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Revista Portuguesa de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0870-9025

Rev. Port. Sau. Pub. vol.34 no.2 Lisboa jun. 2016

https://doi.org/10.1016/j.rpsp.2016.05.001 

ARTIGO ORIGINAL

 

Representações do suicídio na imprensa generalista portuguesa

Media reporting and coverage of suicide in Portuguese media

 

Rita Araújo a, *, Zara Pinto-Coelho b, Felisbela Lopes b

a Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Portugal

b Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Departamento de Ciências da Comunicação, Universidade do Minho, Portugal

 

RESUMO

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que ocorram cerca de um milhão de suicídios anualmente. A cobertura do suicídio em si mesma não promove comportamentos suicidas, mas sim o modo como é conduzida pelos media. Estes podem constituir-se como agentes ativos na prevenção do suicídio, pelo que importa conhecer a abordagem utilizada. As autoras irão proceder a uma análise das representações que os media fazem do suicídio, a partir dos textos publicados em 2013 em 6 jornais nacionais. Tendo como referência teórica o framing das notícias, recorremos às técnicas da análise crítica do discurso para olhar mais pormenorizadamente para estas notícias.

Palavras-chave: Suicídio. Media. Comunicação. Jornalismo. Saúde.

 

ABSTRACT

According to the World Health Organization (WHO) there are one million suicides every year worldwide. Although suicide media coverage does not promote suicidal behaviors, the way the phenomenon is portrayed by the media may have that impact. Media could have an active role in suicide prevention, and so it is important to understand their approach to this issue. We will analyze media's representations of suicide, through the news published in six Portuguese newspapers in 2013. Our theoretical framework is within the news framing, and we will apply critical discourse analysis tools in order to analyze suicide texts thoroughly.

Keywords: Suicide. Media. Communication. Journalism. Health.

 

Introdução

O ato de suicidar-se tem suscitado, ao longo dos tempos, um leque amplo de questões – conceptuais, morais, psicológicas, sociológicas, antropológicas, culturais – e de atitudes – glorificação, condenação, vilificação, angústia, simpatia, compaixão – não tendo nunca deixado de ser fonte de controvérsia. No entanto, na história dos países ocidentais, a configuração desse debate e a sua visibilidade e intensidade públicas não foram sempre idênticas. Em 2004, a Organização Mundial de Saúde (OMS), com base em estatísticas que indicavam um aumento das taxas de suicídio, identificou o suicídio como uma questão importante de saúde pública ao nível global. Atualmente, a importância do assunto é reconhecida politicamente em vários países, incluindo em Portugal, onde foi identificado como um problema de saúde pública prevenível nesse mesmo quadro de pensamento e de ação.

À semelhança do que acontece relativamente a outras questões assim enquadradas, os media, enquanto instituição, e os seus profissionais têm sido considerados como atores críticos na prevenção do suicídio, ora vistos como aliados cruciais dos programas de prevenção, ora como obstáculos ou mesmo inimigos, com críticas e denúncias em torno de um eventual poder de contágio de certos tipos de cobertura – informativa e ficcional – e de representações mediáticas sobre indivíduos especialmente vulneráveis e em circunstâncias particulares1–3. Importa, por isso, estudar as representações que os media fazem do suicídio.

É isso que nos propomos fazer neste artigo, a partir dos textos sobre suicídio publicados em 2013 nos jornais generalistas portugueses Expresso e Sol (semanários), Público, Jornal de Notícias (JN), Diário de Notícias (DN) e Correio da Manhã (diários). Apesar de, em número, não serem muitos os artigos noticiosos dedicados à problemática do suicídio (n = 30), importa conhecer os modos de abordagem que os jornalistas utilizam quando retratam este problema. Vamos, assim, olhar para os motivos de noticiabilidade por detrás das estórias sobre suicídio, tentando perceber qual o ângulo que mais motiva a construção destas notícias. Tendo como quadro teórico o framing das notícias, fazemos uma análise detalhada dos textos, de um ponto de vista discursivo e crítico4,5.

Este estudo de caso sobre a cobertura do suicídio insere-se numa investigação mais ampla, feita a partir de um projeto de doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/86634/2012) e que tem como objetivo perceber a mediatização da saúde na imprensa portuguesa.

 

Enquadramento teórico

O suicídio: retrato de um fenómeno

Uma vez que, neste artigo, olhamos para as representações do suicídio na imprensa generalista portuguesa, impõe-se explicar como tem sido abordado este fenómeno e qual a realidade que o envolve em Portugal. Os estudos que traçam a história do conhecimento científico ocidental sobre o suicídio e sobre o sujeito suicida6 permitem-nos compreender a complexidade envolvida na descrição e na explicação desta ação humana, bem como na questão relativa à forma de melhor agir face à mesma. As visões sobre a natureza do suicídio, ao defini-lo de uma determinada forma, permitem-nos julgar a adequação da aplicação do termo a condutas particulares. Mas isso não é tarefa fácil. O ato de matar-se está envolto num manto de emoções negativas e de tabus que fazem com que essas definições integrem frequentemente julgamentos morais, não se tratando, por isso, de descrições neutras desta ação7,8. Também é claro que a conceptualização do suicídio no mundo ocidental tem sido influenciada por crenças espirituais, culturais, científicas e médicas, e que estas 2 últimas são modeladas por forças sociais, tendo variado no tempo e no espaço9.

O século XIX e o início do século XX são apontados por vários autores6,7,10 como marcos relevantes na história do pensamento sobre o suicídio devido a vários fatores, a saber, a emergência da psiquiatria como disciplina autónoma, o estabelecimento do suicídio como um sintoma de doença ou desordem mental, e o trabalho de sociólogos onde se mostrou que o suicídio está ligado a forças coletivas e reflete males associados às mudanças sociais (e.g. anomia, alienação11), ou a motivos e circunstâncias individuais dependentes da estrutura social, crenças e costumes12.

Um e outro desenvolvimento estão na base da visão atual do suicídio como um ato humano involuntário e não deliberado, causado por forças sociais impessoais e/ou forças psicológicas10, visões que, de alguma forma, contribuíram para atenuar as sanções sociais e morais sobre o suicídio e a pessoa suicida13.

Para Battin14, o modelo médico, segundo o qual o suicídio é causado por processos patológicos internos ao indivíduo – e que por isso requer intervenção e tratamento especializado e profissional – continua a delimitar e a dominar nos dias de hoje o discurso público sobre a questão, fazendo com que as demais perspetivas, como por exemplo as filosóficas15, passem para segundo plano, ou sejam efetivamente desconsideradas16. No entanto, nas últimas 2 décadas, os progressos na tecnologia médica e a emergência de grupos de defesa dos interesses dos doentes parecem ter reaberto as discussões filosóficas em torno de 2 categorias particulares de morte – o suicídio assistido e a eutanásia7. A cobertura mediática continuada dada a vários casos de pessoas que reclamam o «direito de morrer», em virtude de um sofrimento físico irreversível e frequentemente terminal, tem levado a que o debate público ultrapasse o domínio privilegiado da medicina e ao que parece ser uma simpatia crescente com a causa. Todavia, a tendência para atitudes moralmente mais permissivas face aos casos de «suicídio racional» (em doença física, estados terminais ou dor crónica) não inclui os casos de pessoas com doença mental10.

