INTRODUÇÃO
Emprega-se a cabra como fonte de carne e leite na alimentação humana desde o período Neolítico (Hirst, 2011), assumindo desde então importância social, económica e cultural em diferentes partes do mundo, presentes na culinária, artigos de vestuário, e fornecimento de carne e leite (Oliveira, 2012). Em Portugal, apesar dos seus benefícios, o setor caprino tem vindo a perder importância tanto em termos de produção cárnea como leiteira, associando-se esse declínio de produtividade ao êxodo e à regressão demográfica (Hirst, 2011; Oliveira, 2012; INE, 2017). Embora Portugal apresente heterogeneidade étnica de raças de cabras autóctones, a raça caprina Serrana ganha destaque, representando cerca de 45% do efetivo total de cabras em território nacional (Lopes, 2013).
Apesar dos benefícios proporcionados pela espécie, dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam um decréscimo da produtividade do setor caprino português no ano de 2017 (INE, 2017). Atualmente, as políticas de incentivo à valorização de produtos agroalimentares locais e a procura constante por produtos nutricionalmente ricos e diferentes sabores podem contribuir para a inserção de novos produtos à base de leite de cabra, contribuindo assim para o desenvolvimento do espaço rural (Custódio, 2014).
De acordo com Haenlein (2004), o leite de cabra é reconhecido mundialmente pelo seu elevado potencial nutritivo e por ser uma opção láctea para indivíduos que apresentam quadro de intolerância à ingestão de leite de vaca, justificando desse modo a evolução da caprinocultura mundial nos últimos tempos. Apesar disso, não há um portifólio amplo de produtos à base de leite de cabra no mercado (INE, 2017).
A ideia de desenvolver e reformular produtos através da utilização de resíduos ou subprodutos ganhou força na indústria alimentar nas últimas décadas com incorporação da variável ambiental pelas empresas, desafiando-as a visualizá-los como matéria-prima reutilizável para o próprio processamento industrial (Saraiva, 2008). A indústria de laticínios possui uma grande produção de soro, oriundo da elevada produção de queijos, que é visto como um problema para tais empresas devido ao seu elevado potencial poluente - elevado valor nutritivo e carga orgânica (Barbosa et al., 2009).
O soro perdeu o estatuto de produto a ser descartado e tornou-se co-produto ou subproduto dos laticínios devido às propriedades biológicas, funcionais e tecnológicas que possui, podendo ser utilizado em conjunto com leite na produção de diferentes produtos (Chatterton et al., 2006). A bebida láctea fermentada é um produto de características e processamento de fabricação similares ao iogurte. Apesar de não ser um tipo de produto comercializado em Portugal, em países como o Brasil apresenta-se como um alimento de bastante aceitabilidade por parte dos consumidores e rentável para as indústrias de laticínios, adequando-se a produtores de grande e pequena dimensão (Brasil, 2005; Brasil Food Trends, 2020). Dados recentes publicados em relação ao consumo familiar de iogurtes em Portugal (InMarket, 2020) indicam que 48,3% dos portugueses consomem entre quatro e doze unidades individuais de iogurtes por semana, tornando-se evidente o potencial do mercado consumidor desse género alimentício no país e o quão rentável pode ser a implementação de uma bebida láctea fermentada nesse cenário. Considerando a relação leite-soro ainda pouco estudada para o leite de cabra, as potencialidades do mercado, as propriedades nutricionais e tecnológicas do leite e do soro de matriz caprina, o estímulo à produção e as preocupações de cariz ambiental da indústria láctea, o objetivo deste estudo foi desenvolver uma bebida láctea fermentada a partir de leite de cabra com adição de diferentes proporções de soro, avaliando parâmetros físico-químicos, microbiológicos e sensoriais, de modo ampliar a utilização do leite e soro de cabra na região de Trás-os-Montes, Portugal.
MATERIAL E MÉTODOS
Matérias-primas
Para a elaboração das bebidas lácteas fermentadas foram utilizadas as seguintes matérias-primas: Leite de cabra padronizado; soro; açúcar cristal; bactérias lácteas (Chr Hansen YF L812 liofilizada com 5U). O leite e o soro foram fornecidos pela Cooperativa de Produtores de Leite de Cabra Serrana (LEICRAS), Bragança, Portugal.
