INTRODUÇÃO
No modelo de economia circular, baseado na valorização de materiais dentro de um sistema fechado, a aplicação de lamas, provenientes de estações de tratamento de águas residuais ao solo agrícola apresenta-se como uma via de escoamento privilegiada, face ao destino final em aterro ou incineração, devido ao potencial que oferece para reciclar componentes valiosos, como sejam a matéria orgânica e diversos nutrientes nelas presentes, como por exemplo o azoto (N), o fósforo (P) e o cálcio (Ca). Com efeito, a correta utilização de lamas na agricultura, quando adequadamente tratadas (digestão aeróbia, digestão anaeróbia e desidratação, compostagem, entre outros processos) podem contribuir para a resolução de um problema ambiental e para o aumento da fertilidade do solo (Soveral Dias, 2004).
O fósforo é um elemento essencial para a nutrição das plantas, fazendo parte da composição de compostos fundamentais para o seu metabolismo. Entra na cadeia trófica após ser mineralizado no solo, sendo absorvido pelas plantas, através das raízes, na forma de ião ortofosfato primário (H2PO4 -) ou secundário (HPO4 2-) (Tisdale et al., 1985; Varennes, 2003; Santos, 2015), i.e., na forma inorgânica (Pi). A falta de disponibilidade deste elemento no solo limita a produção agrícola. Uma adequada nutrição em P contribui para a melhoria de vários aspetos fisiológicos como sejam a fotossíntese, a floração, a frutificação e maturação, a fixação simbiótica do N, bem como o crescimento das raízes (Mengel e Kirkby, 2001; Brady e Weil, 2002; Chalk et al., 2010; Boucho et al., 2019).
É sabido que apenas parte do P adicionado ao solo através de fertilizantes minerais ou orgânicos é absorvido pelas plantas no ano da sua aplicação. A maior parte do P aplicado está sujeita a reações de adsorção e de precipitação, lixiviação e percolação no solo. A parte adsorvida está em equilíbrio com o P da solução do solo, compensando as remoções do elemento pela absorção das plantas (Brady & Weil, 2002; FAO, 2008). Além das características dos fertilizantes fosfatados, as condições edafoclimáticas e as espécies vegetais têm um impacto decisivo na solubilidade do P e, consequentemente, na eficácia dos fertilizantes (Mengel & Kirkby, 2001). Relativamente a este nutriente, existem três grandes problemas de fertilidade do solo. Assim, (i) a sua concentração na solução do solo é geralmente baixa; (ii) a maior parte do P presente no solo encontra-se em formas indisponíveis para as plantas, e (iii) as formas de P solúvel, adicionadas ao solo através de adubos e/ou corretivos orgânicos são geralmente adsorvidas na fração sólida do solo, resultando, assim, em formas menos disponíveis para as plantas (Brady & Weil, 2002; FAO, 2008).
Por outro lado, muitos estudos têm suscitado preocupação sobre o esgotamento das reservas mundiais de P proveniente de rochas fosfatadas. Vários autores referem que estas podem ser esgotadas nos próximos 50 a 100 anos (Smit et al., 2009; Childers et al., 2011). Segundo Cordell (2010), a partir de 2035 a procura deste elemento vai exceder a oferta. Além disso, a indústria de fertilizantes reconhece que a quantidade das reservas está em declínio e o custo de extração, processamento e transporte tem aumentado (Cordell et al., 2009; Sattari et al., 2012). Com tudo isto, a reciclagem ganha importância e os países desenvolvidos exploram novas tecnologias para este efeito. Assim, o recurso à reciclagem de lamas de ETAR e outros resíduos contendo P, pode ser uma das formas alternativas de obtenção deste nutriente. No entanto, a reutilização de lamas de ETAR na agricultura pode trazer alguns riscos como seja a presença de metais pesados indesejados, poluentes orgânicos e/ou agentes patogénicos, resíduos farmacêuticos, etc.. Além disso, a sua distribuição nos solos agrícolas apresenta algumas dificuldades logísticas, dado que as grandes quantidades são produzidas em cidades e as terras aráveis, disponíveis a uma distância razoável, são limitadas (Childers et al., 2011; Cohen et al., 2011).
