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Revista Portuguesa de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0870-9025

Rev. Port. Sau. Pub. vol.34 no.2 Lisboa jun. 2016

https://doi.org/10.1016/j.rpsp.2016.01.001 

ARTIGO ORIGINAL

 

Impacto das taxas moderadoras sobre a utilização de cuidados de saúde pediátricos: estudo aplicado a crianças em idade escolar na cidade de Coimbra

Impact of moderating fees on utilisation of paediatric health care: Study applied to school age children in the city of Coimbra

 

Carlota Quintal a, b, * , Helena Tavares a, Óscar Lourenço a, b

a Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

b Centro de Estudos e Investigação em Saúde, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

 

RESUMO

Este estudo pretende avaliar o impacto das taxas moderadoras na utilização de cuidados pediátricos e a perspetiva dos pais sobre fatores condicionadores da procura.

Foi construído um questionário; preenchido por pais de crianças entre 6‐18 anos. Usámos o modelo binomial negativo para avaliar os efeitos sobre utilização de cuidados.

A amostra inclui 203 crianças (109 isentas). Ser isento tem efeito positivo (negativo) na utilização por motivo doença (prevenção); rendimento e escolaridade dos pais têm efeitos mistos; tal como isento*rendimento – efeitos não significativos.

Pelos resultados obtidos, as taxas moderadoras não afetam a utilização de cuidados, questionando‐se a justificação para a sua existência.

Palavras‐chave: Taxas moderadoras. Risco moral. Cuidados pediátricos. Portugal.

 

ABSTRACT

This study aims to assess the impact of moderating fees on utilisation of paediatric health care and the perspectives of parents regarding factors that influence demand.

A questionnaire was developed; data was self‐reported by parents of children aged 6‐18. To assess the effects on utilisation we used the negative binomial model.

The sample includes 203 children (109 exempt). Being exempt has a positive (negative) impact on utilisation due to illness (prevention); income and parents’ education have mixed effects; the same happens to exempt*income–effects not significant.

Based on the results obtained, moderating fees do not affect utilisation, raising the question on their justification.

Keywords: Moderating fees. Moral hazard. Paediatric care. Portugal.

 

Introdução

As taxas moderadoras (TM) correspondem a pagamentos efetuados pelo consumidor no momento da utilização, cuja finalidade é, em teoria, moderar a procura, reduzindo o consumo excessivo de cuidados (fenómeno do risco moral). No entanto, ao introduzir um pagamento no momento da utilização, tal poderá constituir uma barreira ao acesso aos cuidados de saúde. Sendo a garantia deste acesso importante para toda a população, no caso da saúde infantil, a relevância vem reforçada pelo impacto que esta tem no longo prazo. A saúde infantil é um dos mais importantes fatores preditores do nível de saúde e da produtividade na vida adulta, e a saúde destes adultos irá por sua vez afetar o bem‐estar da geração seguinte1.

Em Portugal, na sequência da crise económico‐financeira e do Memorando de Entendimento assinado entre o governo português e o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, o regime das TM foi revisto em 2011, sendo reafirmado o seu papel de moderação da procura, negando‐se explicitamente qualquer relação com o financiamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS). As crianças até aos 12 anos (inclusive) foram incluídas no grupo dos isentos de pagamento. Assim, apesar de a partir de 2010 todos os menores de idade terem acesso à rede de cuidados pediátricos, para efeitos de isenção de TM só foram consideradas as crianças menores de 13 anos.

Perante esta situação, com o presente estudo pretende‐se avaliar o impacto das TM em idade pediátrica sobre a utilização de cuidados de saúde, bem como aferir a perceção dos pais sobre as taxas e sobre os fatores condicionadores da decisão de procurar cuidados para os seus filhos. Uma vez que a isenção do pagamento foi alargada a todos os menores em 2015, a pertinência dessa medida de política será discutida à luz da evidência obtida. Para atingir os objetivos propostos, foi construído e aplicado um questionário em 2 escolas do ensino público. Para estimar o impacto das taxas sobre a utilização, recorremos a um modelo de contagem (binomial negativo). Globalmente, não se encontrou evidência que sustente a existência de TM.