Elaboração das bebidas lácteas fermentadas
Elaboraram-se quatro formulações (Quadro 1) de acordo com as quantidades definidas pelo trabalho de Araújo & Barbosa (2015), variando-se apenas as proporções de soro e de leite de cabra. As etapas realizadas na produção das bebidas lácteas fermentadas estão apresentadas na Figura 1.
Ingredientes | Quantidade (%) | |||
A1 | A2 | A3 | A4 | |
Leite de cabra integral* | 80 | 60 | 40 | 20 |
Soro de leite* | 20 | 40 | 60 | 80 |
Sacarose | 9 | 9 | 9 | 9 |
Cultura lática | ** | ** | ** | ** |
*O volume dos ingredientes de base láctea somam 100% e os restantes ingredientes são calculados a partir desse valor. ** A cultura lática foi adicionada na proporção recomendada pelo fabricante.
O leite e o soro foram pasteurizados separadamente. A pasteurização do soro foi realizada a 65 C por 30 minutos, para inativação da enzima coagulante e microbiota presente, enquanto o leite foi acrescido de sacarose e tratado termicamente a temperatura de 95 C por 5 minutos (Recchia, 2014). As matérias-primas foram depois arrefecidas até 42 C e misturadas respeitando as proporções definidas (Quadro 1). As formulações foram submetidas a fermentação a 42 C, e o processo foi conduzido até o pH atingir 4,6 (aproximadamente 4 horas de fermentação), sendo arrefecidas a 4 C, batidas lentamente e armazenadas a 5 ± 1 C, até à realização das análises (Ordóñez, 2007).
Caracterização físico-química do leite, do soro e das bebidas lácteas fermentadas
Determinação de pH e acidez titulável: Os valores de pH foram medidos com um potenciómetro de bancada Hersteller-Prüfzertifikat (modelo pH 315i). A acidez titulável (% ácido lático) foi quantificada através da metodologia indicada pelo Instituto Adolf Lutz (IAL, 2008), que se baseia na titulação com solução de NaOH 0,1 M. O resultado foi expresso em gramas de ácido lático por 100 mL de produto. O leite e o soro foram analisados na receção da matéria-prima, enquanto as amostras de bebidas lácteas foram analisadas nos intervalos de 0, 7, 14 e 21 dias de armazenamento a partir da sua elaboração.
Composição nutricional: A composição nutricional das formulações foi realizada em triplicado para as matrizes leite e soro na recepção e para cada tratamento após 7 dias da elaboração das bebidas lácteas fermentadas. As proteínas foram quantificadas pelo método Kjedahl para determinação de azoto total (AOAC, 2005) e o teor de lípidos foi determinado pelo método de extração de Soxhlet (AOAC, 2005) nas amostras previamente liofilizadas. A determinação da cinza ocorreu com a pesagem de 10 g de amostra em cápsula de platina, seguidas de secagem em chapas elétricas (100 - 110 °C) e incineração a temperatura de 550 °C por um período que variou de 4 a 12 horas, até que a cinza adquirisse cor branca ou acinzentada. O valor de cinza foi expresso em percentagem. A humidade foi determinada através de secagem em estufa a 105 C correspondente ao método n° 925.09 da AOAC (AOAC, 2005). Os valores de hidratos de carbono foram obtidos por diferença entre 100 e a soma das percentagens de teores em água, proteína, gorduras e cinza. O valor energético foi calculado considerando hidratos de carbono e proteínas com 4 kcal/g e lípidos com 9 kcal/g (UE, 2011).
Avaliação da estabilidade microbiológica
Bactérias do ácido lático (BAL) viáveis: Foi usado o método de contagem em placa, utilizando o meio de cultura Man Rogosa & Sharpe (MRS) Agar (Biolife, Itália), conforme descrito na ISO 15214-1998 (ISO, 1998). As análises foram realizadas nos tempos 0 e 21 dias.
Bactérias aeróbias mesófilas e psicrófilas: utilizou-se o meio de cultura Plate Count Agar (PCA, Himedia, Índia), conforme descrito na ISO 4833-1:2013 (ISO, 2013). A análise foi realizada nos tempos 0, 7, 14 e 21 dias.
