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Revista de Ciências Agrárias

versão impressa ISSN 0871-018X

Rev. de Ciências Agrárias v.31 n.1 Lisboa jan. 2008

 

O ruralismo em Eça de Queiroz1

José Eduardo Mendes Ferrão2

 

Depois de um pedido de desculpas muito sincero e bem justificado por não ter sido capaz de, num espaço de tempo tão curto que me foi concedido ir para além de brevíssimos apontamentos sobre o tema que me propus tratar, começarei esta minha intervenção com um pequeno mas, a meu ver, bem significativo episódio.

Numa Sexta-feira Santa, já lá vão alguns anos, com a primavera instalada nas calendários e nos campos, quando a vista se regala numa vegetação renascida e renovada, os ouvidos sentem o suave ondear das searas ou o marralhar da folhagem nova das árvores, o odor das múltiplas flores beijadas pelas abelhas nos encanta e conforta e nos faz esquecer os efeitos desgastantes da poluição e do «stress», sucedeu termos passado a noite em três quartos com janelas para o mesmo lado numa simpática estalagem integrada nas planuras alentejanas, um engenheiro electrotécnico, um professor de agronomia e um licenciado em direito.

Nasceu o dia com um sol radioso contrastante com a tristeza dos corações dos católicos nesse dia, levantámo-nos cedo, já que a tarefa que nos esperava nesse dia era pesada, e vimo-nos os três, às janelas dos nossos respectivos quartos, olhando como mesmo cenário os campos alentejanos de vista alargada.

Não trocámos palavra para além da circunspecta e tradicional saudação matinal.

Ao pequeno-almoço o primeiro considerou-se muito reconfortado porque, ao olhar da janela do seu quarto essas planuras do sul do país, vira muitos postes de alta e baixa tensão e linhas eléctricas que se estendiam em todas as direcções. A sua luta pela electrificação do país em que andava empenhado começava a dar resultados. O professor de agronomia replicou que nem sequer reparara nos postes e nos fios mas que concentrou a sua atenção no aspecto das searas que prometiam para esse ano uma boa produção de trigo. O licenciado em direito confessou que ao chegar à janela sentiu frio, não olhou para nada e voltou para a cama.

Eis a mesma paisagem avaliada e apreciada por personalidades com preocupações diferentes.

Confesso que me impressiono muito ao percorrer as estradas deste país galgando quilómetros à desfilada, na companhia de um citadino com a atenção concentrada na fita negra do asfalto que nunca terá visto um boi senão no Campo Pequeno, não é capaz de distinguir um nabo dum espinafre, um pinheiro de um carvalho, conhece as hortaliças tal como as vê na banca do seu mercado de bairro.

Este meu companheiro de viagem não pode ter sensibilidade para sentir a força criadora da terra, o cheiro da leiva revolvida, o perfume do feno que se sega, nunca saboreou o gosto inigualável duma pêra colhida madura da árvore que a criou, nunca sujou os sapatos na terra empapada pela chuva benfazeja, nunca foi capaz de sentir e olhar o homem do campo que trabalha a terra, que conduz o tractor, que colhe as uvas, como um seu igual numa sociedade diversificada de funções.

Confesso que tenho pena do citadino nascido na Maternidade Alfredo da Costa que cresceu rodeado de confortos, carinhos e brinquedos, perfumado com água-de-colónia que tem como horizontes imediatos o supermercado e a sala do cinema e que nunca pôde apreciar o encanto da sombra acolhedora de uma árvore em dia de canícula ou o quentinho oloroso da fogueira que crepita na lareira enquanto se faz a ceia.

Naturalmente que as pessoas com esse passado e esse presente dificilmente sentirão o Eça rural, o Eça contrastante, o Eça mordaz ao delicada mas firmemente comparar a «seca» das comodidades da ultima moda do 202 dos Champs-Elisées com o «caldo de galinha» que rescendia com pedaços de fígado e moela que Jacinto saboreou com inesperado prazer no dia da sua chegada à sua mansão de Tormes na companhia do Zé Fernandes de Guiães.

Em toda a obra de Eça de Queiroz se pode admirar o primor e o rigor das suas descrições e de tal forma que quem o lê sente-se integrado naquilo que descreve quer seja a sala de jantar do lisboeta, a alcofa onde o Primo Basílio se deliciava em amores ilícitos, o complexo e diversificado instrumental do palácio parisiense, o adro de uma igrejinha, «centro de devoção e romaria de léguas em redor», o ambiente calmo mas abafado dum fim de tarde estival numa pequena cidade de província quando os seus grandes senhores foram para águas ou se acolhem nas suas quintas dos arredores para acompanharem as vindimas.

Ficamos impressionados com o pormenor das suas Notas Contemporâneas, parece que estivemos com ele a assistir à abertura do canal de Suez.

Nos seus escritos procura os termos certos e é notável nele o ajustamento que faz nos nomes das pessoa e das coisas. Criticam-no pelo uso e abuso de galicismos. Por um lado, ele nunca perdeu a influência dos salões de Paris e para esses ambientes escolheu nos seus escritos as palavras inseridas no meio. Também tenho pena que ele não fosse capaz de se libertar dessa muleta quando se integrou em portuguesíssimos cenários.

