SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número5Acessibilidade e utilização de fontes de informação em saúde cardiovascular: perceção de doentes e médicosUma perspetiva da psicopatologia da obesidade índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med vol.28 no.5 Porto out. 2014

 

ARTIGO DE REVISÃO

Síndrome da Criança abanada - abordagem diagnóstica

Shaken baby Syndrome-diagnostic approach

Raquel Ferreira1, Marta Silva1,2

 

1Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

2Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Hospital S. João

 

Correspondência

 

RESUMO

A Síndrome da Criança Abanada, caracterizada por repetidos movimentos de aceleração/desaceleração da cabeça, associa-se classicamente ao espectro clínico de hematomas subdurais, hemorragias retinianas e encefalopatia, sendo observada mais frequentemente em crianças com idade inferior a um ano. Constitui a causa mais comum de mortalidade infantil por abuso físico e associa-se a taxa de morbilidade elevada, nomeadamente por sequelas neurológicas graves. Apesar da recente divulgação da síndrome, muitos casos continuam a ser negligenciados e subdiagnosticados. Trata-se de um diagnóstico difícil e controverso, que requer uma forte articulação da história, dos achados físicos e clínicos e das evidências nos exames complementares de diagnóstico. Esta revisão pretende salientar a importância de reconhecer potenciais sinais de alerta, reunir as indicações e procedimentos adequados para o correto e atempado diagnóstico e fundamentar a intervenção de uma equipa multidisciplinar na abordagem destas vítimas. Adicionalmente, solicita o investimento em medidas preventivas e apela ao papel intervencional dos profissionais de saúde a respeito desta importante questão na saúde infantil.

Palavras-chave: síndrome da criança abanada, diagnóstico

 

ABSTRACT

Shaken baby Syndrome characterized by repeated movement acceleration/decceleration of the head, classically associated with the clinical spectrum of subdural hematomas, retinal hemorrhages and encephalopathy, is seen more often in children younger than 1 year. it is the most common cause of infant mortality due to physical abuse and it is associated with high morbidity rate, particularly from serious neurological sequelae. despite recent public awareness of the syndrome, many cases remain undiagnosed and neglected. it is a difficult and controversial diagnosis, which requires a high integration of the history, physical and clinical findings and evidence in diagnostic procedures. This review aims to point the importance of recognizing potential warning signs, gather the information and procedures for the proper and timely diagnosis and support the intervention of a multidisciplinary team approach in these victims. Additionally, it asks for investment in preventive measures and invites the healthcare professionals to an interventional role for this important issue in child health.

Key-words: shaken baby syndrome, diagnosis

 

Introdução

A Síndrome da Criança Abanada (SCA) é a forma mais frequente de lesão cerebral traumática não acidental e a principal causa de morte e de lesões neurológicas graves por abuso infantil.1-5 Atinge sobretudo crianças com menos de um ano, com maior incidência entre a 10ª e 13ª semana, contudo são descritos casos até aos sete anos de idade.4, 6-8

Esta surge num contexto em que a criança, por choro inconsolável e prolongado, é agarrada pelo cuidador ao nível do tronco ou dos membros superiores e abanada vigorosamente, embatendo ou não numa superfície de impacto.9 As características anatómicas únicas da faixa etária, como um elevado ratio cabeça/corpo e uma fraca musculatura cervical, conferem maior vulnerabilidade ao tipo de lesões causadas pelos rápidos movimentos de aceleração, desaceleração e rotação da cabeça ocasionados pelo abanão.4,5

Clinicamente, a síndrome caracteriza-se pela tríade clássica de hematomas subdurais (HS), hemorragias retinianas (HR) e encefalopatia. A história apresentada pelos acompanhantes é muitas vezes inadequada ou incongruente com os achados clínicos e, frequentemente, não existem evidências de lesões externas, sendo sempre necessário avaliar o perfil de coagulação, metabólico e/ou hematológico para exclusão de possíveis diagnósticos diferenciais.5,9,10

Segundo Centers of disease Control and Prevention, a SCA ocorre em 21 a 32,2 /100 000 crianças com idade inferior a um ano nos EUA.11 Estes dados estatísticos assemelham-se aos de outros países e correspondem a números consideravelmente superiores aos associados a lesões cerebrais traumáticas acidentais, como acidentes de viação e quedas.2,5,12,13 no entanto, pelo subdiagnóstico e negligência de muitos casos, os dados epidemiológicos permanecem por esclarecer, o que em parte pode ser explicado pela incapacidade das vitimas se expressarem, pela inexistência de sinais externos de abuso físico em mais de 50% dos casos e pelo próprio desafio em identificar e reportar os casos.3,6,9,14,15

Esta revisão visa sistematizar o conhecimento sobre os procedimentos indispensáveis de uma abordagem inicial para um atempado e correto diagnóstico. Pretende-se também discutir possíveis medidas preventivas, junto da população parental por meio de campanhas de sensibilização e enfatizar o possível contributo dos profissionais de saúde na prevenção primária, secundária e terciária de maus tratos na infância.