 

Taxas moderadoras: moderação versus barreira

As TM correspondem a pagamentos diretos realizados pelos consumidores no momento da utilização dos cuidados de saúde. O argumento teórico para a existência de TM nos serviços de saúde reside nas especificidades do setor da saúde, em concreto, na incerteza quanto ao momento e ao valor dos cuidados de saúde que cada consumidor necessita. É esta incerteza que está na origem dos seguros de saúde2. Os seguros de saúde devem aqui ser entendidos como um conceito amplo, no sentido da transferência de responsabilidades financeiras para terceiros e distribuição dos riscos individuais por um coletivo. Inclui, assim, o seguro público e o seguro privado. Em qualquer dos casos, a presença do seguro diminui o preço a pagar pelo consumidor, o que pode motivar uma alteração de comportamentos conduzindo a um aumento da procura de cuidados. Este fenómeno é designado por risco moral – «quando 2 partes se envolvem num contrato em condições de simetria de informação, mas posteriormente uma delas realiza uma ação, que não é passível de ser escrita num contrato, que influencia o valor da transação»3. O risco moral é também denominado por «abuso do segurado», sendo uma forma de comportamento racional já que o consumidor depreende que os seus benefícios são elevados, enquanto os custos de utilização se repartem por todos os restantes agentes4.

Na figura 1, ilustramos o efeito do risco moral e da introdução de uma TM no caso de um cosseguro (percentagem do preço paga pelo subscritor do seguro) de 0%. Nesta figura, temos no eixo vertical o preço, P, e no eixo horizontal a quantidade, Q (de consultas, por exemplo). Admite‐se uma procura elástica em que a quantidade procurada depende do preço e, por simplificação, admite‐se um custo marginal (Cmg) constante, ou seja, o custo de uma consulta adicional é sempre o mesmo. A função procura subjacente à curva da procura ilustrada na figura 1 pode ser representada pela expressão geral: QD = A‐BP; na figura 1, se o preço unitário for P1, a quantidade procurada será Q1. Esta é também a afetação eficiente de recursos, uma vez que o Cmg iguala o benefício marginal (isto é, o valor que o consumidor está disposto a pagar por cada consulta é exatamente igual ao seu custo). Contudo, se as consultas forem gratuitas, a quantidade procurada passa a ser A (QD = A, para P = 0). O excesso de procura (A‐Q1) é então identificado como risco moral.

 

 

A introdução de uma TM t (valor fixo por consulta) faz com que o valor suportado pelo consumidor passe a ser P + t e a expressão da função procura passa a ser QD = A‐Bt‐BP. Para cada nível de preços, a quantidade procurada é agora menor (a curva da procura desloca‐se paralelamente para a esquerda); para P = 0 a quantidade procurada passa a ser A‐Bt. A TM surge deste modo como um meio para mitigar as consequências do risco moral. Ou seja, o pagamento no momento de utilização faz com que a decisão de procurar cuidados tenha em linha de conta (pelo menos, em parte) os custos associados e não só os benefícios, pelo que o consumidor tende a moderar a procura, conduzindo à redução da utilização desnecessária de cuidados3.

O estudo empírico mais conhecido que procurou avaliar o fenómeno do risco moral é o RAND Health Insurance Experiment (RANDHIE), elaborado na década de 1970, nos Estados Unidos. Os participantes neste estudo foram distribuídos aleatoriamente por diferentes planos de seguros (com níveis variáveis de comparticipação nas despesas médicas) e acompanhados durante 5 anos para avaliar, nomeadamente, o efeito na utilização de cuidados médicos. Este estudo concluiu que a procura de cuidados médicos responde ao preço e estimou a elasticidade preço da procura em valores entre 0,1‐0,25. Esta experiência permitiu também analisar o impacto da partilha de custos na utilização de cuidados de saúde, sobre a procura de cuidados no grupo das crianças com idades inferior a 14 anos. Os resultados obtidos indicam que a utilização per capita dos serviços médicos foi um terço superior no grupo das crianças cujas famílias beneficiavam de um plano de cobertura total, relativamente ao grupo cujas famílias tinham um plano de cobertura que os obrigava ao pagamento de 95% das despesas médicas. Os resultados sugerem ainda que a utilização de serviços em regime de ambulatório diminuiu à medida que a partilha de custos aumentou, nomeadamente a probabilidade de consulta médica anual, despesas anuais totais e número de consultas anuais. Quando iam a uma consulta, as crianças do plano de cosseguro de 95% tinham menor probabilidade de consultar um pediatra (em oposição a um clínico geral) do que as crianças cujas famílias tinham taxas de cosseguro mais baixas5.