Na obra de Eça de Queiroz, muito diversificada, mas sempre rica e profunda, encontramos por vezes temas algo escabrosos, daqueles que todos sabiam que existiam mas sobre os quais se fazia um silêncio comprometedor. Lembro-me dos tempos da minha juventude e do seu enquadramento social em que alguns dos seus livros não eram aconselháveis a menores ou nem sequer a sua leitura autorizada.

Eça explorou alguns desses factos raros mas possíveis de acontecer, mas a tudo e a todos ele deu um enquadramento e um envolvimento que dá consistência aos episódios que de excepcionais quase se tomam como vulgares.

Vivendo nas cidades, nas tertúlias e nos ambientes requintados da diplomacia, com fugidias passagens por cidade de província que havia de ser o palco de um dos seus livros, nunca esqueceu nem menosprezou os agricultores. Nas obras em que os refere ou integra, com linguagem rica e certeira, até faz ressaltar que mesmo os grandes senhores rurais, ricos mais com o que lhes deixaram do que pelo fruto do seu trabalho, no meio das suas prepotências e distanciamentos, têm assomos de actos importantes e interessantes, algumas vezes autênticos hinos de solidariedade, de carinho inimaginável, de humanismo que o autor pretende fazer ressaltar nos confrontos que faz.

Da sua obra vasta três livros marcam pelos temas ligados ao meio rural que diga-se é bem diferente e muito mais abrangente que a agricultura e os agricultores: O Crime do Padre Amaro, a Ilustre Casa de Ramires e a Cidade e as Serras, este último para mim um livro admirável que durante muitos anos foi meu livro de cabeceira.

Naturalmente que no tempo que vou ter disponível não poderei chamar à colação tantos e tantos aspectos em que Eça descreve magistralmente o ambiente rural. Por uma decisão, sempre discutível, mas que a escassez de tempo impõe, farei uma brevíssima apresentação dos dois primeiros e concentrar-me-ei no último no tempo que me resta.

No Crime do Padre Amaro o autor traz à ribalta a história de um padre, saído de famílias humildes como tantos que na flor da idade e na pujança do seu vigor físico, vai exercer o seu múnus sacerdotal numa pequena freguesia rural dos arredores de Leiria e onde acabou por trair os seus votos de castidade num meio em que era respeitado e querido, onde o trabalho paroquial lhe deixava muitas horas sem ocupação, muito tempo de ócio e isolamento, onde a necessidade de convívio o projectou para ambientes em que a tentação se revelou superior às suas forças e o ânimo e as boas intenções frequentemente se afogam noutras solicitações mais fortes e mais tentadoras de seguir.

Mas veja-se a dignidade com que o autor trata os seus personagens, mesmo inseridos numa sociedade tradicionalista, acompanhando-os na evolução dos acontecimentos e das tentações progressivamente aumentadas logo que se cede no primeiro combate, compreendendo e exaltando o seu sofrimento interior e dificuldade de gerir uma vida dúbia, em que os personagens reconhecem o erro sem encontrarem maneira de se libertaram de uma situação em que o prazer e satisfação carnais se misturam com o forte remorso do dever e do compromisso solene a que se faltou. Mesmo assim o autor não atira para o monturo um homem faltoso mas nem por isso deixou de o ser. Exalta-o pela coragem e dignidade de assumir as suas responsabilidades, de garantir a vida do fruto que criou, de assumir os riscos da crítica acerba dos seus concidadãos.

O Crime do Padre Amaro não é um livro pornográfico nem de maus costumes e tem o condão de poder mostrar à juventude, o que deve conhecer em idade própria, que a vida tem muitas ratoeiras. Entendo-o como um aviso a todos aqueles que se julgam fortes na sua fraca carne e como uns momentos muito curtos de prazer custam por vezes uma eternidade de sofrimento.

Penso eu que, devidamente acompanhado, este livro deveria ser conhecido e meditado por muitos dos nossos jovens para que compreendam e entendam que, de um momento para o outro, cai a casa.

Na Ilustre Casa de Ramires conta-se a história de Gonçalo Mendes Ramires, conhecido no povo como «fidalgo da Torre», solteirão na sua casa de Santa Ireneia, com torre fortificada vinda dos tempos anteriores à fundação da nacionalidade «o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal» cuja casa «entroncava em Ordonho Mendes, senhor de Treivedo que casou em 967 com D. Elduarda, condessa de Carrion, filha de Bermudo o Gottoso rei de Leão» contando entre os seus antepassados fidalgos que resistiram à invasão castelhana, outros que ajudaram os reis na conquista como D. Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e Alferes-mor de D. Sancho I, outros que andaram nas cruzadas, outros que combateram no norte de África, outros que foram nas armadas dos descobrimentos.

