INTRODUÇÃO
A exploração sistemática e intensiva de recursos naturais como o caso do solo, tem demostrado que a respetiva capacidade de fornecer serviços ao ecossistema está cada vez mais dependente de fatores externos (Helming et al., 2018). Subprodutos, derivados da pirólise ou conversão termoquímica da biomassa, com a designação de biocarvão (BioC), têm sido usados com o objetivo de melhorar qualidade do solo e a respetiva funcionalidade ecológica (Beusch, 2021). O elevado interesse agronómico deste tipo de materiais está relacionado com a melhoria da fertilidade do solo, através do aumento da capacidade de retenção de água e nutrientes e na mitigação das emissões de C-CO2 ou na proteção da matéria orgânica dos processos de oxidação biológica (Lehmann et al., 2006). Tendo em consideração as elevadas potencialidades deste tipo de material, têm sido vários os estudos com o objetivo de produzir informação relativa ao efeito do BioC sobre as características físico-químicas do solo (Zhao et al., 2022). Os estudos sobre a biologia edáfica, nomeadamente ao nível da fauna do solo (Elliston & Oliver, 2020), são ainda muito reduzidos. Apesar da fauna do solo ser um grupo muito diversificado, a maior parte dos estudos relacionados com o efeito do BioC utilizam as minhocas como modelo biológico (Li et al., 2011). As minhocas são organismos globalmente comuns das comunidades do solo, representando entre 40 a 90% da biomassa do solo em determinados ecossistemas (Fragoso et al., 1999), com influência na formação do solo, na decomposição de resíduos orgânicos, respetiva reciclagem ou mineralização e propriedades físicas do solo (Lemtiri et al., 2014). Deste modo, o potencial das minhocas tem sido largamente reconhecido em estudos de ecotoxicologia, fazendo parte de ferramentas de análise de risco associado a fenómenos de aplicação de materiais ao solo, através da análise comportamental (Elliston & Oliver, 2020). Este tipo de testes, baseados em diretrizes definidas pela Organização Internacional de Padrões (ISO, 2005), estabelecem como endpoint ecologicamente mais relevante o comportamento das minhocas. São testes de elevada sensibilidade, de fácil execução e reprodutíveis, permitindo comparações de resultados entre laboratórios e materiais, factos que tornam estas metodologias ideais para uma rápida análise inicial do efeito de substâncias ou materiais emergentes, aplicados de forma deliberada ou acidental ao solo (Li et al., 2011). Tendo em consideração todos estes fatores, relacionados com as potencialidades do BioC na manutenção da funcionalidade do solo e dos reduzidos estudos associados aos efeitos na fauna do solo, este trabalho tem como objetivo avaliar o efeito da aplicação de diferentes doses de um BioC comercial, de origem vegetal, no comportamento da espécie Eisenia fetida, de modo a estimar os potenciais riscos associados à sua aplicação/presença no solo e respetiva habitabilidade.
MATERIAIS E MÉTODOS
Biochar
No trabalho foi usado um BioC comercial, obtido a partir de um processo de pirólise de resíduos florestais, cujas características são apresentadas no Quadro 1.
Quadro 1 Caraterísticas físico-químicas iniciais do BioC em estudo
| CE#,1 | pH(H2O)#,1 | H2O# | Voláteis* | N* | P* | K* | Ca* | Mg* | |
| dS m -1 | - | g kg -1 | |||||||
| 0,17 | 9,1 | 98,0 | 909,0 | 6,7 | 0,6 | 8,9 | 29,0 | 2,6 | |
#: valores referentes à matéria original; 1: H2O (1:5); *: valores referentes à matéria seca;
De acordo com a informação disponibilizada pelo fabricante, o BioC apresenta uma densidade aparente de 400 kg m-3 e uma granulometria inferior a 10 mm. No caso dos teores totais de metais pesados no BioC (dados não apresentados), os valores obtidos revelaram-se inferiores aos teores máximos admissíveis para matérias fertilizantes, de acordo com o DL 30/2022.
Solo artificial
O solo artificial (Quadro 2), usado como matriz de suporte, foi preparado de acordo com as orientações definidas para o estudo de substâncias químicas (ISO 11268-1).