Bolores e leveduras: usou-se o meio Agar Diclorano Rosa de Bengala Cloranfenicol (DRBC, Himedia, Índia), conforme descrito na ISO 21527-1:2008 (ISO, 2008). Esta análise foi efetuada nos tempos 0, 7, 14 e 21 dias.
Em todas as análises, os resultados foram expressos em UFC/mL usando a fórmula descrita na norma ISO 7218-2007 (ISO 7218:2007).
Caracterização sensorial das bebidas lácteas fermentadas
Para avaliação sensorial das formulações elaboradas, realizou-se o teste de aceitação com uma escala hedónica de nove pontos (variando de “extremamente desagradável”, número 1, a “extremamente agradável”, número 9), na qual foram avaliados os parâmetros: textura, sabor, aroma e impressão global. O teste contou com 50 provadores não treinados de ambos os sexos e com idades variadas, e foi aplicado às três formulações com os mesmos provadores (Meilgaard et al., 2007).
Análise estatística
Os ensaios e as análises foram realizados em triplicado. As médias dos parâmetros avaliados foram comparadas através do teste de Tukey nas médias transformadas, estabelecendo significância estatística para 5% de probabilidade (p<0,05). As análises foram realizadas no programa XLSTAT 2020 - Statistical Software for Excel por Addinsoft.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caracterização físico-química do leite e do soro
O Quadro 2 mostra os resultados obtidos para a composição nutricional do leite e do soro. Segundo Haenlein (2004), a composição do leite de cabra varia de acordo com a espécie, raça, dieta, alimentação, localidade, saúde do úbere, entre outros fatores, e por ser sazonal apresenta variações de concentração nos seus componentes ao longo da época de produção.
Em comparação com o leite de vaca, não se registam diferenças relevantes em termos de composição média geral (humidade 87%, lípidos 3,9%, proteínas 3,4%, cinza 0,8%; Sousa, 2020), sendo que as principais diferenças se prendem com a estrutura das proteínas e das gorduras, podendo interferir diretamente nas propriedades tecnológicas de cada matéria prima.
O leite de cabra possui acidez levemente inferior ao leite bovino, com valores entre 0,11 e 0,18% (m/v) para os compostos ácidos expressos como ácido lático, devido a diferenças entre os grupos carboxílicos de ambas as espécies. Outros componentes também são variáveis, como por exemplo, o teor mínimo de proteínas de 2,8 % (m/v) e cinza, com valor mínimo de 0,7 % (m/v) (Haenlein, 2004).
A concentração de gordura varia entre 2,0 e 8,0 g/100 g, de acordo com os fatores de modificação da composição leiteira citados acima (Brasil, 2002; Haenlein, 2004). E, de acordo com Chilliard et al. (2001), a alimentação com oleaginosas pode modificar o metabolismo lipídico na glândula mamária e modular a secreção de gordura e o perfil de ácidos gordos do leite, melhorando o valor nutritivo.
Parâmetro | Amostras | |
Leite (g/100 g) | Soro (g/100 g) | |
Humidade | 86,93 ± 0,08 | 92,23 ± 0,21 |
Hidratos de carbono | 5,30 ± 0,10 | 4,80 ± 0,20 |
Proteínas | 3,40 ± 0,05 | 0,97 ± 0,01 |
Lípidos | 3,66 ± 0,07 | 0,53 ± 0,04 |
Cinza | 0,69 ± 0,1 | 0,49 ± 0,00 |
pH | 6,22 ± 0,11 | 4,48 ± 0,43 |
Acidez (ácido lático) | 0,17 ± 0,00 | 0,42 ± 0,01 |
Valor energético (Kcal/100g) | 68 ± 1 | 37 ± 1 |
Caracterização físico-química das bebidas lácteas fermentadas
pH
O Quadro 3 apresenta a evolução dos valores de pH das três bebidas lácteas fermentadas, obtidos ao longo do tempo de armazenamento (21 dias) a 5 C. A utilização de diferentes concentrações de soro neste estudo não influenciou o tempo de fermentação, e o final do processo fermentativo foi determinado quando as bebidas lácteas atingiram a faixa de pH entre 4,68 - 4,69, o que ocorreu após 4 horas de fermentação.