Senhor de casa e quinta com eido, com feitor e jornaleiros, com terras arrendadas e parcelas longínquas que mal conhecia, integra-o Eça na paisagem luxuriante dos arredores da cidade de Oliveira, nesse tempo sede de grande actividade política. Vivendo dos seus rendimentos, com a sua roda de amigos e alguns outros com quem não tem ou não deseja ter relações ou estas são tensas, tentam-no os amigos aduladores no seu amor próprio para escrever uma crónica, mesmo que historicamente pouco exacta, dos actos e feitos notáveis dos seus antepassados a publicar numa revista dirigida por um seu amigo que lhe daria guarida e que aparecia nos escaparates da capital.

Essa tarefa que o fidalgo aceitou como um compromisso de honra à memória dos seus antepassados tê-lo-á tornado muito mais sensível ao bichinho da política para onde os amigos o iam empurrando- poucos o podiam ser melhor que ele, segredavam-lhe ao ouvido e ele tudo foi fazendo para obter a suprema ventura de se sentar numa cadeira do poder político. Para isso não recusou retractar-se fazendo as pazes com antigo adversário só porque ele tinha os cordelinhos na mão, de se passear de braço dado e em sinal de grande amizade nas tertúlias de Oliveira onde dias antes o crucificara e ridicularizara, de colocar no caminho de sua própria irmã, esposa de Barrolo, o homem que brevemente roubaria a fidelidade que ela prometera a seu marido.

Como o tempo que tenho é muito pouco, vou pegar num dos muitos trechos de excelente e profunda descrição de uma paisagem rural, discutível entre tantas outras e todas elas profundamente significativas. Vamos meter-mo-nos com o autor numa cena curiosa e significativa.

Gonçalo Mendes Ramires era fidalgo. Naquele tempo palavra de fidalgo era palavra de rei, era compromisso sagrado. O povo tinha pelo fidalgo consideração e respeito pela condição social que reconhecia, pela casa que habitava, pela empregadoria que as suas posses concediam numa terra rural e pobre.

Um dia, sem feitor nas suas terras da Torre, foi abordado pelo José Casco, um lavrador de Bravaes respeitado em toda a freguesia pela sua seriedade e força espantosa, que lhe queria tomar de renda a referida propriedade. O fidalgo, talvez contente por sair de uma enrascadela, apressou-se a aceitar a oferta de 910 mil réis. À maneira antiga, o fidalgo «apertou a mão ao lavrador que entrou na cozinha a enxugar um largo copo de vinho, esfregando na testa nas endoveias rijas do pescoço o suor ansiado que o alagava».

Alguns dias mais tarde o fidalgo foi abordado pelo velho e experimentado agricultor da região, o Pereira, com o mesmo objectivo. O fidalgo, vendo em perspectiva um bom negócio, fez-se esquecido do compromisso anteriormente tomado e pediu ao lavrador uma renda de 950 mil réis. Um significativo aumento. O Pereira ficou hesitante, estava no meio do negócio o José Casco com o qual não desejava conflitos «porque ele era um homem violento e assomado». O fidalgo tranquilizou-o. Pela parte dele não houvera compromisso mas apenas se falou. O Pereira «tirou da algibeira do colete a caixa de tartaruga e sorveu detidamente uma pitada com o carão pendido para a esteira, hesitava depois da palavra trocada pelo fidalgo».

O fidalgo desculpou-se porque «não lavrara escritura» com o Casco e «não confirmara decisivamente a palavra de Gonçalo Mendes Ramires». Ele tinha na sua frente os oitenta mil reis de diferença das duas propostas. Mas a consciência não o apoiava.

O fidalgo, «depois de um momento em que pestanejava nervosa e tremulamente», estendeu a mão aberta ao Pereira: agora ficava definitivamente a palavra dada.

Algum tempo mais tarde o fidalgo passeava pelos campos, «uma girândola de foguetes estalou ao largo para os lados de Bravães onde no domingo se fazia a romaria celebrada da Senhora das Candeias. Depois das chuvas daqueles três dias uma frescura descia da céu amaciado e lavado sobre os campos mais verdes. Pela vereda silenciosa e ainda húmida, o fidalgo chegara à esquina do muro da quinta onde uma ladeirenta e apertada azinhaga a divida do pinheiral e da mata. Do portão nobre, que outrora se erguera nesse recôndito com lavores e brasão de armas restam apenas os dois umbrais de granito amarelados do musgo, cerrados contra o gado por uma cancela de tábuas mal pregadas, carcomidas da chuva e dos anos. E nesse momento da azinhaga funda, apagada em sombra, subia, chiando carregado de mato, um carro de bois, que uma linda boeirinha guiava. O carro passou lento. E logo atrás surdiu um homem esgrouviado e escuro trazendo ao ombro o cajado, donde pendia um molho de cordas. O fidalgo reconheceu o José Casco dos Bravaes. E seguia como quem desatento pela orla do pinheiral assobiando, raspando com a bengalinha as silvas floridas do valado. O outro porém estugou o passo esgalgado e lançou duramente no silêncio do arvoredo e da tarde o nome do fidalgo. Então, com um pulo do coração Gonçalo Mendes Ramires parou forçando um sorriso afável: olá é você José. Então que temos?»