Em virtude do P apresentar um valor de recuperação pela planta reduzido, faz com que exista uma acumulação, ao longo do tempo, do P retido no solo, constituindo o que se designa de P residual (Cohen et al., 2011). No período 1965-2007, na Europa, registou-se uma acumulação média de cerca de 755 kg ha-1 de P nos solos (Sattari et al., 2012).
O presente trabalho, desenvolvido no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, I.P. (INIAV), teve como objetivo avaliar as quantidades de P disponibilizadas a uma sequência de duas espécies forrageiras, uma de primavera-verão, o milho (Zea mays L.), e uma de outono-inverno, o azevém (Lollium multiflorum L.), através da aplicação ao solo de quantidades crescentes de uma lama de ETAR, quando comparada com a aplicação das mesmas quantidades de P nas formas de fosfato de cálcio e da mistura proporcional de lama com o citado adubo.
Avaliaram-se as respostas das culturas em termos de produtividade e quantidade de P exportado e recuperado pelas plantas teste, e os teores de P disponível presentes no solo antes da sementeira da segunda cultura, determinados por dois métodos distintos.
MATERIAL E MÉTODOS
O ensaio decorreu sob ambiente condicionado no Horto Químico Agrícola Boaventura de Azevedo, utilizando vasos de polietileno branco preenchidos com 4,5 kg de terra. Foi delineado em blocos completos casualizados com 3 repetições, tendo sido considerados 13 tratamentos experimentais (T1 a T13). Um tratamento testemunha, sem aplicação de P mineral ou orgânico (T1), quatro tratamentos com níveis crescentes de lama (T2 a T5 correspondendo, respetivamente, à aplicação de 0,121; 0,245; 0,364 e 0,485 g P/vaso o que corresponde a valores entre 80 e 320 kg P/ha e a valores equivalentes a 30, 60, 90 e 120 t lama ha-1), quatro tratamentos com níveis crescentes de fosfato de cálcio, com um grau de pureza pro analise (T6 a T9), fornecendo a mesma quantidade de fósforo total por vaso provida em T2 a T5, e quatro tratamentos constituídos por níveis crescentes de fósforo veiculados, em partes iguais, pela mistura de lama e fosfato de cálcio (T10 a T13) (Quadro 1).
Tratamentos experimentais | Nível de P | P veiculado pela lama (g /vaso) | P veiculado pelo fosfato de cálcio (g /vaso) | P total fornecido (g /vaso) | ||
---|---|---|---|---|---|---|
T1 | 0 | 0 | 0 | 0 | ||
T2 | 1 L | 0,121 | 0 | 0,121 | ||
T3 | 2 L | 0,245 | 0 | 0,245 | ||
T4 | 3 L | 0,364 | 0 | 0,364 | ||
T5 | 4 L | 0,485 | 0 | 0,485 | ||
T6 | 1 F | 0 | 0,121 | 0,121 | ||
T7 | 2 F | 0 | 0,245 | 0,245 | ||
T8 | 3 F | 0 | 0,364 | 0,364 | ||
T9 | 4 F | 0 | 0,485 | 0,485 | ||
T10 | 1/2 L+ 1/2F | 0,061 | 0,061 | 0,122 | ||
T11 | 1L + 1 F | 0,121 | 0,121 | 0,242 | ||
T12 | 3/2L + 3/2F | 0,182 | 0,182 | 0,364 | ||
T13 | 2L + 2F | 0,245 | 0,245 | 0,490 |
L- Dose de lama; F- dose de fertilizante mineral.
A terra utilizada no ensaio em vasos proveio de uma macro amostra colhida na camada superficial (0-20 cm) de um Arenossolo dístrico - ARdy, segundo a classificação de IUSS Working Group WRB (2015), da região de Alpiarça (39º13’00’’N, 08º33’20’’W), cujas principais características físico-químicas se apresentam no Quadro 2.
