INTRODUÇÃO
O conceito de serviços dos ecossistemas (SE), apesar de alvo de alterações por parte de vários autores nos últimos anos, é apresentado no geral, como o conjunto de benefícios diretos e indiretos dos ecossistemas para o bem-estar humano (MEA, 2005). Estes benefícios são, deste modo, as condições e os processos pelos quais os ecossistemas naturais e as espécies que os fazem, sustentam e suportam a vida humana, incluindo a dimensão económica.
Para a identificação e caracterização de SE, podem utilizar-se vários sistemas, mas tem-se tornado muito comum, a aplicação do sistema CICES (Common International Classification of Ecosystem Services, https://cices.eu/) atualmente na versão 5.1, amplamente utilizado na UE (Haines-Young e Potschin, 2018).
O sistema CICES consiste no princípio de que a classificação de serviços deve descrever como os ecossistemas contribuem para a qualidade de vida e bem-estar humano. Este sistema divide os serviços de ecossistemas em três grandes categorias: Aprovisionamento, que contempla qualquer tipo de benefício que possa ser extraído da natureza pelas pessoas (bens materiais), como a produção de alimento, a provisão de água, madeira, gás natural, óleos, plantas ou outro tipo de produtos que podem ser transformados em vestuário ou benefícios medicinais; Regulação e Manutenção, sendo estes os benefícios proporcionados pelos processos que ocorrem na natureza que regulam os fenómenos naturais e ajudam a manter o ecossistema como a polinização, proteção contra eventos extremos, controlo da erosão do solo ou decomposição de resíduos; e os Culturais que podem ser definidos como os benefícios imateriais que contribuem para o desenvolvimento e avanço cultural das pessoas, incluindo a forma como os ecossistemas desempenham um papel nas culturas locais, nacionais e globais, a construção do conhecimento (científico, tradicional), a criatividade resultante das interações com a natureza (e.g., música, arte, arquitetura), atividades recreativas e de lazer ou a apreciação da beleza da paisagem são igualmente considerados serviços culturais (MEA, 2005; Haines-Young e Potschin, 2018).
Os soutos são ecossistemas multifuncionais que providenciam, para além de alimento, outros serviços como a produção de energia, regulação do clima, proteção contra a erosão do solo, conhecimento tradicional e valor estético e recreativo (Roces-Diaz et al., 2018). Em Portugal, o castanheiro europeu (Castanea sativa Mill.) é uma espécie com considerável valor económico, utilizada essencialmente pelo seu fruto para alimento e pela madeira, para construção e aquecimento. É uma espécie cuja área se tem vindo a reduzir na Europa por diversas razões, mas em particular, devido a duas doenças-como a tinta do castanheiro e o cancro (Gomes-Laranjo et al., 2007; Costa et al., 2011).
Apesar dos stresses bióticos a que está sujeito, continua a ser um importante apoio económico em regiões montanhosas mediterrânicas (Costa et al., 2011; Gomes-Laranjo et al., 2007), nomeadamente em Portugal, pois como a qualidade da castanha portuguesa é reconhecida internacionalmente, leva a que haja uma procura elevada deste produto. É um fruto com qualidades nutricionais que o tornam um recurso interessante do ponto de vista económico e tecnológico, ao ser isento de glúten e de colesterol e conter baixo teor em gordura (Gomes-Laranjo, 2013), apresentando potencial para a produção quer de produtos tradicionais quer de produtos inovadores no mercado (Gomes-Laranjo et al., 2007).
O ecossistema agrícola é tradicionalmente associado aos serviços de aprovisionamento, no entanto, os serviços destes ecossistemas vão muito além da produção de alimento. Um dos desafios atuais da agricultura é conciliar a capacidade produtiva com a sustentabilidade ambiental (Robertson e Swinton, 2005). Os agroecossistemas são das formas de uso da terra mais importantes a nível global, estando sujeitos a inúmeras pressões provocadas pelas alterações do uso do solo (como a deflorestação, urbanização ou intensificação agrícola) e alterações climáticas. Estes fatores levam a uma perda dos serviços de aprovisionamento e de regulação, em adição à perda de biodiversidade (Hooper et al., 2012; Kehoe et al., 2017; Balzan et al., 2020; Hasan et al., 2020; Rocchi et al., 2020).