O RANDHIE parece assim fundamentar a utilização de taxas para moderar a procura, dada a sensibilidade desta última face a variações dos preços pagos pelo consumidor. Todavia, a evidência continua a ser relativamente escassa e algumas ressalvas são necessárias neste ponto. Por um lado, o raciocínio subjacente à análise da figura 1 assume que a iniciativa de procurar cuidados é do consumidor. Ora, no setor da saúde, devido à assimetria de informação e à relação de agência que se estabelece entre o consumidor e o prestador de cuidados, muitas vezes a decisão de procurar cuidados é influenciada ou mesmo determinada pelo prestador. Nestes casos, é discutível a introdução de taxas para moderar a procura. Por outro lado, há que distinguir entre custo monetário e custo económico. O consumo de cuidados médicos requer tempo e o tempo tem um custo de oportunidade3,6. Assim, em muitos casos no setor da saúde, o custo de oportunidade é mais relevante do que o custo monetário. Novamente, a introdução de taxas para moderar a procura nestas situações pode ser discutível pela sua eficácia reduzida. Acresce que não é fácil identificar claramente o que é consumo excessivo, frívolo ou ineficiente7,8. A própria iniciativa de procurar cuidados depende da apreciação que os consumidores fazem, quer sobre a sua necessidade, quer sobre o benefício dos cuidados a receber. As TM podem assim penalizar diferentemente, consoante o nível de literacia em saúde do utilizador9. Por fim, embora a génese das TM esteja assente na moderação da procura e não no financiamento dos sistemas de saúde, em muitos dos países atingidos pela recente crise económica e financeira assistiu‐se ao aumento dos copagamentos por parte dos utilizadores10. Esta tendência tem sido criticada precisamente por apresentar um fraco potencial para poupanças11, bem como porque a evidência sugere que a predisposição para procurar cuidados por parte de indivíduos com poucos recursos financeiros pode diminuir como consequência do aumento dos copagamentos10. Neste contexto, as TM poderão constituir uma barreira ao acesso a cuidados de saúde efetivos e necessários, ferindo os princípios da proporcionalidade dos pagamentos e da igualdade de acesso para igual necessidade12.

 

Taxas moderadoras em Portugal

Em Portugal, as TM estão previstas desde a criação do SNS, em 1979. A legislação posterior sempre foi mantendo a possibilidade destas taxas, nomeadamente a Lei de Bases da Saúde (Lei 48/90 de 24 de agosto), até que, em 1992, estas são efetivamente instituídas com o Decreto‐Lei n.° 54/92 de 11 de abril, aplicando‐se a meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica, prestação de cuidados de saúde nas consultas e nos serviços de urgência hospitalares e dos centros de saúde. Mais tarde, em 2006, são introduzidas taxas para internamento e atos cirúrgicos em regime de ambulatório, tendo sido contudo revogadas em 2009 (o que vai de encontro às reservas referidas na secção anterior sobre os casos em que a iniciativa da procura não parte do utilizador). O regime atual das TM, embora tendo já sofrido diversas alterações, data de 2011 (Decreto‐Lei n.° 113/2011, de 29 de novembro), altura em que foi revisto na sequência da assistência financeira internacional a Portugal e do Memorando de Entendimento. Este regime entrou em vigor em janeiro de 2012. Apesar das restrições financeiras e orçamentais em que Portugal se encontrava, a revisão do sistema de TM foi apresentada como uma «medida catalisadora da racionalização de recursos e do controlo da despesa, ao invés de uma medida de incremento de receita, atendendo não apenas à sua diminuta contribuição nos proveitos do SNS mas, acima de tudo, pelo carácter estruturante que as mesmas assumem na gestão, via moderação, dos recursos disponíveis, que são, por definição, escassos» (citando o próprio decreto). Efetivamente, em termos relativos, as TM não constituem uma fonte de financiamento relevante, sendo o seu peso no total das receitas do SNS pouco acima de 1%13.

