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Revista de Ciências Agrárias
versão impressa ISSN 0871-018X
Rev. de Ciências Agrárias v.34 n.1 Lisboa jan./jun. 2011
Contribuição para o conhecimento de Garcia de Orta
Maria Cândida Liberato1*
1Investigadora principal com habilitação, aposentada, Instituto de Investigação Científica Tropical. mc.liberato@sapo.pt
RESUMO
Nos finais da Idade Média, nomeadamente em Portugal, começou a surgir o gosto pela observação e registo da natureza. Os descobrimentos marítimos portugueses nos séculos XV e XVI permitiram, desde o início, verificar que o mundo natural era diferente do que se encontrava nos textos clássicos da cultura greco-romana, onde o conhecimento da Ásia era muito incipiente e distorcido. A descoberta do caminho marítimo para a Índia, em 1498, o posterior estabelecimento de um governo em Goa, a fundação de várias feitorias situadas em pontos estratégicos do Índico e a realização de algumas alianças locais, permitiram a Portugal controlar o acesso às especiarias e drogas farmacêuticas, muito pretendidas nos mercados europeus. A este Estado da Índia começaram a afluir religiosos, militares, funcionários régios, físicos, boticários e muitos outros. Neste contexto, Garcia de Orta, com formação académica baseada nos textos clássicos, foi para a Índia como médico do nomeado capitão-mor do mar da Índia, ficando naquele local o resto da sua vida. O contacto directo com as drogas e especiarias medicinais na Ásia permitiu-lhe verificar e corrigir, de forma pioneira, os conceitos existentes sobre aquelas mercadorias, algumas das quais usadas desde há muito pela medicina ocidental, e apresentar novos produtos. Deixou os seus conhecimentos registados na obra Coloquios dos simples, e drogas e cousas medicinais da Índia, e Esta obra constitui o primeiro contributo científico europeu para o conhecimento das plantas medicinais orientais. Depois de ter sido dado a conhecer à Europa, em latim, aquela obra teve uma enorme repercussão, que se regista até hoje, sendo importante para Medicina, Farmacognosia e Botânica.
Palavras-chave Garcia de Orta, renascentista português, plantas medicinais orientais.
Contribution to the knowledge of Garcia de Orta
ABSTRACT
By the end of the Middle Age, namely in Portugal, the interest about the observation and record of nature arose. The Portuguese expansion odyssey in the 15th and 16th centuries allowed, from the early beginning, to understand that the natural world was different from that found in old c1assical literature from the Greek-roman culture, where the knowledge about Asia was very incipient and distorted. The discovery of the maritime pathway for India, in 1498, the subsequent establishment of a government in Goa, the creation of several trading posts in strategic points of the Indian ocean and the establishment of some local alliances allowed Portugal to control the access to the spices and pharmaceutical drugs, very solicited in the European markets. To this Indian State, clerics, soldiers, royal servants, physicians, chemists and many others started to arrive. In this context, Garcia de Orta, with academic background based on the c1assics, went to India as a doctor of the appointed captain-in-chief of the Indian sea, where he stayed for the rest of his life. The direct contact with drugs and Asian special medicines allowed him to check and correct, as a pioneer, the existing concepts about those merchandises, some of them used, since a very long time, by western medicine, and to show some new products. He left his knowledges recorded in the book Colóquios dos simples, e drogas e cousas medicinais da índia, e ...This work constitutes the first European scientific contribute for the knowledge of oriental medicinal plants. After having been known in Europe, in Latin, the book had an enormous repercussion, until nowadays, being important to medicine, pharmacognosy and botany.
Keywords: Garcia de Orta, oriental medicinal plants, renaissance portuguese man.
INTRODUÇÃO
Nos finais da Idade Média, a partir do século XIV, começou a surgir uma forma diferente de estar, a que Portugal não foi alheio, precursora do Renascimento.
Deixou de se aceitar simplesmente os seres vivos como eram, procurando aprofundar-se o seu conhecimento através da experiência, revelando o gosto pela sua observação pormenorizada e, notável para a época, sentindo-se a necessidade de deixar o seu registo (Lopes, 2006).
Podemos encontrar esta atitude no Livro da montaria, de D. João I, que, sem ser de modo algum um livro científico, patenteia uma mudança de pensamento. Foi publicado em 1918, por ordem da Academia das Ciências de Lisboa, pela Imprensa da Universidade de Coimbra.