Marsh6 argumenta que o suicídio e as ações suicidas são agora quase sempre explicadas por referência a desordens mentais individuais ou processos, uma condição que ele descreve como uma «patologia ontológica compulsiva». Neste quadro, o risco e a patologia são compreendidos com estando localizados no indivíduo. Embora atualmente o suicídio seja um objeto de estudo multidisciplinar, na verdade, a grande parte da investigação produzida nas 2 últimas décadas sobre o suicídio é de natureza empírica e estuda o «papel de causas prováveis e fatores de risco do comportamento suicida»9,17. Destacam-se, neste contexto, as investigações sobre a etiologia conduzidas no quadro de teorias psicológicas, neurobiológicas, da epidemiologia psiquiátrica e, mais recentemente, na genética comportamental9,18. Todos estes trabalhos acentuam os fatores de risco ao nível individual, um postulado em harmonia com o paradigma dominante na produção da saúde e na prevenção da doença19.

A OMS20 define o suicídio como o «ato de deliberadamente se matar a si mesmo» e inclui nos fatores de risco para o suicídio as perturbações mentais, como a depressão ou a esquizofrenia, o abuso de bebidas alcoólicas, e algumas doenças físicas, como perturbações neurológicas, cancro, e infeção por VIH-Sida. As estatísticas da OMS estimam que, anualmente, haja cerca de um milhão de suicídios no mundo.

No entanto, o fenómeno do suicídio poderá estar sub-representado e o problema «deverá ser bem mais grave na Europa, e muito particularmente em Portugal, do que atualmente reconhecido»21. Por contabilizar ficam, segundo os autores, as mortes por causa desconhecida e as mortes violentas de intenção indeterminada, para além de «suicídios mascarados», como as mortes por acidente ou por overdose. O Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, publicado pela Direção-Geral de Saúde (DGS), também refere que este se constitui como «um fenómeno reconhecidamente subdeclarado», por ser «uma morte fortemente estigmatizada por razões de ordem religiosa, sociocultural e política»22. Deste modo, e uma vez que os números oficiais não refletem a realidade, a DGS afirma que «a verdadeira dimensão do fenómeno é desconhecida».

No mesmo documento, lê-se que «desde que há registos oficiais de taxas de suicídio em Portugal, este tem-se caraterizado por predominar entre a população idosa e ser mais marcado na região sul».

O organismo responsável pela divulgação de estatísticas na União Europeia (EU), o EUROSTAT23, refere que, embora o suicídio não seja uma das principais causas de morte e os dados para alguns dos países-membros da UE possam estar sub-representados, geralmente considera-se que este é um indicador importante e que deve ser avaliado. Em média, lê-se, houve 9,4 mortes por 100.000 habitantes resultantes de suicídios nos 27 países da UE, no ano de 2010. Em Portugal, a média para 2010 foi de 8,2 suicídios por 100.000 habitantes, sendo que a taxa de suicídios é mais alta nos homens (13,5) do que nas mulheres (3,8). Quando olhamos para a distribuição do suicídio por faixas etárias, o grupo dos 85 ou mais anos concentra a taxa mais elevada (38,4), seguido do grupo dos indivíduos entre os 50-54 anos (13,1) e, por fim, aqueles dos 15-19 anos (2,5). Os dados relativos à média para 2010, quando comparados com os relativos a 1939, ano em que a taxa de suicídio atingiu o seu valor máximo no período compreendido entre 1902-2000 em Portugal, com 12,8 suicídios por 100.000 habitantes, é menor, mas se a compararmos com o valor de 5,1 óbitos por 100.000 habitantes no ano de 2000, poderemos perguntar-nos se estarão em causa as tendências de uma quebra generalizada no número e nas taxas de suicídio gerais e da população ativa verificada nos anos 9024.

Olhando para o problema tendo como referência a ética médica, o código deontológico da profissão refere que «ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia» (artigo 57°, n.° 2)25.

Os media e o suicídio: impacto e representação

A grande parte dos estudos sobre os media e o suicídio analisaram o impacto dos media no suicídio, nomeadamente se as notícias de suicídio podem conduzir à imitação. Os investigadores australianos Pirkis e Blood26 fizeram uma análise sistemática de 42 estudos deste tipo, concluindo que há uma associação causal entre as notícias de suicídios e o efeito de imitação. Adicionalmente, Gould et al.2 referem que a literatura comprova o impacto dos media no «contágio” dos suicídios», que pode ser entendido no âmbito do contágio comportamental, ou seja, uma situação na qual o comportamento se alastra rápida e espontaneamente num grupo2. Um outro estudo refere que as explicações para o contágio dos suicídios através da imprensa centram-se na capacidade que os media têm de chegar a vários segmentos da população, aumentando as hipóteses de que aqueles que estão vulneráveis ao suicídio sejam influenciados pela cobertura mediática27. Jane Pirkis afirma que o «efeito de Werther» é real e que as representações do suicídio nos media podem conduzir a comportamentos imitativos28. Estes estudos apresentam dados que sugerem que certas formas de apresentar e retratar o suicídio podem levar à imitação em indivíduos vulneráveis, mas não fornecem dados que comprovem realmente essa alegada ligação de causa e efeito. Além disso, os modelos teóricos que explicam como os media podem influenciar os comportamentos suicidas são escassos29. Aliás, como bem sabem os estudiosos de comunicação nos media, a chamada teoria hipodérmica dos efeitos é uma hipótese que peca pela excessiva simplificação de um fenómeno em tudo complexo como é o da influência dos media nos comportamentos individuais.

Para além dos estudos centrados no impacto e na influência que a cobertura mediática pode ter no comportamento suicida, há outros que se centram no tratamento que os media dão aos temas (suicídio e tentativas de suicídio), podendo incluir-se aqui uma preocupação com a dimensão ética desta cobertura29.

Um estudo desenvolvido na Nova Zelândia refere que, embora o suicídio geralmente tenha valor-notícia, as caraterísticas do suicídio relatadas nos media muitas vezes não são representativas dos suicídios na população30. O estudo em questão debruça-se sobre o framing das notícias sobre suicídio na Nova Zelândia, focando-se na forma como os suicídios relacionados com ambientes online são enquadrados pelos media. O grupo de investigadores conclui que o foco principal das notícias é a tecnologia online, e não o suicídio em si. A título de exemplo, um dos casos apresentados no artigo é o de um homem que comete suicídio ao mesmo tempo que é filmado por uma webcam, difundindo o conteúdo online.

Os mesmos autores declaram que os suicídios que mais atraem a atenção dos media são atípicos e fora do comum, embora sejam representados pelos media como típicos. Esta situação pode levar a uma falta de informação em relação a estórias de suicídio, bem como a uma banalização do assunto. Outro dos riscos em relação à mediatização do suicídio é a simplificação levada a cabo pelos media, que tendem a generalizar demasiado as causas do suicídio30. De facto, os media por vezes indicam como causa para o suicídio um único fator, como a crise financeira ou os divórcios – os autores sublinham que a causa mais comum para o suicídio é a doença mental, que geralmente é posta de lado pelos jornalistas.

Mas estes estudos, que se centram na extensão e na natureza da reportagem mediática sobre o suicídio, são em muito menor número31. Por isso mesmo, importa analisar o fenómeno nas notícias para perceber o tipo de representações que os media fazem do suicídio.

Para uma cobertura responsável do suicídio nos media

A OMS lançou, em 1999, o SUPRE, uma iniciativa mundial para a prevenção do suicídio. Como parte desse programa, publicou, em 2000, um guia dirigido a profissionais dos media32.