Formulação (% soro) | pH | |||
0 dias | 7 dias | 14 dias | 21 dias | |
A1 (20%) | 4,68 ± 0,01Aa | 4,42 ± 0,01Bb | 4,36 ± 0,01Cb | 4,36 ± 0,01Cb |
A2 (40%) | 4,68 ± 0,01Aa | 4,37 ± 0,01Bc | 4,33 ± 0,01Cc | 4,37 ± 0,02Bb |
A3 (60%) | 4,70 ± 0,02Aa | 4,44 ± 0,01Ba | 4,43 ± 0,01Ca | 4,45 ± 0,01Ba |
Pr > F(Model) | 0,122 | <0,0001 | <0,0001 | <0,0001 |
Significância | Não | Sim | Sim | Sim |
Nota: Letras maiúsculas diferentes na horizontal refletem diferenças significativas entre tempos de armazenamento, para a mesma formulação. Letras minúsculas diferentes na vertical refletem diferenças significativas entre formulações, para o mesmo tempo de armazenamento.
Observou-se uma redução significativa (p<0,0001) do pH para os intervalos de 0 e 14 dias para todas as formulações testadas. A formulação A1 apresentou comportamento decrescente para os valores de pH, com tendência a estabilizar no final do período de armazenamento (p=1,000 para o intervalo 14 a 21 dias). No entanto, em relação às formulações A2 e A3 observou-se que, ao longo do período analisado, os valores de pH sofreram redução entre 0 e 14 dias, seguidos de crescimento significativo após 21 dias de armazenamento das bebidas lácteas fermentadas. Entende-se, porém, que o aumento de pH observado nas formulações que continham adição de 40% e 60% de soro, apesar de apresentarem diferença significativa, na prática esse aumento não interfere na qualidade do produto final.
Comparando o pH entre formulações, verificou-se que no tempo 0 todas apresentaram valores de pH semelhantes (p=0,122). No entanto, todas as formulações apresentaram valores significativamente diferentes (p<0,0001) nos tempos de 7 e 14 dias. No que diz respeito aos resultados obtidos no tempo 21 dias, as bebidas que continham 20 e 40% de soro apresentaram pH semelhante entre si (p=0,749), mas significativamente mais baixo do que a bebida contendo 60% de soro (p<0.0001).
A redução acentuada do pH nos primeiros 14 dias de armazenamento resulta de uma manutenção de capacidade metabólica residual das bactérias fermentativas, que se anula à medida que o pH atinge valores próximos de 4,3-4,4. Esse comportamento de estabilização reforça a ideia de que a redução de pH no período de armazenamento é capaz de limitar o processo de pós-acidificação excessiva nos produtos fermentados.
Este processo pode promover a queda dos valores de pH em proporções de 3% a 9%, elevando consequentemente a acidez do produto entre 9% e 39% (Cunha et al., 2006; Recchia, 2014). O decréscimo verificado no presente trabalho (0,2 a 0,3 unidades, correspondente a entre 5 e 7% de redução do pH) mostrou-se, assim, dentro do valor espectável. Frutuoso et al. (2012), acompanharam o comportamento do pH durante os intervalos de 1, 7, 14, 17 e 21 dias de bebidas lácteas elaboradas com leite bovino e soro caprino e observaram comportamento similar ao obtido no presente trabalho, com redução inicial brusca seguida de tendência de estabilização, mas com maior decréscimo do pH (de 4,6 para 4,0) ao longo do tempo.
Acidez titulável
O Quadro 4 apresenta a evolução dos valores médios de acidez obtidos durante os quatro intervalos de tempo de armazenamento a 5 C dos tratamentos de bebidas lácteas fermentadas. A quantificação de acidez, expressa em percentagem de ácido lático, está relacionada com o pH das bebidas, e apresenta comportamento inverso ao decréscimo de pH. Desta forma, nos primeiros sete dias de armazenamento enquanto os valores de pH apresentaram decréscimo acentuado, observou-se que os valores de acidez aumentaram tendendo a estabilizar após 14 dias de armazenamento.