Continuamos a verificar uma forma diferente de abordagem do tema no Livro de ensinança de bem cavalgar toda a sela, de D. Duarte, verificando-se nele, igualmente, novas inclinações de pensamento. Foi descoberto apenas em 1820, na Biblioteca Real de Paris, e publicado em 1843 em Lisboa.
A expansão marítima e descobrimentos portugueses, tendo como objetivo a procura de novos locais de comércio e o alargamento da fé cristã, decorreram nos séculos XV e XVI, entre 1415 e 1543. Permitiram mudar os conceitos antigos através da observação, tornando-a cada vez mais atenta e pormenorizada.
Os navegadores observaram, desde o início, que o mundo era maior, as novas terras e o mundo natural eram diferentes da informação contida nos textos clássicos greco-romanos. Aqueles viam com atenção tudo o que observavam e nos seus roteiros de viagem incluíram os registos das novidades que encontravam, prestando grande atenção ao novo mundo, geográfico e natural, que iam vendo.
Até essa altura, os conhecimentos de geografia existentes apoiavam-se, nomeadamente, no livro de Ptolomeu, Introdução à geografia, e no de Marco Polo, O livro das maravilhas A descrição do mundo.
Ptolomeu, grego-alexandrino, escreveu o seu texto na segunda metade do século II, onde apresentava um mapa do mundo apenas com três continentes, Europa, África e Ásia, o Oceano Índico como o maior e o Atlântico inexistente. A primeira tradução para latim ocorreu no início do século XV, e a sua influência permaneceu até ao século XVI. Foi uma parte traduzida para português em 1537.
Marco Pólo, veneziano, acompanhou o pai e um tio numa viagem comercial ao oriente, em 1271, só regressando em 1295, tendo percorrido praticamente toda a Ásia, detendo-se sobretudo na China. Algum tempo após a chegada, no resultado de uma batalha, foi aprisionado, estando na cela juntamente com um escritor a quem contou as suas aventuras. Este escreveu o livro citado, que foi traduzido para latim em 1315, tendo um êxito enorme. Foi impresso em português em 1502.
A descoberta do caminho marítimo até a Índia, em 1498, tinha subjacente a ideia que seria fácil obter aí as mercadorias orientais, nomeadamente as especiarias e drogas medicinais, muito apreciadas na Europa, e assenhorarmo-nos do seu comércio, que desde há muito era feito por Veneza e Génova.
Em Calecute, os portugueses depararam, com surpresa, que aquele comércio e transporte eram feitos por muçulmanos. Estes eram tidos como inimigos dos cristãos, principalmente desde a tomada de Constantinopla em 1453.
Para atingir o objetivo gizado foi necessário utilizar a força militar para conquistar posições estratégicas do Índico, onde se instalaram feitorias-fortalezas, se fez a ocupação de pequenos territórios e se estabeleceram alianças locais, que permitiram assegurar, não só o domínio do comércio das especiarias e drogas farmacêuticas, como o monopólio das rotas marítimas, procurando estar nos locais de origem das mercadorias de maior valor. Todas as operações foram comerciais e militares (Thomaz, 1998).
No entanto, dada a escassa e fantasiosa informação que existia sobre o Oriente, a realidade encontrada continuou a ser uma surpresa para os portugueses, quer em relação às civilizações que encontraram, quer relativamente às condições geográficas e naturais (Loureiro, 1991).
Foi necessário observar, obter informações fidedignas e registar a realidade sob todos os aspectos, nomeadamente a geográfica e natural, alargando o conhecimento em vários domínios.
Devido à grande distância do reino, e sendo necessário uma administração célere, estabeleceu-se um governo na Índia, com sede em Goa.
Este facto levou, em primeiro lugar, à existência de Vice-rei ou Governador, aparecendo os necessários Órgãos de Administração Central e afluindo religiosos, militares, nobres, intelectuais, boticários, físicos (nome atribuído aos médicos na época), artífices, um hospital, imprensa, etc.
As revelações de navegantes, mercadores, missionários, cronistas, boticários e físicos começaram a chegar à Europa, sequiosa delas.
Garcia de Orta vai figurar entre aquele número, integrando-se no movimento renascentista, que se vivia na época.