Características | Características | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Areia | (%) | 92,3 | Acidez de troca | (cmol(+). kg-1) | 1,1 | ||||
Limo | (%) | 4,9 | SBT | (cmol(+). kg-1) | 0,58 | ||||
Argila | (%) | 2,9 | CTC | (cmol(+). kg-1) | 1,68 | ||||
Classificação textural | Arenosa | GSB | (%) | 34,7 | |||||
pHH20 | 5,4 | Fe ext. | (mg. kg-1) | 8 | |||||
Nec. Cal | (t CaCO3. ha-1) | 2 | Mn ext. | (mg. kg-1) | <2,5 | ||||
N total | (g.kg-1) | 0,25 | Zn ext. | (mg. kg-1) | <0,10 | ||||
CE | (mS. cm-1) | 0,01 | Cu ext. | (mg. kg-1) | 2,7 | ||||
MO | (g. kg-1) | 3,5 | B ext. | (mg. kg-1) | <0,20 | ||||
P2O5 ext. | (mg. kg-1) | 11 | Cd “total” | (mg. kg-1) | <0,05 | ||||
K2O ext. | (mg. kg-1) | 13 | Cu “total” | (mg. kg-1) | 14,6 | ||||
Mg ext | (mg. kg-1) | 17 | Ní “total” | (mg. kg-1) | 1,8 | ||||
Bases de troca | Pb “total” | (mg. kg-1) | 2,8 | ||||||
Ca | (cmol(+). kg-1) | 0,41 | Zn “total” | (mg. kg-1) | 3,6 | ||||
Mg | (cmol(+). kg-1) | 0,14 | Hg “total” | (mg. kg-1) | 0,006 | ||||
K | (cmol(+). kg-1) | 0,03 | Cr “total” | (mg. kg-1) | 1,9 | ||||
Na | (cmol(+). kg-1) | 0,01 | MVap | (g. cm-3) | 1,65 |
Nec. Cal - necessidade de cal; CE - condutividade elétrica; MO - matéria orgânica; ext. - extraível; SBT - soma das bases de troca; CTC - capacidade de troca catiónica; GSB - grau de saturação de bases; MVap - massa volúmica aparente
Trata-se de um solo arenoso, muito pobre em matéria orgânica e em nutrientes, ácido, pouco saturado e de muito baixa capacidade de troca catiónica sendo, por isso, um tipo de solo adequado à realização de ensaios em vaso, em que se pretende obter respostas à aplicação de fertilizantes num curto período de tempo.
Os teores de metais pesados determinados neste solo são inferiores aos limites máximos estabelecidos no DL n.º 276/2009 (MAOTDR, 2009), de 2 de outubro, para a utilização de lamas de depuração em solos agrícolas.
A lama aplicada era proveniente da ETAR de Beirolas, localizada no Parque das Nações em Lisboa e resulta do tratamento de efluentes urbanos (70%) e industriais (30%), procedentes da zona Oriental de Lisboa e parte do concelho de Loures. Nesta ETAR faz-se o aproveitamento energético do biogás da lama, submetendo-a a uma digestão anaeróbia e posterior desidratação. No Quadro 3 apresenta-se a composição da citada lama desidratada, determinada no Laboratório Químico Agrícola Rebelo da Silva (LQARS), do INIAV. A lama apresenta as seguintes características: humidade = 19%, pH = 12, matéria orgânica = 644 g kg-1, N = 73 g kg-1, P= 15590 mg kg-1 e Ca= 87336 mg kg-1. Os teores em metais pesados são muito inferiores aos limites máximos estabelecidos na legislação para utilização em solos agrícolas (DL n.º 276/2009) e, em termos microbiológicos, revela ausência de Salmonella spp. e valores de E. coli inferiores a 1000 células/g de matéria fresca.
Características | Características | Valores limite | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
MS | (%) | 19 | Ni | (mg kg-1) | 43 | 300 |
pHH20 | 12 | Zn | (mg kg-1) | 680 | 2500 | |
CE | (mS cm-1) | 2,0 | Cr | (mg kg-1) | 18,5 | 1000 |
MO | (g kg-1) | 644 | Pb | (mg kg-1) | 20,6 | 750 |
N total | (g kg-1) | 73,9 | Cd | (mg kg-1) | 2,8 | 20 |
P | (mg kg-1) | 15590 | Cu | (mg kg-1) | 157 | 1000 |
K | (mg kg-1) | 1909 | Hg | (mg kg-1) | 1 | 16 |
Ca | (mg kg-1) | 87336 | C/N | 4,8 | ||
Mg | (mg kg-1) | 3558 | E. coli | (células/g de MF) | <1000 | <1000 |
Na | (mg kg-1) | 1200 | Salmonella spp. | (células/g de MF) | ausente | ausente |
Valores referidos à matéria seca (MS), com exceção do pH , CE e E. coli e Salmonella que são referidos à matéria fresca (MF), os valores limite são os dispostos no DL n.º 276/2009.