Formulação (% soro) | Acidez (g ácido lático/100g) | |||
0 dias | 7 dias | 14 dias | 21 dias | |
A1 (20%) | 0,71 ± 0,01Ca | 0,93 ± 0,07Aa | 0,89 ± 0,00Ba | 0,92 ± 0,00ABa |
A2 (40%) | 0,53 ± 0,02Cb | 0,79 ± 0,03Bb | 0,86 ± 0,03Aa | 0,88 ± 0,00Ab |
A3 (60%) | 0,50 ± 0,01Cc | 0,70 ± 0,02Ac | 0,68 ± 0,01Bb | 0,69 ± 0,00ABc |
Pr > F(Model) | <0,0001 | <0,0001 | <0,0001 | <0,0001 |
Significância | Sim | Sim | Sim | Sim |
Nota: Letras maiúsculas diferentes na horizontal refletem diferenças significativas entre tempos de armazenamento, para a mesma formulação. Letras minúsculas diferentes na vertical refletem diferenças significativas entre formulações, para o mesmo tempo de armazenamento.
Observou-se que apenas no intervalo de 14 dias não houve diferença significativa entre as formulações para as bebidas que continham 20% e 40% de soro de queijo na sua composição (p=0,528). Para os restantes intervalos, todas as formulações foram consideradas estatisticamente diferentes (p<0,0001), o que pode ser consequência da interferência do soro na atividade das culturas láticas utilizadas na fermentação, com efeito na produção de ácido lático, modificando a acidez e o pH do produto (Pacheco et al., 2017).
De acordo com o RTIQ de Bebidas Lácteas (Brasil, 2005), o valor de acidez (em ácido lático) para bebidas lácteas fermentadas deve ser de no mínimo 0,70%. Nesse contexto, constatou-se que, aos zero dias de armazenamento, apenas o tratamento contendo 20% de soro encontrava-se dentro do padrão estipulado pela legislação vigente. Tal resultado poderia ser alterado com a permanência das formulações por mais tempo na câmara de fermentação de forma a obter um pH máximo de 4,60, consequência da maior produção de ácido lático. Após sete dias, todas as formulações apresentaram valores de acidez dentro dos padrões legislados. Passados 14 dias de armazenamento todas apresentaram estabilidade para os valores de acidez quantificados e apenas a formulação com 60% de soro apresentou valores de acidez inferiores a 0,70%, terminando a sua vida de prateleira ligeiramente fora dos parâmetros. Observou-se que conforme se eleva a concentração de soro entre as formulações, a acidez reduziu significativamente nos intervalos de tempo. Este facto pode ser justificado pelo aumento do conteúdo em soro, que aumenta a quantidade de Ca2+ disponível no meio e promove a protonação das moléculas de fosfato presentes na superfície das micelas, causando um aumento no pH. Esta protonação aumenta a força da rede ligações cruzadas de proteínas, tornando-as mais rígidas. Nesse sentido, esse aumento na concentração de Ca2+ tem influência na sinérese (Pacheco et al., 2017). Segundo Park & Haenlein (2006), um pH baixo e uma alta acidez causam desprendimentos de soro, aumentando a solubilização de micelas de CCP que promovem uma perda de cálcio solúvel para o soro.
Os resultados obtidos corroboram com Recchia (2014) que, ao elaborar bebidas lácteas fermentadas com diferentes concentrações de soro ácido e avaliá-las nos intervalos de 0, 7, 14 e 21 dias, observou que entre os tempos 0 e 7 dias ocorreu o maior aumento de acidez das amostras. Cunha et al. (2008), ao elaborarem bebidas láticas fermentadas com 70% de leite bovino e 30% de soro, quantificaram valores de 0,72 g de ácido lático/100 g, valor semelhante ao encontrado para a amostra A1 que possuía concentração de soro 10% inferior ao autor.
Composição nutricional
O Quadro 5 apresenta os resultados médios para determinações de humidade, lípidos, proteínas, cinza, hidratos de carbono e valor energético das bebidas lácteas fermentadas.