Os agroecossistemas podem ser vistos como sistemas socioecológicos, cujas práticas de gestão do solo vão ter impactes nos serviços que poderão providenciar. A gestão dos SE é um tema complexo, pois práticas criadas para beneficiar um serviço podem não necessariamente beneficiar outro. Muitas vezes existem trade-offs, em que um serviço é beneficiado, mas tem impacte negativo noutro e tal deve ser tido em conta aquando da adoção das práticas agrícolas mais adequadas. Por exemplo, a utilização de fertilizantes ou herbicidas para aumentar a produtividade, pode afetar negativamente a qualidade dos cursos de água (MEA, 2005; Egoh et al., 2008; Bryan, 2013; Gaba et al., 2015; Bommarco et al., 2018).
Devido ao crescimento da população mundial, espera-se um aumento na procura dos serviços de aprovisionamento e dessa forma é importante existir uma boa gestão dos sistemas agrícolas e dos múltiplos serviços que podem fornecer (MEA, 2005; Bennett et al., 2009). Nesse sentido, estratégias que prevêem a promoção e valorização dos SE agrícolas devem ter em consideração as necessidades, conhecimentos, expetativas e perceções dos produtores (Duru et al., 2015; Bernués et al., 2016; Teixeira et al., 2018).
No sentido de valorizar estes ecossistemas para além do seu potencial de aprovisionamento, foi realizado um inquérito por questionário a produtores de castanha no Sabugal, um concelho rural da Beira Interior, em que o cultivo de castanheiros é uma das culturas permanentes com maior expressão (INE, 2019) e a castanha é reconhecida como muito importante para a região (Cação et al., 2022). O inquérito pretendeu analisar quais os SE que os produtores consideram serem providenciados pelos soutos; como avaliam o efeito da biodiversidade e dos ecossistemas das zonas envolventes das suas explorações; e como percecionam os impactes que a sua atividade agrícola pode ter no ambiente.
MATERIAIS E MÉTODOS
No âmbito do projeto CULTIVAR (Rede de competências para o desenvolvimento sustentável e inovação no setor Agroalimentar - https://icultivar.pt/) foram realizados questionários presenciais a 14 produtores das freguesias de Soito, Foios e Pousafoles (concelho do Sabugal), entre 28 janeiro e 28 fevereiro de 2022. Esta amostra por conveniência (Fraenkel et al., 2012), corresponde a cerca de 5,5% do total de produtores do concelho e a 12,5% do total de produtores identificados nas 3 freguesias selecionadas (INE 2019). O questionário, estruturado em duas secções, pretendeu: a) fazer uma caraterização geral do agricultor/a e das sua(s) exploração(ões) agrícola(s) e b) compreender as perceções dos inquiridos sobre os SE dos soutos. Compreender como estes agricultores veem a agricultura e conhecer as principais práticas agrícolas revela-se importante para uma melhor compreensão da forma como percecionam os serviços (benefícios) e desserviços (efeitos negativos) da agricultura, em particular, dos soutos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caracterização da amostra, tipo de agricultura e práticas agrícolas
Das 14 pessoas que se disponibilizaram a responder ao inquérito, apenas 3 pertencem ao género feminino. A amostra inquirida é relativamente envelhecida, com uma idade média de 66 anos, tendo a maioria completado o ensino básico (86%). Em termos de atividade agrícola (a qual se refere a todas as culturas que o produtor explora e não apenas soutos), aproximadamente metade caracteriza-se por ser uma agricultura convencional (57%), enquanto 6 dos entrevistados, afirmam seguir o modelo de produção integrada e/ou biológica. No total, aproximadamente 79% possuem explorações de dimensão inferior a 50 hectares. Os produtores incluídos nesta amostra referem praticar essencialmente uma agricultura extensiva (62%) e com explorações especializadas (79%) que contribui muito pouco em termos económicos: 70% dos inquiridos refere que o rendimento que retiram da agricultura é inferior a 25% do seu rendimento global.
Mais de metade dos inquiridos (62%) faz mobilização convencional do solo e 93% realiza gestão da cobertura vegetal do solo. O uso de maquinaria é sobretudo para manutenção da cultura (86%) e preparação do solo (71%). A sementeira e a colheita tendem a ser feitas à mão. Os fertilizantes aplicados são maioritariamente de origem orgânica (50%), embora 42% afirmem utilizar tanto orgânicos como químicos. O controlo de pragas e doenças tende a ser feito com o uso de produtos fitofarmacêuticos (83%).
Perceção sobre conceitos-chave relacionados com ambiente e sustentabilidade
Por forma a percebermos o quão à-vontade estes inquiridos se encontravam relativamente à temática do inquérito, foram previamente questionados sobre o que entendiam por “ecossistema”, “serviços de ecossistema” e “agricultura sustentável”. Só após esta análise e depois de serem clarificados os termos e conceitos, se avançou para as questões relacionadas com as perceções sobre SE.