No guião da OMS pode ler-se que «noticiar o suicídio de uma forma apropriada, cuidadosa e potencialmente útil poderá prevenir trágicas perdas de vida por suicídio»32. Deste modo, a OMS entende que não é a cobertura do suicídio em si mesma que pode promover comportamentos suicidas, mas sim o modo como essa cobertura é conduzida pelos media. A OMS apresenta algumas pistas para os profissionais dos media, alertando para a interpretação cuidada e correta das estatísticas e o uso de fontes credíveis e autênticas. Apesar dos constrangimentos de tempo, lê-se, os comentários devem ser feitos com cuidado, bem como as generalizações. Em termos de recomendações concretas, a OMS considera que «a cobertura sensacionalista de suicídios deve ser evitada a todo o custo, particularmente quando está envolvida uma celebridade» e deve evitar-se a cobertura pormenorizada. Deste modo, «devem ser evitados os detalhes dos métodos utilizados e de como foram produzidos», e o jornalista deve ter cautela na cobertura, de forma a evitar a banalização do suicídio. A OMS realça a importância dos media enquanto agente ativo na prevenção do suicídio, publicando sinais de aviso de comportamentos suicidas e disponibilizando informação sobre a ajuda disponível. Os media devem ainda transmitir a mensagem «de que a depressão está geralmente associada ao comportamento suicidário e de que a depressão é uma doença tratável». O suicídio não deve ser referido pelos media como «bem-sucedido», antes como «consumado».

A autora australiana Jane Pirkis refere que a Austrália é um dos países com uma estratégia mais sistemática relativamente à prevenção do suicídio, tendo desenvolvido uma iniciativa chamada «Mindframe National Media Initiative»28, e destaca a necessidade de os profissionais da saúde mental e da prevenção do suicídio trabalharem em conjunto com os media. Um estudo de investigadores neozelandeses destaca o reconhecimento do suicídio como um problema de saúde pública na N ova Zelândia e os esforços desenvolvidos para o prevenir, nomeadamente a criação de guidelines para os media30.

Em Portugal, o livro de estilo da agência de notícias portuguesa refere que «a Lusa não noticia suicídios a não ser que a divulgação dessas ocorrências se revista de relevância pública»33. Nenhum outro manual de estilo dos jornais portugueses se refere em particular ao fenómeno do suicídio. No entanto, o Código Deontológico dos Jornalistas34 defende que o jornalista deve «proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor», devendo rejeitar qualquer tipo de sensacionalismo. Embora não haja referências diretas ao suicídio, existe um código implícito nas redações, segundo o qual deve haver cautela na cobertura de suicídios pelo receio de imitação.

O Plano Nacional para a Prevenção do Suicídio, publicado pela DGS para o quinquénio 2013-2017, refere também como objetivo a sensibilização dos media «para a necessidade de aplicação dos princípios definidos para a informação/descrição de comportamentos autolesivos e atos suicidas». Lê-se ainda que «os media podem ajudar ou dificultar na prevenção do suicídio, consoante promovam a educação pública ou aumentem a visibilidade do suicídio apresentando-o como uma solução para os problemas da vida»22.

Vários organismos internacionais desenvolveram recomendações para os jornalistas, aconselhando sempre uma cobertura «responsável» do suicídio. Isto implica ter atenção ao destaque dado à estória, à titulação sensacionalista e às descrições detalhadas do método seguido27. Os autores sublinham que o propósito destas recomendações não é «desencorajar a cobertura do suicídio», mas «aproveitar a oportunidade para educar os públicos para o tratamento e opções de ajuda», bem como «desfazer alguns mitos sobre o suicídio que possam desencorajar a procura de ajuda»27.

A teoria do framing: que ângulo para as notícias?

Estudar as representações que os media promovem em relação ao suicídio implica pensar na teoria do framing das notícias, ou seja, olhar para o enquadramento dado pelo jornalista a determinada peça noticiosa.

Segundo Entman35, enquadrar é selecionar alguns aspetos do que se percebe ser uma determinada realidade e torná-los mais salientes num texto, de forma a promover uma definição do problema, interpretação causal, avaliação moral e/ou tratamento ou recomendação particulares. Esta atividade de seleção de determinados atributos de um certo acontecimento ou assunto, e de atribuição de uma maior relevância aos mesmos, em detrimentos de outros aspetos, é, segundo Entman35, uma marca de poder. Por 2 razões: sinaliza a identidade dos atores ou grupos de interesse que conseguiram incluir as suas visões no relato do evento; restringe a informação que o público tem sobre um determinado assunto e, mais do que isso, restringe o modo como o público pensa sobre o mesmo. É pois claro que esta atividade de enquadrar, isto é, selecionar e dar prioridade a determinados aspetos em prejuízo de outros, indica de que o trabalho jornalístico não é simplesmente o de transmitir informação, mas sim o de reconstruir, no quadro de determinadas fronteiras, o mundo social36.

McCombs olha para o framing como uma «segunda dimensão» do agenda setting, uma extensão deste processo. No entanto, outros autores, nomeadamente Iyengar e Simon37 ou Scheufele38, entendem o framing como uma parte do agenda setting. O norte-americano T. Michael Maher, num artigo dedicado a pensar o framing, questiona se as diferentes perspetivas que alguns autores apresentam deste processo terão por base conceitos distintos de framing39. O autor relembra que, em termos históricos, o framing e o agenda setting tiveram trajetórias opostas. O segundo nível de agenda setting analisa «a forma como a cobertura mediática afeta aquilo em que o público pensa e como pensa», lidando com as caraterísticas específicas de um assunto e com a maneira como esta «agenda de atributos» influencia a opinião pública40. O segundo nível de agenda setting tem, no entanto, consequências que vão para além das imagens que se formam nas nossas cabeças41.

O modo como um assunto é explorado pelos media influencia a forma como o público pensa sobre esse assunto, ou seja, a cobertura mediática afeta a importância desse assunto na agenda pública. Dito de outra maneira, o segundo nível de agenda setting lida com o impacto que os frames (ou ângulos) das notícias têm na agenda pública40.

Num artigo sobre a convergência do agenda setting e do framing, McCombs e Ghanem41 defendem que a junção dos 2 conceitos num único quadro teórico unificado seria útil para uma maior coesão do conhecimento relativamente ao modo como os media formam as imagens do mundo e de como o público responde a essas imagens.

No fundo, «a principal diferença entre a investigação sobre frames e a que se ocupa do segundo nível de agenda setting é que esta última analisa o impacto que os frames das notícias têm na agenda pública, enquanto muitos estudos de framing ocuparam-se apenas dos frames»40.

 

Metodologia

Este trabalho – desenvolvido no âmbito de uma tese de doutoramento sobre a mediatização da saúde na imprensa portuguesa – pretende estudar a forma como o fenómeno do suicídio é noticiado nos jornais portugueses, através da análise das notícias.

Procedemos a uma análise quantitativa das notícias, recorrendo ao programa de análise estatística de dados Statistics Package for Social Sciences (SPSS), centrada em 2 eixos de análise. Posteriormente, os textos sobre suicídio foram analisados de forma mais pormenorizada, com recurso às técnicas e ferramentas da análise crítica do discurso.

A nossa análise inclui os jornais generalistas nacionais Expresso, Sol, Público, JN, DN e Correio da Manhã – 2 semanários e 4 diários. A escolha destes jornais justifica-se pelo seu caráter generalista e nacional; a amostra escolhida (não-probabilística) apresenta ainda diferentes linhas editoriais e periodicidades, uma vez que não sabemos se estes critérios poderão influenciar a qualidade da informação prestada em saúde. Deste modo, esta é uma das hipóteses que queremos testar numa fase posterior do nosso trabalho de doutoramento.