Quadro 2 Características físico-químicas do solo artificial
| pH | Mat. Org. | P2O5 (*) | K2O (*) | CTCe | Areia | Limo | Argila | |
| - | (g kg -1 ) | (mg kg -1 ) | (cmol c kg -1 ) | (g kg -1 ) | ||||
| 5,2 | 64,2 | 57,0 | 92,0 | 11,4 | 809 | 74 | 153 | |
(*) método de Egner-riehm
Neste caso, as guidelines definem uma mistura com uma proporção de 70% de areia de quartzo (Ø 0,05-0,2 mm), 20% de caulino, com argila do tipo caulinite superior a 30%, e 10% de turfa esfagno (ISO, 2005). Para a mistura obtida, cujas principais características físico-químicas são apresentadas no quadro 2, procedeu-se ao ajuste do teor de humidade, equivalente a 50% da capacidade máxima de retenção de água. Igual procedimento corretivo foi seguido para o pH inicial da mistura, cujos resultados (Quadro 2), de acordo com as normas ISO 11268-1 (ISO, 2005), revelaram a necessidade de correção para valores de 6,0±0,5, através da adição de carbonato de cálcio (CaCO3).
Ensaio de evitamento
Para o ensaio de evitamento foi seguido o protocolo relativo à avaliação da qualidade do solo e efeito de substâncias químicas realizado em compartimentos de duas secções (ISO 17512-1) (ISO, 2005). Cinco tratamentos foram considerados, relativos às doses 0 (BioC0), 5 (BioC5), 10 (BioC10), 15 (BioC15) e 30 t/ha (BioC30). Para cada tratamento foram realizadas 3 repetições, num total de 15 recipientes-teste. Cada recipiente-teste foi separado em duas secções iguais, com auxílio de uma placa divisória (Figura 1) e cada secção foi preenchida por 500 g de solo artificial, com BioC (solo-teste) equivalente à respetiva dose estudada (BioC5, BioC10, BioC15 e BioC30), identificadas com sinal (+), e solo-controlo, sem BioC (BioC0), identificado com o sinal (-). Para a validação do ensaio, cumprindo a obrigatoriedade neste tipo de estudos (ISO, 2005), um teste de controlo duplo foi também incluído, em que o tratamento controlo é comparado entre si.

Figura 1 Esquema do teste de evitamento protocolado aplicado no presente estudo: (i) secção A é relativa ao tratamento controlo (BioC0) e (ii) secção B é relativa ao solo-teste (BioC0, no teste dual, BioC5, BioC10, BioC15 e BioC30).
Preenchidas as seções em cada recipiente-teste, a placa divisória foi retirada e 10 indivíduos adultos, da espécie E. fetida, adquiridas comercialmente, previamente selecionados e lavados, com clitelo desenvolvido e peso fresco compreendido entre 300-600 mg (ISO 17512-1) (ISO, 2005), foram colocadas na linha divisória. Todos os recipientes-teste foram fechados, com tampas perfuradas, e colocados a incubar em condições controladas de temperatura (20±2 ºC) e fotoperíodo de 8-h de escuro e 16-h de luz, durante um período de 48 horas de exposição, durante o qual as minhocas não foram alimentadas. Após o período de exposição, a placa divisória foi inserida na linha média de cada recipiente-teste e realizada a contagem dos indivíduos em cada secção comparada, solo-controlo e solo-teste, sem e com adição de BioC, respetivamente, para os diferentes tratamentos e repetições estudados (Figura 1). Para efeitos de contagem, indivíduos localizados na linha central ou interface das respetivas secções foram considerados como 0,5 indivíduos. No final do ensaio (2 dias) procedeu-se à avaliação do teor de humidade, pH e condutividade elétrica (CE) do solo nas secções comparadas.
Análise estatística
Em cada tratamento foi determinada a percentagem de evitamento (% E vit ), de acordo com a equação de Busch et al. (2012) (%E vit =[n c -n t ]/N*100), em que n c , n t e N são relativos ao número de minhocas no solo-controlo, solo-teste e total de minhocas por recipiente-teste, respetivamente. Valores positivos (+) indiciam evitamento enquanto valores negativos (-) uma não reposta ou atração à presença de BioC (ISO, 2005). Os dados obtidos foram sujeitos a uma análise de normalidade e homogeneidade, pelos testes de Shapiro-Wilk e Barlett, respetivamente, seguido de uma ANOVA a um fator e do teste de Tukey, para um α=0,05.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após 48 horas de exposição, os resultados obtidos indicaram ausência de mortalidade das minhocas nos diferentes tratamentos estudados, cumprindo-se um dos pressupostos de validação da metodologia seguida (ISO, 2005). Acresce, também, que no caso do teste de duplo controlo ou dual (Figura 2), as minhocas não revelaram preferência significativa (p>0,05) entre as secções comparadas, apresentando uma distribuição média de 50%, respeitando assim o intervalo de valores normativos (40 a 60 %) para este tipo de tratamento. Os valores negativos observados no tratamento controlo, são indicadores da preferência das minhocas para condições de ausência de BioC (Figura 2).

