em conta que o procedimento de aplicação do jogo, bem como a escolha da amostra não ter sido controlada pelas investigadoras, pelo que em algumas situações sabe-se que a sua aplicação foi tida em conta em sessões de prevenção dinamizadas por elementos de CPCJ (com crianças que não pertencem a grupos em situação de perigo) mas, em outras situações, essa informação não foi facultada (podendo incluir crianças em situação de perigo). Por outro lado, e metodologicamente também, apesar de se ter levado a cabo um estudo com pré e pós-teste, em estudos futuros será aconselhável incluir um grupo controle ou grupo de comparação, tendo em conta que em termos de avaliação sumativa um estudo desta natureza permite tecer considerações mais robustas por ser um verdadeiro estudo de impacto (Biglan et al., 2003; Schewe & Bennett, 2002).
Paralelamente, sugere-se a possibilidade de condução de follow-up, para que se possa averiguar se os conhecimentos adquiridos se mantêm ao longo do tempo. Alguns estudos dão conta que, apesar de em estudos de follow-up a dois meses se verificar que as competências adquiridas decrescem ao fim desse período de tempo, os resultados parecem manter-se superiores relativamente aos obtidos no pré-teste (Hébert et al., 2001). Ainda, apesar da relevância dos materiais aqui descritos, em termos gerais, e considerando os resultados de um estudo de meta-análise de Rispens et al. (1997), verifica-se que as crianças tendem a esquecer o que aprenderam após longos intervalos de tempo, pelo que se sugere o desenvolvimento de programas de prevenção que implicam uma aprendizagem repetida ao longo de várias sessões, permitindo consolidar os conhecimentos adquiridos. O jogo aqui escrito deverá evoluir, assim, para um programa onde cada temática possa ser abordada em mais do que uma sessão, procurando aumentar a sua eficácia, não só ao nível da promoção de conhecimentos como de competências específicas que procurem proteger a criança de uma eventual situação de abuso sexual.
Tendo por base o Modelo Socio-Ecológico (e.g., Dahlberg & Krug, 2002) na prevenção universal do abuso sexual, cujo pressuposto é de que deve agir-se também sobre os contextos ou sistemas da criança, no sentido de reduzir a presença de fatores de risco e/ou de promover o desenvolvimento de fatores de proteção, em estudos futuros deverão ser também pensadas ações de sensibilização ou formação para cuidadores e profissionais sobre esta problemática. Recentemente, Hudson (2017) testou o impacto do programa “Stop it now! Wales” em cuidadores e profissionais. Os resultados indicam que os cuidadores reportam ter adquirido mais conhecimentos sobre o abuso sexual, tendo em conta a dificuldade de abordar esta problemática com as crianças; o medo inicial em abordar o tema foi ultrapassado considerando as vantagens do conhecimento adquirido sobre a temática (ver também Kenny, 2009). Por seu lado, os profissionais com experiência em proteção de crianças reportaram sentir-se mais confiantes sobre o seu modo de atuação perante eventuais situações de abuso e os profissionais sem essa experiência reportaram não só um aumento de conhecimentos como mudanças ao nível das suas práticas. Apesar do jogo aqui em estudo contemplar um manual para o adulto, importa, assim, contemplar uma avaliação dos seus benefícios também com os adultos que jogam com a criança. A prevenção universal do abuso sexual deve, assim, ser planeada de uma forma sistémica, envolvendo diferentes atores e contextos.