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versão On-line ISSN 2183-2447
Arq Med vol.26 no.5 Porto set. 2012
Perturbação afectiva bipolar, disfunção cognitiva e demência
Bipolar affective disorder, cognitive dysfunction and dementia
R. Lopes1, L. Fernandes1,2
1 Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental, Centro Hospitalar São João
2 Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Endereço para Correspondência
RESUMO
A disfunção cognitiva na Perturbação Afectiva Bipolar tem vindo a ser considerada, na actualidade, como uma característica fundamental, tanto em termos de repercussão psicossocial e funcional, bem como manifestação de traço na fase aguda ou em remissão clínica da doença. O grau do seu impacto está relacionado com a iatrogenia polimedicamentosa e igualmente com os sintomas afectivos e a sua manifestação em familiares de primeiro grau saudáveis, podendo ser um marcador parcial de predisposição genética. Apesar da inexistência de uma bateria específica de avaliação para estes pacientes, a apreciação neurocognitiva assume um papel importante relativamente ao diagnóstico e ao tratamento, constituindo um campo actual de investigação. Algumas armas terapêuticas farmacológicas recentes, adicionalmente à reabilitação cognitiva poderão constituir opções de tratamento promissoras para o futuro. A provável evolução ou sobreposição com os sintomas comportamentais de uma demência orgânica permite uma categorização específica como Perturbação Afectiva Bipolar Tipo VI. A determinação na história clínica de manifestações de traços de bipolaridade, nomeadamente ao nível da personalidade pré-mórbida, de antecedentes psiquiátricos e de história familiar tornam-se fundamentais para o seu diagnóstico diferencial e orientação terapêutica adequados.
Palavras-chave: Perturbação Afectiva Bipolar; Disfunção cognitiva; Demência
ABSTRACT
Cognitive dysfunction in Bipolar Affective Disorder is being considered nowadays as a core feature in terms of psychosocial and functional impact, as well as a manifestation of an affective trait or stage, both in the acute phases and in remission. The degree of impact is related to the iatrogenic effects of medication and also with affective symptoms. Its manifestation in unaffected first degree relatives may be partly a marker of genetic predisposition. Despite the absence of a specific battery for these patients, the neurocognitive assessment assumes an important role with respect to diagnosis and treatment, and is a current field of research. Recent pharmacological agents added to cognitive rehabilitation may be promising options for the future. The likely evolution or overlap with the behavioural symptoms of organic dementia allows this specific categorization as Bipolar Affective Disorder Type VI. Determining the detailed clinical history of bipolar traits, particularly in terms of premorbid personality, psychiatric history and family history has become fundamental to their differential diagnosis and appropriate therapeutic approach.
Keywords: Bipolar affective disorder; cognitive dysfunction; dementia
INTRODUÇÃO
Desde há muito tempo que os défices cognitivos ligeiros e severos têm sido reconhecidos como parte integrante das perturbações mentais, como esquizofrenia, histeria, perturbação factícia e perturbações do humor (1). Na esquizofrenia, denominada por Kraepelin como dementia praecox, a progressiva deterioração das funções mentais associa-se a mau prognóstico clínico (2). Nas perturbações de humor, embora inicialmente se considerasse os défices cognitivos como características secundárias, estes são actualmente reconhecidos como fazendo parte integral do desenvolvimento do quadro clinico (1) e podem estar em certa medida implicados igualmente nas limitações de ordem ocupacional e psicossocial (3).
A Perturbação Afectiva Bipolar (PAB) é uma perturbação do humor crónica e grave caracterizada por episódios de mania ou hipomania que alternam ou sucedem a episódios de depressão, podendo ser referida igualmente como depressão maníaca, ou perturbação do espectro bipolar (4). Apesar de classicamente se considerar a existência de períodos de remissão total dos sintomas entre os episódios afectivos (mania/hipomania ou depressão), descritos como eutimia, estão contudo presentes, défices a nível cognitivo em todas as fases da doença. De facto, apesar de classicamente se considerar que a disfunção cognitiva na PAB se apresentaria apenas nas fases de depressão, actualmente é consensual que surgem igualmente na eutimia, constituindo um determinante importante do funcionamento psicossocial (5, 6). Mais de metade dos doentes com doença prolongada e acima dos 60 anos apresenta défice cognitivo (7), cerca de dois terços apresenta queixas subjectivas (1), sendo ainda de sublinhar que a disfunção cognitiva se pode apresentar desde as fases inicias da doença (8, 9). Apesar de representar actualmente um forte tema de investigação, permanecem dúvidas se este défice cognitivo poderá decorrer de um processo degenerativo adicional ou, se constituiu um marcador de declínio progressivo de uma demência orgânica verdadeira.