No ensaio, o milho (Zea mays L.) foi semeado como primeira cultura e colhido 45 dias após a sementeira, e o azevém (Lollium multiflorum L.) foi semeado como segunda cultura e sujeito a 4 cortes. Durante o ensaio, o teor de humidade do solo dos vasos foi mantido a 60-70% da capacidade máxima de retenção de água.
De modo a evitar a ocorrência de outros fatores limitantes ao desenvolvimento das plantas, antes da sementeira das duas culturas foi efetuada uma fertilização mineral igual em todos os vasos, veiculando os nutrientes N, K, Mg, S, Fe, Mn, Zn, Cu e B em solução nutritiva. A aplicação de N, na forma de nitrato de amónio, foi fracionada em 3 aplicações, em ambas as culturas. A lama e a solução nutritiva, aplicadas antes da sementeira, foram incorporadas e homogeneizadas com a terra, nas quantidades previstas para cada tratamento experimental.
Para a análise ao solo e ao material vegetal recorreu-se aos métodos laboratoriais utilizados no INIAV - Laboratório Químico Agrícola Rebelo da Silva (INIAV, I.P., 2016). As análises efetuadas à lama basearam-se nas características e normas de referência estipuladas no DL n.º 276/2009.
Antes da sementeira e após o último corte do azevém colheram-se amostras de solo em cada vaso, e analisaram-se, entre outras características, os teores de P extraível por lactato de amónio (método de Egnér-Riehm (ER)) (Egnér et al., 1960) e por água (1:5) (Buurman et al., 1996).
Avaliou-se a exportação de fósforo total (Pexp) pelas plantas de milho e azevém e a recuperação aparente de P (RAP), através das seguintes fórmulas de cálculo propostas por Mengel & Kirkby (2001) (valores referidos à matéria seca):
Pexp = Produção de biomassa da parte aérea × [P] da biomassa aérea
RAP = ((PexpTx- PexpTt) / P aplicado Tx ) ×100%
Onde:
PexpTx - Fósforo exportado na biomassa aérea, para cada um dos tratamentos experimentais (mg vaso-1);
PexpTt - Fósforo exportado na biomassa aérea, no tratamento testemunha (mg vaso-1).
No caso do azevém, os valores de Pexp apresentados resultam do somatório das exportações relativas a cada corte (Quadro 4).
Para a análise estatística dos resultados experimentais, recorreu-se ao programa Statgraphics Plus (versão 5.1), tendo sido utilizados o método de análise de variância (ANOVA, Tipo II) para avaliação do efeito dos diferentes tratamentos experimentais sobre as diversas variáveis, o teste múltiplo de comparação de médias, método de Duncan (p=0,05), para comparação a posteriori das médias correspondentes às modalidades experimentais, e análise de regressão para avaliar a relação entre o P no solo, extraído por água e por lactato de amónio (Egnér-Riehm), e o P veiculado pela lama e/ou pelo fosfato de cálcio.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Produção de biomassa
Os tratamentos experimentais exerceram um efeito altamente significativo (p≤0,001) na produção de biomassa de ambas as culturas. A importância da fertilização fosfatada foi demonstrada, nas condições em que o ensaio decorreu, tendo sido obtidas as produções mais baixas no tratamento experimental em que não foi aplicado fósforo, quer na forma mineral quer na forma orgânica (T1) (Figura 1).
