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Revista de Ciências Agrárias
versão impressa ISSN 0871-018X
Rev. de Ciências Agrárias vol.40 no.spe Lisboa dez. 2017
https://doi.org/10.19084/RCA16169
ARTIGO
ECONewFARMERS: Construir pontes entre agricultura familiar e biológica através da formação vocacional
ECONewFARMERS: Building bridges between family and organic farming through vocational training
Helena Esteves Correia1, Davide Gaião1, Paula Correia1,2, Raquel Guiné1,2, Daniela Teixeira1 e Cristina Amaro Da Costa1,2,*
1Escola Superior Agrária de Viseu /Instituto Politécnico de Viseu, Quinta da Alagoa, Estrada de Nelas, Ranhados, 3500-606, Viseu, Portugal
2CI&DETS, Instituto Politécnico de Viseu, Av. Cor. José Maria Vale de Andrade, Campus Politécnico, 3504-510, Viseu, Portugal
(*E-mail: amarocosta@esav.ipv.pt)
RESUMO
O projecto ECONewFARMERS, em parceria com países da União Europeia (Hungria, Espanha, Itália, Turquia, Reino Unido e Eslováquia) tem como foco principal melhorar a qualidade e desempenho dos sistemas de ensino e formação profissional de modo a reforçar a dimensão europeia em agricultura biológica.
O conhecimento e a formação técnica são essenciais para a adoção da agricultura biológica, pelo que o projecto ECONewFARMERS Construir o futuro com novos agricultores em modo de produção biológica através de formação vocacional pretende contribuir para a capacitação técnica de agricultores que queiram converter-se ou iniciar uma exploração em agricultura biológica e disponibilizar ferramentas m-learning (aprendizagem em contextos de mobilidade) que permitam melhorar a sua capacidade de intervenção e de inovação.
Deste modo, pretendeu-se com este trabalho caraterizar as práticas agrícolas utilizadas por agricultores familiares no concelho de Viseu e avaliar a proximidade destes itinerários técnicos com a agricultura biológica de modo a identificar as necessidades de formação destes (ou de novos) agricultores. A identificação das práticas agrícolas foi efetuada com base numa checklist que foi aplicada a 30 agricultores cujas explorações têm dimensão igual ou inferior a 2 hectares, com mão-de-obra constituída pelo agregado familiar e cujos rendimentos sejam maioritariamente provenientes da exploração.
Palavras-chave: agricultura biológica, agricultura familiar, ECONewFARMERS, itinerários técnicos, checklist.
ABSTRACT
The ECONewFARMERS project, a partnership with EU countries (Hungary, Spain, Italy, Turkey, United Kingdom and Slovakia) focuses primarily on improving the quality and performance of education and vocational training in order to strengthen the European dimension in organic farming.
Knowledge and technical training are essential for the adoption of organic farming, so the project ECONewFARMERS - Building the future with new farmers in ecological faming through vocational training aims to contribute to the technical training of farmers who want to convert or start a farm in organic farming in m-learning (learning in mobility contexts) and to provide tools to improve their capacity and innovation..
In this way, this work intends to characterize the agricultural practices used by family farmers in the municipality of Viseu and to evaluate the similarity of these technical itineraries with organic farming theoretical profile in order to identify the training needs of these (or new) farmers. The identification of agricultural practices was based on a survey using a checklist method that was applied to 30 farmers whose farms have 2 or less than 2 hectares, with work labor constituted by family members and whose income is mainly from the farm.
Keywords: organic farming, family farming, ECONewFARMERS, technical itinerary, checklist.
INTRODUÇÃO
Recentemente, a agricultura familiar como forma de garantir a produção agrícola, silvícola, assim como a pesca e o pastoreio, baseada em explorações de pequena dimensão, geridas por uma família e que depende essencialmente de mão-de-obra familiar não assalariada, tornou-se um elemento central no debate público pelo papel fundamental que tem no mundo rural (FAO, 2014). A sua importância económica, ambiental, social e cultural levarou a que a Organização das Nações Unidas declarasse que 2014 fosse o Ano Internacional da Agricultura Familiar, com o objetivo, entre outros, de reforçar o seu papel na segurança alimentar e enquanto sistema de produção sustentável.
Das cerca de 570 milhões de explorações agrícolas no mundo, mais de 500 milhões são de agricultura familiar. A maioria destas explorações é de pequena dimensão mais de 475 milhões de explorações têm menos de 2 hectares (Lowder et al., 2014). Ainda assim, estima-se que 70% dos alimentos no mundo sejam produzidos por agricultores familiares e que 40% das famílias do mundo dependam deste tipo de explorações como forma de vida (FAO, 2014).