A análise compreende o período entre janeiro e dezembro de 2013, sendo que o mês de agosto não é contabilizado por ser por nós considerado um mês atípico em termos noticiosos. Deste modo, o corpus de análise incorpora um total de 30 notícias que mediatizam o suicídio.

A recolha de dados foi efetuada com recurso às versões impressas – em formato digital – dos cadernos principais dos jornais, sendo que são escolhidas as versões Lisboa ou Nacional dos periódicos selecionados, quando existam, excluindo-se as secções de Local (no Público) ou Porto (no JN), de Desporto e de Cultura.

No nosso estudo, a análise das notícias sobre suicídio divide-se em 2 níveis, sendo que o primeiro nos permite caraterizar o tipo de texto que se publica na imprensa portuguesa quando se fala de saúde; e o segundo é mais voltado para a análise das fontes de informação neste campo. O primeiro nível de análise é constituído por 12 variáveis: ano de análise, data, jornal, título, doença, tipo de artigo, motivo de noticiabilidade, tempo da notícia, tamanho, lugar da notícia, presença e número de fontes de informação. O segundo nível de análise é referente às fontes de informação. Queremos saber quem é chamado a falar quando se noticia este tópico na imprensa generalista, de onde vem, e que cargo ocupa, entre outros. Olhamos as fontes de informação pelo ponto de vista do leitor, uma vez que nos importa avaliar se a citação de fontes é feita de forma precisa e percetível ao público em geral. Importa ainda referir que o investigador não transporta para a análise dos dados os conhecimentos prévios acerca de determinado indivíduo, de forma a perceber as falhas existentes na identificação das fontes cometidas pelo jornalista. As fontes são caracterizadas quanto à sua geografia, tipo de fonte, identificação, estatuto e especialidade médica (quando aplicável). O estatuto das fontes de informação é encontrado a partir de uma tipologia por nós criada e que nos permite saber se estamos a lidar com fontes oficiais, especializadas ou outras.

Para percebermos qual o ângulo de abordagem utilizado pelos jornalistas portugueses quando o suicídio é notícia, olhamos atentamente para os textos e, tendo como referência teórica o framing das notícias, fazemos uma análise detalhada dos mesmos. As teorias do framing das notícias disponibilizam pouca informação sobre métodos específicos de análise. Muita da investigação realizada tem usado métodos de análise quantitativos42. Todavia, são bem conhecidas as definições de Entman35 e de Gamson e Modigliani43 relativas à operacionalização do framing na análise de textos jornalísticos. Entman35 refere que os frames nas notícias podem ser identificados e examinados pela «presença ou ausência de certas palavras-chave, frases feitas, imagens estereotipadas, fontes de informação e frases que, pela sua temática, reforçam grupos de factos ou julgamentos». Gamson e Modigliani43, por sua vez, identificam framing devices que condensam a informação e oferecem o media package de um assunto. São eles: metáforas, exemplos, frases sonantes (catch-phrases), retratos e imagens visuais. Para além do recurso a estes framings devices, também alguns estudos empíricos combinam a análise destes meios com uma análise das 4 funções identificadas por Entman35: «definição do problema, interpretação causal, avaliação moral e recomendação ou tratamento».

Há também quem, de uma forma dedutiva, trabalhe com tipologias de frames noticiosos já existentes, como por exemplo a de Vreese44 que propõe uma distinção entre frames genéricos, isto é, comuns a vários assuntos, e que são estruturais e inerentes às convenções do jornalismo, e frames específicos a certos assuntos. No grupo dos frames genéricos, Vreese44 destaca a distinção proposta por Iyengar entre frames episódicos (limitar o retrato de assuntos sociais a eventos em jeito de ilustração) e frames temáticos (colocar os eventos num contexto interpretativo mais vasto) e a tipologia de Semetko e Valkenburg dos 5 frames noticiosos: conflito, interesse humano, atribuição da responsabilidade, moralidade e consequências económicas. O frame conflito enfatiza o conflito entre indivíduos, grupos, instituições ou países; o do interesse humano dá uma face humana ou confere um ângulo emocional à apresentação de um evento, assunto ou problema; o da responsabilidade apresenta um assunto de forma a atribuir responsabilidade (relativa a causas ou a resoluções) a algum ator social ou indivíduo; o moral interpreta o assunto ou evento no contexto de preocupações religiosas ou prescrições morais, e o de consequências económicas apresenta o evento em termos das consequências que terá para indivíduo, grupo, instituição, religião ou país44.

A análise que apresentamos resulta de um trabalho de exploração detalhada dos textos, onde se procurou articular os aspetos referidos da teoria do framing com instrumentos teóricos e metodológicos fornecidos pela análise crítica do discurso4,5. Destes, destacamos os seguintes: a análise da estrutura esquemática das notícias, isto é, da organização da informação contida na notícia e da distribuição da sua importância numa ordem hierárquica, dando atenção particular aos títulos, aos leads e aos tópicos neles apresentados; a análise da escolha das palavras usadas para designar atores e ações; a análise das citações (escolha, conteúdos e argumentos) e a análise dos meios retóricos usados, dando particular relevo às metáforas45,46. Ainda que de forma sucinta, incluímos nesta análise uma referência à dimensão visual do discurso.

Com estes instrumentos, fazemos uma identificação dos frames especificamente usados na cobertura do suicídio e damos conta das suas funções nos termos sugeridos por Entman35.

 

Análise e discussão dos resultados

Quando o suicídio é notícia

Ao longo de 2013, são 30 os artigos sobre suicídio publicados nos jornais em análise. O maior número de artigos foi publicado pelo jornal Público (12); seguido do JN com 9 textos; do DN com 6; do Correio da Manhã com 2; e, por fim, do Expresso, com um texto sobre o fenómeno. O semanário Sol não apresenta, no período em análise, qualquer artigo noticioso sobre o suicídio.

Os títulos (Tabela 1) são, na sua maioria, negativos (rondando os 53%), sendo que a percentagem de títulos positivos em textos que retratam o suicídio é diminuta (13%). O género jornalístico privilegiado é a notícia, que representa 97% do total dos casos. Há apenas uma entrevista sobre o suicídio ao longo de 2013, publicada pelo semanário Expresso, sendo que não existem reportagens sobre o assunto. Trabalhos anteriores já tinham demonstrado que o jornalismo de saúde se faz essencialmente com recurso ao género de notícia, menosprezando a entrevista e a reportagem47. O suicídio é, geralmente, retratado a partir de textos extensos (60% dos casos), representando uma exceção relativamente ao jornalismo de saúde em geral.

 

 

Quando olhamos para os motivos de noticiabilidade (Tabela 2) dos textos sobre suicídio, verificamos que os jornalistas privilegiam os retratos de situação (com 40% dos artigos). O ângulo dedicado à prevenção segue-se ao dos retratos de situação, com mais de 15% dos casos. Os restantes temas abordados nos artigos sobre suicídio são a investigação e desenvolvimento (13%), as situações de alarme e risco, as suspeitas de negligência ou práticas ilícitas e as decisões políticas – que ocupam, todas elas, 10% do total de casos.

 

 

Quanto ao tempo da notícia, os textos que fazem um ponto de situação são os mais frequentes (37%), seguidos dos artigos que se reportam ao dia anterior (27%).