Actualmente, há um maior reconhecimento do impacto da disfunção cognitiva tanto no funcionamento psicossocial (vida independente, relação interpessoal) e ocupacional (10, 11), bem como na compliance[*] do tratamento, mesmo após ajustamento para variáveis residuais como o humor e clínico-demográficas (12). A evidência de que a disfunção cognitiva possa apresentar-se mesmo na fase de eutimia (13), apesar dos modernos tratamentos sintomáticos, leva-nos a considerá-la como uma manifestação da patofisiologia da PAB, podendo igualmente contribuir para o comprometimento da recuperação funcional, o que raramente é alcançado (12).
Akiskal e colaboradores, sugeriram uma subcategorização do espectro da PAB, nomeadamente, Tipo I (mania e depressão), Tipo II (ciclotimia e hipomania), Tipo III (depressão associada a hipomania secundária a fármacos), Tipo IV (depressão de início tardio sobreposta num temperamento hipertímico) e Tipo V (depressões mistas cíclicas) (14). Nos idosos, os mesmos autores sugeriram uma forma particular de manifestação tardia de doença do espectro bipolar, acompanhada de disfunção cognitiva, denominada PAB Tipo VI (15). Esta entidade é considerada uma interface clínica com o início precoce da demência, e poderá ser uma expressão clínica concomitante às duas entidades (16). Assim, a sua apresentação em indivíduos previamente saudáveis, associa a instabilidade de humor, irritabilidade e agressividade, à perturbação da memória e a outros défices cognitivos, ocorrendo num temperamento descrito como energético e com tendência para a hiperactividade (16).
Esta temática é no entanto, um assunto controverso que permanece em debate na actualidade. Assim, os sintomas comportamentais inespecíficos da demência, podem ter uma expressão clínica comum com um episódio afectivo numa perturbação do espectro bipolar co-mórbida não diagnosticada, ou por outro lado, podem promover a expressão da bipolaridade latente e, portanto, exacerbar um temperamento prévio (15, 16). Vendo por outro prisma, uma PAB pré-existente pode ser postulada como contributo para a desregulação dos sintomas afectivos da demência (17). É importante ter em conta esta perspectiva, dado que a PAB constitui cerca de 20% das perturbações de humor nos idosos, sendo o espectro das doenças bipolares na população geral de 5,4 a 8,3% (18), pelo que um número elevado destes doentes permanecerá sem ser diagnosticado.
Na prática clinica é comum observar distúrbios do ciclo sono-vigília e actividade delirante de temática semelhante entre casos de demência e de PAB. Para além disso, para a adequação do tratamento, torna-se por vezes, um verdadeiro desafio distinguir psicopatologicamente as manifestações comportamentais da demência e os episódios afectivos da PAB. As alterações motoras de um síndrome demencial podem ser igualmente confundidas com a inquietação motora da PAB. A perda de adequação social, por exemplo, pode ser consequente a uma disfunção frontal demencial ou secundária a uma elação de humor da PAB. Situações de negação ou de anosognosia da demência podem ser confundidas com a omnipotência da mania, e os gastos dispendiosos podem ser interpretados como um comportamento alterado desta (4, 16).
Na avaliação destes casos é necessário pesquisar indícios de uma doença do espectro bipolar não reconhecida e dada a dificuldade de obtenção de informação, a ajuda dos familiares torna-se imprescindível. É necessário atender à história psiquiátrica prévia, com episódios de mania e/ou depressão, tentativas de suicídio, perturbações da ansiedade, alcoolismo e abuso de substâncias. A personalidade prévia (temperamento ciclotímico, hipertímico ou irritável) (15, 16), os life-events do passado (distúrbios nas relações interpessoais, separações repetidas, divórcios, mudanças de residência, desemprego, etc.) e a história familiar de doença psiquiátrica, também constituem elementos importantes. Verificou-se numa série de dez casos clínicos de doentes com comorbilidade de demência e PAB de início tardio, a existência de história familiar positiva de PAB (15, 17).
