INTRODUÇÃO
As lamas de depuração, devido às suas caraterísticas físico-químicas, com elevados teores de matéria orgânica, macro- e micronutrientes (Boundjabi & Chenchouni, 2021), apresentam um elevado valor fertilizante, representando uma alternativa de baixo custo na melhoria dos aspetos da fertilidade do solo, contribuindo para uma economia circular e maior sustentabilidade dos recursos naturais.
Apesar da valorização agrícola ser uma perspetiva desejável, mesmo quando as respetivas características o permitam, a aplicação destes materiais ao solo não está isenta de riscos devido à presença de contaminantes variados (Lamastra et al., 2018). Como forma de prevenir potenciais efeitos negativos sobre a qualidade do solo, um conjunto alargado de legislação, relativo a leis, normas e códigos de boas práticas, define valores limite de aplicação, de acordo com critérios químicos relacionados com os teores de metais pesados (DR, 2009) e/ou de nitratos e fósforo nestes materiais, negligenciando potenciais efeitos ecotoxicológicos de outro tipo de contaminantes existentes.
A utilização de testes que incluam o comportamento de um determinado modelo biológico, como a espécie Eisenia fetida, constituem metodologias sensíveis, simples e de fácil execução que, quando usadas como complemento de outro tipo de análises, ajudam a uma melhor compreensão do risco que a aplicação deste tipo de resíduos apresenta ao nível da qualidade e saúde do solo, facto que constitui o objetivo do presente trabalho.
MATERIAL E MÉTODOS
Na realização do trabalho foram aplicadas as normas para o estudo de substâncias químicas (ISO, 2008), com alterações ao nível da matriz edáfica usada para este tipo de ensaio. Ao contrário do solo artificial proposto, baseado numa mistura de turfa, caulino e areia, foi usado um solo natural, sujeito a pousio, testado como alternativa em trabalhos similares (Sousa & Roboredo, 2021). Para efeitos de preparação da matriz para o ensaio de evitamento, o solo foi seco em condições naturais e crivado a 4 mm. Uma toma composta foi, posteriormente, colhida de forma aleatória e crivada a 2 mm para caraterização físico-química inicial, sendo alguns parâmetros apresentados no Quadro 1.
Parâmetro | Solo | Lama |
pH H2O | 5,0 | 7,9 * |
CE (dS/m) | - | 1,15 * |
H2O (g/kg) | - | 800,1 * |
Mat. Org. (g/kg) | 10,0 | 745,0 ** |
N total (g/kg) | - | 55,7 ** |
P total (g/kg) | 17,5 | 21,4 ** |
CTCefetiva (cmolc/kg) | 1,82 | - |
Cu (mg/kg) | 0,21 | 181,1 ** |
Zn (mg/kg) | 0,30 | 651,6 ** |
Fe (mg/kg) | 108,5 | 38112 ** |
Mn (mg/kg) | 18,0 | 225 ** |
Ni (mg/kg) | - | 20,7 ** |
Cd (mg/kg) | - | 0,71 ** |
Pb (mg/kg) | - | 104,5 ** |
Cr (mg/kg) | - | 54,3 ** |
Hg (µg/kg) | - | 2,48 ** |
Areia (g/kg) | 860,0 | - |
Limo (g/kg) | 63,0 | - |
Argila (g/kg) | 77,0 | - |
Classe de textura | areno-franco | - |
* valores referentes ao material original
** valores referentes à matéria seca do material
O valor inicial de pH (KCl 1M) do solo foi corrigido para valores de 6,0±0,5, por adição de CaCO3 (pa). A capacidade máxima de retenção de água (CMRA) foi determinada e o teor de humidade ajustado para valores de 40% da CMRA, antes da sua utilização. Os teores de humidade e pH em KCl 1M do solo foram determinados no início e final do ensaio.
As lamas de depuração, recolhidas na estação de tratamento da empresa Águas do Norte (AdN), localizada em Vila Real, foram sujeitas a um tratamento secundário, seguido de uma estabilização por digestão anaeróbia e desidratação. Uma toma composta foi amostrada após a fase de desidratação para efeitos de estudo e caraterização físico-química, sendo os resultados apresentados no quadro 1.
Para o desenvolvimento do estudo de comportamento-fuga foram seguidas e aplicadas as normas ISO 17512-1, para minhocas da espécie E. fetida (ISO, 2008). Um total de 300 individuos adultos, com clitelo desenvolvido e massa entre os 300 a 600 mg, foram selecionados e colocados em condições controladas de temperatura (20±2 ºC), fotoperíodo (16-h de luz e 8-h de escuro), intensidade de luz, arejamento e humidade, durante 24 a 48 horas, antes do início do ensaio, para efeitos de aclimatação.
Para o ensaio de comportamento-fuga com E. fetida (Figura 1), foram estudados sete tratamentos de lamas de depuração, equivalentes às doses de 0, 2, 5, 10, 15, 30 e 60 toneladas de material fresco por hectare (t/ha), tendo-se como referência a quantidade máxima de N (170 kg/ha), correspondente à dose de 15 t/ha.