De forma pioneira acrescenta e corrige informação botânica e médica com base no que observou e soube pessoalmente no livro que nos deixou Colóquios dos simples, e drogas e coisas medicinais da Índia..., publicado em 1563.
O seu nome é incontornável na História da Medicina, Farmacognosia e Botânica orientais como tendo dado o primeiro contributo científico europeu para o conhecimento das plantas medicinais orientais.
A sua obra, depois de um pouco transformada e posta em latim, teve enorme repercussão na Europa, registando ainda, nos nossos dias, interesse científico e trabalhos de investigação.
GARCIA DE ORTA
Percurso de vida
Devem-se ao Conde de Ficalho, em trabalho publicado em 1886, com segunda edição em 1983, os primeiros estudos aprofundados sobre a vida de Garcia de Orta.
No entanto, o médico e historiador Silva Carvalho (1934) conseguiu a resposta a muitas incógnitas que existiam acerca daquela figura, sua filiação, provável data de nascimento, porque foi para a Índia sem retornar ao reino, o seu casamento, data da sua morte, existência de tão poucos exemplares da primeira edição da sua obra, de esta ter ficado quase na obscuridade até ao século XIX e uma exaustiva análise dos Colóquios.
Com base nestes dois estudos, apresenta-se um pouco da sua vida.
Garcia de Orta, nasceu em Castelo de Vide, em data incerta, mas certamente no início do século XVI. Era filho primogénito do casamento entre Fernão Orta, mercador, e Leonor Gomes, judeus espanhóis que viviam em terras próximas de Portugal, onde se refugiaram quando da expulsão daqueles pelos Reis Católicos e se tornaram cristãos-novos. O casal teve também tês filhas.
Fernão Orta teve um filho anterior ao casamento.
Os dois primeiros estudos foram efectuados em Portugal, em lugar incerto, admitindo-se que possa ter sido em Vila Viçosa e ter sido aí iniciada a amizade com Martim Afonso de Sousa, fidalgo de alta linhagem desta vila.
A seguir a estes estudos foi para Espanha estudar nas Universidades de Salamanca e Alcalá, sequência com que surgem nos Colóquios e defendida por Ficalho (1983), ou inversamente, como neles se encontra referido por Dimas Bosque, no prólogo da obra aos leitores.
Naquelas Universidades, tal como na restante Europa de então, os estudos assentavam nos autores da Antiguidade, como Hipócrates, Teofrasto, Platão, Aristóteles, Plínio, Dioscórides, Galeno e Avicena, entre outros, pelo que a sua formação académica era fundamentada na autoridade dos textos destes.
Em Salamanca, o ensino era baseado nos livros árabes, nomeadamente em Avicena, enquanto em Alcalá se seguiam, sobretudo, Hipócrates e Galeno, de acordo com o movimento helenista italiano, mas não eram esquecidos os restantes textos antigos. Na última Universidade referida tinha sido iniciada uma cadeira de Botânica, a primeira a existir na Península.
Estes estudos deram-lhe a licenciatura em Artes, Filosofia e Medicina,em data que se crê ser 1523.
Regressou à sua terra, tendo seu pai já falecido (1521), onde exerceu durante algum tempo, tendo-se deslocado a Lisboa a fim de fazer exame perante o físico-mor para poder exercer medicina e pedir licença para andar de mula em Abril de 1526.
Na região de onde era oriundo começaram a surgir muitas queixas contra os judeus, assumidos ou ocultos, razão que o deve ter impelido a fixar-se em Lisboa nesse mesmo ano, onde passou a exercer o seu mister, ao mesmo tempo que começou a desenvolver esforços para leccionar cadeiras na Universidade, por considerar que ali se encontraria mais protegido.
Foi admitido em 1530, regendo algumas cadeiras e eleito como deputado da Universidade em 1533.
Por esta altura, o Rei sofria fortes pressões para que fosse instituída a Inquisição em Portugal, pelo que os cristãos-novos, declarados ou não, se sentiam inseguros e começaram a tomar providências para sair do país.
O seu velho amigo, Martim Afonso de Sousa, pertencia desde alguns anos atrás, à casa de D. João III, foi designado como capitão-mor do mar da Índia, afim de defender as feitorias portuguesas dos ataques de corsários e ocupação por estrangeiros.
