INTRODUÇÃO
O solo, como parte do ecossistema, tem um importante papel em termos ambientais. Mais recentemente são vários os exemplos associados à presença de contaminantes de preocupação emergente no solo, como o caso da cetamina, que poderão diminuir a respetiva capacidade de fornecer serviços ao ecossistema (Sara, 2018).
A cetamina é um anestésico usado em medicina humana e veterinária, sendo excretada maioritariamente na sua forma conjugada. Este composto poderá permanecer biologicamente ativo nos ambientes aquáticos e edáficos, devido à ineficiência dos sistemas de tratamento de afluentes (Li et al., 2017), que geram águas para reutilização e lamas que podem ter como destino final o solo, contribuindo para a contaminação e, consequente, redução da qualidade deste recurso.
A utilização de organismos da fauna edáfica, como o caso das minhocas, em testes de fuga ou reprodução, poderão fornecer informações importantes para a compreensão dos efeitos dos contaminantes na qualidade do solo. Assim, o objetivo do presente trabalho é avaliar o efeito de diferentes concentrações de cetamina no comportamento de fuga e reprodução da Eisenia fetida, de modo a estimar potenciais riscos da sua presença no solo.
MATERIAL E MÉTODOS
Na realização do trabalho foram aplicadas as normas para o estudo de substâncias químicas (ISO, 2008). Para o efeito, foi preparado um solo artificial com base na mistura turfa, caulino e areia na proporção de 10, 20 e 70% (peso seco) (ps), respetivamente. A capacidade máxima de retenção de água (CMRA) da mistura foi determinada e ajustado o teor de humidade para valores de 40% da CMRA. O valor de pH inicial foi corrigido para valores de 6,0±0,5, através da adição de CaCO3 (pa).
Como bioindicador foi usada a espécie Eisenia fetida, devido à elevada sensibilidade e fecundidade, menor tempo de geração e maior facilidade de manutenção em condições laboratoriais. Cerca de 300 individuos adultos, com clitelo bem desenvolvido, com uma biomassa entre os 300 e 600 mg, foram selecionados e colocados em solo artificial, durante 24 a 48 horas antes de serem usados nos ensaios, para efeitos de aclimatação.
Nos ensaios de fuga e reprodução (Figura 1), foram estudadas quatro concentrações (tratamentos) de cetamina, equivalentes a 0, 25, 250 e 2500 µg/kg, sendo incluídas três repetições para cada concentração. A cetamina foi adquirida na forma comercial do medicamento NIMATEK®, para uso veterinário, sendo aplicada na forma de solução aquosa.
Para cada ensaio, de acordo com os tratamentos e repetições testadas, foram usadas 12 caixas de PVC (24*30*5 cm) como recipiente-teste, perfuradas para facilitar trocas gasosas e tapadas para retenção da humidade. Ambos os ensaios foram realizados sob idênticas condições laboratoriais de temperatura (20±2 ºC), fotoperíodo (16-h de luz e 8-h de escuro), intensidade de luz, arejamento e humidade.
No ensaio de fuga (Figura 1.a), em cada recipiente-teste, foi colocada uma placa divisória e cada secção preenchida com 250 g de solo artificial (ps) a 40% da CMRA, com cetamina à concentração estudada (solo-teste) ou sem cetamina (solo-controlo). Após remoção da placa 10 minhocas foram colocadas na linha divisória entre secções e deixadas em contato durante um período de 48-h. No final do ensaio, a placa divisória foi recolocada na zona central, procedendo-se à contagem do número de organismos em cada secção, com e sem cetamina, e determinada a percentagem de fuga (x) de acordo com a equação 1:
x (%) = [(n c -n t )/N]*100(Eq.1)
em que n c , n t e N são referentes ao número de minhocas no solo-controlo, solo-teste e número total de minhocas por recipiente-teste, respetivamente.