A hipótese da coexistência destas duas entidades, representa uma alternativa à visão clínica neurológica tradicional de que a agitação, a impulsividade e a instabilidade do humor da Doença de Alzheimer (DA) e de outras demências, expressem disfunção do lobo frontal (19). Deste modo, equaciona-se um tratamento mais direccionado para os estabilizadores do humor, ao invés dos antidepressivos. De facto, o papel destes últimos deve ser reconsiderado dado o seu efeito iatrogénico ao induzir a conversão para excitabilidade, hipomania ou mania, que no contexto de demência pode expressar-se por um agravamento dos sintomas comportamentais e psicológicos. Aparentemente, os antidepressivos podem ser refractários e até agravar os sintomas comportamentais (15). Por outro lado, têm sido notificados casos de mania após a utilização de antidemenciais inibidores da acetilcolinestérase em doentes simultaneamente com PAB e demência (20). Deste modo, o início da agitação em casos de demência, após utilização de antidepressivos ou antidemenciais, deverá implicar uma investigação de doença do espectro bipolar.
A evidência da utilização de estabilizadores de humor em idosos com PAB é escassa (21) e de uma forma geral, as doses máximas são inferiores e implicam uma titulação mais lenta. O lítio é raramente prescrito pela primeira vez após os 70 anos, dado o risco de neurotoxicidade. A efectividade do valproato de sódio, para além de ser melhor tolerado do que a carbamazepina, está bem documentada no tratamento dos sintomas comportamentais e psicológicos da demência, bem como nas perturbações do comportamento, do sono e da agitação em doentes com mania (22, 23). Dorey e colaboradores propõem que o valproato seja o estabilizador do humor de primeira linha em casos de sintomas comportamentais e psicológicos de demência concomitante com uma possível doença do espectro bipolar (17). A dose de titulação gradual aconselhada seria de 125-250mg/dia para uma dose máxima de 500-1000mg/dia (21).
A utilização dos antipsicóticos pode ser considerada em situações de agitação associada a outro estabilizador de humor (24). Apesar de evidência do seu benefício (15), particularmente para o aripiprazol, olanzapina, e risperidona (25), o seu uso necessita de grande precaução, estando mesmo contra-indicado na maioria dos casos de demência, pelos elevados riscos cardiovasculares associados.
DISFUNÇÃO COGNITIVA NA PAB
Domínios cognitivos afectados
São vários os domínios cognitivos afectados na PAB, nomeadamente na memória verbal, na atenção e em alguma extensão, na função executiva (com iniciação de resposta e controlo inibitório) e na memória visual (26). Apesar de na eutímia ocorrer a remissão em alguns dos domínios cognitivos anteriores, como é o caso da memória visual e da memória de trabalho, verifica-se contudo a persistência dos restantes domínios (12, 27). Esta evidência torna-se interessante ao reflectir-se na possível natureza da demência em doentes com PAB, desconhecendo-se se resulta do neurodesenvolvimento, do processo neurodegenerativo, ou de ambos (28, 29).
A existência de défices cognitivos em todas as fases da PAB, determinam que sejam aparentemente independentes do estado afectivo (26, 30). Esses défices envolvem a atenção selectiva, a concentração, a memória verbal imediata e episódica, o desvio atencional, o planeamento verbal, o pensamento estratégico (12, 27), a velocidade de processamento, a abstracção, a perseveração e a aprendizagem verbal (1, 26, 30-36). No entanto, têm sido encontradas diferenças relativamente aos domínios cognitivos afectados, quando se compara PAB tipo I (défices mais pronunciados na memória visual, verbal, e fluência semântica) e PAB tipo II (com atingimento global menos pronunciado), o que poderá estar relacionado com as características clinicas de ambos os subtipos da doença (26). Baseado nestes dados e corroborado por evidência neuroimagiológica, foi proposto um endofenótipo para PAB tipo I, centrado numa patofisiologia comum das regiões médio-temporais (37, 38).
Os défices da função executiva, igualmente alterados, nomeadamente do controlo e resposta inibitória, provavelmente relacionados com a disfunção do córtex pré-frontal, podem reduzir as capacidades de coping, tornando os indivíduos mais vulneráveis à recorrência da sintomatologia (39). Por outro lado, mantêm-se com relativa preservação a memória visuoespacial, a fluência verbal e o vocabulário (40-43). Em estudos de processamento emocional, tanto a percepção da identidade como o reconhecimento do afecto facial estão conservados nas fases agudas ou de remissão, mas os dados existentes são escassos. Relativamente à cognição social (em concordância com as Teorias da Mente) os estudos são igualmente raros e por vezes contraditórios. Apontam para uma possível interacção com outros domínios cognitivos, como a atenção (39), que mencionam uma independência parcial, sugerindo poder tratar-se de um marcador causal da doença (44).