Formulações (% soro) | Humidade | Lípidos (g/100 mL) | Proteínas (g/100 mL) | Cinzas (g/100 mL) | Hidratos de carbono (g/100 mL) | Energia (Kcal/100 mL) |
A1 (20%) | 76,60 ± 0,25a | 2,45 ± 0,12a | 2,66 ± 0,19a | 0,62 ± 0,01a | 17,40 ± 0,60a | 103 ± 0a |
A2 (40%) | 78,94 ± 0,46b | 1,12 ± 0,01b | 2,66 ± 0,03a | 0,55 ± 0,06ab | 16,60 ± 0,50ab | 87 ± 2b |
A3 (60%) | 81,08 ± 0,13c | 0,63 ± 0,00c | 1,90 ± 0,003b | 0,48 ± 0,03b | 15,90 ± 0,20b | 77 ± 1c |
Nota: Letras iguais na mesma coluna indicam que não houve diferença significativa dos resultados pelo teste de Tukey (p<0,05).
No que diz respeito à humidade, gordura e valor energético, observou-se diferença significativa entre todas as formulações. Tal facto pode ser explicado pela adição de maiores concentrações de soro a cada amostra, que eleva a quantidade de água disponível no meio, reduz os teores de lípidos e consequentemente o valor calórico. Tais resultados corroboram com Otero et al. (1995), que avaliaram parâmetros físico-químicos de bebidas lácteas fermentadas elaboradas com adição de soro e água, e constataram que os teores de gordura das bebidas elaboradas com soro foram superiores às bebidas diluídas com água. Para as formulações de 40% e 60%, que não estão em conformidade com a legislação vigente, (lípidos superiores a 2%) (Brasil, 2005), torna-se necessária a captação de soro e leite com padronização de gordura para elaboração do produto.
Quanto às proteínas, observou-se que o aumento das concentrações de soro não interferiu de forma significativa nos resultados obtidos para a formulação A3, pois o decréscimo das proteínas do leite foi parcialmente restituído pela adição das proteínas presentes no soro. Em relação às formulações constituídas de 20% e 40% de soro não apresentaram diferença significativas entre si, pois o decréscimo das proteínas do leite foi parcialmente restituído pela adição das proteínas presentes no soro. Araújo & Barbosa (2015) quantificaram elevada concentração de proteínas (9,34%) em bebida láctea fermentada elaborada com 44% de leite e 28,5% de soro caprino, posteriormente adicionada de 15% de polpa de umbu, que possui maior conteúdo proteico, o que justifica a disparidade relativamente às bebidas elaboradas no presente trabalho. Todas as formulações apresentaram-se dentro dos padrões mínimos exigidos pela Instrução Normativa n° 16 (2005), que determina valor mínimo de 1,7% proteínas de origem láctea para bebidas lácteas com adições cujas caraterísticas organolépticas se assemelham às bebidas lácteas sem adições.
O teor de cinza foi inferior ao valor de 0,86% encontrado por Frutuoso et al. (2012), ao caracterizar bebidas lácteas fermentadas com adição de soro caprino e o valor de 0,7% obtido por Recchia (2014). Porém, estão em conformidade com Cunha et al. (2008), que encontrou 0,65% em avaliação físico-química de bebida láctea, e Thamer & Penna (2006), cujo valor variou entre 0,53 e 0,61%.
Avaliação da estabilidade microbiológica
Foram avaliados os parâmetros microrganismos aeróbios mesófilos e psicrófilos, e bolores e leveduras. Os resultados obtidos estão apresentados no Quadro 6.