À semelhança daquilo que acontece no jornalismo de saúde em geral47, os textos noticiosos sobre o suicídio são construídos tendo como lugar o nacional global, ou seja, são textos desenraizados de um lugar específico e que pretendem apresentar uma visão global sobre o fenómeno (Tabela 3). A região da grande Lisboa ocupa mais de 15% dos textos, seguida das regiões do norte e centro (cada uma com 7%), e Alentejo (3%). Apenas um dos artigos tem como lugar da notícia a Europa, o que representa 3% do total.

 

 

Debrucemo-nos agora sobre as fontes de informação, que constituem um dos eixos dominantes do nosso trabalho. A este nível, apenas um dos textos não cita qualquer fonte. Também aqui se comprovam tendências já verificadas em trabalhos anteriores48. Deste modo, 90% das fontes citadas pelos jornalistas são identificadas. Referimo-nos, deste modo, a fontes de informação em relação às quais conhecemos o nome e o cargo que ocupam. As fontes não identificadas são aquelas em relação às quais não sabemos o nome mas conhecemos o cargo ocupado, ou vice-versa (e estas ocupam 10% do total). A análise de notícias sobre o suicídio mostra-nos que não houve recurso a fontes anónimas, isto é, de quem nada sabemos. Quase 60% das fontes citadas falam à escala nacional, sendo que as restantes fontes de informação são provenientes do norte, centro e Lisboa e Vale do Tejo (cerca de 9% para cada uma das regiões) e Alentejo (cerca de 4%). Uma pequena percentagem das fontes de informação citadas nos textos fala a partir da Europa ou são internacionais. As fontes citadas nos artigos em análise são maioritariamente pessoais (Tabela 4), sendo que as masculinas predominam claramente em relação às femininas. Seguem-se as fontes não pessoais, que representam 34% do total.

 

 

O estatuto das fontes (Tabela 5), percebido através de uma tipologia por nós criada, é maioritariamente oficial dentro do campo da saúde. Quer isto dizer que 20% das fontes citadas nos artigos que retratam o suicídio são oficiais e pertencem à área da saúde, como é o exemplo do Diretor-Geral da Saúde ou do próprio ministro da Saúde. As fontes documentais também têm bastante expressão na nossa análise, representando 29,5% do total de fontes citadas – incluem-se aqui os diplomas governamentais ou estudos, dentro e fora do campo da saúde. Por outro lado, o cidadão comum (enquanto paciente ou potencial utilizador dos serviços de saúde) é empurrado para as margens de silêncio (com 7,5%). As fontes especializadas na área da saúde, com e sem cargos (institucionais e não institucionais), representam 15 e 14%, respetivamente. No caso particular da mediatização do suicídio, são as fontes dentro do campo da saúde as que mais espaço ocupam nas notícias. Em relação aos médicos, os jornalistas escolheram dar voz aos psiquiatras (82%) e aos psiquiatras da infância e da adolescência (18%). É o Público o jornal que mais recorre a este tipo de especialistas, seguido do JN e do DN.

 

 

A abordagem do suicídio: discursos e representações

O suicídio enquanto fenómeno público

Durante o ano de 2013, a imprensa aborda a questão do suicídio sob 3 ângulos:

  • enquanto fenómeno público;
  • enquanto objeto de ação preventiva institucional;
  • enquanto ação individual.

Enquanto fenómeno público, o suicídio é retratado como algo que está a causar cada vez mais mortes no seio da população portuguesa. A ênfase é posta na natureza surpreendente e extraordinária desse aumento, por um lado, e no caráter encoberto, misterioso e simultaneamente ameaçador, porque não «realmente» conhecido e com potencial de crescimento e de propagação desse algo, por outro. O suicídio é assim concebido como uma entidade que mata, que mata mais do que aquilo que está contabilizado e que, além disso, põe em risco os vivos. Quem morre por essa causa, ou está «em risco de», é colocado como sujeito passivo sem forças e sem potencial de ação, em suma, no papel de vítima.

Estes significados resultam da opção de representar aquilo que é um processo, uma ação autoinfligida – matar-se – por via de um nome («suicídio»), como se fosse uma coisa, e de simultaneamente conceptualizar essa coisa em termos humanos, como se fosse uma entidade com vida, um inimigo que nos põe em risco e pode matar, de que dão conta expressões como «morte provocada pelo suicídio», «o suicídio mata», «risco de suicídio», «morrer por suicídio», «em risco de suicídio».

Os jornais alertam os leitores para esse perigo, mas simultaneamente tranquilizam-nos. Escolhem fazê-lo por 2 formas: circunscrevendo o perigo a determinados grupos – homens, mulheres, idosos, adolescentes, adultos maduros –, condições económicas – desemprego – e regiões; representando o suicídio como objeto de ações de «combate».

O exercício de delimitação do fenómeno, de traçar uma fronteira em torno do mesmo, faz-se por via da identificação de «um perfil das vítimas», atuais e potenciais, e concretiza-se nas ações de explicar e alertar. O traço das vítimas destacado de forma sistemática e continuada é o estado mental, a «saúde mental». Todas as notícias que exploram de forma temática o «aumento dos suicídios» ou o «aumento das tentativas de suicídio» (mas não apenas estas, como iremos ver) estabelecem, de forma mais ou menos direta, associações entre suicídio e pessoas num estado mental particular (sobretudo «depressão», «desespero», «solidão», mas também com «problemas mentais» ou «doenças mentais»). Sempre que se fala do aumento do suicídio sob o ângulo da mortalidade – quantas pessoas se matam, a que grupo pertencem – neste tipo de artigos também se fala do suicídio sob o ângulo do risco que representa para os vivos. Mas só para alguns. Neste âmbito, o suicídio é conceptualizado como resultado de um problema interno, privado, individualizado de que são vítimas «os suicidas», um problema que, apesar de interno, se manifesta de determinadas formas («sinais de alerta»), cujos efeitos – o suicídio – podem, portanto, ser impedidos ou prevenidos. É representado, portanto, como consequência ou efeito de uma patologia mental vivida por alguns. Mas é representado também como motor, força que ameaça ou coloca em risco pessoas que sofrem de depressão, estão desesperadas ou sofrem de solidão. Em ambos os casos, o suicídio é associado a pessoas com perturbações mentais: são estas que se levam ao suicídio; são estas que são apontadas como «fator de risco» mais importante.

Esta relação pode assumir várias formas em notícias concretas. A mais frequente concretiza-se no recurso exclusivo a um leque restrito de fontes – da saúde mental, da suicidologia e da saúde pública – e de formas de as designar, através das quais se salienta o caráter oficial e/ou especializado das fontes, emprestando assim a credibilidade (vista como) necessária às explicações oferecidas. Destacam-se também outros 2 tipos de recursos, ambos de natureza visual: a escolha das fotografias que integram estes artigos temáticos, através das quais se dá uma face aos atores referidos nos títulos do artigo em causa, e/ou na legenda que acompanha as fotos («INEM socorre cada vez mais pessoas desesperadas que tentam suicídio», DN, 21 de fevereiro; «Isolamento é um dos sinais de alerta a ter em conta para quem costuma apresentar desânimo constante», JN, um de outubro; «Pedopsiquiatras dizem que tentativas de suicídio dos adolescentes estão a aumentar com a crise», Público, 18 de novembro) e, no caso do DN e do JN, por via do destaque visual dado aos conteúdos referentes aos «sinais de alerta», apresentando-os em caixa, meio através do qual o «estado de risco» imputado a esses atores se torna visível, concreto e pode ser descoberto ou identificado.