Estudos genéticos
Tem-se multiplicado na última década estudos genéticos em suporte da associação da alteração cognitiva na PAB. Apesar de a maioria das mutações identificadas se integrar num modelo neurodegenerativo (para o qual contribuiriam as comorbilidades médicas, o comprometimento do funcionamento psicossocial, o número de crises e as alterações biológicas), foram igualmente identificadas mutações em genes relacionadas com a migração e o neurodesenvolvimento, em subgrupos de doentes bipolares com défices cognitivos (43, 45, 46).
Adicionalmente, em estudos familiares foram obtidos resultados semelhantes aos da esquizofrenia. Nos familiares saudáveis foram demonstrados défices na função executiva, memória declarativa (41), flexibilidade cognitiva e desvio atencional (40). O facto de serem muito semelhantes aos descritos em fase de eutímia, sugere que possam constituir marcadores ou traços de vulnerabilidade genética para o seu desenvolvimento (e não apenas características de base). Porém, apesar de ter sido demonstrado o seu surgimento precoce no decurso da doença (47), não existem estudos prospectivos conclusivos que permitam afirmar quais e com que gravidade possam ser preditores do seu desenvolvimento.
Estudos neuroquímicos, neuroanatómicos, neurofisiológicos e de neuroimagem
Em estudos neuroquímicos verificou-se que existiam concentrações cerebrais regionais elevadas de substâncias monoaminérgicas (48), função anormalmente aumentada dos receptores dos glicocorticóides (49) e concentrações elevadas de homocisteína (50). Em doentes eutímicos foi encontrado um aumento da amplitude das ondas no electroencefalograma, especialmente nas áreas cerebrais associadas a défice do processamento visuoespacial (51).
A investigação neuroimagiológica por outro lado, tem permitido associar a disfunção cognitiva da PAB, tal como na depressão unipolar, a anomalias estruturais cerebrais e de activação funcional cerebral (52). Vários estudos têm verificado que as alterações cerebrais provavelmente poderão ser predictoras do desenvolvimento de demência (1). Estudos com ressonância magnética cerebral (RMN) revelaram a existência de hiperdensidades de substância branca de localização periventricular e subcortical associadas a profundos défices cognitivos em doença prolongada e a um mau prognóstico (53). No entanto, não foram encontradas diferenças relativamente a lesões da substância branca em doentes eutímicos com disfunção cognitiva e em controlos assintomáticos (54). Destes, destacam-se o aumento do hipocampo, o aumento da amígdala, as alterações de volume de córtex ao nível do cíngulo (lobo frontal e lobo temporal), o alargamento ventricular leve (predominante no ventrículo lateral direito), bem como alterações no córtex de associação (córtex pré-frontal, cíngulo anterior e núcleo dorsolateral pré-frontal) (55). Num estudo recente por RMN, com tractografia tensora de difusão, (que avalia as fibras nervosas através dos traços da difusão da água) foram encontradas anormalidades das bandas de fibras nervosas de substância branca, e perda de integridade nas estruturas de conexão da via límbica anterior (56). Notavelmente, estes dados estão em conformidade com uma recente metanálise de estudos de RMN funcional cerebral (52). De facto, nesta última foi demonstrado uma activação anormal nos córtices frontal e límbico, traduzida por uma menor activação do córtex frontal inferior e do córtex pré-frontal ventrolateral, e maior activação nas áreas do sistema límbico (estruturas mediais do córtex temporal incluindo giro hipocampal, hipocampo e amígdala) e gânglios da base (52).
Apesar de uma metanálise recente de estudos de RMN funcional ter demonstrado um possível aumento do volume da amígdala com a duração da doença (57), verificaram-se alterações semelhantes do volume da amígdala tanto em populações pediátricas como nos adultos, e igualmente em doentes com primeiro ou múltiplos episódios (43). Este facto provavelmente poderá indicar que os défices neuroanatómicos funcionais não reflectem necessariamente um processo neurodegenerativo (43).