Formulação | Parâmetros microbiológicos obtidos (UFC/mL) | ||||||||||||
Aeróbios mesófilos | Aeróbios psicrófilos | Bolores e leveduras | |||||||||||
Tempo (dias) | 0 | 7 | 14 | 21 | 0 | 7 | 14 | 21 | 0 | 7 | 14 | 21 | |
A1 (20%) | 2x101±1,15 | 4x101±2,65 | 6x101±2,75 | 6,5x101±2,63 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | |
A2 (40%) | <1x101 | 2,5x101±2,12 | 5x101±2,83 | 5,7x101±2,63 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | |
A3 (60%) | <1x101 | 2,5x101±0,58 | 4x101±1,74 | 4,5x101±1,53 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 | <5x101 |
Alimentos do grupo dos leites fermentados, como os iogurtes e as bebidas lácteas fermentadas com adição de polpa de frutas e/ou açúcar, como é o caso das bebidas avaliadas neste estudo, são mais suscetíveis ao crescimento de leveduras (Silva et al., 2010), no entanto, estas não foram detetadas nas amostras analisadas. De igual forma, não foram detetados microrganismos aeróbios psicrófilos. Não existem, na legislação vigente, limites estipulados para contagens de microrganismos aeróbios mesófilos em bebidas lácteas fermentadas. No entanto, utilizou-se como parâmetro o padrão legislado para bebidas lácteas pasteurizadas - 7,5 x 104 UFC/mL (Brasil, 2005). Sendo assim, pode-se considerar que as bebidas elaboradas no presente trabalho estão de acordo com o esperado para qualidade microbiológica de produtos lácteos fermentados e apresentaram estabilidade ao longo do período analisado.
As análises para quantificação de microrganismos mesófilos, pscicrófilos, e bolores e leveduras em alimentos são utilizadas no controlo da qualidade do leite como um indicador de higiene e de qualidade geral, uma vez que em elevadas quantidades podem indicar falhas na higienização de processos, na obtenção da matéria-prima, no manuseio e/ou nas condições de armazenamento dos produtos (Downes & Ito, 2001).
Análise das bactérias láticas viáveis
No Quadro 7 estão apresentados os resultados obtidos para a contagem de BAL nas várias formulações nos tempos 0 dias e 21 dias de armazenamento.
Formulação (% soro) | Contagem de bactérias láticas (log10 UFC/mL) | |
0 dias | 21 dias | |
A1 (20%) | 8,87 ± 0,41 Aa | 8,34 ± 0,52 Aa |
A2 (40%) | 9,06 ± 0,28 Aa | 8,82 ± 0,45 Aa |
A3 (60%) | 8,44 ± 0,68 Aa | 8,01 ± 0,17 Aa |
Nota: Letras maiúsculas diferentes refletem diferenças significativas entre tempos de armazenamento, para a mesma formulação. Letras minúsculas diferentes refletem diferenças significativas entre formulações, para o mesmo tempo de armazenamento.
O objetivo da quantificação das BAL nos tempos 0 e 21 dias após a sua produção está relacionado com a avaliação da influência da adição do soro na estabilidade destas bactérias e do produto ao longo do tempo de vida útil. Com base nos resultados expressos no Quadro 7, é possível verificar que a incorporação das diferentes concentrações de soro não afetou significativamente o crescimento e a viabilidade destas bactérias, pois todas as formulações apresentaram contagens de BAL viáveis dentro dos padrões mínimos de 106 UFC/mL no final da vida de prateleira, conforme as exigências da legislação vigente (Brasil, 2005), e não apresentaram diferença significativa para nenhum dos tratamentos avaliados.
Tais resultados corroboram estudos similares realizados por outros autores, como Recchia (2014), que ao avaliar a influência da adição de soro ácido na elaboração de bebidas lácteas fermentadas com preparados de frutas, quantificou valores superiores a 107 UFC/mL de bactérias láticas viáveis em todos os tratamentos após 21 dias de armazenamento sob temperaturas de 8 °C. Frutuoso et al. (2012) avaliou a estabilidade de bebidas lácteas fermentadas elaboradas com leite de vaca e soro, e obteve contagens superiores a 106 UFC/mL ao longo de 21 dias de vida de prateleira.
Caracterização sensorial das bebidas láticas fermentadas
Na avaliação das três formulações de bebidas lácteas fermentadas, onde o fator de variação entre elas foi a concentração de soro, observa-se no Quadro 8 que as formulações A1 e A2 não apresentaram diferença significativa (p > 0,05) em relação a todos os parâmetros avaliados no teste de aceitação sensorial. Em contrapartida, a formulação A3 apresentou diferenças significativas em relação às restantes para todos os atributos avaliados, principalmente em relação ao sabor e a textura. Os valores médios de pontuação da amostra A3 são equivalentes a “nem gostei nem desgostei” e “gostei ligeiramente” na escala hedónica utilizada na aplicação do teste sensorial, representando as menores pontuações no teste quando comparadas as formulações A1 e A2.