Verifica-se uma clara diferença nas respostas dos inquiridos entre os três conceitos (Figura 1). A maioria afirma conhecer os conceitos de “ecossistema” e “agricultura sustentável”, mas o mesmo não se verifica para “serviços de ecossistema”, em que apenas duas pessoas dizem ter ouvido falar sobre o termo e sentem dificuldade em explicar o que são.
Apesar do desconhecimento que a maioria dos inquiridos parece demonstrar sobre o que são SE, verifica-se nas questões seguintes que os produtores são capazes de reconhecer diversos serviços providenciados pela atividade agrícola, para além do aprovisionamento. Estes resultados vão ao encontro ao demonstrado por Teixeira et al. (2018), que indica que os agricultores são capazes de compreender as relações entre diferentes serviços de ecossistemas e aspetos dos ecossistemas agrícolas, como a sua gestão, apesar de sentirem dificuldade em explicar o conceito.
Serviços e desserviços providenciados pela biodiversidade e ecossistemas envolventes
De modo a compreendermos como os produtores percecionam a importância da biodiversidade e de outros ecossistemas para a sua atividade e produtividade e como estes podem afetar de forma positiva (serviços) ou negativa (desserviços) a sua exploração, foi-lhes solicitado que avaliassem como “Bom”, “Neutro”, “Mau” e “Tanto bom como mau”. os efeitos da biodiversidade e ecossistemas existentes nas zonas envolventes às suas explorações (Figuras 2, 3 e 4).
Verifica-se que os produtores tendem a percecionar como positivo os animais que trazem benefícios à exploração, como os insetos polinizadores ou que controlam pragas; enquanto que os insetos que comem plantas ou espécies cinegéticas, como os javalis e corços, são maioritariamente percecionados como prejudiciais (Figura 2).
Os insetos polinizadores são considerados como uma influência positiva por 93% dos inquiridos (Figura 2). A perceção do contributo providenciado pelos insetos para a polinização tem crescido entre os produtores e é um benefício demonstrado em diversos estudos (Gaines-Day e Gratton, 2017; Park et al., 2018; Hevia et al., 2021). Os insetos e a fauna do solo, como as minhocas, tendem igualmente a ser percecionados como positivos, pois estes tipos de organismos têm impacte na produtividade do solo e em outros serviços, como o ciclo de carbono e de nutrientes e na estrutura do solo (Barrios, 2007; Mujtar et al., 2019). Os animais de caça/cinegéticos são o fator percecionado como sendo o mais negativo por 71% dos inquiridos. Os produtores tendem a mencionar, sobretudo os javalis, como animais que têm trazido prejuízos na região através da destruição das culturas, tornando-se um problema económico, social e por vezes ecológico (Torres et al., 2012).
Por sua vez, as espécies vegetais invasoras tendem a ser percecionadas como negativas por quase todos os inquiridos (Figura 3). O próprio castanheiro sofre particularmente com duas doenças provocadas por fungos: a “tinta do castanheiro” causada pelos pseudo-fungos Phytophthora cambivora e Phytophthora cinnamomi e o “cancro”, causado pelo fungo Cryphonectria parasitica, proveniente dos EUA. A isto, acrescenta-se a “vespa-das-galhas-do-castanheiro” (Dryocosmus kuriphilus), que surgiu em 2002, nativa da China, e se tornou uma série ameaça para o castanheiro, afetando o seu crescimento e produtividade (Gomes-Laranjo et al., 2007; Costa et al. 2011; Freitas et al., 2021).
Relativamente ao impacte de ecossistemas nas zonas envolventes à sua exploração agrícola (Figura 4), verifica-se que zonas com água, independentemente de serem nascentes naturais ou furos, tendem a ser consideradas como boas devido à disponibilidade de água para rega. Floresta e variedades selvagens também tendem a ser percecionadas como positivas. Alguns inquiridos mencionam que a existência de variedades selvagens atraem outros animais, incluindo pragas, afastando-as assim das suas explorações agrícolas.