AVALIAÇÃO
Aspectos gerais
A avaliação rigorosa dos défices cognitivos na PAB, aparentes ao exame clínico, para além de uma avaliação neuropsicologica, requer uma abordagem sistemática das comorbilidades psiquiátricas e médicas, dos efeitos iatrogénicos, e ainda a consideração da idade do doente (factor de risco independente), do nível de educação e do quociente de inteligência pré-mórbido. Aparentemente, existe uma associação positiva entre a PAB tipo I, história de sintomas psicóticos, fases agudas (mania, hipomania ou depressão), número de hospitalizações, número de episódios afectivos e duração da doença com a gravidade dos défices cognitivos (36).
É importante ter presente a idade de início dado que um número maior de episódios afectivos foi associado à diminuição da velocidade motora e da função executiva (58). Neste sentido, a determinação da duração da doença é igualmente importante, dado que se relaciona com diminuição da memória verbal (10, 35). Deverá ainda ser feita a caracterização dos tipos de episódios durante a evolução da doença, uma vez que, a depressão associa-se a défices mais acentuados na função executiva, na aprendizagem verbal e na memória visual e espacial, e a mania associa-se a défices na memória verbal e na função executiva (13, 35, 59, 60). Adicionalmente, é importante determinar a gravidade e/ou a mudança da sintomatologia afectiva ou ansiosa. No caso de existir psicose, esta associa-se a défices na memória verbal (35, 59, 60) e na função executiva (61). A expressão clínica inicial do episódio afectivo deverá também ser tida em conta, sendo que um episódio inicial de mania em idades precoces (ao invés de um episódio depressivo), se associa a maior risco de disfunção cognitiva tardia (10).
Comorbilidades psiquiátricas e médicas
As mudanças de estados psicopatológicos durante a avaliação destes doentes devem ser cuidadosamente tidas em conta dado que podem influenciar as funções cognitivas. Por outro lado, para além de mascarar o seu diagnóstico, as perturbações da ansiedade (62), a perturbação obsessivo-compulsiva, a perturbação de dissociação, as perturbações de abuso de substâncias (63) e outros aspectos da psicopatologia, são frequentemente concomitantes à PAB (64). Contudo, apesar da sua influência directa, visto modificarem a atenção e a velocidade de processamento (26), parece haver pouca correlação entre a sensação subjectiva de défice cognitivo e o défice cognitivo documentado (65). A sua presença, porém, não impossibilita a existência de défices cognitivos francos e que poderão mesmo persistir após a sua resolução. O clínico deverá ter em atenção às comorbilidades médicas como doença cerebrovascular (24% em doença prolongada têm dois ou mais factores de risco) (66) e diabetes (associação positiva com disfunção cognitiva grave) (10) ou outras. Deve ainda ter-se em conta a história familiar de demência, que poderá estar na base da existência de sintomas subjectivos de memória (26).
Efeitos iatrogénicos
A avaliação requer ainda diferenciação com défices cognitivos iatrogénicos ou resultantes de interacções medicamentosas inerentes à polimedicação que é frequente (67). De facto, torna-se indispensável evitar a prescrição intempestiva de antidemenciais, ao invés da redução, substituição ou mesmo eliminação dos fármacos que possam estar na origem de tal sintomatologia.
A utilização dos estabilizadores de humor requer uma análise de risco/benefício. Parecem existir défices ao nível do reconhecimento visual de expressões faciais e da atenção, mais pronunciados nos episódios depressivos e em doentes não medicados quando comparados com os medicados. Particularizando algumas terapêuticas, as alterações das funções cognitivas secundárias à utilização do lítio, estão bem documentadas nos indivíduos saudáveis e nos doentes eutímicos, e são independentes da doença. Os efeitos mais estudados referem-se à redução da memória de curto prazo, da função motora, da fluência verbal associativa e da atenção (26). Normalmente, os doentes referem sensação de embotamento cognitivo e diminuição da criatividade, muitas vezes associadas à diminuição da profilaxia terapêutica, embora não sejam consideradas preditores de descontinuação do tratamento em si mesmo. O hipotiroidismo resultante do uso crónico deste fármaco pode cursar igualmente com apatia e défices cognitivos. Apesar da utilização de lítio no tratamento agudo ou de manutenção em doentes idosos com PAB se revelar mais benéfico e vantajoso relativamente a outros estabilizadores do humor, é necessário ter em atenção certas particularidades deste fármaco nestas idades (68). De facto, a farmacocinética, a farmacodinâmica e a clearance renal são afectadas pelas alterações fisiológicas da idade, pelas comorbilidades médicas, pelas interacções medicamentosas (psicotrópicos ou anti-inflamatórios não esteróides) (69, 70) bem como pela alteração do volume de distribuição. Assim, os níveis de litémia devem ser monitorizados, dada a sua estreita janela terapêutica e tendo em conta a idade, o estado afectivo, a função renal e a função cardíaca. Com a idade, cerca de 60% dos efeitos laterais (incluindo neurotoxicidade - tremor, ataxia e confusão) tornam-se ainda mais graves, sendo os intervalos terapêuticos menores e dependentes da variabilidade inter-individual (71). Perante a suspeita de iatrogenicidade, Dorey e colaboradores recomendam a redução de dose do lítio ou a sua manutenção no nível inferior à do intervalo terapêutico, mudança para outro estabilizador de humor ou até mesmo a sua abolição a partir dos 70 anos de idade (17). No entanto, estão descritos efeitos neuroprotectores com a utilização do lítio (por exemplo, a nível da plasticidade sináptica), bem como a redução do número de recorrências, sendo esta última uma forma indirecta de prevenção da disfunção cognitiva (10).