Relativamente às crianças e adolescentes, é de notar que apenas em 2010 foi assegurado o acesso por parte de todos os utentes até aos 18 anos à rede de cuidados pediátricos do SNS, isto apesar de Portugal ter ratificado em 1990 a Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança, que a define como todo o ser humano com menos de 18 anos de idade, exceto se a lei nacional conferir a maioridade mais cedo. Não obstante este alargamento no acesso aos cuidados pediátricos em 2010, no ano seguinte, aquando da revisão do regime das TM, a isenção do seu pagamento foi mantida somente para «as crianças até aos 12 anos de idade, inclusive» (art. 4.°, alínea b). Apenas recentemente, com a última alteração ao regime das TM (Decreto‐Lei n.° 61/2015 de 22 de abril), surge então a isenção do pagamento para todos os utentes até aos 18 anos, com a substituição da anterior redação do art. 4.°, alínea b) por, simplesmente, «os menores». As justificações avançadas (no decreto) para esta alteração passam pela obrigatoriedade de consultas médicas dos 15‐18 anos estabelecida no Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil, e pelo estímulo indireto ao aumento da natalidade. O decreto refere ainda que a isenção se justifica com os objetivos de promover a saúde junto daqueles que têm mais a ganhar em adotar hábitos saudáveis, e de garantir a eliminação de quaisquer constrangimentos financeiros no seu acesso aos serviços de saúde assegurados pelo SNS. Deste modo, o argumento da moderação da procura parece ser ultrapassado pela importância estratégica reconhecida à saúde infantojuvenil e pela preocupação com eventuais barreiras ao acesso.

Muito embora estejam identificadas as vantagens e possíveis desvantagens das TM, patentes de resto nos sucessivos documentos legais, existe pouca evidência em Portugal sobre os efeitos das TM na procura de cuidados de saúde, quer para o caso da população em geral quer para o caso de crianças e adolescentes. Os dados que existem apontam no sentido de uma fraca moderação da procura exercida pelas TM, conforme a seguir se resume.

Barros et al.14 analisaram a utilização efetiva de urgências num hospital de uma grande cidade, antes e depois do aumento das TM em 2012, tendo concluído que não se verificou uma redução estatisticamente significativa da utilização de urgências em resultado do aumento das taxas. Com recurso a inquérito, estes autores apuraram ainda que nos casos em que os indivíduos se sentiram doentes e não recorreram a cuidados de saúde, 1% foi devido a falta de capacidade de pagamento da TM e 5,5% considerou que não valia a pena pagá‐la. Concluem assim que as TM não funcionaram como uma barreira importante ao acesso a cuidados de saúde necessários, embora tenham desencorajado o recurso a cuidados de saúde quando o seu valor para o cidadão era baixo.

Um estudo da Entidade Reguladora da Saúde15, com o mesmo ano de publicação que o anterior estudo, utilizando dados de uma amostra de prestadores de cuidados de saúde primários e de cuidados hospitalares do SNS, e comparando dados de atividade nos anos de 2011 e 2012, concluiu que nos cuidados hospitalares não ocorreu qualquer variação estatisticamente relevante na utilização de consultas de especialidade, enquanto a utilização de urgências caiu, mas de forma uniforme em utentes isentos e não isentos, o que não pode ser atribuído a um efeito de moderação promovido pelas taxas. Em relação aos cuidados de saúde primários, houve uma redução das consultas mas de forma mais acentuada nos utentes isentos (efeito que pode dever‐se à redução global do consumo de bens e serviços, sobretudo por parte dos isentos por insuficiência económica).

Especificamente em termos da procura de cuidados em idade pediátrica, um estudo de 2012, com base em dados a nível nacional de episódios de urgência e em dados da Unidade Local de Saúde de Matosinhos sobre episódios de urgência, consultas externas e consultas nos centros de saúde, concluiu que as TM, que na altura eram pagas a partir dos 13 anos, não tinham impacto na procura de cuidados pediátricos nos serviços de urgência16. Neste estudo não foi também detetada descontinuidade da procura de cuidados a partir dos 13 anos no caso das consultas externas, ao contrário do que sucedeu nos cuidados primários. A autora avança como explicações para estes resultados o facto de outros custos, como o tempo de espera e distância aos serviços, serem mais relevantes, sendo que nos cuidados primários, por tratar‐se de cuidados preventivos, seria expectável maior sensibilidade da procura ao preço.

