INTRODUÇÃO
A qualidade e saúde do solo são fundamentais para a garantia da segurança alimentar e a sustentabilidade ambiental. Um solo saudável permite aumentar a produtividade, mitigar os fenómenos de erosão e poluição, manter a biodiversidade e outros serviços essenciais aos ecossistemas (Bünemann et al., 2018). A preservação das funcionalidades do solo implica, entre outras estratégias, a manutenção ou aumento dos teores de carbono orgânico, através da aplicação de materiais orgânicos com valor fertilizante. Os subprodutos resultantes das estações de tratamento de águas residuais (ETAR), nomeadamente a respetiva fração sólida, vulgarmente designada por lama, desde que cumpram os respetivos requisitos legais (DL 276, 2009), são usados como fertilizante agrícola devido aos teores consideráveis de matéria orgânica e nutrientes, podendo promover melhorias ao nível da fertilidade do solo, capacidade de retenção de água, sequestro de carbono e prevenção dos processos de erosão (Romanos et al., 2019). Todavia, na gestão destes materiais é importante garantir que, antes da respetiva aplicação ao solo, sejam tratados de forma adequada de modo a minimizar impactos negativos na respetiva qualidade. O processo de vermicompostagem, que envolve a bio-oxidação e estabilização da matéria orgânica, por ação conjunta das minhocas e microrganismos, em ambiente mesófilo controlado (Dominguez & Edwards, 2011), poderá constituir uma alternativa viável na gestão da qualidade ou valor fertilizante das lamas de ETAR. Este processo, para além de promover uma diminuição do volume destes materiais, possibilita a obtenção de um fertilizante orgânico cujas características poderão gerar maiores benefícios para o ambiente edáfico como para as plantas contribuindo, adicionalmente, para uma redução da dependência dos fertilizantes químicos e uma maior sustentabilidade ambiental (Rékási et al., 2023). Ainda assim, uma utilização mais eficaz e eficiente dos materiais resultantes do processo de vermicompostagem deverá ter em consideração, não somente as características da qualidade (bio)química da respetiva matéria orgânica, como também da matriz edáfica em que são aplicados. Deste modo, estudos comparativos entre materiais com diferentes graus de estabilização, através de ensaios de incubação em condições controladas, em matrizes edáficas dominantes em determinados contextos edafo-climáticos, constituem uma ferramenta essencial de gestão da matéria orgânica e nutrientes nestes materiais, permitindo avaliar os efeitos que a respetiva aplicação exerce sobre a qualidade e saúde do solo, razão que constitui o objetivo do trabalho agora apresentado.
MATERIAIS E MÉTODOS
Solo
Como matriz edáfica para o estudo realizado, foi selecionado um cambissolo districo de granito (WRB, 2006). Após colheita aleatória de uma amostra composta, o solo foi seco em condições de temperatura ambiente e na ausência de incidência direta de luz, para estabilização do teor de humidade para valores inferiores a 10 %, e sujeito a uma crivagem (Ø 4 mm), para efeitos de utilização no ensaio experimental. Uma toma composta desta fração foi selecionada e sujeita a uma segunda crivagem (Ø 2 mm), para obtenção da fração terra fina do solo, com objetivo da caracterização físico-química inicial, cujos resultados obtidos são apresentados no Quadro 1.
Quadro 1 Caraterísticas iniciais do solo usado no estudo
| pH (H2O) | Mat. Org | P2O5 | K2O | CTCe | argila | textura | |
| - | g kg -1 | mg kg -1 | cmol c kg -1 | g kg -1 | - | ||
| 5,0 | 10,0 | 40,0 | 74,0 | 1,82 | 77,0 | arenoso franco | |
Os teores de humidade do solo foram otimizados, procedendo-se à avaliação da capacidade máxima de retenção de água (CMRA) e respetiva correção, numa primeira fase, para 25% do valor obtido, com a respetiva incubação em condições laboratoriais, durante um período de 48-h, para eliminação do flush inicial resultante do tratamento (secagem e crivagem) do solo (Keeney, 1982). Os procedimentos analíticos estão de acordo com as melhores práticas aplicadas pelo laboratório Joaquim Quelhas dos Santos da UTAD, tendo como base os princípios descritos por Bundy & Meisinger (1994) e Houba et al. (1995).