Formulação (% soro) | Cor | Sabor | Textura | Impressão Global |
A1 (20%) | 8,06 ± 1,07ª | 7,99 ± 0,96ª | 7,86 ± 1,27ª | 7,98 ± 0,83ª |
A2 (40%) | 7,96 ± 1,11ª | 7,73 ± 1,17ª | 7,74 ± 1,16a | 7,76 ± 0,90a |
A3 (60%) | 7,28 ± 2,01b | 6,88 ± 2,23b | 5,68 ± 1,99b | 6,36 ± 2,23b |
Nota: Letras iguais na mesma coluna indicam que não houve diferença significativa dos resultados pelo teste de Tukey (p<0,05).
Tais resultados corroboram parcialmente com os dados obtidos por Rezende et al. (2007), que elaboraram quatro formulações de bebidas lácteas fermentadas com adição de polpa de umbu variando as concentrações de soro em 20 %, 40 %, 60 % e 80 %. A amostra que obteve menor aceitabilidade entre os parâmetros avaliados e a única significativamente diferente em relação aos outros tratamentos foi a de maior concentração de soro, assim como no presente trabalho. No entanto aquele estudo utilizou leite e soro de origem bovina, que possui sabor menos intenso e mais comum ao paladar, quando comparados com o leite e soro de leite caprino, o que poderia justificar a maior tolerância dos consumidores a concentrações superiores de soro bovino em bebidas lácteas fermentadas do que de soro caprino.
Dados obtidos por Araújo & Barbosa (2015) mostram que, ao desenvolverem bebidas lácteas fermentadas com variação nas concentrações de soro caprino (28,5% e 44%) e leite caprino (44% e 28,5%) respectivamente, os atributos sabor e aceitação global foram significativamente afetados nos testes de aceitação sensorial, sendo a amostra com 44% de soro caprino e 28,5% de leite caprino a que obteve menores médias, variando de 7,5 a 4,6.
Considerando que os testes sensoriais foram realizados em Portugal, país onde as bebidas lácteas fermentadas não são comercializadas e não são relatados estudos sobre tais produtos no país, houve por parte dos provadores uma associação intuitiva das bebidas lácteas com iogurtes, que possuem como uma de suas principais características a textura mais encorpada e espessa. Sabe-se ainda que com a adição de maiores concentrações de soro a viscosidade das bebidas é reduzida. Os autores Castro et al. (2013) reforçam esta teoria, pois ao avaliarem as características sensoriais de bebidas láticas fermentadas determinaram uma relação entre a quantidade de soro adicionado e as características reológicas das bebidas, provavelmente como resultado da substituição de caseína pelas proteínas de soro.
Sendo assim, desconsiderando a adição de espessantes, pode-se admitir que em relação à textura a adição de maiores quantidades de soro nas bebidas lácteas é inversamente proporcional à viscosidade, podendo justificar que o atributo de maior índice de rejeição da formulação contendo 60% de soro seja a textura.
Num estudo sobre a influência da concentração de soro na aceitação sensorial de bebida láctea fermentada com polpa de manga, Santos et al. (2008) verificaram que a formulação de 40 % foi a mais aceite, situando-se muito próximo do termo hedónico “gostei muito”. Os resultados positivos obtidos no presente trabalho a partir das respostas dos provadores evidenciam a boa aceitabilidade geral do produto tanto no aspeto visual quando no sensorial, e ratificam as possibilidades da implementação de bebidas lácteas fermentadas à base de leite e soro caprino na dieta dos consumidores portugueses.
CONCLUSÕES
No presente trabalho, a incorporação de soro caprino para a elaboração de bebidas lácteas fermentadas apresentou-se como uma alternativa viável de ampliação do portifólio de produtos lácteos caprinos e valorização da raça Serrana. As formulações com 20 % e 40 % de incorporação de soro não apresentaram diferenças significativas entre os principais parâmetros avaliados no estudo. Considerando o objetivo de adicionar a maior quantidade possível de soro caprino e preservar a aceitabilidade do produto pelo consumidor, o teor de soro mais apropriado para ser utilizado no desenvolvimento do produto é de 40%.