 

Métodos

Construção e administração do questionário

Considerando os objetivos do presente estudo, foi construído um questionário para a recolha de informação, tendo sido aplicado em 2 escolas públicas da cidade de Coimbra, uma do ensino básico/secundário e outra apenas com o 1.° ciclo de ensino. A escolha destes locais para aplicação do questionário foi motivada pela intenção de obter uma amostra heterogénea quanto ao consumo de cuidados de saúde, ou seja, que podia ou não ter utilizado cuidados de saúde. Claramente, a seleção de respondentes em serviços de saúde, onde apenas incluiríamos os utilizadores de cuidados, não garantia a recolha de uma amostra heterogénea no consumo. Tal como referido noutro estudo14, a avaliação das situações em que deveria ter havido recurso a cuidados de saúde mas tal não sucedeu não é passível de ser realizada com recurso a dados de utilização dos serviços, justificando‐se deste modo também a opção pelo questionário. O período de recolha de dados foi 28 de abril a 12 de maio de 2014, altura em que as TM ainda se aplicavam a crianças a partir dos 13 anos. Foram distribuídos 465 questionários, tendo como critério o equilíbrio entre o número de crianças com idades até 13 anos (isentas de pagamento) e o número de crianças com idades igual ou superior a 13 anos. Considerada esta restrição, a escolha das turmas em particular para a aplicação dos questionários foi uma decisão do conselho diretivo, no caso da escola secundária; na escola básica, os questionários foram administrados a todas as turmas. O questionário destinava‐se a ser preenchido por pais/encarregados de educação de crianças com idades compreendidas entre 6‐18 anos, não isentos do pagamento de taxas por outro motivo que não a idade. Restrições de tempo e financeiras condicionaram o processo amostral, quer no número de unidades a incluir no estudo, quer na determinação de regras que garantissem a aleatoriedade absoluta da amostra. Uma consequência destes condicionamentos e do recurso a uma amostra de conveniência é a não inclusão de crianças residentes em meio rural.

Por ser um questionário distribuído em meio escolar, foi necessário cumprir os requisitos da Direção Geral de Educação para a autorização da sua aplicação, bem como, obter autorização dos conselhos pedagógicos das escolas.

Em relação à estrutura e secções do questionário, este era constituído por 3 grupos de questões: dados do filho/educando (idade, género e estado de saúde – conforme percecionado pelos pais); dados do agregado familiar (residência, composição do agregado, nível de escolaridade dos pais, seguro de saúde além do SNS e rendimento mensal líquido – por escalões) e utilização de cuidados de saúde. Esta última parte do questionário incluía perguntas sobre a utilização de cuidados médicos nos últimos 6 meses por motivo de doença (número de consultas, razões e se foi por iniciativa própria ou por indicação de terceiros – quem?). Nesta parte do questionário também se procurava saber se, perante uma situação de doença, não houve recurso a serviços de saúde e porquê. O questionário incluía ainda uma pergunta sobre o número de vezes que recorreu a serviços de saúde nos últimos 6 meses por motivos de prevenção/promoção de saúde. Numa outra pergunta, e tendo em conta que os custos associados ao consumo de cuidados médicos vão além do custo monetário, foram apresentados vários fatores (distância à unidade de saúde, tempo de espera, dificuldade no transporte, hora da ocorrência e TM), perguntando‐se qual o seu grau de importância na decisão de procurar cuidados, em caso de doença ligeira ou moderada. Para avaliar o grau de importância, usou‐se uma escala de Likert com 4 níveis: muito importante, importante, indiferente e pouco importante. Esta mesma escala foi também utilizada para perceber a importância das TM para a decisão de recorrer a um serviço de urgência hospitalar. A terceira secção do questionário incluía ainda uma pergunta que visava obter o grau de concordância com 4 afirmações sobre TM: i) as TM são necessárias para evitar a utilização excessiva de cuidados de saúde; ii) as TM são necessárias para ajudar a financiar o SNS; iii) para muitas pessoas as TM são uma barreira ao acesso a cuidados de saúde; iv) havendo TM, a isenção do pagamento deve ser alargada até aos 18 anos. Para captar o grau de concordância usou‐se uma escala de Likert com 5 pontos, desde o discordo plenamente até ao concordo plenamente. A pergunta iii) foi inspirada em estudo prévio14, no qual os autores constataram que os inquiridos respondiam de forma diferente, consoante se referissem ao seu próprio comportamento ou ao das outras pessoas.