Para cada tratamento foram consideradas três repetições, num total de 21 recipientes-teste de PVC (24*30*5 cm), perfurados para facilitar trocas gasosas e tapados para retenção da humidade, impedindo a fuga das minhocas. Cada recipiente-teste foi dividido em duas secções iguais, através da introdução de uma placa divisória de PVC e cada secção preenchida com iguais quantidades de solo teste (250 g) (peso seco, ps), com lama de depuração equivalente à dose estudada, e o controlo, sem lama de depuração. Após preenchimento, a placa divisória foi removida e 10 minhocas, previamente selecionadas, peso médio de 450 mg, e lavadas, foram colocadas na linha divisória entre secções e deixadas em contato durante um período de 48-h, em condições laboratoriais idênticas à fase de aclimatação. No final do período de exposição, a placa divisória foi colocada na zona central do recipiente-teste e realizada a contagem dos indivíduos em cada seção comparada, solo-teste e solo-controlo. Minhocas localizadas na interface das seções foram consideradas como 0,5 indivíduos. Após contagem do número de organismos em cada secção, com e sem lama de depuração, foi determinada a percentagem de fuga (%Fg) de acordo com a equação 1:
Fg (%) = [(n c -n t )/N]*100(Eq.1)
em que n c , n t e N são referentes ao número de minhocas no solo-controlo, solo-teste e número total de minhocas por recipiente-teste, respetivamente. Valores positivos (+) indiciam evitamento enquanto valores negativos (-) uma não reposta ou atração à presença de lamas (ISO, 2008). Os dados obtidos foram sujeitos a uma análise de normalidade e homogeneidade, pelos testes de Shapiro-Wilk e Barlett, respetivamente. Posteriormente, os dados foram sujeitos a uma ANOVA a um fator, seguida do teste de Tukey para um grau de probabilidade de p≤0,05.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após 48 h de exposição, não foi observada mortalidade das minhocas (<10%) nos diferentes tratamentos estudados cumprindo-se, assim, um dos critérios de validação da metodologia experimentada (ISO, 2008). Acrescenta-se que, no teste dual do grupo controlo, as minhocas não revelaram preferência significativa (p>0,05) entre as seções comparadas, apresentando uma distribuição média de 50%, respeitando o intervalo de valores normativos (40 a 60%), para este tipo tratamento (Figura 2).
Estes resultados refletem as condições de habitabilidade favoráveis do solo usado neste estudo corroborando, uma vez mais, as observações descritas por Sousa & Roboredo (2021). Em relação ao efeito da aplicação de lamas, os resultados do teste de comportamento evidenciam uma não resposta em todos os tratamentos com lamas (solo-teste), com estes a registar um maior número de individuos em relação ao controlo (solo-teste) (figura 2). Estes resultados traduziram-se numa percentagem de fuga negativa para todos os tratamentos com lamas, com os valores a variar entre os -60 a -40%, sem diferenças significativas entre sí (p>0,05) (dados não revelados). Moreira et al. (2008), em estudos similares, avaliando a função habitat do solo, em resultado da aplicação de vários resíduos orgânicos, incluindo lamas digeridas, também observaram uma ausência de resposta no solo-teste, com as minhocas a revelaram maior preferência pelos solos fertilizados. Esta maior atratividade das minhocas está relacionada com as condições decorrentes da aplicação de matéria orgânica ao solo, mais favoráveis para o respetivo desenvolvimento. O aumento da concentração de nutrientes, como P e Ca (Edwars & Bohlen, 1996), ou do pH, que no presente trabalho revelou aumentos significativos (p<0,05) em relação ao solo-controlo, para a maioria dos tratamentos estudados. Pelo contrário, a condutividade elétrica (CE) não sofreu variação significativa (Figura 3).
O caráter alcalinizante da lama poderá ainda apresentar um efeito mitigante na toxicidade potencial dos metais pesados veiculados, devido à potencial redução da respetiva solubilidade (Sukreeyapongse et al., 2002), mesmo apesar dos teores de metais pesados (Quadro 1), inferiores aos valores impostos legalmente (Decreto-Lei nº 276/2009), não ultrapassando as quantidades anuais. Estas condições terão também contribuido para a ausência de efeitos de toxicidade na E. fetida, mesmo nas doses mais elevadas (Figura 2).
CONCLUSÕES
Os resultados obtidos no presente trabalho permitem concluir que, para o tipo de lamas e solo estudados, a respetiva aplicação, nas doses testadas, não provocou efeitos negativos na E. fetida. Importa reforçar que estes estudos terão de ser mais alargados, incluindo outras matrizes edáficas, bioindicadores e ensaios de reprodução, com maior tempo de exposição, de modo a melhor avaliar o efeito da aplicação de resíduos orgânicos na qualidade e saúde do solo.
Financiamento: Este trabalho foi financiado no âmbito do projeto SoilRec4+Health - Soil recover for a healthy food and quality of life (NORTE-01-0145-FEDER000083).