A amplitude dos défices cognitivos esperados com a utilização de outros estabilizadores de humor é diversificada. Virtualmente não existem défices com a lamotrigina e a gabapentina (72-74) e são relativamente modestos ou transitórios (na aprendizagem e na memória) com o valproato de sódio e a carbamazepina. Com o topiramato há uma afectação mais difusa nomeadamente ao nível da atenção, memória verbal, atraso psicomotor e dificuldades na evocação de palavras (75, 76).
Relativamente aos efeitos dos antipsicóticos, a maioria dos estudos inerentes às consequências nefastas na cognição refere-se sobretudo à esquizofrenia. Na PAB, além de escassos, estes estudos reportam-se a um número de pacientes muito reduzido. Mostram contudo, efeitos nocivos ao nível do planeamento de tarefas e da velocidade de processamento (77), bem como pior função a nível executivo (78).
A par com os antipsicóticos, apesar de prevalecerem inconsistências, o uso de benzodiazepinas está associado a problemas na memória de trabalho e na velocidade de processamento, bem como a sua utilização prolongada poder introduzir confusão na avaliação neuropsicológica (79).
Os antidepressivos, à excepção dos efeitos anticolinérgicos dos tricíclicos (80) não têm efeitos cognitivos adversos a salientar, sendo que, pelo contrário, surgem evidências recentes de que os serotoninérgicos possam ter um efeito positivo na memória de trabalho (81).
Avaliação neuropsicológica
A realização de uma avaliação neuropsicológica rigorosa torna-se necessária dada a heterogeneidade de expressão clínica da disfunção cognitiva na PAB, e o seu aperfeiçoamento será no futuro, um suporte importante para a decisão clínica no tratamento farmacológico, psicológico, reabilitação cognitiva e recuperação da capacidade funcional adaptadas ao mundo real (82). Na avaliação cognitiva, para além do Mini Mental State of Examination, devem ser incluídos testes que avaliem especificamente domínios da atenção, memória, função executiva, e capacidade crítica, entre outros (26). Apesar dos défices cognitivos serem reconhecidos como característica fundamental ainda não existe presentemente uma bateria de exames neuropsicológicos adaptados e validados para a PAB que possam ser usados para fins de investigação. A padronização dos instrumentos poderá optimizar a investigação das alterações neuroanatómicas, funcionais e genéticas bem como a expressão de fenótipos, sintomas clínicos e vantagens terapêuticas.
