ENQUADRAMENTO DO PROJETO
Perda de fertilidade do solo
Em muitas partes da Europa, incluindo Portugal, o aumento constante da procura de alimentos e matérias-primas de origem vegetal (fibras e combustível) está a provocar uma pressão sobre os sistemas agrícolas que leva à sobre-exploração e degradação dos solos, tendo como consequência grave a diminuição da saúde dos solos.
Um dos indicadores mais relevantes neste âmbito é o teor de matéria orgânica (MO) nos solos, que tem diminuído drasticamente, levando a uma perda de fertilidade e consequentemente à diminuição da produtividade e rendimento agrícolas. Neste contexto de sobre-exploração, a taxa de perda de solo é largamente superior à sua capacidade de regeneração, o que para esta análise torna o solo num recurso finito e não renovável à escala temporal humana.
Cerca de 45% dos solos Europeus têm um teor de MO inferior a 2%. A Sul da Europa, esta situação torna-se particularmente preocupante pois os solos com um teor de MO abaixo dos 2% atingem os 74% (European Commission et al., 2012). Em Portugal, os solos são genericamente pobres em MO, com teores que variam entre 0,5% a 1,5%, e são predominantemente ácidos. São ainda naturalmente pobres em nutrientes e delgados (de reduzida espessura, na maior parte dos casos inferior a 50 cm), o que faz com que sejam altamente suscetíveis a fenómenos como a erosão, com a perda da camada mais fértil do solo.
Com as alterações climáticas, o problema do empobrecimento dos solos em MO irá agudizar-se, e o aumento gradual das temperaturas provocará uma mineralização mais rápida da MO do solo. Aos climas mais secos irá ainda associar-se uma menor disponibilidade de água em geral e uma menor capacidade de retenção de água no solo. Os impactes devido às alterações climáticas no Sul da Europa levantam grandes preocupações com a disponibilidade de água para rega e com a capacidade dos solos manterem a produtividade agrícola. Estas são as razões centrais pelas quais, num contexto de alterações climáticas e de sobre-exploração do solo, a sustentabilidade, o setor agrícola e mesmo a alimentação humana podem estar em risco.
A fertilidade da Terra Preta e a sua recriação
Uma das abordagens mais eficazes que têm sido seguidas para o melhoramento da saúde dos solos agrícolas consiste na adição de fertilizantes e corretivos orgânicos com origem em resíduos orgânicos, como por exemplo estrume maturado ou compostado e outros resíduos orgânicos de atividades agrícolas e resíduos florestais.
No entanto, uma das mais fascinantes descobertas na área da ciência dos solos foi a identificação na Amazónia, no final do século XIX, de um solo de cor escura e muito fértil, que viria a ser designado por Terra Preta. A Terra Preta é um solo antropogénico que resulta da ocupação humana pré-colombiana que ocorreu entre 6700 AEC e 1500 EC (Kogel-Knabner & Amelun, 2021). Embora tenham sido abandonados há centenas, ou mesmo há milhares de anos (Lehmann, 2009), os solos Terra Preta continuam, até ao presente, muito mais férteis que os solos adjacentes. Isto acontece porque na Terra Preta identificou-se a presença de teores elevados de um carvão vegetal, altamente persistente no solo (Kawa & Oyela-Caycedo, 2008). Sabe-se que este carvão vegetal resultou das práticas agrícolas pré-colombianas dos grupos indígenas, que promoviam a combustão lenta, a baixas temperaturas e na ausência de oxigénio (processo denominado de pirólise), de material vegetal no solo, e a adição de MO resultante das atividades humanas dos povoamentos (restos de comida, excrementos de animais e humanos, etc.).
Desde 2002 que se procura recriar Terra Preta in loco, por pequenos agricultores da Amazónia, num projeto que se denominou Terra Preta Nova (Sombroek et al., 2002). Neste projeto, constatou-se que as experiências de produção de Terra Preta são difíceis de replicar noutros locais e, a Terra Preta da Amazónia dificilmente pode dar resposta às necessidades de um mundo em crescente procura de produtos de origem vegetal e em que a degradação e o empobrecimento do solo em nutrientes e MO é uma realidade. Por isso, de acordo com Lehmann (2009), o foco deve estar nas tecnologias para criar Terra Preta Nova, e não no processo tradicional de produção de Terra Preta, que é demasiado específico e pouco replicável.