Materiais orgânicos
Os materiais orgânicos estudados têm por base subprodutos resultantes do tratamento de efluentes de origem urbana, obtidos na estação de tratamento de águas residuais, localizada em Vila Real. As lamas recolhidas foram sujeitas a um tratamento secundário, seguido de uma estabilização por digestão anaeróbia e respetiva desidratação sendo, para efeitos de discussão neste trabalho, designadas por lamas tratadas (LT). Um segundo material orgânico incluído no presente estudo, designado de lama vermicompostada (LVC), foi obtido a partir da mistura de LT com estrume de equino e palha de arroz, na proporção de 25, 65 e 10% (peso fresco), sujeita a um período de pré-compostagem de 5 semanas, seguido de uma fase de vermicompostagem, com minhocas da espécie Eisenia fetida, numa razão de 29 indivíduos por kg de peso fresco de mistura, durante um período de 60 dias, em condições controladas de temperatura, humidade e arejamento. Para ambos os materiais orgânicos, LT e LVC, foi colhida uma toma composta de 1,5 kg (peso fresco) para efeitos de estudo e caracterização química inicial, cujos resultados são apresentados no Quadro 2. Na caracterização dos materiais orgânicos foram seguidos os mesmos princípios aplicados na análise do solo (Houba et al., 1995), com ligeiras alterações resultantes da respetiva natureza dos materiais (Kalra & Maynard, 1991).
Quadro 2 Caraterísticas físico-químicas iniciais das lamas tratadas (LT) e vermicompostadas (LVC) usadas no estudo
| MS# | MO* | pH# | NH4 # | NO3 # | N* | P* | K* | Ca* | C:N | |
| g kg -1 | - | mg kg -1 | g kg -1 | |||||||
| LT | 790 | 745 | 7,9 | 1535 | 0,7 | 56 | 21,4 | 2,2 | 10,2 | 7,7 |
| LVC | 642 | 560 | 4,8 | 240 | 1786 | 15 | 6,1 | 7,8 | 16,2 | 21,6 |
#: valores referentes à matéria original; *: valores referentes à matéria seca
MS: matéria seca; MO: matéria orgânica
Em termos de caracterização dos materiais, de acordo com o DL 276/2009, procurou-se também avaliar outros parâmetros relacionados com o valor fertilizante dos materiais orgânicos em estudo, nomeadamente elementos potencialmente tóxicos (Quadro 3). Para a respetiva quantificação foi seguido o procedimento descrito por Madjar et al. (2020), com a extração em água régia (HNO3:HCl 1:3 v/v) e quantificação por espectrometria de emissão ótica por plasma acoplado indutivamente (ICP-OES), com os resultados a registarem valores inferiores aos limites legalmente estabelecidos para cada elemento analisado.