Casco ficou furioso. Se o fidalgo como era tinha dado a sua palavra isso para um fidalgo deveria ser tudo. «O Casco engasgara com as costelas a arfar sob a encardida camisa de trabalho.

Por fim, desenfiando as cordas do marmeleiro que cravou no chão pela choupa: Temos que eu falei sempre claro com o fidalgo e não era para que depois faltasse à palavra. Gonçalo Mendes Ramires levantou a cabeça como se levantasse uma massa de ferro e lá se tentou justificar dizendo que não havia entre eles escritura assinada.

Perante esta resposta o Casco emudeceu assombrado. Depois com uma cólera em que lhe tremiam os beiços brancos, lhe tremiam as secas mãos cabeludas fincadas no cabo do varapau retorquiu: Temos que eu falei sempre claro com o fidalgo e não era para que depois me faltasse à palavra».

O fidalgo sente-se em maus lençóis. Escuda-se que ali não era lugar para conversarem sobre essas coisas, que o receberia em sua casa e então tratariam do assunto.

Gonçalo, «enfiado, já endireitava para o pinhal com as pernas moles, um suor arrepiado na espinha quando o Casco num rodeio, num salto leve, atrevidamente, se lhe plantou diante, atravessando o cajado. O fidalgo tem de se justificar ali e agora.

Gonçalo relanceou esgaseadamente em redor na ânsia de um socorro. Só o cercava solidão, arvoredo cerrado, Na estrada apenas clara sob o resto da tarde, o carro de lenha, ao longe chiava mais vago. As ramas altas dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e remoto. Entre os troncos já se adensava sombra e névoa». Então estarrecido Gonçalo tentou um refúgio na ideia da justiça e da lei que aterra os homens do campo. E como amigo que aconselha um amigo, com brandura e «com os beiços ressequidos e trémulos» ameaçou o Casco como tribunal e a cadeia.

«Então de repente o Casco cresceu todo no solitário caminho, negro e alto como um pinheiro, num furor que lhe esbugalhava os olhos esbraseados quase sangrentos interroga o fidalgo que ainda por cima o ameaça com a justiça e avança para o fidalgo: então, com os diabos, primeiro que entre na cadeia lhe heide-lhe esmigalhar os ossos.

Erguera o cajado. Mas num lampejo de razão e respeito ainda gritou com a cabeça a tremer para trás através dos dentes cerrados: fuja fidalgo que me perco».

E o fidalgo, o corajoso Ramires, «correu à cancela entalada nos velhos umbrais de granito pulou por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro numa carreira furiosa de lebre acossada.

Ao fim da vinha junto aos milheirais uma figueira-brava, densa em folhas, alastrara dentro de um espigueiro de granito destelhado e desusado. Nesse esconderijo de rama e pedra se alapou o fidalgo da Torre arquejando. O crepúsculo descera sobre os campos e com ele uma serenidade em que adormeciam frondes e relvas. Afoutado pelo silêncio, pelo sossego, Gonçalo abandonou o cerrado abrigo recomeçou a correr, num correr manso, na ponta das botas brancas, sobre o chão mole das chuvadas até ao muro da Mãe de Água e julgando vir gente pediu socorro».

E eis que tudo vira.

Respirou «agasalhado no pomar vedado para onde entrou rebentando furiosamente a cancela» e caminhou para casa sem conseguir ver ninguém. Finalmente aparece o pessoal de sua serventia. O Casco bêbedo rompendo com ele sem o conhecer «com uma foice enorme a berrar: morra que é marrão». E ele na estrada apenas com a bengalinha. « Mas atira um salto, a foiçada resvala sobre um tronco de pinheiro, então arremete desabaladamente brandindo a bengala e ataranta o Casco que recua se some pela azinhaga a cambalear e a grunhir». Eis a versão que o valente contou aos seus criados do encontro com o colérico Casco naquele fim de tarde na azinhaga deserta.

E assim se fazem as verdades.

Daí a pouco o Fidalgo já acrescentava que o Casco trazia uma espingarda no carro.

E depois começa a descrição da cena de valentia do fidalgo que deu uma lição num bêbado que sem o conhecer o queria matar numa viela erma e sombria.

Para termo deste episódio a pressão política do Fidalgo faz prender o Casco.

Eis a exploração da cobardia e do poder feita pelo Eça. Mas logo a seguir o fidalgo atende a mulher do Casco que lhe pede para interceder para que o marido saia da cadeia e vai ao ponto de levar para sua casa a filha doente daquele com quem tivera o desentendimento.

A Cidade e as Serras foi o último livro publicado cuja edição o autor já não chegou a rever na sua totalidade. Dos três referidos é aquele em que o autor contrasta mais o citadino e o rural.

Vamos acompanhar Eça de Queiroz em algumas das passagens deste livro.