Análise e variáveis

Relativamente à análise de dados, iniciámos com uma análise exploratória dos dados recorrendo à estatística descritiva. Após esta etapa descritiva, e para estimar o efeito de diversos fatores sobre a utilização de cuidados (em caso de doença e em caso de prevenção), especificámos um modelo econométrico que faz a regressão da utilização dos cuidados sobre um conjunto de variáveis. A utilização de cuidados de saúde foi medida recorrendo a 2 indicadores: 1) número de consultas médicas nos 6 meses anteriores à aplicação do questionário por motivos de doença e 2) número de vezes que recorreu a serviços de saúde nos 6 meses anteriores à aplicação do questionário por motivos de promoção de saúde (incluindo consultas programadas de vigilância de saúde infantil). A variável indicadora da utilização de cuidados no presente estudo é uma variável inteira e não negativa, pelo que as especificações econométricas da família dos modelos de contagem são adequadas neste contexto. O modelo binomial negativo é, de entre estes, um dos mais utilizados nas aplicações de economia da saúde17–19.

Do conjunto de regressores usados, temos particular interesse na variável «Isento» (impacto das TM) e na interação deste efeito com o rendimento (para averiguar se a influência das taxas na utilização depende de fatores socioeconómicos). A variável «Isento» é uma variável binária que vale um se a criança está isenta do pagamento de TM (idade < 13) e que vale 0 caso contrário. Claramente esta variável é exógena, pois a isenção depende de um limiar de idade não determinado pela criança nem pelos pais desta. Esta característica de exogeneidade assegura que o estimador do efeito isenção é consistente.

A Tabela 1 apresenta a designação e definição das variáveis explicativas utilizadas na análise de regressão.

 

 

Caracterização da amostra

A amostra final inclui 203 crianças; foram recolhidos 208 inquéritos, sendo que 5 foram excluídos por existir isenção do pagamento de TM por insuficiência económica – a taxa de resposta foi, assim, de 44,73%. Das 203 crianças, 82 (40,40%) são do sexo masculino, e 109 (53,70%) têm idade inferior a 13 anos. Em termos de isentos/não isentos obteve‐se uma amostra relativamente equilibrada, conforme pretendido. O estado de saúde, consoante percecionado pelos pais, é na maioria dos casos (86,2%) bom ou muito bom. No que diz respeito ao rendimento familiar, mais de metade da amostra (54,7%) apresenta um rendimento líquido mensal acima de 1.500 €. Tratam‐se também de famílias residentes sobretudo em ambiente citadino (87,7%) e com elevado nível de escolaridade (cerca de metade dos pais completaram um nível de ensino superior). Maioritariamente, os agregados incluem uma (41,9%) ou 2 (46,8%) crianças e, no que diz respeito ao seguro de saúde, repartem‐se essencialmente pelo SNS em exclusivo (38,9%) e pelo subsistema ADSE (43,3%), suplementarmente ao SNS.

 

Resultados

Utilização de cuidados de saúde

Em relação à utilização de cuidados de saúde, as razões apontadas para essa utilização foram essencialmente rotina (44,6% das respostas) e por motivo de doença súbita (41,6% dos casos). Os centros de saúde correspondem às estruturas mais utilizadas pelos pais (82,8%), seguidos dos hospitais públicos (12,8%). A decisão de procurar cuidados foi maioritariamente por iniciativa própria (74,9%).

Especificamente em termos de utilização de cuidados nos últimos 6 meses por situação de doença, 82,76% dos pais referiram que utilizaram cuidados de saúde (39,4% correspondem a uma utilização apenas, sendo a média 2 vezes e o desvio padrão 2,12). A figura 2 apresenta os utilizadores por idades, não se visualizando nesta análise diferenças entre a utilização por crianças com menos e mais de 13 anos.