Foi Garcia de Orta integrado na armada como físico do seu amigo, a quem Orta dedicou o seu livro, apelidando-o de seu protetor, referindo que o criou, ajudou, favoreceu e disse que lhe pertencia.
A esquadra, composta por cinco naus, partiu para o Oriente a 12 de Março de 1534 chegando a Goa em Setembro desse mesmo ano.
Orta partiu, não só porque se sentia mais seguro na Índia, onde não se vislumbravam movimentos contra os judeus, como também, como nos revelou no início da sua obra, pelo seu grande desejo de conhecer as drogas medicinais e outras mezinhas, assim como as frutas, a pimenta, saber seus nomes em todas as línguas, os lugares onde nasciam, como eram as plantas que as produziam, como as usavam os médicos indianos. Para além disto, queria ainda conhecer outras plantas e frutas, mesmo que não fossem medicinais, bem como os costumes e acontecimentos locais.
Acompanhou Afonso de Sousa em todos os seus empreendimentos como físico da armada, durante os quatro anos que durou a empresa daquele.
Orta teve ensejo de percorrer a grande parte dos lugares portugueses e alguns indianos, testemunhou tratados de paz com reis locais, fortes combates, assistiu a tratamentos feitos por médicos árabes, entre outros acontecimentos.
Durante aquelas deslocações nunca perdeu o ensejo de ir a terra sempre que aportavam, de conhecer as plantas, as doenças que existiam, os locais, as raças, os costumes, as línguas, tudo o interessava e tudo observava atentamente.
Afonso de Sousa regressou ao reino em finais de 1538 e Orta permaneceu em Goa, pois a Inquisição tinha sido estabelecida em Portugal em 1536.
Em Goa adquiriu uma casa, exerceu a sua profissão, não só junto de figuras relevantes, mas também de todos que dele necessitassem; também no hospital e prisão, tinha alguns amigos, ia todos os dias à missa, mantinha relações amistosas com Franciscanos, Dominicanos e Jesuítas e participava em cerimónias académicas destes.
Na sua casa, tinha uma biblioteca com os livros que levou com ele e os que lhe chegavam enviados do reino, estando na posse de tratados de medicina e história natural de recente publicação e criou um pequeno museu com amostras que arranjou das diversas drogas medicinais que ia conhecendo.
Esta habitação tinha um quintal onde Orta fazia sementeiras e plantações do que lhe parecia interessante, como diversos jambeiros e outras fruteiras.
Apreciava percorrer o bazar das drogas onde existiam numerosos estabelecimentos de médicos indianos, muçulmanos o outros. Observava tudo com atenção, conversava com todos, inquiria sobre tudo o que era usado medicinalmente e suas propriedades e de como as aplicavam, etc.
Fez amizade com o rei de um estado indiano nosso aliado, Buhran Nizam Shah, a quem os portugueses chamavam Nizamaluco, um mulçumano de grande tolerância religiosa, que se rodeava de homens de ciências e letras de todas as raças. Passou várias vezes por esta corte onde pôde conviver, entre outros, com médicos árabes e indianos, com os quais muito aprendeu e tirou dúvidas; e para seu espanto, tinham conhecimento dos textos antigos, tanto dos árabes, como dos da Antiguidade Clássica.
Como entendido na matéria, também se ocupou em comerciar drogas, pérolas e pedras preciosas que enviava para o reino.
Martim Afonso de Sousa voltou à Índia em 1541, como Vice-Rei, lugar que ocupou até 1546. Quando chegou, nomeou Garcia de Orta como seu físico, o que lhe conferiu o lugar de Físico-mor.
Casou entre 1541 ou 1542 com Brianda Solis, sua prima, que pertencia a uma família rica, que se deslocou para Goa na primeira data referida. Do seu casamento nasceram duas filhas. Parece não ter sido feliz neste enlace, uma vez que nunca se refere à sua família nos Colóquios, ao contrário do que faz com os seus amigos.
Em 1548 foi-lhe cedida, por aforamento, a ilha de Mombaim, mais tarde denominada Bombaim. Aqui tinha uma casa e um jardim muito cuidado, no qual dispôs arbustos e árvores, por ele consideradas interessantes, provenientes das mais variadas origens, até europeias, nunca antes vistas nestas paragens. Foi onde se tentou, pioneiramente, a aclimatação de espécies, o prenúncio de um Jardim Botânico.