Figura 2 Percentagem (%) de evitamento/preferência no teste de comportamento em solo artificial com E. fetida nos tratamentos estudados, sem (0 t/ha) e com BioC (5, 10, 15 e 30 t/ha). (Barras relativas a cada tratamento, seguidas da mesma letra não diferem significativamente entre si, pelo teste de Tukey, para 5% de probabilidade; barras verticais indicam erro padrão (n=3).
Nos tratamentos com BioC, observa-se uma tendência oposta, com os valores positivos a revelar um comportamento de fuga, com os resultados a revelarem-se dependentes da dose aplicada, com a percentagem de evitamento a variar entre os 33 e 66 % (Figura 2). Nos tratamentos com BioC, somente nas doses mais elevadas, superiores a 10 t/ha, é que se observa uma redução significativa da habitabilidade do solo, mais evidente para a dose máxima estudada (30 t/ha), na qual o valor do limite de habitabilidade do solo (60% de evitamento) é visivelmente ultrapassado (Figura 2). Estes resultados indiciam efeitos negativos ao nível da biologia do solo, através da indução de um comportamento de fuga para condições de ausência de BioC (solo-controlo), tendência também observada por vários autores (Elliston & Oliver, 2020). Os elevados valores da superfície específica e capacidade de troca iónica deste tipo de materiais (Beush, 2021) promovem uma diminuição significativa dos teores gravimétricos de água no solo (Sanchez-Hernandez et al., 2019), tal como observado no presente trabalho nos tratamentos com BioC comparativamente ao grupo controlo (0 t/ha) (Figura 3.i).

Figura 3 Teor médio de H2O (g kg-1) (i), pH (ii) e CE (iii), nas respetivas secções, solo-controlo e solo-teste, nos tratamentos estudados, sem (0 t/ha) e com BioC (5, 10, 15 e 30 t/ha), no final do período de exposição (48-h) no ensaio de comportamento com Eisenia fetida. Barras relativas a cada tratamento, seguidas da mesma letra minúscula e maiúscula, não diferem significativamente entre si, pelo teste de t-Student e Tukey, para 5% de probabilidade, para cada secção intra- e entre tratamentos, respetivamente; barras verticais indicam erro padrão (n=3).
Esta maior redução de água do solo na presença de BioC, promoveu condições desfavoráveis de habitabilidade do solo, potenciando fenómenos de dessecação das minhocas com o consequente aumento da percentagem de evitamento (Figura 2). O efeito da redução hídrica do meio poderá, igualmente, exercer uma influência sobre a consistência do solo (Chan & Barchia, 2007), aumentando o grau de resistência à quebra ou esboroamento dos agregados, limitando quer os processos de ingestão como digestão de solo pelas minhocas, comparativamente ao solo sem BioC. Alterações ao nível das condições químicas, nomeadamente de pH (Figura 3.ii) e condutividade elétrica (CE) do solo (Figura 3.iii), com aumento dos respetivos valores, poderão também ajudar a explicar o evitamento das minhocas na presença de BioC. O efeito alcalinizante observado poderá exercer uma redução da disponibilidade de determinados nutrientes, como o fósforo, ou alterações no pH interno das minhocas (Sanchez-Hernandez et al., 2019), sendo estes efeitos mais notados para doses mais elevadas de BioC (Figura 3.ii), potenciando maiores valores de evitamento (Figura 2). Por sua vez, a presença de sais de cálcio e magnésio (Quadro 1), responsáveis pelo aumento da condutividade elétrica do solo, poderão originar condições menos favoráveis às minhocas, que se revelaram mais significativas apenas para as doses mais elevadas testadas (30 t/ha) (figura 3.iii).
CONCLUSÕES
A aplicação deste tipo de BioC, apesar dos benefícios para as propriedades físico-químicas do solo, apresenta potenciais riscos para a biologia do solo, os quais deverão ser ponderados, nomeadamente em termos da dose a aplicar, com o risco de uma maior redução da habitabilidade do solo devido a condições desfavoráveis de humidade, pH e condutividade elétrica, especialmente para valores superiores a 10 t/ha.