Eça leva-nos a Paris que muito bem conhecia, instala-nos no 202 dos Champs Elisées onde nascera e vivia «o fidalgo Jacinto, descendente de D. Jacinto Galião apoiante de D. Miguel que não quis ficar na terra perversa donde partira, esbulhado e escorraçado, aquele rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos, quando aquele desejado infante com dois baús amarados sobre um macho tomara o caminho de Sines e do final desterro».

Jacinto cresceu e fez-se homem em Paris e nos anos que já levava de vida nunca viera a Portugal. Vivia com os rendimentos das suas terras do Douro entregues aos cuidados do procurador Silvério e as terras de Tormes entregues aos cuidados do caseiro Melchior.

«Não teve sarampo e não teve lombrigas. As letras, a taboada, o latim entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça».

Jacinto concebeu a ideia de que «o homem só é superiormente feliz quando é superior-mente civilizado».

Exalta a felicidade do homem que, colocando nos olhos um binóculo de corridas, é capaz de ver o que está dentro da montra da mercearia do outro lado da rua. Como se isso fosse felicidade

Rodeia-se de todas as comodidades e inventos, monta um elevador, apesar do 202 ter apenas 2 andares e «para entreter os passageiros durante os 7 segundos da viagem, instala um divã, uma pele de urso, um roteiro das ruas de Paris e prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecâmara manda instalar um sistema de aquecimento onde um criado mais atento ao termómetro que o piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero. A biblioteca, atravancada com uma pilha monstruosa de novos livros, ficava iluminada por uma coroa de lumes eléctricos comandada por um simples toque na parede, nas estantes monumentais repousavam mais de 30 mil volumes encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio.

No seu gabinete de trabalho Jacinto munira-o de tapetes sombrios onde os passos perdem os sons, luzes, chaminés, cortinados, biombos e toda uma máquina sumptuosa de tubos, engrenagens, hastes, friesas, rigidesas de metais. Na sua imensa mesa de trabalho uma estranha e miúda legião de instrumentosinhos de níquel, de aço, de cobre, de ferro, de gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes, todos de utilidades misteriosas. Toca o telefone, noutro canto ouve-se

o tic-tic-tic açodado quase ansioso do telégrafo que anunciava que a fragata russa Azzoff entrara em Marselha com avaria. No lado da cadeira da secretária pendiam gordos tubos acústicos para Jacinto soprar as ordens através do 202, cordões tímidos e moles que corriam para os recantos de sombra à maneira de cobras assustadas. Sobre a banquinha uma máquina de escrever, adiante uma máquina de calcular, uma estante repleta de dicionários, outra de manuais, outra de atlas, outra de guias, um aparelho composto de lâminas de gelatina onde desmaiavam meio chupadas as linhas de uma carta, outro erguia sobre um livro brochado como para o decepar um cutelo funesto, outro avançando a boca duma tuba toda aberta para as vozes do invisível e nem sequer faltavam as penas eléctricas.

Como zumbido de um insecto de asas harmoniosas, um funil de marfim debitava em voz muito mansa mas muito decidida uma conferência sobre metafísica positiva.

Noutro sitio um aparelho que arranca as penas velhas, outro numerava rapidamente as páginas de um manuscrito, aqueloutro raspava emendas, outro colava estampilhas, outro imprimia datas, outro derretia lacre, outro contava documentos.

A sua mesa de toilette, por causa dos micróbios, estava atulhada de utensílios de tartaruga, marfim, madrepérola, aço, prata, escovas largas como as rodas de um carro sabino, estreitas e mais recurvadas que o alfange de mouro, côncavas em forma de telha aldeã, pontiagudas em feitio de folha de hera, rijas que nem cerdas de javali, macias que nem penugem de rola, máquinas monumentais com dois jactos de água graduados de 0 a 100, dois duches, fino e grosso, para a cabeça, uma fonte esterilizada para os dentes, repuxos borbulhantes para a barba, botões discretos que roçados desencadeavam esguichos, cascatas cantantes ou um leve orvalho estival, toalhas de felpa, toalhas de linho, toalha de corda entrançada para restabelecer a circulação».

Ao jantar serviam-se «diversas águas engarrafadas, ostras clássicas, de Marennes, sopa de alcachofras, ovas de carpa, frangos e túberas, filetes de veado macerado em Xerez com geleia de noz e laranjas geladas com éter».

Zé Fernandes, regressado das durezas do Douro, depois de 5 anos de ausência dos ambientes parisienses, estava estupefacto com tão complexo e diversificado equipamento.

Eis a civilização, eis o príncipe da Grã-Ventura.

Mas um dia num banquete especialmente preparado e com a casa cheia de convidados,

o peixe da refeição ficou parado no elevador que trazia a comida da cozinha para a sala de jantar. Para uns foi uma festa, para outros uma diversão.

Para Jacinto «foi uma maçada» uma seca, uma desilusão. Toda a alta técnica falhava, até se rebentara na casa de banho a tubagem de água quente e lançara o pânico no 202.