No azevém observou-se uma resposta na produção de biomassa distinta da obtida na primeira cultura (milho). Assim, o aumento das quantidades de fósforo veiculadas pela lama deu origem, no azevém, a um acréscimo significativo (p=0,05) de produção, enquanto no milho se observou um decréscimo significativo quando se aplicou a dose mais elevada, correspondente a 120 t de lama ha-1 (T5), sendo, no entanto, estatisticamente superior à da testemunha. O efeito de quebra de produção no milho, pela aplicação de doses excessivas de lama estará possivelmente relacionado com a presença dum teor elevado de azoto amoniacal na lama na fase de instalação do ensaio. Apesar de não ter sido possível efetuar esta determinação, por dificuldades técnicas ao nível do laboratório, sabe-se, no entanto, que a forma de N mineral dominante nas lamas é a amoniacal (Tisdale et al., 1985; Soveral Dias, 2004). A volatilização do amoníaco que terá ocorrido, durante o ciclo da primeira cultura, e no intervalo de tempo que mediou entre a colheita do milho e a sementeira do azevém, estimulada pelo efeito alcalinizante da lama, justifica que a elevada dose de lama não tenha prejudicado o desenvolvimento desta segunda cultura. Nos restantes tratamentos experimentais não ocorreram aumentos de produção de biomassa na cultura do azevém quando se aplicou quantidades crescentes de fosfato de cálcio (T6 a T9) mas houve resposta crescente e significativa para as duas culturas quando foi aplicada a mistura deste com lama (T10 a T13).
Teores de fósforo no solo antes da segunda cultura
O doseamento do P no solo pode ser feito por várias vias considerando-se a extração aquosa e o método de Egnér-Riehm, as vias mais utilizadas para efeitos de recomendação de fertilização em Portugal.
Existe uma grande diferença entre os valores obtidos pelos dois métodos analíticos para determinação do fósforo disponível no solo antes da sementeira da segunda cultura (Figuras 2 e 3).
Métodos que usam soluções com maior capacidade extrativa, como o de Egnér-Riehm, permitem dosear a quantidade facilmente disponível para a cultura, bem como determinar a quantidade de fósforo que o solo pode disponibilizar ao longo do tempo e que se encontra adsorvido pelas partículas do solo (Coutinho, 1989; Ryser et al., 1995; Sharpley, 2000; Brady & Weil, 2002). Este método, normalmente usado nos laboratórios de análise de solos em Portugal para efeitos de recomendações de fertilização, está calibrado para dosear o teor de P em solos ácidos, como é o caso neste estudo, precipitando/complexando o Ca, Fe e Al e provocando a desorção do P das superfícies de carbonato de cálcio ou de hidróxidos de Fe e de Al através do ião lactato (Horta & Torrent, 2010).
A Figura 2 permite observar um aumento linear do teor médio de fósforo presente no solo extraído pelo método de Egnér-Riehm, por adição de níveis crescentes do elemento veiculado pela lama, pelo fosfato de cálcio e pela mistura de ambos. Os teores de P veiculados pela lama oscilam entre 38 mg P2O5 kg-1 para a aplicação de 61 mg de P2O5 kg-1 (T2) e 170 mg P2O5 kg-1 para a aplicação de 246 mg de P2O5 kg-1 (T5), que se traduz numa expressão linear muito significativa (p≤0,01), indicada na Figura 2, com um coeficiente de determinação de 94%. O mesmo ocorre em relação ao fosfato de cálcio (T6=44 mg P2O5 kg-1 a T9=119 mg P2O5 kg-1) com um coeficiente de determinação de 99% (p≤0,001) e à mistura dos dois produtos (T10=41 mg P2O5 kg-1 a T13=138 mg P2O5 kg-1) com resposta também próxima do linear, muito significativa (p≤0,01), com coeficiente de determinação de 95%.
A aplicação dos níveis mais elevados de lama deu origem a um teor de fósforo residual no solo, após a primeira cultura, superior ao da adubação mineral ou com a mistura dos dois fertilizantes.
O método com extração aquosa permite dosear os elementos facilmente disponíveis para a planta ou seja, medir a intensidade da disponibilidade deste elemento. Com este método, os valores são mais baixos, pois incidem sobre a concentração do elemento na solução do solo. Vários autores referem que este método constitui um bom indicador do fósforo biodisponível, ou facilmente disponível para a planta, e que se apresenta bem relacionado com a resposta do desenvolvimento da planta (Thompson, 1960; Van der Paaw, 1971; Sorn-Srivichai et al., 1988; Ryser et al., 1995). Os valores obtidos por esta metodologia são independentes do tipo de solo em causa (Van der Paaw, 1971).