Quadro 3 Teores de elementos potencialmente tóxicos nas lamas tratadas (LT) e vermicompostadas (LVC) usadas no estudo
| Cu # | Zn # | Ni # | Cd # | Cr # | Pb # | Hg # | |
| mg kg -1 | |||||||
| LT | 181,1 | 251,6 | 42,7 | 0,71 | 100,9 | 104,5 | 0,03 |
| LVC | 46,3 | 187,2 | 22,5 | 0,20 | 54,3 | 34,8 | 0,01 |
#: valores referentes à matéria seca
Ensaio de incubação
Para efeitos de realização do ensaio de incubação foram considerados dois tratamentos com adição de matéria orgânica, na forma de lama tratada (LT) e lama vermicompostada (LVC). Um terceiro tratamento, correspondente ao grupo controlo ou testemunha (TEST), sem adição de lama, foi também incluído. Para cada tratamento foram realizadas 4 repetições, num total de 12 reatores de incubação. Para cada reator-teste foi adicionado uma quantidade de solo equivalente a 2 kg, em termos de peso seco, pré-incubado a 25% da CMRA. Nos reatores relativos aos tratamentos e repetições com material orgânico, foi adicionado ao solo uma quantidade de lama equivalente a 20 toneladas de matéria seca por hectare, na forma de LT e LVC, devidamente homogeneizada. No final, procedeu-se à correção dos teores de humidade em todos os tratamentos, para valores de 50% da CMRA, através da adição de água destilada. Por sua vez, todos os reatores, relativos aos tratamentos e repetições considerados (n=12), foram colocados a incubar durante um período de 28 dias em condições controladas de temperatura, humidade e arejamento, na ausência de luz. No final do período de incubação, para todos os tratamentos e repetições experimentadas, uma toma composta do respetivo solo foi recolhida e analisada, numa primeira fase, em amostra fresca, os parâmetros relacionados com o teor de humidade, pH em água, condutividade elétrica (CE) e teores de N mineral (NH4 +; NO3 -) e, numa segunda fase, após secagem em estufa, entre os 40 e 60 ºC, durante um período de 24 h, os teores de fósforo e potássio extraíveis, expressos nos respetivos óxidos (P2O5 e K2O), matéria orgânica, iões no complexo de troca (Ca2+, Mg2+ e Al3+), micronutrientes (B, Cu, Zn, Fe) e metais pesados (Ni, Cr, Cd, Pb e Hg).
Análise estatística
Os dados obtidos foram sujeitos a um teste de normalidade, pelo teste de Shapiro-Wilk, para um nível de probabilidade de ( igual a 0,05. Após testada a normalidade dos dados, procedeu-se à avaliação da variância através de testes paramétricos. Uma análise de variância (ANOVA) a um único fator (tipo de lama) foi realizada na data final do período experimental, para os diferentes parâmetros químicos analisados, com a respetiva separação de médias realizada através do teste das diferenças mínimas significativas (LSD), para igual nível de probabilidade.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No final do período de incubação, para os diferentes parâmetros avaliados, os resultados obtidos evidenciaram efeitos significativos (p<0,05) do tipo de lama (LT, LVC) comparativamente ao grupo controlo (TEST). A aplicação de LVC e LT promoveu aumentos dos valores de parâmetros relacionados com a matéria orgânica (MO), condutividade elétrica (CE), N mineral (NH4 + e NO3 -), fósforo e potássio extraíveis, expressos na forma de P2O5 e K2O, respetivamente, cálcio (Ca2+) e magnésio (Mg2+) no complexo de troca do solo em estudo. Os aumentos foram mais notados para o tratamento com LVC no qual, com exceção dos parâmetros CE e N mineral, foram registados valores mais elevados e significativos que no tratamento com LT, no final do período de incubação (Quadro 4). Tendência inversa foi observada na reação do solo em que, comparativamente ao grupo controlo (TEST), a aplicação de lamas promoveu uma diminuição significativa dos valores de pH não sendo, no entanto, observadas diferenças entre o tipo de lamas estudadas, apesar de uma maior tendência de acidificação registada para o caso das LT comparativamente às LVC, com diminuições de 0,37 e 0,34 unidades de pH, respetivamente, comparativamente ao tratamento TEST.