Os resultados promissores de uma bateria de exames cognitivos promovidos pela National Institute of Mental Health para investigação clínica na área da disfunção cognitiva na esquizofrenia (Measurement and Treatment Research to Improve Cognition in Schizophrenia MATRICS - Consensus Cognitive Battery, MCCB) (83-85), serviram muito recentemente como modelo de investigação também para a avaliação cognitiva na PAB (39). Esta iniciativa promovida pela International Society for Bipolar Disorders pretendeu identificar os testes cognitivos melhor adaptados incluídos no MCCB, tendo em conta o facto dos défices cognitivos serem similares em padrão mas menos graves, do que na esquizofrenia (26). Teve igualmente em conta a sobreposição de aspectos de neurobiologia, genética, factores de risco, características clinicas e funcionamento neuropsicológico. Desta investigação concluiu-se pela utilidade dos seguintes testes incluídos no MCCB: velocidade de processamento Brief Assesment of Cognition in Schizophrenia (BACS): Symbol Coding, Category Fluency: Animal Naming, Trail Making Test-part A; atenção/vigilância Continuous Performance Test Identical Pairs (CPT-IP); memória de trabalho Wechsler Memory Scale-3 Letter-Number Sequencing, Wechsler Memory Scale-3 Spatial Span; aprendizagem verbal Hopkins Verbal Learning Test-Revised; aprendizagem visual Brief Visuospatial Memory Test-Revised; função executiva Neuropsychological assessment Battery (NAB): Mazes; cognição social Mayer-Salovery-Caruso Emotional Intelligence Test (MSCEIT): Managing Emotions. Os testes referidos poderão ser um bom ponto de partida, devendo, contudo, ser complementados com testes mais complexos a nível da aprendizagem verbal (California Verbal Learning Test) e da função executiva (Stroop Test, Trail Making Test part B, Wisconsin Card Sorting Test) (39). Num estudo recente em que foi aplicado o MCCB em doentes com PAB tipo I, foi demonstrado, com significado estatisticamente significativo, que existiam défices em 5 de 7 domínios do MCCB, com menor expressão nos domínios de planeamento e resolução de problemas e de cognição social (86). De facto, parece existir alguma limitação inerente ao MCCB, dado que tendo sido desenvolvido para a esquizofrenia poderá não ser suficientemente sensível, não comtemplando nenhum teste específico para o processamento emocional e a cognição social da PAB.
TRATAMENTO E REABILITAÇÃO NEUROCOGNITIVA
O tratamento da disfunção cognitiva na PAB requer a determinação dos défices cognitivos específicos visando igualmente a sua origem etiológica (26). O tratamento farmacológico específico que possa melhorar substancialmente a sintomatologia cognitiva permanece actualmente em investigação. Para além disso, a maioria dos estudos publicados até à data forma realizados em populações não-bipolares.
A evidência da provável utilidade de fármacos pro-colinérgicos (donepezilo, galantamina, rivastigmina) provém do facto de actuarem nas vias colinérgicas basais e rostrais do prosencéfalo e no tono dopaminérgico fronto-estriatal e portanto, poderem ter um papel na atenção, memória de trabalho (87) e processamento da informação (88). Para além de se verificar uma melhoria apenas modesta da memória na DA e os estudos aplicados à esquizofrenia existentes não terem mostrado benefício (89, 90), na PAB estes são reduzidos e evidenciam limitações. No entanto, foi demonstrado melhoria com o donepezilo (91), e possíveis benefícios cognitivos com o uso de galantamina (92, 93). Relativamente aos agentes antiglutamaérgicos, os dados existentes referem-se sobretudo à esquizofrenia, e apesar de a maioria (memantina, glicina e d-cicloserina) não apresentar vantagens relativamente ao placebo (94, 95), há evidência de melhoria na função executiva e no funcionamento cognitivo global com o uso de d-serina (96). Contudo, num estudo realizado por Teng e colaboradores, ainda que com uma amostra reduzida, mostrou potencial eficácia da memantina na melhoria da função cognitiva global (97).
A hipercortisolemia, para além de ter sido associada etiologicamente às perturbações de humor, pode igualmente causar agravamento da disfunção cognitiva, e por isso, os antagonistas dos receptores dos glicocorticóides, por exemplo o mifepristone (RU-486), têm sido estudados em doentes com PAB. De facto, foi demonstrado num estudo que a utilização deste agente na dose de 600mg/dia, originou uma melhoria na memória de trabalho espacial, fluência verbal, memória de reconhecimento espacial e sintomatologia depressiva (98).
Os psicoestimulantes (anfetamina, metilfenidato) parecem ser potencialmente atractivos na síndrome de défice de atenção e hiperactividade, na apatia e abulia da depressão major, doença de Parkinson, traumatismo craneoencefálico, e apatia da DA (99). Contudo, os dados disponíveis são escassos, e é necessário, atender aos seus efeitos secundários (100).
A associação da utilização de modafinil, agente promotor da vigília, a melhoria da atenção, memória, função executiva, memória visual recente e evocação verbal imediata em doentes com esquizofrenia crónica (26, 101), poderá indicar igualmente o seu uso em doentes com PAB e disfunção cognitiva, mas é necessária mais investigação.
O uso potencial dos antiparkinsonianos, como o pramipexole, pergolide, ropinirole, amantadina e bromocriptina, resulta dos efeitos agonistas D2/D3 a nível do lobo frontal e consequentemente a nível do processamento executivo, verificando-se benefícios destes agentes sobre a função cognitiva nestes doentes (102, 103).