Jacinto, envolvido neste conjunto de progressos da técnica que ele confundia como civilização, rodeado de amigos e de figuras simbólicas que sempre aparecem e frequentam os lugares de mundanismo e onde se come bem, sente o tédio da insatisfação. Nada enchia a sua alma sensível. Queria sempre mais. A vida tornou-se «uma seca, o corpo ficou flácido e transparente iluminado pela luz artificial dos candeeiros e a pele a sentir a necessidade dos afagos de um bom sol meridional».

Zé Fernandes, regressado da sua viagem a Portugal, impressionou-se com a prostração de Jacinto. E foi o Grilo, o criado preto e que a seu lado o acompanhava no cenário de uma vida de mundanismo, que melhor definiu o estado de alma do seu amo: «O senhor padece de fartura».

Mas de um momento para o outro deu-se uma grande mudança.

Recebe-se em Paris uma carta do procurador Silvério das terras de Tormes anunciando que devido a uma tempestade, a capela onde repousavam os «preciosos restos» dos antepassados de Jacinto fora arrastada pela força das águas e das terras e com ela «as respeitáveis relíquias». Que ele «já recolhera os despojos com todo o respeito e lhes dera uma morada provisória e pedia instruções a Jacinto quanto à reconstrução da capela».

No fundo da alma de Jacinto acordou o passado e os Jacintos todos seus antepassados. Jacinto até aí concentrado e absorvido pelo mundanismo de Paris volta a sua atenção para as suas origens, recorda-se que «nunca entrara numa igreja» mas a sua corda sensível vibra de respeito pelos antepassados que lhes deram o ser e a fortuna com a qual vivia opulentamente na Cidade-Luz. Deu ordens para a reparação que se impunha.

Começa a impacientar-se porque os aparelhos, maravilha da técnica e da civilização, avariavam-se ou não funcionavam, os que lhe dão informações supérfluas irritam-no, o pó incomoda-o, a Cidade de Paris, vista do alto do Sacré Coeur, mostrou outros interiores que ele nunca desvendara e em que nunca pensara.

Os referenciais do seu espírito vão mudando. Paris já não era para ele o centro da cultura, do progresso e da intelectualidade. Paris era «uma seca».

Jacinto caíra numa prostração e num pessimismo irritado. Isola-se dos seus amigos e conhecidos, tudo o aborrece. Toda a sua postura «é como a de um boi inconsciente que marcha sobre a canga e o aguilhão, os jornais saturam-no, na sua rica biblioteca não encontra nada que lhe interesse ler, aos criados recomenda que àqueles que o procuram os informe que não está em Paris, que abalou para o campo, que abalou para Marselha, que morreu».

A lembrança de Portugal continua a roêlo e a dominá-lo e no fim de um inverno escuro e pessimista Jacinto assomou à porta do quarto de Zé Fernandes e dispara como um tiro: «Vou partir para Tormes».

Zé Fernandes ficou abismado e preocupado com a decisão. A casa de Tormes estava inabitável, «os caseiros que lá vivem há 30 anos dormem em catres, comem o caldo à lareira, usam as salas para secar o milho e os únicos móveis sobreviventes são um armário e uma espineta de charão coxa e já sem teclas».

Jacinto não recua. Partiria em Abril e entretanto mandaria arranjar a casa e levaria para lá de Paris os confortos necessários a uma estadia de alguns meses.

E começou desde logo a tomar providências. Chamou um agente da Companhia Internacional de Transportes para fazer a remessa das mobílias e outros apetrechos e ficou espantado quando este declara saber muito bem onde era Tormes, essa pequena aldeia enterrada nas serranias do Douro. Infeliz ou felizmente para o fidalgo havia outra Tormes e essa é que o agente conhecia e foi para aí que fez o despacho das coisas de Jacinto.

Começa então no 202 o encaixotamento de todos os confortos necessários «para um mês na serra áspera».

Jacinto dá um passeio de despedida pelo Bois de Boulogne, olha os jardins e as ruas , os fiacres dos amigos e conhecidos, pensa na grande viagem que o espera. Descendo os Campos Elísios há nele uma hesitação: «é muito grave deixar a Europa».

A grande viagem começa. O Anatole e o Grilo seguem à frente num fiacre atulhado de livros, de estojos, de paletós, de impermeáveis, de travesseiras, de águas minerais, de sacos de couro, de rolos de mantas, mais atrás um omnibus rangia sob a carga de 23 malas e na Estação, antes do embarque, Jacinto ainda comprou todos os jornais, todas as ilustrações, horários, mais livros e um saca-rolhas de forma complicada e hostil

E meu caro Zé Fernandes: que aventura».

A viagem longa e cansativa pelas Espanhas foi reconfortada pelas deferências dos chefes das estações por onde iam passando avisados como estavam da passagem do príncipe da Grã-Ventura.

O comboio chegou atrasadíssimo e em noite chuvosa a Medina, mal dando tempo a uma transferência rápida para o comboio de Salamanca que viria para terras portuguesas e estava prestes a sair.

Jacinto perdeu os criados, perdeu a bagagem e Zé Fernandes apenas salvou um jornal e um «paletot».