 

 

No caso da utilização de cuidados preventivos, a média obtida foi 1,49, sendo o desvio padrão 1,86. Conforme mencionado atrás16, pela sua natureza, esta utilização pode ser mais influenciada pelo preço. Apresenta‐se por isso na figura 3 a distribuição, por grupos etários, das crianças que não utilizaram cuidados de saúde por motivo de prevenção. Também nesta situação não sobressai um padrão de (não) utilização face ao ponto de corte dos 13 anos.

 

 

Como referido anteriormente, a decisão de procurar cuidados de saúde depende de diversos fatores, monetários e não monetários. A figura 4 mostra a importância que cada fator tem para os pais no momento em que decidem procurar, ou não, cuidados de saúde para os seus filhos. Para 3 quartos dos pais, a expetativa quanto ao tempo de espera é importante ou muito importante para esta decisão. Este é, de resto, o fator que reúne maior percentagem de respostas nos 2 níveis de importância mais elevados.

 

 

Como mostra a figura 4, e tendo em conta a percentagem de respostas nas categorias «importante» ou «muito importante», a seguir ao tempo de espera vem a distância à unidade de saúde, depois a hora da ocorrência e em quarto surgem, então, as TM. Em último lugar (com menor percentagem de respostas), temos as dificuldades de transporte. Como se constata, a importância atribuída às TM não se destaca, pelo contrário, face aos outros fatores potencialmente condicionadores da procura. Por outro lado, apesar de se tratar de uma amostra de crianças que vivem principalmente na cidade, metade dos pais consideram ainda assim a distância à unidade de saúde como um fator relevante. Focando especificamente no caso de um serviço de urgência hospitalar, a percentagem de pais que consideraram as taxas como importantes ou muito importantes para a decisão de procurar cuidados foi superior (53,17%).

Perante a pergunta: «Nos últimos 6 meses houve alguma situação em que estando o seu filho doente não procurou cuidados de saúde?», 37 respondentes (18,2%) referiram que sim, sendo que a maioria destes (73%) optou por medicar a criança por iniciativa própria e 21,6% esperou que o estado de saúde melhorasse.

Quanto aos resultados da análise de regressão, a Tabela 2 mostra o impacto das variáveis explicativas sobre a utilização, quer por motivo de doença súbita, quer por motivo de promoção de saúde.

 

 

A principal variável de interesse, isento, apresenta um efeito positivo sobre a utilização no caso de doença e um efeito negativo no caso de prevenção; contudo, em nenhuma situação o efeito é estatisticamente significativo. O rendimento, tal como a interação entre isento e rendimento, surgem com efeitos mistos e sem significância estatística. Em termos da escolaridade da mãe, possuir um nível do ensino básico ou secundário, comparado com ensino superior, parece ter impacto positivo na utilização por motivo de doença súbita; já no caso de prevenção, temos um efeito positivo e outro negativo. Todavia, tal como em todas as variáveis anteriores, os efeitos não são estatisticamente significativos. Por fim, o estado de saúde bom ou muito bom tem impacto negativo sobre a utilização, sendo significativo no caso da utilização devido a doença.

Perceções dos pais sobre as taxas moderadoras

A última parte do questionário procurava saber a opinião dos pais sobre o papel das TM. A figura 5 ilustra as respostas obtidas.

 

 

O papel moderador das taxas divide os pais, com 42,8% a concordar ou concordar plenamente que as taxas são necessárias para esse fim, existindo exatamente a mesma percentagem de pais com a opinião contrária. Já no que diz respeito ao papel de financiamento, existe uma maioria de pais que vê as taxas com esse desempenho e muito menos discordam que as taxas servem para financiar o SNS. Apesar de apenas 41% dos pais terem considerado as TM como um fator importante ou muito importante para a decisão de procurar cuidados (conforme figura 4), uma esmagadora maioria (89,1% – figura 5) vê as taxas como uma barreira para muitas pessoas. Também a maioria concorda com o alargamento da isenção até aos 18 anos.