Dados recentes da literatura têm apontado para uma possível utilidade dos agentes antioxidantes como a L-Carnosina, na prevenção da formação de radicais livres, peroxidação dos lipídios da membrana neuronal, e na citoxicidade do glutamato, que podem na PAB ser responsáveis por uma reduzida viabilidade neuronal (104, 105).
Para além destas intervenções farmacológicas mais específicas, deverá proceder-se à monitorização da sintomatologia afectiva e cognitiva durante o tratamento. Para que este follow-up regular se torne possível, terá de haver uma abordagem multidisciplinar e de cooperação entre as várias especialidades envolvidas (medicina geral, neurologia e psiquiatria).
As estratégias não farmacológicas deverão incluir ainda a prevenção e o tratamento dos factores de risco cerebrovasculares, nomeadamente tendo em atenção a mudança nos estilos de vida, com destaque para o exercício físico e a alimentação saudável que inclua suplementos minerais e vitamínicos.
Quanto às estratégias de psicoterapia, estão descritas abordagens específicas adaptadas ou desenvolvidas para a PAB adjuvantes ao tratamento psicofarmacológico, como a psicoterapia cognitivo-comportamental ou a terapia familiar, com resultados de melhoria a nível psicossocial e na redução da duração dos episódios afectivos. (106-108) No entanto, poucos dados se encontram na literatura voltados para a reabilitação neurocognitiva, nomeadamente ao nível dos défices de memória, atenção e função executiva em doentes com PAB e disfunção cognitiva. As queixas habituais destes doentes centram-se em dificuldades de concentração e atenção, dificuldades na evocação de palavras e na organização de tarefas complexas ou em simultâneo (4, 109).
Num estudo piloto não randomizado recente, em 18 doentes com PAB, foi utilizado a reabilitação cognitiva para o tratamento de sintomas depressivos residuais e défices cognitivos nos domínios da função executiva, atenção e memória (110). Após 14 sessões individuais e nos três meses seguintes de follow-up, foi demonstrado uma melhoria a nível dos sintomas depressivos residuais e do funcionamento ocupacional e psicossocial, bem como da função executiva (110). Os investigadores demonstraram que os doentes com mais défices cognitivos tiveram menos resultados favoráveis (110), o que poderá indicar um maior benefício desta metodologia se for iniciada em fases mais precoces da doença. Num outro estudo muito recente, utilizando terapia cognitiva do tipo Mindfullness, que combina técnicas de treino da atenção e terapia cognitiva, foi demonstrado uma melhoria a nível cognitivo na atenção (111). Estas técnicas consideram-se promissoras no futuro, tornando-se, contudo, indispensável a realização de mais estudos de reabilitação cognitiva com adequação particular à disfunção cognitiva na PAB.
CONCLUSÃO
A disfunção cognitiva associada à PAB relaciona-se com um acentuado comprometimento a nível psicossocial e funcional e igualmente a menor compliance terapêutica, pelo que se impõe o desenvolvimento de novos estudos no sentido de aprofundar esta temática, nomeadamente em estudos prospectivos, com recurso a imagiologia funcional. Ainda que actualmente não existam terapêuticas especificamente direccionadas para a disfunção cognitiva em doentes com PAB, têm surgido novos fármacos como potenciais opções para o futuro. O agravamento de sintomas comportamentais com a utilização de antidepressivos, em situações de coexistência de PAB e demência, reorienta as estratégias de tratamento sobretudo para a utilização de estabilizadores de humor. A identificação dos défices cognitivos específicos tem vindo a tornar-se importante para a abordagem clínica e o seu correcto tratamento, em especial para o desenvolvimento de estratégias de reabilitação neurocognitiva. Dessa forma, torna-se fundamental o desenvolvimento de instrumentos de avaliação neuropsicológica específicos para a PAB, que permitam uma melhor compreensão da natureza e severidade destes défices, com implementação de um tratamento precoce, permitindo no futuro a modificação do prognóstico da doença e melhoria da sua recuperação funcional.
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Endereço para Correspondência
Rui Lopes
Serviço de Psiquiatria, Hospital de S. João, E.P.E
Alameda Professor Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto, Portugal
Tel. 225512100; Fax 225512334
Email: rui.lopess@gmail.com
NOTAS
*Compliance refere-se à vontade ou disposição do doente para seguir um curso de tratamento (psicofarmacológico e/ou psicoterapêutico) prescrito pelo profissional de saúde.