Neste mesmo ano chegaram a Goa duas das suas irmãs, Catarina e Isabel, com a respetiva família, e sua mãe, que ele chamara de Lisboa. As irmãs tinham estado aprisionadas pelo Santo Ofício, conseguindo sair em liberdade.
Mais tarde privou com Camões, que chegou a Goa em 1559.
Contudo, em 1560 foi implementada a Inquisição em Goa.
Orta escrevia o seu livro que foi publicado em 1563, sob licença do Inquisidor Aleixo Dias Falcão.
Em Lisboa tinha sido preso seu sobrinho, filho do seu meio-irmão, em 1561, conseguindo sair reconciliado em 1563. No entanto, nos depoimentos que prestou, disse que "tinha um tio, meio-irmão de seu pai, que andava na Índia e se chamava Garcia Orta".
Estas informações chegaram a Goa, mas Orta tinha grande prestígio na cidade, quer pelo exercício da sua profissão, quer pela publicação dos Colóquios e o Inquisidor tinha licenciado a publicação, pelo que, então, nada lhe aconteceu.
Em 1568 estava doente, tendo falecido no primeiro semestre do ano, sendo o funeral feito sem nada lhe acontecer.
No entanto, na posse dos elementos que tinha, o Inquisidor mandou prender a irmã Catarina em Outubro daquele mesmo ano. Nos depoimentos que aquela prestou acusou seu irmão de práticas judaizantes e outras pessoas, desdisse-se várias vezes alternando em seguir a lei de Moisés ou ser cristã, acabando por ser condenada em Outubro do ano seguinte. No fim do seu processo figura a lista das pessoas incriminadas e que deviam ser procuradas, onde se incluía o nome de Orta.
O Inquisidor Aleixo Dias Falcão deixou o cargo em 1572, sucedendo-lhe Bartolomeu da Fonseca, que chegou a Goa em Outubro daquele ano.
O novo Inquisidor, tal como aconteceu com outros, abriu um processo, onde Garcia de Orta foi considerado judeu praticante, apesar de ser batizado e praticar atos cristãos, tendo sido lavrada a sentença: Garcia dorta doutor cristão-novo português defunto morador que foi nesta cidade (Goa) por judeu entregue seus ossos à justiça secular. Relaxado.
O auto de fé foi realizado em 4 de Dezembro de 1580 e os seus ossos lançados à fogueira doze anos após a sua morte.
Como Aragão (1894) referiu, a inquisição alcançava até os mortos. Os crimes de heresia nunca prescreviam. Se aqueles fossem reconhecidos posteriormente, os cadáveres ou os esqueletos eram exumados, levados ao auto de fé. Ser considerado relaxado implicava a vítima ser queimada na fogueira e os seus bens sequestrados.
Nos anos seguintes, a Inquisição de Goa emitiu uma ordem para que as livrarias fossem visitadas e os livros nelas existentes de autores infiéis ou que continham matéria suspeita e não tinham sido autorizados pelo tribunal, fossem queimados, pelo que a grande obra foi apreendida e teve destino idêntico.
Nas cópias dos processos em Goa, à irmã Catarina e seu marido, tal como nos anteriormente em Lisboa de Catarina e Isabel, faltam os elementos que eram anotados antes do interrogatório, como ascendentes, data da prisão, denunciantes e respectivas declarações, o que foi mais um motivos para o esquecimento do nome de Orta e saber quais os seus ascendentes.
O nome de Garcia de Orta, em Portugal, foi praticamente esquecido e ignorado desde aquela altura até ao século XIX.
Foi referido apenas por Abraão Zacuto, que foi Astrónomo de D. João II e prestou relevantes serviços a Portugal, de onde conseguiu fugir quando da ordem de D. Manuel, e viveu no estrangeiro. Mencionou o nome do nosso médico nas suas obras.
COLÓQUIOS DOS SIMPLES, E DROGAS
Garcia de Orta escreveu o seu livro, em 1563, de título: Coloquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India, e assi dalguas frutas achadas nella onde se tratam alguas cousas tocantes amedicina, pratica, e outras cousas boas, pera saber
A capa, a seguir ao título, apresenta: cõpostos pelo Doutor garcia dorta: físico del Rey nosso senhor, vistos pello muyto Reverendo senhor, ho licenciado Alexos diaz: falcam desembargador da casa da supricaçã inquisidor nestas partes.