Assim, pelo método de extração com água obtiveram-se, como seria de esperar, valores muito inferiores aos obtidos pelo método de Egnér-Riehm, mas também com acréscimos significativos (p≤0,05), com a aplicação de quantidades crescentes de fósforo veiculado pela aplicação de lama, fosfato de cálcio ou pela mistura de ambos. Neste último caso, o tratamento que veiculou a maior quantidade de fósforo (T13) foi o que deu origem à maior quantidade de fósforo no solo, facilmente disponível, no final da primeira cultura. Este resultado pode ser explicado pela ação inibitória da matéria orgânica na adsorção de fósforo pelas partículas de solo pois o material orgânico compete com o fósforo na ocupação de locais de retenção no material mineral. Segundo Tisdale et al. (1985) vários estudos revelaram que aniões orgânicos formam complexos estáveis com Fe e Al, elementos dominantes em meio ácido como é o caso em estudo, reduzindo a adsorção do P pela fração mineral do solo e desta forma tornando-o mais disponível para ser absorvido. O aumento do pH para valores próximos da neutralidade (7,4-7,6, dados não publicados), causado pela presença da lama, explica também a maior solubilização do P.
Exportação e taxa de recuperação aparente de fósforo
No Quadro 4 pode observar-se que foi no tratamento experimental com doses mais elevadas de fósforo, veiculado pelo fosfato de cálcio (T9), que foi exportada a maior quantidade do nutriente pela parte aérea das plantas teste. Este resultado reflete os valores mais elevados de concentração de fósforo nos tecidos vegetais de ambas as culturas verificados neste tratamento experimental.
Milho | Azevém | |||||
Tratamentos experimentais | Pexp (mg vaso-1) | RAP (%) | Pexp (mg vaso-1) | RAP (%) | ||
Ø | T1 | 1,9 h | 14 i | |||
Lama | T2 | 9,7 fg | 6,4 ab | 37 h | 18 def | |
T3 | 17,2 d | 6,2 ab | 54 g | 16 hi | ||
T4 | 21,9 c | 5,4 bc | 72 e | 16 hi | ||
T5 | 14,7 de | 2,7 e | 88 c | 15 i | ||
Fosfato de cálcio | T6 | 4,0 h | 1,7 e | 42 h | 23 a | |
T7 | 12,2 ef | 4,2 d | 65 f | 21 bc | ||
T8 | 21,2 c | 5,3 bc | 87 c | 20 bcd | ||
T9 | 35,5 a | 6,9 a | 112 a | 20 bcd | ||
Lama e fosfato de cálcio | T10 | 7,2 g | 4,4 cd | 41 h | 22 ab | |
T11 | 16,6 d | 6,0 ab | 62 f | 19 cde | ||
T12 | 23,5 c | 5,9 ab | 79 d | 18 efg | ||
T13 | 32,4 b | 6,3 ab | 96 b | 17 ghi | ||
Sm (±) | 1,044 | 0,365 | 1,880 | 0,635 | ||
c.v. (%) | 10,8 | 12,3 | 4,9 | 5,9 |
Resultados expressos na matéria seca a 100-105 ºC; Sm - desvio padrão da média; c.v. - coeficiente de variação; Ø(T1) = controlo; T2, T6, T10 = 0,121g P/vaso; T3, T7, T11 = 0,245 g P/vaso; T4, T8, T12 = 0,364 g P/vaso; T5, T9, T13 = 0,485 g P/vaso). Resultados experimentais, na coluna, seguidos de letras iguais não diferem significativamente entre si (p=0,05)
De um modo geral, um fornecimento mais elevado de fósforo, independentemente da fonte, deu origem a maiores valores de nutriente exportado na biomassa aérea, à exceção do caso da maior dose de lama (T5) que, na primeira cultura (milho), apresentou valores mais baixos devido à menor produção obtida.