Desta forma, o suicídio é localizado em pessoas e em grupos, funcionando estes como um contentor. Esta metáfora espacial tem o efeito de tranquilizar os leitores porque cria um escudo protetor, uma espécie de cordão sanitário que os protege, distanciando-os desse risco, mas desumaniza quem se suicida, como se essas pessoas fossem apenas vultos portadores de um mal. Em termos de imagens, a ideia substancia-se no uso de 2 tipos de fotos: fotos desfocadas, onde se mostra uma figura humana feminina sozinha num espaço público com o rosto escondido, cabeça baixa, de lado, numa postura prostrada, vencida, derrotada, (DN, 11 de outubro; JN, 15 de março), e fotos onde se mostram figuras humanas femininas, sozinhas e em grupo, de costas, num cenário composto de forma a sugerir isolamento, abandono, fim de linha (DN, 21 de fevereiro), caminhada, passagem para, falta de luz e escuridão (Público, 24 de outubro e 18 de novembro). Os 2 retratos oferecidos têm o efeito de colocar quem é portador do mal como se fosse alguém que o leitor observa de longe, ou de lado, como se olhasse para um estranho, para o «outro», mas um outro cuja vulnerabilidade é exposta, é aparente ou visível, o que suscita sentimentos contraditórios, de distanciamento mas também de compaixão.

Do exposto podemos então concluir que o suicídio enquanto fenómeno é definido como um problema público, quer dizer, como algo de errado e negativo que está a acontecer no seio da população portuguesa, como sendo uma ameaça para a mesma (porque em crescimento) e, portanto, como algo que deve ser controlado ou combatido. A ênfase na negatividade (moral ou emocional) obviamente decorre do significado, culturalmente dominante, associado ao termo «suicídio» usado nos títulos dos artigos por todos os jornais. Há casos em que os diários optam por um estilo mais realista e cru, concretizado de 2 formas: em títulos que retratam o suicídio como processo e facto («Homens matam-se 3-4 vezes mais do que as mulheres», DN, 7 de janeiro; «Em média suicidam-se 5 pessoas por dia em Portugal», JN, 15 de março); em passagens no desenrolar dos artigos em que se dão detalhes («se imolaram pelo fogo, morreu ao atirar-se do quarto andar», DN, 7 de janeiro). O recurso a eufemismos também é uma realidade, um meio através do qual são ativados os conceitos associados à metáfora da vida como uma viagem (por/colocar termo à vida) e da morte como destino final. Mas importa realçar que no corpo dos artigos a escolha recai, na maior parte das vezes, no recurso a termos e expressões técnicas (portanto supostamente objetivos) usados pelos discursos das fontes consultadas, em especial daquelas através das quais se pensa o suicídio como uma entidade ou coisa.

Vimos também que no retrato do suicídio como fenómeno se explica o mesmo – essencialmente, através do recurso a citações das fontes acima referidas – no quadro de interpretação e de avaliação fornecido pela epidemiologia psiquiátrica. Assume-se que os fatores de risco individuais – a doença e complicações mentais – são mais relevantes do que os fatores sociais e económicos na produção do ato suicida. Este pressuposto é coerente com o discurso dominante na saúde pública da promoção da saúde e da prevenção da doença, onde se considera que os fatores de risco mais importantes são os que têm efeitos imediatos ao nível individual9. No entanto, tal não significa que a explicação social ou económica do suicídio não entre no discurso dos jornais. Já vimos antes que a dimensão social é mesmo chamada a título, graças à associação que se faz entre (aumento do) suicídio (ou tentativa de) e determinados grupos sociais. Quanto à dimensão económica, todos os jornais lhe dão relevância chamando-a por vezes a título («Medidas de austeridade potenciam aumento de casos», DN, 7 de janeiro; «Desemprego cria desesperança e pode estar a alterar perfil das vítimas, alertam especialistas», JN, 21 de abril; «Pedopsiquiatras dizem que tentativas de suicídio dos adolescentes estão a aumentar com a crise», «No país existem apenas 20 camas para internar crianças e adolescentes com problemas mentais», Público, 18 de novembro), nem que seja para a negar em absoluto e de forma perentória, que é, ironicamente, outra forma de a tornar real, de a afirmar («Ricardo Gusmão, Coordenador Nacional da Aliança Europeia contra a Depressão ‘Não há aumento do suicídio em consequência da crise’», Expresso, 16 de março). Porém, como as fontes usadas e citadas no corpo dos artigos estão ligadas à saúde mental, e apenas a ela, e é a essas fontes que os jornais pedem, ou vão buscar, explicações, evidentemente que a cadeia de causalidade, mesmo quando inclui referência a fatores económicos como o desemprego, acaba sempre por terminar, de forma mais ou menos direta, no indivíduo e na patologia.

O suicídio enquanto objeto de ação preventiva institucional

O ângulo do suicídio como objeto de ação institucional predomina nas notícias por nós analisadas. É o jornal Público que o usa mais, e fá-lo com artigos que tratam de forma temática, e não apenas episódica, o assunto. Note-se que o uso deste ângulo e do ângulo do suicídio como fenómeno público não são exclusivos em notícias concretas. Pelo contrário, eles coexistem, materializam-se em simultâneo. A diferença está na saliência que é atribuída a um e a outro, tanto em termos de número de textos, como em termos de tratamento do tema, e no momento temporal em que o fazem. Por exemplo, se compararmos a cobertura do DN com a do Público, é evidente que, ao longo de 2013, o primeiro dá prioridade ao ângulo do suicídio como fenómeno público, e o segundo ao ângulo do suicídio como objeto de ação institucional.

Para além de serem paralelos, estes ângulos também se complementam um ao outro. Digamos que são 2 faces de uma só moeda. Esta realidade não acontece por acaso. Para compreendermos a sua razão de ser, destacamos 2 fatores. O primeiro está relacionado com os acontecimentos referentes a 2013, o ano em que foi posto à discussão pública, aprovado e divulgado um «Plano Nacional de Prevenção do Suicídio para os anos 2013/2017». O plano está enquadrado no Programa Nacional de Saúde Mental 2007/2016 da Direção-Geral de Saúde e foi elaborado por uma comissão de «especialistas» (psiquiatras, enfermeiros e académicos portugueses e estrangeiros, DN, 7 de janeiro). O segundo fator remete para as características mais globais e históricas dos discursos sobre o suicídio elaborados no âmbito da saúde pública nas sociedades ocidentais6,19. As fontes de informação que os jornais mais citam são especialistas intervenientes na elaboração e coordenação do plano, dando particular importância à voz psiquiátrica, como referimos no ponto dedicado às fontes. Esta escolha não será alheia ao facto de o coordenador do plano ser um psiquiatra, e de neste, como noutros assuntos, os jornais julgarem a credibilidade das fontes em função do seu estatuto social e poder49. Mas, para além desta questão de poder, também está em jogo o privilégio que assim concederam ao ponto de vista psiquiátrico sobre suicídio, a perspetiva que, nas 2 últimas décadas, tem dominado, no plano internacional, o desenvolvimento para a prevenção do suicídio9. Ora, na conceptualização do suicídio como um fenómeno público, que explicitámos anteriormente, a preocupação com as estatísticas, com a etiologia e com o risco, e a configuração particular em que ela se manifesta, já é reveladora da presença e do predomínio do ponto de vista da epidemiologia psiquiátrica. Essa conceptualização assenta no pressuposto moral fundamental que intervir no suicídio é um dever, dado tratar-se de um comportamento irracional, e inscreve-se nas arenas privilegiadas da medicina e da saúde pública, arenas que valorizam a preservação da vida e da saúde das populações. É também parte integrante de tendências contemporâneas, amplamente notadas por diversos autores, de uma progressiva medicalização da vida e da morte. Neste contexto, os discursos da saúde pública reclamam o direito a tomar medidas adequadas para proteger as populações contra a morte prematura. Assim, ver o suicídio sob o ângulo de fenómeno público já implica todo um conjunto de discursos que estabelecem, pelas suas análises e interrogações, um espaço cognitivo onde se cristalizam objetos, eventos, identidades e relações. A definição do suicídio como um problema de saúde pública traz consigo o estabelecimento de atores e alvos da ação, ou seja, de relações de poder, justificadas ou legitimadas em visões particulares do suicídio, das pessoas que se suicidam e da melhor forma de responder a estes comportamentos humanos. Daí termos afirmado que a representação do suicídio como fenómeno público e como objeto de ação institucional são 2 faces da mesma moeda.