Em oposição, a presença de fábricas (áreas industrializadas) e áreas degradadas tendem a ser percecionadas como negativas devido à associação que fazem com a poluição. No caso de existirem outras explorações agrícolas perto das suas, estas tendem a ser percecionadas como neutras por 42% dos inquiridos, ou ainda como “Mau”, isto porque, no caso das pequenas explorações, alguns inquiridos referem como efeito contraproducente o abandono das terras e como acabam por atrair pragas. No caso das grandes explorações, são associadas a uma agricultura intensiva e consequentemente, com poluição. De facto, a agricultura intensiva, em que existe uma dependência de inputs externos como fertilizantes e produtos fitofarmacêuticos, está frequentemente associada a impactes negativos na qualidade do solo e da água (Bommarco et al., 2018; Rocchi et al., 2020).
Serviços providenciados pelo ecossistema soutos
Os produtores foram, de seguida, inquiridos sobre os serviços que os seus soutos são capazes de providenciar à sociedade e ambiente (Figuras 5, 6 e 7). Os serviços de aprovisionamento mais mencionados (Figura 5) são a Produção de plantas (100%) e a Produção de outros materiais como a madeira (57%). Isto reflete uma gestão tradicional dos soutos, focada na produção do fruto para alimentação humana, na produção de madeira para construção e de lenha para aquecimento (Gomes-Laranjo et al., 2007; Costa et al., 2011; Roces-Diaz et al., 2018).
Nos serviços de regulação e manutenção (Figura 6), a tendência é para os produtores percecionarem que todos os que lhes foram apresentados, são fornecidos pela sua exploração agrícola.
Os soutos são ecossistemas multifuncionais (Roces-Díaz et al., 2018) que providenciam diversos serviços como a regulação do clima e a erosão do solo. No entanto, algumas das práticas agrícolas mencionadas pelos produtores como a mobilização convencional do solo, a gestão da cobertura do solo e a aplicação de produtos fitofarmacêuticos, poderão ter impactes nos SE. Por exemplo, a aplicação de pesticidas - pode afetar a biodiversidade e a qualidade das águas superficiais e subterrâneas (Power, 2010; Maxwell et al., 2016; Bommarco et al., 2018). Por sua vez, a cobertura vegetal de culturas permanentes, como é o caso do castanheiro, foi associada à conservação da biodiversidade e controlo da erosão do solo (Balzan et al., 2020; Gómez et al., 2021), demonstrando capacidade em fixar azoto e reduzir a sua lixiviação (Kaye e Quemada, 2017).
Nos serviços culturais (Figura 7), destaca-se a Beleza da paisagem (100%), um serviço igualmente salientado por outros autores em relação aos soutos (Roces-Diaz et al., 2018). O Valor espiritual ou simbólico (sobretudo simbólico) e o Sentido de Pertença/Ligação ao lugar são ambos mencionados por 92% dos inquiridos. Atividades recreativas, científicas e educativas são as menos evidenciadas pelos produtores.
Impactes da agricultura na biodiversidade e ecossistemas
No geral, a perceção que os produtores possuem do impacte ambiental da sua atividade agrícola é extremamente positiva (Figura 8). O mesmo se verifica quando lhes é solicitado que façam uma apreciação global da sua atividade sobre o impacte nos SE. Neste caso, todos respondem que é “Positiva”. Isto não significa que os produtores não reconhecem que a atividade agrícola possa ter um impacte menos positivo no ambiente, mas no geral, a perceção positiva que possuem da agricultura parece sobrepor-se a qualquer aspeto mais negativo que possa existir.
CONCLUSÕES
A amostra inquirida reflete sobretudo uma gestão tradicional dos soutos: uma cultura extensiva, utilizada sobretudo para produção de alimento e madeira. Apesar dos produtores não estarem muito familiarizados com o termo “serviços de ecossistema”, reconhecem que os soutos fornem outros serviços além da produção de castanha ou madeira. Este estudo espera contribuir para aumentar a consciencialização sobre como a preservação dos SE dos soutos pode ser benéfica para os produtores e para o ambiente indo ao encontro da perceção muito positiva que têm sobre a sua atividade agrícola.
Cada vez mais, em consequência da degradação dos recursos naturais em todo o mundo, a proteção da biodiversidade e dos SE é um tema central nas políticas de sustentabilidade e ambientais (European Commission, 2020; Piñeiro et al., 2020). A transição para práticas agrícolas sustentáveis é já uma realidade, cada vez mais urgente devido à pressão sobre o setor agrícola para alimentar uma população humana em crescimento. Contudo, esta transição deve ter em conta as perceções, necessidades, motivações e expetativas dos produtores. Estes saberes serão decisivos para a elaboração de programas de apoio/incentivos mais adequados ao setor e para a efetiva adoção de práticas agrícolas mais amigas do ambiente.