Seguindo-se: Com privilégio do Conde viso Rey.
E: Impresso em Goa, por Joannes de enden as x. dias de Abril de 1563. annos.
Constata-se que apresenta, para além do título, nome do autor e sua categoria profissional, a informação relativa à autorização do Inquisidor de Goa, a concessão do Vice-rei, e a relativa à edição.
Esta edição tipográfica foi muito imperfeita, contendo muitos erros. Estes terão ocorrido devido à ausência do impressor principal e ter ficado nas mãos de um companheiro, que não era muito hábil nem sabia do ofício, como foi referido por Dimas Bosque no seu Prólogo no livro.
O autor ainda tentou corrigir os erros que detectou, num texto final, mas sem grande sucesso.
Não podemos abordar a obra de Garcia de Orta sem nos debruçarmos sobre a Edição publicada pela Academia Real das Ciências de Lisboa, dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho, em 1891-1895.
A Academia encarregou o Conde de Ficalho da publicação, revisão do texto e redacção de notas.
O trabalho foi feito procurando deixar inalterada a doutrina, linguagem e ortografia do autor, escrever por extenso as palavras que estavam abreviadas, regularizar as letras maiúsculas que no século XVI não tinham regras fixas, pôr em itálico as palavras latinas, procurar pontuar o texto de modo a dar sentido às frases e corrigir os erros tipográficos que ocorreram durante a impressão.
Ficalho introduziu notas com o que de mais recente se sabia sobre os diversos assuntos tratados no texto, quer a nível da botânica, identificando as plantas referidas pelo seu nome científico à época, dando alguma informação sobre as plantas ou drogas em questão, assim como da matéria médica do Oriente, geografia e história e identificando as pessoas tratadas.
Não podemos, contudo, olvidar os valiosos contributos e análises que têm vindo a ser dados por outros historiadores.
Analisando o livro, este apresenta em primeiro lugar o alvará do vice-rei pelo qual, durante três anos, ninguém podia publicar a obra sem licença do autor, sob pena de multa.
Segue-se o Prólogo com diversas participações.
A primeira, do autor, dedicando a obra a Martim Afonso de Sousa pelo autor, em prosa, e em verso o envia ao seu benfeitor para análise e proteção.
Torna-se importante fazer a sua análise porque o autor apresenta elementos interessantes.
Para além do elogio do seu protetor, diz ainda que este lhe tinha aconselhado a passar a escrito o que sabia, o que para ele é uma ordem e solicita-lhe que o defenda.
Revela que tinha composto primeiramente o livro em latim, o que seria de maior gosto para Martim Afonso, mas que o pôs em português por ser mais geral a sua compreensão, sobretudo para os que habitam aquela terra.
Refere também que ainda não produzira nada que aproveitasse aos mortais após trinta anos que estava naquela terra, o que era motivo de repreensão, porque: aqueles que por preguiça não deixam aos vindouros alguma mostra dos seus trabalhos, como fazem os brutos animais, não se podem chamar homens, pois pouco diferem daqueles.
Seguem-se os primeiros versos impressos de Luís de Camões, ao Vice-rei, O Conde do Redondo.
Dimas Bosque apresenta duas intervenções: uma em português, onde faz grande elogio do autor, traça o seu percurso de vida e comentários a que já anteriormente aludimos; e outra em latim, dirigida a Thomaz Rodrigues da Veiga, cristão-novo de ascendência espanhola, médico e professor prestigiado da Universidade de Coimbra, pedindo-lhe a sua protecção para a obra.
Segue-se uma composição em verso e em latim, de Thoma Caiado elogiando a obra que, segundo Ficalho, deveria ser um cidadão de Goa, com fama de latinista, que aparece citado como tendo feito um louvor a D. João de Castro após a tomada de Diu.
Vem em seguida a obra, sob a forma de 58 colóquios, onde as diversas plantas, drogas, frutas e outras abordagens se dispõem por ordem alfabética.
Os colóquios desenvolvem-se entre dois interlocutores, Ruano e o próprio Orta, colegas na Universidade, entrando, por vezes, outras personagens.
Ruano, também médico, vai à Índia afim de conhecer as suas mezinhas e todos os simples. Tendo ouvido falar de Orta, conhecendo-se eles de longa data, vai-lhe falar para que o esclareça. Interpreta o papel do que sabia e pensava o autor ao chegar à Índia transportando o seu conhecimento adquirido na Universidade, ou seja, segundo os textos antigos.