No ensaio de reprodução manteve-se o delineamento experimental, aumentando o período de exposição à cetamina para 56 dias. Em cada recipiente-teste colocaram-se 500 g de solo artificial (ps), a 40% CMRA, com uma solução de cetamina a concentração variável, de acordo com o tratamento estudado (figura 1.b). Um tratamento controlo, sem cetamina, foi também incluído, no qual foi adicionado igual volume de água destilada. Dez minhocas, previamente aclimatadas, depuradas, foram colocadas por recipiente-teste e expostas às concentrações de cetamina estudadas. A cada 7 dias, procedeu-se ao controlo gravimétrico do teor de humidade e alimentação, com aveia biológica moída (1 g) e esterilizada em camara UV. Ao fim de 28 dias de incubação foram retiradas as minhocas adultas e os juvenis e casulos foram mantidos por mais 28 dias, ao fim dos quais foi realizada a contagem de juvenis, em cada tratamento e repetição.
Os dados obtidos em cada teste foram sujeitos a uma análise para avaliar a normalidade na distribuição e a homogeneidade de variâncias, pelos testes de Shapiro-Wilk e Barlett, respetivamente. Posteriormente, os dados foram sujeitos a uma ANOVA a um factor, seguida do teste de Dunnett para um grau de probabilidade de p≤0,05.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados obtidos para o teste de fuga, relativos à distribuição dos indivíduos nas secções em cada recipiente teste, para as concentrações de cetamina estudadas, são apresentados na Figura 2. A presença de cetamina não influenciou o comportamento das minhocas, não sendo observadas diferenças significativas (p>0,05) entre as respetivas secções, com e sem cetamina, em todas as concentrações estudadas. Para a percentagem de fuga (x), as concentrações de 25 e 250 µg/kg revelaram valores de 13% e a concentração de 2500 µg/kg cerca de 6%.
No teste de reprodução manteve-se a tendência observada no teste de fuga, com as concentrações de cetamina a não efetar de forma significativa a capacidade reprodutiva das minhocas (figura 3). Ainda assim, comparativamente ao grupo controlo, é observada uma tendência de redução do número de juvenis em todos os tratamentos com cetamina que, em termos médios, apresentou uma redução de 26% em relação ao controlo.
A coerência dos resultados obtidos nas metodologias testadas sugere que a presença de cetamina, para as concentrações estudadas, não altera a qualidade do solo ou induz efeitos de toxicidade na E. fetida. Lin et al. (2020), em estudos com cetamina em meio aquoso, com Daphnia magna, observaram efeitos negativos a partir de concentrações 10 vezes superiores à concentração máxima testada no presente trabalho (2500 µg/kg). A ausência de efeito da cetamina poderá estar relacionada com o efeito tampão induzido pela matriz de suporte usado no trabalho (De Silva et al., 2009). Compostos constituintes, como húmus e argilas do tipo 1:1, são responsáveis por fenómenos de adsorção e complexação, que podem mitigar os efeitos da presença e concentração de cetamina no solo artificial.
As menores quantidades de cetamina biodisponível como o menor tempo de exposição nos ensaios de fuga (48-h) não permitem um efeito bioacumulativo, limitando o nível de reposta e, desta forma, condicionando o comportamento de fuga da E. fetida (Demuynck et al., 2016). Todavia, o maior tempo de exposição no ensaio de reprodução, não se revelou suficiente para detetar efeitos nas concentrações estudadas ao nível da reprodução, apesar da tendência de diminuição do número de juvenis na presença de cetamina, facto que poderá estar associado ao gasto energético usado na remoção do contaminante, limitando a energia disponível para processos biológicos, como o crescimento ou diferenciação (Spurgeon & Hopkin, 1996).
Apesar de Donker et al. (1993) referir o número de juvenis como um parâmetro de maior sensibilidade neste tipo de estudos, ambos os testes apresentam uma elevada correlação (Figura 4), com o teste de fuga a explicar mais de 99% da variância observada no teste de reprodução. A correlação negativa revela uma diminuição do nº de juvenis com o aumento da percentagem de fuga por parte das minhocas, corroborando os pressupostos sugeridos por Spurgeon & Hopkin (1996). Estes resultados permitem, ainda, referir que neste tipo de testes, em que o objetivo é realizar uma avaliação preliminar ou complementar da degradação e habitabilidade do solo na presença de contaminantes, o teste de fuga parece ser mais adequado devido à sua maior exequibilidade, rapidez e até, como certos autores defendem (Hund-Rinke & Wiechering, 2001), sensibilidade.