E assim chegaram a Portugal tão distantes do conforto de Paris. «Um fardeta, com imensa doçura pergunta se não tinham bagagem a declarar». Que não. Pudera, ficara tudo com os criados que se perderam na mudança precipitada de Medina. Chegam a Portugal como a terra prometida. «Cheira bem. Num largo e doce silêncio aparece uma estação sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes e outras rosas em moitas num jardim onde um tanquesinho abafado de limos dormia sob mimosas em flor que rescendiam. Um moço pálido de paletot cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada diante da sua cesta de ovos, uma velha contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Por cima rebrilhava o profundo rico e macio azul de que os meus olhos andavam aguados.

Atravessa os penhascos que desabavam até largos socalcos, cultivados de vinhedos, numa esplanada branquejava uma casa nobre de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio descia com vela cheia um barco lento carregado de pipas».

Fazendo planos para a vida das serras com os confortos mandados de Paris e com o pessoal contratado pelo Melchior «chegam à estação de Tormes, clara, simples, à beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girassóis enchendo um jardinsinho breve, duas altas figueiras assombreando o pátio e por trás a serra coberta de velho e denso arvoredo».

Do pessoal a aguardar o senhor de Tormes não estava ninguém, nem vivalma além do Pimentinha, «chefe da Estação, de imensa barriga e bochechas menineiras». Ninguém esperava o Fidalgo. O Silvério «estava há meses para o Alentejo para ver a mãe que apanhara uma cornada de um boi, o Melchior não aparecia por ali há meses não havia cavalos para a jornada pelos contrafortes da serra».

E o senhor de Tormes e o seu amigo Zé Fernandes, depois de horas de espera e de recados, lá conseguiram «uma égua e um burro em pelo cedidos por um caseiro do fidalgo que vivia nas redondezas da Estação, um rapaz e um podengo como guias».

E assim se admirou esse Portugal amado, onde tudo que se via se admirava e espantava nessas serras benditas. «Atravessaram uma trémula ponte de pau sob um riacho quebrado por pedregulhos, admiraram a robustez das oliveiras e os bandos de arvoredo. Por toda a parte a água sussurrante a água fecundante».

Deixemos os nossos viajantes subirem lentamente a serra e extasiarem-se com a bonita e variegada paisagem das montanhas que subiam.

Vamos esperá-los à avenida das faias. «Aí o rapaz, atirando uma vergastada no burro e na égua, gritou: Aqui é que estemos meus amos». E assim Jacinto, o parisiense habituado a todos os confortos e a recusar beber outra água que não fosse a engarrafada, apareceu diante da casa dos seus avós.

«Ao fundo via-se o portão da quinta com o seu brasão de armas de secular granito que o musgo retocava e envelhecia».

Toca-se à porta, ladram os cães, vem o caseiro. Pasmado, olha as visitas. Que não, que ninguém sabia de nada, que Silvério estava para Castelo de Vide, que não tinham chegado nenhuns caixotes que as obras iam-se fazendo lentamente, que só esperavam o fidalgo para as vindimas.

Jacinto ficou como fulminado. Perdido mo meio da serra sem quaisquer dos seus confortos de Paris. Zé Fenandes oferece a sua casa em Guiães mas está distante «duas horas fartas a cavalo», aconselha Jacinto a ver o casarão, comer a boa galinha que «o nosso Melchior nos assa no espeto», dormir nessa noite numa enxerga e depois para sua casa pelo fresco da manhã.

Subiram as escadas até ao salão nobre do casarão que Jacinto contemplava com horror, com um «monte de canastras a um canto e algumas enxadas entre paus» noutro, no tecto viam-se «manchas no céu», as janelas não tinham vidraças, as tábuas podres do soalho rangiam e cediam.

Mas noutras salas que visitaram já tinha entrado o carpinteiro. O soalho estava remendado, as paredes tinham «a alvura da cal fresca», as janelas já tinham vidros. A reparação recomendada por Jacinto estava em curso. A última divisão, um grande salão «rasgado por 6 janelas», estava mobilado por um armário e a um canto uma enxerga parda.

Ali acamparam. Jacinto «caiu esbarrondado» pelo desastre que lhe sucedera. Levantase, vem à janela, olha. «É uma lindeza» diz. «E que paz».

«Sob a janela vicejava fartamente uma horta com repolhos, feijoal, talhões de alfaces, gordas folhas de abóboras rastejando. Uma eira velha e mal alisada dominava o Vale. Toda a esquina do casario se encravava num laranjal. E duma fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e rutilante fio de água».

Jacinto embevecido desceu ao quintal. Tudo para ele era novo e era belo. Deu-lhe a fome, passou pela cozinha onde no meio do negrume da fuligem secular «refulgia a um canto sobre o chão de terra negra a fogueira vermelha lambendo os tachos e panelas de ferro». O pessoal emudeceu diante do fidalgo: «o jantarinho para suas incelências não demora um credo».

Quanto a camas, bem, há «uma enxergazinha no chão» que é o que se pode arranjar. Lá pela limpeza dos lençóis responde o Melchior.