Garcia de Orta vai esclarecendo o amigo acerca de cada matéria, encarnando o Orta daquela presente época, já com o conhecimento adquirido nos anos passados no Oriente, mas apreendido da realidade observada atentamente, experimentada, objetivada, amadurecido pela experiência, que lhe permitia tirar conclusões. Só afirma que alguma coisa é boa, depois de o ter testemunhado ou recebido a informação de pessoas conhecedoras e nas quais depositava confiança.
Consiste numa apresentação de plantas asiáticas, algumas conhecidas de há muito, mas de forma deturpada, incompleta, ou apenas sob a forma de droga.
Cada Colóquio apresenta-se segundo o modelo predeterminado, no qual se salienta a denominação da planta em cada língua da região, proveniência, distinguindo os países de origem natural daqueles onde se cultivava, descrição da planta, apresentando o porte, o caule, as raízes, as folhas, flores e frutos, analogias com europeias, para que se usavam e modo de o fazer.
Trata-se de uma exposição em moldes científicos iniciada pelos renascentistas.
Nota-se, ainda, a chamada de atenção para as diversas partes da planta que se deveria usar para cada caso e que as propriedades daquela variam de acordo com a sua proveniência.
Continua a ser uma constatação científica. As propriedades da planta variam de acordo com a composição química de cada órgão e a influência do habitat.
O diálogo desenvolve-se num permanente questionar do saber tradicional perante o novo, apresenta-se com um constante intercâmbio de opiniões. Deste modo, são criticadas muitas das informações dos autores clássicos, emendadas e clarificadas de acordo com a realidade observada. Não menos-preza aqueles, mostra que lhes tem respeito, mas, pela experiencia vivida, permite-se corrigi-los.
Pela forma como tirou conclusões, após uma cuidadosa observação e experimentação e a crítica segura e penetrante dos antigos, integra o movimento intelectual da Renascença (Carvalho, 1934).
A atitude que tomou, conhecia e queria dar a conhecer, e a forma como o fez, representa um sinónimo de modernidade, é a atitude de um renascentista, exige conhecimentos e ousadia (Lopes, 2006).
Ainda como forma renascentista, a obra de Orta foi apresentada em diálogo como intercâmbio de opiniões, enquanto o diálogo como transmissão de conhecimento vinha desde a Antiguidade (Siepmann, 2008).
A obra de Garcia de Orta constitui o primeiro contributo científico europeu para o conhecimento das plantas orientais, na maioria medicinais.
Para além de plantas também aborda outros aspectos, como algumas das suas viagens, as relações sociais que mantinha e apontamentos da sua vida doméstica, o que permitiu conhecer como terá sido a sua vida na Índia.
Esta obra constitui o primeiro livro de medicina escrito em português e por um médico (Carvalho, 1934).
Os "Colóquios" constituem ainda hoje uma obra notável no tocante às drogas indianas. Como cita Ficalho (1983), o Doutor F. A. Fluckinger, Professor de Farmacognosia da Universidade de Strassburg, escreveu no final do século XIX " Os Colóquios são sobretudo notáveis pela riqueza das informações e pelas descrições muito circunstanciadas... Sempre que se tratar da história das drogas indianas será necessário recorrer a Garcia de Orta os Colóquios ocuparão um lugar de honra na história da Farmacognosia".
DIFUSÃO DA OBRA
Orta, ao optar por o escrever o seu livro em português, limitou a sua divulgação internacional.
A língua erudita na época era o latim.
Charles de l'Écluse, conhecido pelo nome latinizado de Carolus Clusius, em português Carlos Clúsio, teve papel primordial para aquela mensagem científica ser difundida internacionalmente.
Foi um médico e botânico Flamengo, de renome na Europa no século XVI. Esteve na Península Ibérica em viagem científica que iniciou em 1564. Em Lisboa teve oportunidade de ver os Colóquios, que lhe despertaram enorme interesse, obtendo um volume.
Publicou um livro em Antuérpia, em latim, em 1567, com o título Aromatum et simplicium aliquot medicamentorum apud indos nascentium historia.