A Terra Preta de Síntese (TPS) surgiu para fazer uma distinção clara entre esta Terra Preta sintetizada de forma artificial e a Terra Preta Nova, que replica o processo tradicional, conduzido no próprio local. Em 2007, Krieger (2014) submeteu uma patente onde descreve um método para produzir um húmus estável e substrato rico em nutrientes com propriedades semelhantes à Terra Preta. O processo consiste numa fermentação láctica de substratos orgânicos na presença de um inóculo de microrganismos e de carvão vegetal triturado e impregnado numa solução de ureia. Também Chia et al. (2010) referem a síntese de Terra Preta por torrefação (tratamento térmico da biomassa que ocorre na ausência parcial ou total de ar originando um material sólido - corresponde à fase inicial da pirólise) de resíduos orgânicos (estrume de galinha, biomassa de eucalipto, sangue e ossos) e de materiais inorgânicos (material cerâmico triturado e calcite). A ideia era testar a hipótese de que a torrefação de biomassa produz uma estrutura em carbono que reage com argilas e outros minerais para produzir um material semelhante à Terra Preta.
O papel do biocarvão e o controlo de espécies invasoras
Por volta dos primeiros anos do século XXI, a produção de hidrogénio a partir de biomassa estava a ser investigada pelo Departamento de Energia dos EUA. O processo originava um carvão vegetal que se veio a descobrir ser semelhante ao que existia na Terra Preta, tendo vindo a ser denominado biocarvão. Este biocarvão era obtido em reatores de pirólise de biomassa em explorações agrícolas. A sustentabilidade deste processo está relacionada com o sequestro de carbono pelo biocarvão: quando a biomassa é convertida em biocarvão, parte do carbono que normalmente seria emitido para a atmosfera durante a combustão da biomassa fica retido no biocarvão. A aplicação do biocarvão no solo representa por isso uma redução do carbono atmosférico. Para além disso, o uso de biocarvão em solos agrícolas traz vantagens importantes, desde a correção do pH, no caso de solos ácidos, a maior disponibilidade de nutrientes necessários ao normal desenvolvimento das culturas, o aumento da capacidade de retenção de água e ainda a redução da emissão de gases de efeito de estufa (Nair et al., 2017).
A produção de biocarvão a partir de espécies invasoras é explorada pela empresa Aleatory Concept e foi neste enquadramento que surgiu o projeto KOOLBIOCHAR (projeto I&D Empresarial em Copromoção para Territórios do Interior). Ao longo dos últimos anos, na região Centro de Portugal, tem-se registado um aumento significativo de plantas invasoras nos espaços naturais, nomeadamente Acacia spp. Estas espécies têm impactos negativos significativos nos ecossistemas nativos, afetando a diversidade de outras espécies de plantas, animais e microrganismos e os serviços dos ecossistemas, tendo custos económicos elevados e causando problemas de saúde ao ser humano (por exemplo, alergias). As áreas com Acacia spp. praticamente duplicaram entre 1995 e 2010 (ICNF, 2019) e após os incêndios florestais de 2017, que assolaram a região Centro, a distribuição desta espécie aumentou ainda mais, devido à estimulação da germinação das sementes pelos incêndios. Todas as espécies de acácia estão oficialmente listadas como espécies invasoras (Decreto-Lei nº92/2019) e na zona Centro, incluindo Penacova - sede da empresa Aleatory Concept, promotora do KOOLBIOCHAR -, e nos municípios vizinhos, estão há já alguns anos a ser tomadas medidas que visam o controlo da sua expansão. Estas medidas passam pelo corte e abate controlado dos indivíduos destas espécies. Existe assim uma necessidade de recolha e correto encaminhamento para valorização da biomassa de acácia após abate. Este problema foi colocado à empresa Aleatory Concept, que iniciou a produção de um carvão vegetal à base de madeira de acácia. O pó do carvão vegetal que resulta do processo de produção constitui ainda um resíduo que até ao momento não tem tido qualquer aproveitamento.
Inspirados pelas propriedades do pó de biocarvão que resulta do seu processo produtivo e pela elevada fertilidade associada às Terras Pretas da Amazónia, os copromotores do projeto KOOLBIOCHAR - Aleatory Concept e Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Coimbra - colocaram a hipótese de aproveitar este biocarvão como corretivo para solos agrícolas, especialmente se conjugado com resíduos orgânicos, produzindo um substrato customizado que, de alguma forma, se assemelhasse à Terra Preta.
OBJETIVO DO PROJETO
O principal objetivo do projeto KOOLBIOCHAR é o desenvolvimento de produtos customizados de TPS à base de uma mistura de biocarvão de acácia e de resíduos orgânicos compostados, para aplicação agrícola, nomeadamente para o cultivo de hortícolas e de cereais e para a vinha.
Os produtos deverão ter caraterísticas adequadas à comercialização como corretivo orgânico para aplicação agrícola. Estes produtos deverão permitir, em diferentes graus e conforme a cultura a que se destinam, aumentar o teor de MO no solo, corrigir o pH, fornecer nutrientes, aumentar a eficiência de fertilização e aumentar a capacidade de retenção de água.