Na Europa, de acordo com o conceito da FAO, cerca de 97% das explorações agrícolas são familiares, que passaram de geração em geração e mantiveram um conjunto de tradições e valores culturais (Peters, 2013), que importa preservar e valorizar.
Em Portugal, o setor agrícola é alicerçado, em grande parte, em explorações familiares. Das cerca de 280 mil explorações existentes no Continente, aproximadamente 96% são explorações familiares que utilizam permanente e predominantemente mão-de-obra pertencente ao agregado familiar. Estas explorações ocupam 67% da Superfície Agrícola Utilizada do continente, o que revela o seu impacto na economia local e nacional (INE, 2011; DGADR, 2014).
Através da agricultura biológica, que assenta em princípios como assegurar o equilíbrio do solo para garantir o crescimento das culturas, principalmente através da manutenção do teor de matéria orgânica e da promoção da atividade biológica do solo, otimizar os ciclos de nutrientes através da gestão dos animais e das plantas no espaço e no tempo (por exemplo, através de rotações e consociações), ou manter relações de proximidade com o mercado, de forma a garantir qualidade dos produtos, a agricultura familiar pode atingir novos patamares de sucesso e inovação (Auerbach et al., 2013).
São disso exemplo inúmeros casos de sucesso, decorrentes de projetos e modelos de desenvolvimento rural que se centraram no estabelecimento de pontes entre agricultura familiar e agricultura biológica. A produção de algodão na África Oriental, de óleos essenciais por agricultores do Butão ou as cooperativas de agricultores do Tirol austríaco revelam que a integração de princípios de agricultura biológica na lógica de produção das explorações familiares pode contribuir para a melhoria técnica, económica e social destas explorações e famílias (Krug, 2012; Auerbach et al., 2013; von Dach et al., 2013).
O conhecimento e a formação técnica são essenciais para a adoção da agricultura biológica, pelo que o projeto ECONewFARMERS - Construir o futuro com novos agricultores em modo de produção biológica através de formação vocacional pretende contribuir para a capacitação técnica de agricultores que queiram converter-se ou iniciar uma exploração em agricultura biológica, em m-learning aprendizagem em contextos de mobilidade - e disponibilizar ferramentas que permitam melhorar as suas capacidades de intervenção e de inovação (Costa et al., 2014).
O projeto utilizará um conjunto de ferramentas de aprendizagem e conteúdos adaptados à realidade e necessidade do público-alvo, em particular de novos agricultores e de explorações de agricultura familiar. Será criado um curriculum de formação específico, que possa ser disponibilizado à distância, num formato de grande autonomia dos formandos e que se possa adaptar às suas necessidades (Guiné et al., 2015).
A definição destes conteúdos deverá ser ajustada a uma matriz de conhecimento e técnicas que possam aproximar da prática da agricultura biológica e que tenham sido identificadas em conjunto com o público-alvo. Neste sentido, pretende-se identificar e caraterizar as práticas agrícolas utilizadas por agricultores familiares no concelho de Viseu e avaliar a proximidade destes itinerários técnicos[1] com as práticas e princípios da agricultura biológica. A identificação das práticas agrícolas (procedimentos técnicos e tecnológicos adotados em cada etapa do itinerário técnico) pode ser realizada com base na aplicação de inquéritos por questionário, mais ou menos complexos (Amaro et al., 2000; Kuiper, 2000; Zoraida, 2005). Esta metodologia permitirá (i) identificar os procedimentos técnicos e tecnológicos adotados nas explorações familiares, isto é, quais as operações culturais e subsequentes tarefas agrícolas realizadas e (ii) avaliar as semelhanças (proximidade) com o modelo teórico, neste caso, o modelo de itinerário técnico teórico adotado em agricultura biológica.
MATERIAL E MÉTODOS
A identificação dos procedimentos técnicos e tecnológicos adotados nas explorações familiares foi realizada através da aplicação de um questionário com base numa checklist [2] (questionário simplificado, em que se reduz a necessidade de respostas por parte do inquirido). A checklist foi construída com base no itinerário técnico adotado em explorações em agricultura biológica e em informação presente em documentos técnicos e científicos (Amaro, 2007; Mourão, 2007; Barrote, 2010; Strohbehn, 2015), e estruturada em cinco partes: caracterização sociodemográfica do inquirido, caraterísticas da exploração, itinerário técnico (espécies, gestão e preparação do solo, fertilização, rega, intervenções em verde, proteção da cultura), produção animal e comercialização.