 

Discussão

Com base nos resultados obtidos neste estudo, a procura de cuidados de saúde partiu sobretudo da iniciativa própria dos pais, o que traduz um contexto propício à aplicação de taxas com fins de moderação. No entanto, não se encontrou evidência de um comportamento distinto no grupo dos pagantes, comparado com os isentos. Adicionalmente, este resultado parece não ser sensível ao rendimento. Na eventualidade das taxas constituírem uma barreira ao acesso a cuidados, esperar‐se‐ia que rendimentos mais baixos tivessem um impacto negativo sobre a utilização. Mas este não foi um resultado consistente, nem mesmo no caso de cuidados preventivos onde se admite maior sensibilidade ao preço. O mesmo ocorreu com as variáveis de interação: estas variáveis mostram o impacto do rendimento sobre o efeito da variável «isento». Assumindo que para rendimentos mais elevados o ser isento, ou não, tem pouca importância, o expectável seria que em rendimentos baixos o efeito da isenção fosse reforçado. Tal não sucedeu. Estes resultados poderão ter sido condicionados pelo tamanho e composição da amostra, com uma sobre representação de famílias com rendimentos elevados. Mas não é de excluir a possibilidade dos pais, de facto, serem menos sensíveis ao custo monetário quando se trata dos filhos. Esta possibilidade foi também avançada no contexto do RANDHIE, onde se diz que os pais que se encontram numa situação de partilha de custos têm tendência a estar menos disponíveis para reduzir o nível de cuidados de saúde dos seus filhos do que o seu próprio. Comportamento este que é reforçado por questões sociais e de regulamentação como, por exemplo, a exigência das imunizações e a vigilância de saúde na idade escolar5. Por outro lado, tal como em Barros et al.14, poderão ainda existir diferenças entre as respostas sobre «nós» e «os outros». Esta hipótese explicaria as diferenças encontradas entre a importância das taxas para a decisão de procurar cuidados para os filhos e a opinião sobre o efeito barreira das taxas em geral e para «muitas pessoas».

Neste estudo também não encontrámos evidência de um efeito barreira relacionado com o nível de escolaridade (da mãe). Novamente, poderá dever‐se ao facto dos níveis de ensino superiores se encontrarem sobre representados na amostra. Tínhamos por objetivo expandir a amostra original, aplicando o questionário em escolas de concelhos menos urbanos; no entanto, o alargamento da isenção das TM para todos os menores anulou esta pretensão. Contudo, tendo em conta os resultados obtidos noutros estudos14–16, que apontam para uma fraca moderação da procura por parte das TM, é possível que os nossos resultados não se alterassem significativamente com uma amostra diferente. Acresce que outras condicionantes para além das TM influenciam a decisão de procurar cuidados (por exemplo, no caso de crianças residentes em meio rural, é admissível que a importância dos outros fatores como a distância ou a hora da ocorrência seja reforçada, mas nem tanto o papel das TM).

O estudo sofre assim das limitações decorrentes da amostra mas, por outro lado, constituiu uma janela de oportunidade para avaliar o impacto das TM na utilização de cuidados pediátricos, não sendo atualmente replicável.

Por fim, é importante salientar que, apesar de não se ter encontrado evidência de um impacto significativo das TM sobre a utilização de cuidados, a existência de taxas é suscetível de gerar iniquidades ao nível do financiamento, onerando mais quem tem menos rendimentos.

 

Conclusões

No presente estudo não se encontrou evidência de um efeito moderação das TM sobre a utilização de cuidados de saúde pediátricos, sugerindo que estas não cumpriam o papel que teoricamente justificam a sua aplicação. Por outro lado, não se encontrou evidência de um efeito barreira relacionado com o estatuto socioeconómico dos pais, sendo este um aspeto positivo. Assim, e considerando que as TM nunca foram assumidas com objetivos de financiamento do SNS (tal é dito explicitamente no Decreto‐Lei n.° 113/2011, de 29 de novembro), não se encontra justificação para a existência destas taxas. Em relação às perceções dos pais aferidas neste estudo, sobressaem as opiniões de que as taxas constituem uma barreira ao acesso para muitas pessoas e que a sua isenção devia ser alargada a todos os menores. O conjunto destes resultados, e ressalvando as limitações do estudo, suporta a decisão, implementada em 2015, de isentar das TM todos os menores, independentemente dos argumentos formalmente avançados no Decreto‐Lei n.° 61/2015 de 22 de abril e do seu fundamento, baseado, ou não, em evidência.

 

Referências bibliográficas

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Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

Autor para correspondência: qcarlota@fe.uc.pt

 

Recebido 22 de Julho de 2015  Aceito 9 de Janeiro de 2016