Este título corresponde a uma versão dos Colóquios, onde foram conservadas todas as indicações científicas, mas retirada a forma de diálogo, e tudo o que ele considerou a mais, alterada a ordem das matérias, introduzidas numerosas notas e intercaladas 17 gravuras, tendo tido o cuidado de mencionar na capa que era uma obra reduzida de uma escrita dois anos atrás, em diálogo e em português, por Garcia de Orta, médico do Vice-rei.
Esta obra teve enorme aceitação e foi alvo de grande difusão, no entanto ao alterar a sua estrutura e o diálogo metodológico e cultural, permanecendo apenas o conteúdo científico, a novidade, retirou-lhe o caráter renascentista, permanecendo apenas o factual (Lopes, 2006).
Sobre a difusão dos Colóquios, apoiamo-nos nos trabalhos de Silva (1934) e Jaime Walter (1963).
Os Colóquios foram difundidos por meio da versão de Clúsio, que teve cinco edições até 1605, por vezes com mais algumas anotações.
A sexta edição foi publicada em 1963, na Holanda, facsimilada da primeira, comemorativa da edição goesa de Orta.
A sétima edição, fac-simile da primeira, consistiu numa versão portuguesa e latina do livro de Clúsio, comemorativa do quarto centenário da publicação dos Colóquios dos Simples, editada em Lisboa, pela Junta de Investigações do Ultramar, em 1964.
A versão de Clúsio foi traduzida para italiano, em Veneza, que foi alvo de nove edições até 1616.
Também teve uma tradução para francês, com duas edições: a primeira em 1602 e a segunda em 1619.
Relativamente às edições dos Colóquios na sua versão original, apenas tiveram cinco edições até aos nossos dias e uma tradução.
Verifica-se que da original, de 1563, se encontram muito poucos exemplares, cerca de vinte e quatro em todo o mundo.
Ocorreu uma edição em 1872, da responsabilidade da Imprensa Nacional, Lisboa, dirigida por Francisco Adolfo Varnhagen. Foi uma edição feita em ortografia modernizada, com diversos erros. Teve pequena tiragem e o título contém um acrescente "Várias cultivadas hoje no Brasil". Teve a virtude de dar a conhecer o livro, no século XIX, tão falado, mas tão pouco conhecido.
À Academia das Ciências de Lisboa se deve a edição crítica e cuidadosamente anotada do Conde de Ficalho. As notas são exaustivas, incluindo a identificação científica das espécies tratadas. A obra ficou assim mais longa, pelo que foi desdobrada em dois volumes, datados respectivamente, de 1891 e 1895.
Esta obra teve em 1987 a sua 2ª edição fac-similada, editada em Lisboa pela Imprensa Nacional.
Surgiu este ano, 2011, a sua 3ª edição, reproduzida em fac-símile da edição de 1987 e da 2ª edição reproduzida em fac-símile da edição de 1891, editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Ocorreu em 1963 uma edição, publicada pela Academia das Ciências, que é uma reprodução fac-similada da edição de Goa, comemorando o quarto centenário da primeira edição.
Uma tradução para inglês da edição do Conde de Ficalho, foi publicada em 1913, em Londres, com introdução e índice de Sir Clements Markham.
Esta tradução foi novamente publicada em 1987, em Delhi, na Índia, pelo Periodical Expert Book Agency, no entanto parece conter muitos erros.
CONCLUSÕES
Do exposto verifica-se que:
Garcia de Orta, nos Colóquios dos simples e das drogas e coisas medicinais da Índia , integra o movimento intelectual da época, sendo um dos portugueses que melhor representa a Renascença científica de quinhentos.
Os Colóquios tiveram larga repercussão internacional, contribuindo decisivamente para o avanço da ciência botânica, medica e farmacognosia, nomeadamente tropical.
A primeira difusão ocorreu na Europa, graças à intervenção de Clúsio.
A difusão integral do texto, internacionalmente, só ocorreu após a edição anotada pelo Conde Ficalho.
Teve enorme repercussão internacional no mundo científico da época.
Continua a ser alvo de vários estudos e análises, por nacionais e estrangeiros, pelo que a edição ocorrida no corrente ano veio colmatar uma falta há muito sentida pelos investigadores.
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Recepção/Reception: 2011.04.27
Aceitação/Acception: 2011.05.08
*1º Colóquio Garcia de Orta: Plantas Medicinais. Lisboa, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, 2011.04.12.