Quadro 4 Resultados para os vários parâmetros físico-químicos analisados no solo para cada tratamento estudado: testemunha (TEST), lama tratada (LT) e lama vermicompostada (LVC)
| parâmetro | TEST | LT | LVC |
|---|---|---|---|
| pH (H2O) | 4,99 b | 4,62 a | 4,75 a |
| CE (dS m-1) | 0,03 a | 0,16 b | 0,18 b |
| NH4 + (mg kg-1) | 3,8 a | 94,8 b | 3,8 a |
| NO3 - (mg kg-1) | 7,5 a | 83,1 c | 54,9 b |
| MO (g kg-1) | 11,68 a | 12,56 a | 14,43 b |
| P2O5 (mg kg-1) | 43,6 a | 45,5 a | 100,1 b |
| K2O (mg kg-1) | 63,0 a | 80,6 c | 70,3 b |
| Ca2+ (cmolc kg-1) | 0,67 a | 0,89 b | 1,13 c |
| Mg2+ (cmolc kg-1) | 0,21 a | 0,31 b | 0,39 b |
| Cu (mg kg-1) | 6,4 a | 6,9 a | 6,5 a |
| Zn (mg kg-1) | 39,2 a | 41,7 a | 40,3 a |
| Ni (mg kg-1) | 7,4 a | 7,6 a | 7,5 a |
| Cd (mg kg-1) | 0,1 a | 0,1 a | 0,1 a |
| Cr (mg kg-1) | 17,2 a | 17,5 a | 17,3 a |
| Pb (mg kg-1) | 6,6 a | 6,4 a | 6,4 a |
| Hg (µg kg-1) | 22,7 a | 53,7 b | 27,8 a |
Para cada parâmetro, cada coluna seguida pela mesma letra não difere significativamente pelo teste LSD, para um nível de probabilidade de 0,05.
Para os elementos potencialmente tóxicos, com a aplicação de lamas foi observada uma tendência de aumento dos respetivos teores embora, somente para o caso das LT e no caso do elemento Hg, é que os respetivos valores no solo se revelaram mais elevados e significativos comparativamente aos restantes tratamentos estudados (TEST e LVC) (Quadro 4). Ainda assim, apesar desta tendência, no final do período de incubação, os teores registados para cada elemento mostraram-se muito abaixo dos valores limite de concentração definidos para solos recetores deste tipo de materiais (DL 103/2015). Os resultados observados indiciam que a aplicação de LVC ao solo, comparativamente às LT, permite uma melhoria de diversos parâmetros relacionados com a respetiva fertilidade, tal como observado por (Maurya et al., 2023). A maior estabilidade biológica das LVC, consequência dos processos de oxidação biológica conjuntos das minhocas e microrganismos, com um aumento da concentração de compostos pré-humificados (Domínguez & Edwards, 2011), permite maiores acréscimos de matéria orgânica, resultando uma menor dinâmica dos processos de mineralização, facto que poderá estar relacionado com o menor potencial de acidificação, mas também com a menor concentração de formas minerais de N no solo, comparativamente às LT (Quadro 4). A presença de matéria orgânica complexada nas LVC poderá, ainda, explicar os maiores teores de P e Ca, através da formação de complexos argilo-húmicos, promovendo a formação de reservatórios lábeis (Ali et al., 2015). Para os elementos potencialmente tóxicos, a vermicompostagem promove uma redução da respetiva concentração (quadro 3), ainda que no solo não sejam observadas entre os tipos de lamas (LVC e LT), com exceção do Hg (Quadro 4). Todavia, a maior presença de matéria orgânica humificada nas LVC (Domínguez & Edwards, 2011), poderá reduzir a biodisponibilidade destes elementos, através de reações de complexação, mitigando potenciais efeitos de toxicidade comparativamente às LT. Ainda assim, no caso das LVC, a concentração destes elementos poderá ser mais reduzida quer aumentando o tempo de vermicompostagem, quer com o uso de espécies de minhocas mais eficientes, nomeadamente a Eisenia andrei (Domínguez & Gómez-Brandón, 2012), permitindo melhorar a maturidade e qualidade final do material, tornando a sua aplicação ao solo mais ecocompatível.
CONCLUSÕES
De acordo com os resultados obtidos é possível concluir que o processo de estabilização biológica da matéria orgânica a partir da vermicompostagem permite, para o caso do subproduto estudado, como as lamas de ETAR, acréscimos importantes no respetivo valor fertilizante e na redução de elementos potencialmente tóxicos, nomeadamente no caso do Hg, podendo a sua aplicação ao solo gerar maiores benefícios para a respetiva qualidade e sustentabilidade das respetivas funcionalidades.