Jacinto entusiasmado continuou a viagem, bebeu água da fonte e esqueceu as águas engarrafadas, «atirou pulos aos ramos copados de uma cerejeira carregada de cerejas», apeteceu as alfaces que viu na horta, percorreu os milharais com pasmo e admirou os vetustos carvalhos plantados pelos seus antepassados.

Voltaram a casa que agora, depois deste passeio reconfortante, já não pareceu tão sombria, entram no salão, Jacinto aprecia o doce sossego, contempla as estrelas.

Daquela janela aberta sobre as serras Jacinto apercebeu-se que havia outra forma de viver a vida e suspirou, mas suspirou como quem descansa.

Vem aí o jantarinho. O príncipe ficou «estarrecido com a mesa encostada ao muro enegrecido, coberta por uma toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata, grossos pratos de louça amarela, colheres de estanho, garfos de ferro, os copos de um vidro áspero que ainda conservavam a cor roxa do vinho, uma malga atestada de azeitonas pretas».

A comida vem a caminho. Jacinto «esfregou energicamente com a ponta da toalha o garfo negro e a fosca colher», aparece a sopa a fumegar., «desconfiado provou o caldo que era de galinha e rescendia». Provou, arregalou os olhos e sorrindo gostou.

Estava feita mais uma conversão do nosso Jacinto ao meio rural.

Três vezes comeu aquela preciosa e perfumada sopa com fígado e moela e depois atirase ao arroz de favas, a comida dos jornaleiros das suas propriedades. Em Paris abominava as favas. Aqui provou e gostou. Destas sim. Destas favas «nem em Paris». Bateu-se com um «louro frango» acompanhado da salada que tinha apetecido no quintal. Tudo «divino». O vinho de Tormes, «um vinho fresco esperto e seivoso» caia de alto «duma bojuda infusa» e mereceu-lhe rasgados elogios.

Jantaram deliciosamente e voltaram para as janelas desvidraçadas a contemplar o sumptuoso céu de verão. Jacinto sente sono. Despojado de tudo aquilo que em Paris lhe era indispensável, os chinelos de quarto são substituídos por uns tamancos e o pijama cómodo e macio pela «camisa enorme de estopa áspera como uma estamenha de paciente» e dorme como um justo.

O tempo que dispunha para vos falar esgotou-se. Deixemos o Jacinto a admirar e a integrar-se no novo mundo que lhe trouxe uma felicidade que ele nunca sentira.

Jacinto fez-se lavrador, administrou os bens que os seus antepassados lhe deixaram, casou-se com a prima do Zé Fernandes, teve filhos. Finalmente chegaram os caixotes que durante muito tempo ficaram encalhados na Tormes espanhola. Jacinto só mandou abrir alguns para dar comodidades ao seu casarão mas a maior parte deles que continham dentro todos os primores da técnica e os avanços da civilização nem sequer foram abertos.

Jacinto quer levar a mulher e os filhos a Paris para conhecerem a cidade em que durante tantos anos viveu e onde, no meio de todos os avanços da técnica e da civilização, ele nunca encontrara a verdadeira felicidade. Mas voltaria para Tormes para as suas terras onde pode ver as plantas crescerem e frutificarem e à noite tem o espectáculo inigualável do céu estrelado e o aconchego da família.

Eu ao pensar como nasci e me criei, em pleno meio rural, sentindo de manhã a acordarem-se as chilreadas dos pássaros, acompanhando com alegria o rebentar das árvores e pleno de tristeza quando os frios de Outono as despiam, que me consolava em subir às arvores para colher deliciosos frutos, tendo bebido a água da nascente por um pedaço de telha, comido a sopa à lareira fabricada lentamente numa fogueira que nunca se apaga, sentindo o cheiro atraente da terra quando se fazem as sementeiras, passando noites de calças arregaçadas a guiar a água que rega o milheiral, consolando-me com a fresca melancia nas tardes escaldantes de Agosto, aconchegando o estômago com sopa de castanhas nos dias frios de Inverno, criando uma alma nova quando chega a primavera com as flores, a rebentação das árvores e as expressões de vitalidade e alegria da natureza, dou graças a Deus pela felicidade que me deu em saber amar a natureza e não ser escravo do dinheiro.

Infelizmente o mundo está cheio de Jacintos parisienses que julgam que a felicidade é ter muito e cada vez mais e assim não entenderão aquele pastor da fábula que guardando o rebanho, conversando com as ovelhas e com as árvores, se considerava inteiramente feliz apesar de não ter uma camisa para vestir

Eça neste romance dá-nos uma lição e mostra-nos um caminho. Quando encontramos a felicidade deixemos encaixotados os nossos bens e vivamos a paz das coisas simples.

 

1 Conferência apresentada no Centro de Estudos Eça de Queiroz

2 Prof. Catedrático jubilado de Agronomia Tropical do Instituto Superior de Agronomia, Lisboa.

 

Recepção/Reception: 2007.06.25

Aceitação/Acception: 2007.07.18

 

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