O questionário (checklist) foi aplicado a 30 responsáveis (chefes de exploração) de explorações agrícolas com dimensão igual ou inferior a 2 hectares, que utilizam mão-de-obra maioritariamente do agregado familiar e cujos rendimentos são na maioria provenientes da exploração, pertencentes ao distrito de Viseu.
A aplicação da checklist decorreu nos meses de novembro e dezembro de 2015, no distrito de Viseu, e a seleção dos agricultores foi aleatória e distribuída pelo distrito de Viseu, com base na listagem de produtores presentes no mercado semanal de Viseu disponibilizada pela Associação de Desenvolvimento Dão Lafões e Alto Paiva, respeitando os requisitos pré definidos.
Foi realizada uma análise descritiva e exploratória dos dados recolhidos, com recurso ao software Microsoft Excel 2010®.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A idade média dos agricultores inquiridos é 64 anos, e incluiu 87% de mulheres e 13% de homens (Quadro 1). A maioria destes agricultores (90%) tem como habilitação literária o 4º ano, ou menos.
A área média das explorações é 1,6 ha, sendo que 26,6% apresenta área média de exploração de 1 ha e 23,4% entre 1 e 1,55 ha. Os restantes 50% possuem uma área média da exploração entre 1,5 e 2 ha. A mão-de-obra é essencialmente assegurada por elementos da família e corresponde, em média, a 2,2 trabalhadores incluindo o responsável.
Relativamente à adoção de práticas culturais relacionadas com escolha de culturas, espécies e escolha de material de sementeira e plantação, os agricultores inquiridos adotam uma grande diversidade de culturas (principalmente culturas hortícolas sazonais), preferem variedades regionais e uma grande parte opta, sempre que possível, por fazer consociações culturais (Figura 1). Quanto à diversidade de variedades, apenas 6,7% dos agricultores utiliza mais que uma variedade por espécie. Cerca de 16,7% dos agricultores possui viveiro próprio, ou seja, a maioria recorre à aquisição de plantas oriundas de outras explorações/viveiros. Por último, nenhum dos agricultores inquiridos inocula as sementes/plantas com micorrizas previamente à sua sementeira/plantação nem utilizam espécies geneticamente modificadas (OGM).
As práticas culturais relacionadas com a gestão do solo analisadas são a realização de rotações culturais e pousio, a utilização de matéria orgânica (MO) de origem animal e adubação em verde, a cobertura do solo e a compostagem (Figura 2a). A maior parte dos agricultores familiares inquiridos baseiam o seu plano de exploração na rotação de culturas, mas apenas 30% referiram deixar as terras em pousio durante algum período do ano cultural. Os inquiridos que não adotam esta prática do pousio, referiram que não o fazem para não reduzirem o retorno financeiro da terra a curto prazo.
A adição de matéria orgânica de origem animal e também restos de plantas (adubação verde) antes das plantações e sementeiras, de modo a fornecer ao solo os nutrientes necessários para o bom desenvolvimento das suas culturas e a contribuir para a manutenção e/ou melhoria da sua estrutura é uma prática adotada pela maioria dos agricultores.
Relativamente à utilização de cobertura do solo para controlo de infestantes, prática fundamental em agricultura biológica, constata-se que apenas 20% dos agricultores familiares inquiridos a utiliza. Quanto à técnica de compostagem, nenhum dos agricultores a realiza.
As práticas relacionadas com a preparação do solo, quer para a instalação da cultura quer para o combate a infestantes, incluíram a mobilização manual ou mecânica, e dentro desta última a utilização de diversas alfaias agrícolas (charrua de aivecas, grade de discos, alfaia de bicos, entre outras) e a possibilidade de manutenção de um revestimento de infestantes (Figura 2b). A mobilização manual é utilizada pela grande maioria dos agricultores, enquanto 96,7% dos agricultores familiares acrescem ações de mobilização mecânica. Neste caso, a máquina agrícola mais frequente na preparação do solo é a grade de discos (66,7%), a que se seguem a charrua da aivecas e as alfaias de bicos (30% e 16,6% dos agricultores respetivamente). A presença de infestantes nas parcelas da exploração só é aceite por 3,3% dos inquiridos que não as removem totalmente e beneficiam, assim, das vantagens da presença destas infraestruturas ecológicas (Boller et al., 2004; Nunes et al., 2015).