No entanto, em termos de ângulo jornalístico, há claramente diferenças no uso e na saliência que se dão a essas representações em artigos concretos. Olhando para a questão de um ponto de vista diacrónico, podemos afirmar que a exploração do ângulo do suicídio como objeto de ação institucional aconteceu em 3 momentos fundamentais: no momento anterior à divulgação em abril do plano nacional de prevenção do suicídio, nos jornais Público e DN; no mês de divulgação do plano, com o JN e o Público a darem notícias relativas a um plano de prevenção de suicídio na Amadora que ocorreu entre 2008-2012, e o Expresso a entrevistar o coordenador desse plano, tendo o jornal Público optado por continuar a cobrir o assunto sob este ângulo, de forma mais ou menos direta, até novembro.

Para além desta distribuição da atenção ao longo do tempo poder ser lida, com tudo o que referimos anteriormente, como manifestação do poder dos grupos de interesse intervenientes no processo para marcarem a agenda noticiosa, ela também mostra que os jornais participaram ativamente no processo. Em primeiro lugar, porque privilegiaram sempre o mesmo tipo de fontes. Ao fazê-lo, fecharam o debate sobre o suicídio como objeto de ação institucional no quadro de interpretação fornecido pelas mesmas. Em segundo, porque a exploração do assunto sob o ângulo de fenómeno público, nos termos em que foi feita, de aumento da mortalidade e de incertezas quanto à verdade das estatísticas, criou o contexto de dramatização necessário para a legitimação, aos olhos do público, da necessidade e da urgência da criação de medidas «para travar o fenómeno» (DN, 7 de janeiro), e para pressionar o governo a deslocar recursos para as mesmas. Por último, porque o fizeram privilegiando o frame do conflito a que usualmente os jornais recorrem na cobertura política, o que permitiu às forças em causa ventilarem os seus argumentos.

Apesar de terem sido variadas as formas de concretização do frame do conflito em textos concretos, há 2 questões centrais exploradas sob esse ângulo: qual é e quem tem a verdade sobre as estatísticas do suicídio, em termos de mortalidade, de custos económicos e de impacto dos programas de prevenção; quais deverão ser as populações prioritárias dos programas de prevenção, os desempregados, os idosos ou os jovens?

Estas questões, interligadas entre si, não são tipicamente nacionais, nem meramente conjunturais, apesar de o momento em que elas foram trazidas para o discurso público ser particularmente relevante, como já foi referido. Trata-se de questões que estruturam o debate científico e técnico sobre o assunto, desenvolvido na medicina e na saúde pública, e que já são de longa data. Se nas primeiras décadas do século XX, na medicina, havia a certeza de que as estatísticas da mortalidade falavam a verdade, essa perceção médica mudou após a II Guerra Mundial. Hoje parece ser comum a visão de que há dificuldades em determinar com precisão «a causa clinicamente relevante» da morte e que há falta de precisão no registo da causa de morte nos certificados50.

Esta crise mais global de confiança na objetividade tradicional do certificado de morte, e no seu uso como instrumento epidemiológico, é particularmente relevante na questão do diagnóstico de morte por suicídio, que para alguns deveria incluir dados não biológicos, tal como a intenção do falecido. Isso exigiria um levantamento de informação junto de familiares e amigos sobre o estado mental da pessoa anterior à morte, uma espécie de «autópsia psicológica» que deveria incluir os serviços do cientista comportamental, psicólogo, psiquiatra, sociólogo e trabalhador social50.

Mas todo este tipo de preocupações mais fundamentais, que incluem mesmo a necessidade de ouvir o ponto de vista do indivíduo, nem que seja indiretamente, desvanece-se no retrato do conflito traçado na cobertura. O retrato está ancorado no pressuposto, largamente suscitado por toda a imprensa por via da citação das vozes especialistas e oficiais consultadas, de que a distinção entre morte por suicídio e morte por outras causas é um facto objetivo e evidente, quando na verdade não o é. Sendo que esta visão é dada como certa, ou como a verdade sobre o assunto, o conflito não se faz em torno da natureza arbitrária, porque social e interpretativa, do diagnóstico da morte por suicídio, mas de outras questões, nomeadamente: a divergência interinstitucional nos números globais da taxa de suicídio por ano em Portugal, e a incidência do suicídio sob determinados grupos sociais (velhos, jovens, desempregados).

Sob a questão da divergência, as vozes especialistas citadas dividem-se entre atribuir a responsabilidade pela mesma à pressão das famílias para ocultar o ocorrido (Público, 13 de janeiro, 15 de março; JN, 21 de abril), explicada por motivos religiosos ou económicos (JN, 7 de janeiro, 2013); ou atribuir a responsabilidade aos médicos, explicada pela impreparação dos mesmos (Público, 31 de janeiro). O conflito em torno da incidência do suicídio, um assunto associado à definição de uma hierarquia de prioridades de ações de prevenção, torna particularmente visíveis 2 aspetos: as fragilidades das certezas sobre o assunto, e como elas podem funcionar entre grupos de interesse como armas de arremesso, numa conjuntura política de lançamento de um plano nacional de prevenção do suicídio, tutelado por um ministério onde a palavra de ordem é a redução de custos.

O suicídio enquanto ação individual

Quanto à representação do suicídio sob o ângulo da ação individual, destacam-se 2 traços em particular: a pouca atenção dada ao assunto (4 textos em 30: 2 no Correio da Manhã, um no JN e um no Público, sendo o último referido o único que trata o assunto tematicamente, enquanto os outros elegem a questão em termos episódicos); e o uso do ângulo jornalístico do interesse humano em todos eles. Nos 3 primeiros, o ângulo jornalístico do interesse humano é combinado com o ângulo da responsabilidade. As histórias tecem-se em torno da atribuição de responsabilidade a médicos ou psiquiatras a trabalharem para a segurança social ou hospitais públicos. No caso do suicídio de uma jovem, a responsabilidade é atribuída por familiares; no caso de tentativas de suicídio, as notícias mostram que são acompanhantes ou o marido de uma das fontes a responsabilizar os profissionais da saúde.