Atendendo aos resultados da recuperação aparente de fósforo, observa-se que, no azevém, ocorreu um decréscimo significativo (p=0,05) no aproveitamento de fósforo pelas plantas quando se utilizaram doses crescentes quer de lama, quer de fosfato, quer da mistura de ambos. Na primeira cultura, milho, observou-se o mesmo resultado quando se usaram doses crescentes de lama mas, contrariamente ao expectável, houve uma recuperação aparente do nutriente crescente e significativa (p=0,05) com o aumento da quantidade de P fornecido na forma mineral, o que se deveu a uma absorção exponencial deste nutriente com o aumento da aplicação de fosfato (y = 0,083 e (-2,48918 + 1,00659x)* , R2=83%) (de acordo com Bártolo, 2016).
Na segunda cultura, os valores mais elevados de recuperação aparente de P foram atingidos com a aplicação de P unicamente na forma mineral (T6 a T9), revelando valores entre os 20 e 23%, e com o tratamento com a dose mais baixa da mistura de fósforo mineral e lama (T10), atingindo o valor de 22%.
De salientar o forte incremento nas taxas de recuperação médias de fósforo observadas, de um modo geral, na segunda cultura (entre 15 e 23%) quando comparadas com as obtidas na primeira (entre 1,7 e 6,9%).
Os resultados observados neste estudo aproximam-se do intervalo encontrado por Johnston and Poulton (2019) que, num levantamento global dos ensaios executados durante 175 anos em Rothamsted (United Kingdom), registaram valores entre 5 a 25% de recuperação de P. Já Boucho et al. (2019) obtiveram valores de recuperação até cerca de 50% com adição de P mineral em solos muito ácidos.
A análise do solo no final do ensaio apresenta concentrações de fósforo disponível suficientemente elevadas para poder suprir as necessidades das culturas seguintes, em particular nos tratamentos que só receberam lama (T4 = 79 mg P2O5 kg-1 e T5 = 107 mg P2O5 kg-1), estando de acordo com a estabilidade específica deste elemento ao longo do tempo e sendo consequência da menor recuperação aparente observada.
Estes resultados estão de acordo com o previsto, uma vez que, como se sabe, nos fertilizantes minerais os nutrientes encontram-se, de uma forma geral, mais disponíveis para absorção pelas plantas do que nos fertilizantes orgânicos necessitando, neste caso, de serem previamente mineralizados para poderem ser absorvidos.
Como é referido por vários autores (Tisdale et al., 1985; Brady & Weil, 2002; Santos, 2015) é evidente que a adição de matéria orgânica ao solo tende a provocar um aumento da disponibilidade de fósforo existente no solo. Esse efeito foi visível neste estudo, levando a concluir que, quando a lama é misturada com formas inorgânicas de fósforo (T6 a T9) é possível obter resultados equivalentes aos obtidos com a utilização, apenas, de fertilizantes inorgânicos (T10 a T13).
CONCLUSÕES
Os resultados obtidos no presente estudo confirmam a importância de manter, no solo, um fornecimento adequado de P prontamente disponível para as plantas, de modo a satisfazer as necessidades das culturas. Com efeito, a produção de biomassa das plantas teste revelou elevada dependência da fertilização fosfatada, registando valores significativamente superiores na maioria dos tratamentos experimentais que receberam maiores quantidades de fósforo.
Os resultados observados vêm também, mais uma vez, demonstrar que o fósforo é um elemento que apresenta valores de recuperação aparente muito baixos.
As lamas de ETAR podem conter quantidades elevadas de fósforo total que se encontra, sobretudo, na forma orgânica e que, gradualmente, vai ficando disponível, à medida que ocorre a sua mineralização no solo. Por este facto, é conveniente que as lamas sejam aplicadas atempadamente, de modo a que se possa aumentar a sua eficácia no fornecimento de nutrientes à cultura, e também uma diminuição no teor de azoto amoniacal presente na lama, resultando em benefícios, não só agronómicos, mas também económicos e ambientais.
Os resultados permitem concluir que a aplicação controlada de lamas de ETAR devidamente tratadas a solos agrícolas poderá constituir um substituto parcial dos fertilizantes minerais fosfatados, já que o uso conjugado dos dois permite obter resultados equivalentes aos obtidos usando apenas os adubos inorgânicos, em termos de produtividade e recuperação aparente de fósforo.