As intervenções em verde são técnicas culturais cada vez mais utilizadas nos sistemas de produção sustentáveis, pois promovem um acréscimo de qualidade da produção através da melhoria do ambiente ao nível da canópia (remoção de rebentos e folhas, orientação da vegetação, entre outras) que promove a redução de incidência de pragas e doenças, melhora a exposição foliar e reduz o número de frutos com o consequente aumento de calibre e qualidade (Costa et al., 2016). Entre os agricultores inquiridos, 76,7% utilizam tutores nas suas culturas quando adequado. No entanto, apenas 26,7% efetuam podas de rebentos, 70% desfolha e 20% monda de frutos (Figura 3). Nenhum dos agricultores familiares inquiridos utiliza fitorreguladores para estimular o crescimento e desenvolvimento das plantas.
É cada vez mais reconhecido que a proteção das culturas desempenha um papel fundamental na produção de alimentos, quer em quantidade quer em qualidade, desde logo nos sistemas de produção convencional e intensivo, dependentes essencialmente do uso de pesticidas, quer em sistemas de produção sustentáveis, como a agricultura biológica ou a produção integrada que dependem preferencialmente da adoção de medidas de luta indiretas e do uso de meios de luta alternativos à luta química (Amaro, 2003; Rickard, 2010).
No que diz respeito às opções de proteção das culturas dos agricultores familiares do distrito de Viseu, verifica-se que nenhum utiliza a luta biológica, todos recorrem à luta física e genética (escolha de espécies e variedades/cultivares resistentes) e 73,3% recorrem à luta química (Figura 4). Os meios de luta cultural são adotados em 66,7% dos casos e a luta biotécnica (armadilhas) em cerca de 16,7%. A adoção de medidas de luta preventivas verifica-se em 26,7% das explorações, cujos responsáveis estão conscientes dos seus benefícios e as utilizam regularmente.
CONCLUSÕES
A identificação dos procedimentos técnicos e tecnológicos adotados nas explorações familiares é essencial para avaliar as semelhanças (proximidade) com o modelo de itinerário técnico teórico adotado em agricultura biológica. Este conhecimento permitirá identificar as necessidades de formação essenciais para a adoção deste modo de produção por novos agricultores e por agricultores familiares.
Com base nos resultados obtidos é possível constatar que uma parte das técnicas e tecnologias adotadas nas explorações de agricultura familiar, no concelho de Viseu, são coincidentes com algumas das práticas fundamentais em agricultura biológica: diversidade cultural com preferência por variedades regionais, consociações culturais, rotação de culturas, adição de matéria orgânica de origem animal e também restos de plantas (adubação verde) antes das plantações e sementeiras, desfolhas manuais ou a utilização de luta física e genética para o combate a pragas e doenças.
Algumas práticas, como o pousio, a utilização de intervenções em verde, a produção de plantas em viveiros próprios ou de sementes, ou a adoção da luta biotécnica, são utilizadas por alguns agricultores familiares, mas a sua adoção não está ainda generalizada.
Por outro lado, há ainda muitos processos e técnicas essenciais para o sucesso das explorações de agricultura biológica que não são utilizadas pelos agricultores familiares, nomeadamente, inoculação de sementes/plantas com micorrizas, a compostagem, tolerância de revestimento do solo composto por infestantes, ou a utilização de luta biológica.
É neste âmbito que a disponibilização de ferramentas m-learning relacionadas com estas temáticas através do projeto ECOnewFARMERS pode surgir como uma ponte entre a agricultura familiar e agricultura biológica, ao contribuir para o aumento de conhecimento em agricultura biológica, o que pode constituir um fator de vantagem e sucesso para estas explorações. Através da adoção da agricultura biológica, estes agricultores (novos agricultores ou agricultores familiares) poderão incorporar uma tecnologia inovadora que visa a produção de alimentos nutritivos e de alta qualidade, sem recurso a produtos químicos de síntese nem organismos geneticamente modificados, em simultâneo com a redução de impactos ambientais negativos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Recebido/received: 2016.12.22
Aceite/accepted: 2017.01.27
[1] Os itinerários técnicos são modelos técnicos e tecnológicos teóricos que identificam (i) o conjunto ordenado das operações culturais, (ii) o conjunto ordenado das tarefas agrícolas que são necessárias para executar cada uma das operações culturais identificadas e (iii) cada uma das tecnologias que se são adoptadas para a realização de cada tarefa agrícola (Amaro et al., 2000; Zoraida, 2005).
[2] Uma checklist consiste numa lista simples de afirmações (ações) ou características relativamente às quais se indica se estão presentes (ou são desejáveis) ou não. Para cada item individual, é obtido um valor médio ou percentagem de adoção (presença) de cada variável de carácter binomial (Kirakowski, 2000; Kuiper, 2000).