Quanto ao jornal Público, o artigo relata a história da «primeira portuguesa a morrer com a ajuda da associação Dignitas» a propósito de um lançamento de um livro onde se conta o caso (Público, 12 de março). Se virmos a publicação deste artigo no contexto da cobertura que o jornal Público fez sobre suicídio no decorrer do ano de 2013, é particularmente evidente que o uso do ângulo do suicídio como ação individual parece ter importância apenas no caso do suicídio assistido. Importa recordar que este jornal é aquele que integra o maior número de artigos construídos sob o ângulo do suicídio como objeto de ação preventiva institucional, o que significa, ainda que implicitamente, o reconhecimento da permissibilidade moral do dever de impedir atos de suicídio, e do direito do Estado intervir enquadrado na saúde pública e na saúde mental. Mas só no caso do suicídio assistido interpreta o assunto de forma mais ou menos explícita sob o ângulo moral. E esse cuidado e diferença manifestam-se de várias formas: na própria construção do título («Maria jantou bacalhau antes de a ajudarem a morrer na Suíça»), que combina as opções de designar a personagem principal da história pelo nome próprio e de incluir detalhes, ambas as opções pouco vulgares em jornais chamados de referência; na ênfase dada não à ação levada a cabo pela personagem principal da história, mas a quem a acompanhou; na importância e no nível de detalhe fornecido na descrição do estado físico da mesma, referido em subtítulo pela designação «doente terminal»; nos muitos eufemismos usados para designar o ato de se suicidar; no contraste retórico criado entre o sofrimento dos envolvidos e a frieza da lei, e na escolha das fontes (ligadas aos direitos humanos, à defesa do suicídio racional em caso de sofrimento sem recuperação). Todos estes elementos contribuem para inspirar compaixão nos leitores e parecem evidenciar da parte do jornal uma clara simpatia pela causa.

Em jeito de resumo, os 3 ângulos escolhidos para interpretar o suicídio resultam numa representação do suicídio como uma entidade maléfica, oculta, cujos efeitos não são realmente conhecidos; algo de origem patológica, que urge combater, e face à qual se estão a reforçar as barreiras de proteção e os meios de controlo institucional. Será caso para perguntar se, na questão do suicídio, para além dos números, da abstração e da racionalização, que alimentam o medo e a distância, não haverá lugar para a compreensão do sentido deste ato humano.

 

Conclusão

Conforme vimos, a imprensa portuguesa aborda o suicídio a partir de 3 ângulos: enquanto fenómeno público, enquanto objeto de ação preventiva institucional e enquanto ação individual. O suicídio é, assim, representado como uma entidade maléfica, que é preciso combater, nomeadamente através de meios institucionais. Na imprensa portuguesa, o suicídio é geralmente abordado enquanto objeto de ação institucional. Por vezes, os jornalistas usam este ângulo – da ação institucional – e o do suicídio como fenómeno público em simultâneo, na mesma notícia. No entanto, o suicídio como objeto de ação institucional predomina, apesar de os 2 ângulos de abordagem se complementarem.

No que toca ao tratamento jornalístico, se olharmos para a linha temporal das notícias, percebemos que o suicídio como objeto de ação institucional é explorado em 3 momentos: antes da divulgação do plano nacional de prevenção do suicídio, no mês de divulgação do plano (em abril de 2013), e posteriormente à sua divulgação.

Os grupos de interesse intervenientes neste processo tentaram marcar a agenda mediática durante este período, mas também os jornalistas deram voz às fontes ao mesmo tipo de fontes – oficiais e especializadas, nomeadamente do campo da saúde pública e suicidologia. Estas fontes transmitiram a sua interpretação do suicídio como objeto de ação institucional, como um fenómeno que urge travar. Privilegiou-se o frame do conflito, perseguindo nomeadamente 2 questões: qual é e quem tem a verdade sobre as estatísticas do suicídio em termos de mortalidade, de custos económicos e de impacto dos programas de prevenção; quais deverão ser as populações prioritárias dos programas de prevenção, os desempregados, os idosos ou os jovens?

O ângulo do fenómeno público consiste num retrato do suicídio como um problema de saúde pública, que causa cada vez mais mortes na população. Os media abordam o suicídio como algo que coloca as pessoas em risco e que pode matar, alertando, ao mesmo tempo, para o fenómeno e dando alguma tranquilidade sobre aquilo que se passa. Isto é conseguido através da limitação do perigo a certos grupos etários, estados mentais, condições económicas e sociais ou região do país. A delimitação do fenómeno é feita através de «um perfil das vítimas», nomeadamente através da saúde mental. As notícias aqui analisadas mostram uma associação entre o «aumento dos suicídios» ou «o aumento das tentativas de suicídio» e um estado mental debilitado, seja pela «depressão», «desespero», «solidão», ou «doenças mentais».

Este retrato do suicídio associado a pessoas «de risco» reflete-se no uso, pelos jornalistas, de fontes da área da saúde mental, suicidologia, ou saúde pública. Destacam-se as fontes oficiais e/ou especializadas, que pelo seu poder percebido conferem credibilidade à notícia.

Enquanto fenómeno, o suicídio é abordado como um problema público, uma ameaça à população – que deve ser combatida. Por via do uso das fontes ligadas à saúde pública, o discurso transmitido acaba por ser, predominantemente, o da saúde pública. Deste modo, as associações entre suicídio e doença mental sobrepõem-se aos fatores económico-sociais, como o desemprego.

Por fim, o suicídio enquanto ação individual não suscita grande interesse da parte da imprensa – e, quando isso acontece, privilegia-se o ângulo do interesse humano.

Os media são percebidos como atores na prevenção do suicídio, podendo constituir-se como aliados, como obstáculos, ou como inimigos. Neste trabalho, constatámos que os jornalistas se posicionam como aliados das autoridades de saúde na prevenção do suicídio e no alerta para os sinais de risco. A cobertura não apresenta os traços sensacionalistas identificados em estudos relativos a outros países e pela OMS. Raramente são apresentados detalhes sobre os métodos usados; não há titulações dramáticas, sendo preferencialmente construídas num tom factual; os retratos de casos particulares são sempre enquadrados numa perspetiva de saúde mental, não recebem uma atenção particular e estão imbuídos de significações negativas. O destaque dado ao assunto segue de perto a agenda oficial, ligada à saúde pública, não resultando, portanto, de um qualquer interesse menos socialmente responsável associado ao risco da banalização.

Uma vez que as notícias analisadas parecem cumprir as recomendações dadas pela OMS e pela DGS, podemos considerar a cobertura analisada como sendo uma cobertura «responsável» do suicídio. Na verdade, a informação ao dispor dos leitores é variada, permitindo que os mesmos se apercebam da complexidade e da gravidade do tema. Simultaneamente, essa informação tem também a função de os alertar para o perigo, ao mesmo tempo que evita a dramatização, ao circunscrever o risco a determinados perfis, grupos e regiões e ao retratar esse risco como controlável. Por estes motivos, consideramos que desempenha uma função preventiva. No entanto, tal como referimos na nossa análise, seria recomendável que a esta preocupação preventiva se aliasse uma preocupação humanista. É que, na verdade, o tom factual das histórias, a preocupação com os números e a objetivação dos processos e atos decorrentes do uso do discurso técnico das fontes consultadas, podem contribuir para um excessivo distanciamento dos leitores face à sorte do suicida e alimentar sentimentos de medo. Estes factos em nada ajudam o cuidado com o outro. Ora, o cuidado com o outro é essencial para que a sociedade se torne efetivamente um agente de prevenção do suicídio.

 

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Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

Autor para correspondência: rita.manso.araujo@gmail.com

 

Recebido 7 de Setembro de 2014 Aceito 5 de Maio de 2016