 

Materiais e métodos

A pesquisa bibliográfica foi efetuada através da base de dados PubMed, utilizando o operador booleano com o seguinte termo “Shaken Baby Syndrome” And (“diagnosis” or “prevention and control”). A respetiva busca foi restringida a artigos publicados em português e inglês, entre 1 de janeiro de 2001 e 31 de julho de 2012 e realizados em humanos, o que permitiu a obtenção de 298 resultados. A exclusão de artigos processou-se com base no título, no tipo de artigo ou na indisponibilidade e após leitura do resumo. Deu-se preferência a revisões, casos clínicos e artigos originais. Letters e comentários foram isentos. Dos 45 selecionados, 15 foram excluídos após leitura integral, pelo detalhe dos aspetos bioquímicos e patológicos, que pelo seu conteúdo se desviavam do objetivo da revisão em abordar sobretudo o diagnóstico e a prevenção da síndrome, resultando um total de 30 artigos. Posteriormente também se pesquisou artigos referenciados nos trabalhos selecionados para identificação de outras publicações relevantes.

Fatores de risco

A SCA tem uma apresentação multifatorial. o choro inconsolável da criança é mencionado na literatura como o principal fator precipitante. A evidência de semelhanças consideráveis no surgimento e padrão da curva idade/ hospitalizações por SCA e da curva do choro infantil normal por Barr et al.8 apoiam esta relação. A frustração gerada perante a irritabilidade da criança parece despertar a resposta impulsiva e agressiva do cuidador. Um contexto stressante a nível biológico, financeiro ou social poderá potenciar a perda do autocontrolo por parte do adulto.1,16,17

A maioria dos agressores é do sexo masculino, sendo mais comum o pai biológico, seguido do padrasto ou companheiro da mãe, da progenitora e de amas.1,18 Segundo o estudo de Debra Esernio-Jenssen et al.18, constata-se também uma maior frequência de paragens cardiorrespiratórias, de intervenções neurocirúrgicas e de lesões fatais causadas por cuidadores masculinos, pelo que as diferenças entre géneros parecem ser justificadas pela menor força do sexo feminino.

É descrita uma maior proporção em crianças do sexo masculino, primogénitos, prematuros, gémeos ou com baixo peso à nascença. Relativamente aos progenitores, há uma maior associação com mães solteiras jovens, pais adotivos ou pai militar. Entre os fatores de risco ambientais destaca-se a baixa escolaridade, o abuso de drogas e álcool, a depressão, a instabilidade familiar, a violência doméstica e o baixo estatuto socioeconómico.2,3,5,19

Patofisiologia

Crianças com menos de um ano são particularmente suscetíveis a lesões de aceleração/desaceleração rotacional, pela fraca musculatura do pescoço, que não confere suficiente suporte à cabeça que por si só é desproporcionalmente maior que o corpo. Entre outras particularidades, o cérebro ostenta uma maior percentagem de água, uma massa cerebral incompletamente mielinizada e um relativo maior espaço subaracnoide, que contribuem para uma maior vulnerabilidade às lesões típicas da SCA.3-5,19,20

A compreensão do mecanismo de lesão mantémse controversa. A primeira hipótese postulada propõe que os movimentos de aceleração/desaceleração no sentido transacional e rotacional provocam aumento das forças de cisalhamento do cérebro, causando rutura das veias ponte responsáveis pelos HS, tração vítreo-retiniana com consequente hemorragia dos vasos retinianos por deslocamento das camadas retinianas e estiramento excessivo da substância branca cerebral, com consequente lesão axonal difusa traumática.1,5,6,21,22 Geddes et al.20,23 defendem que a lesão cerebral parenquimatosa resulta predominantemente de encefalopatia isquémica difusa e não de lesão axonal traumática. o estudo de coorte sugere uma sequência de eventos iniciada por um episódio de apneia por lesão do tronco cerebral, resultante da súbita e marcada hiperextensão cervical. Secundariamente à hipóxia desenvolve-se edema cerebral severo e aumento da pressão intracraniana, que resulta em lesão axonal isquémica, e anormal permeabilidade vascular que poderá ser a causa dos HS e das HR.1,3,5,20,23

O violento apertar do tórax e o flagelar dos membros da criança poderão causar, respetivamente, múltiplas fraturas costais ou metafisárias dos ossos longos.1

Aspetos clínicos

A síndrome resulta de uma conjugação única de lesões intracranianas, oculares e ósseas, em que a apresentação clínica pode ser variável em termos de sinais, sintomas e severidade. Vários aspetos podem constituir sinais de alerta, nomeadamente, uma história inconsistente ou variável com o tempo ou entre os encarregados, achados clínicos incongruentes com as explicações narradas pelo adulto e um atraso na procura de cuidados de saúde.2,3,19 Segundo Debra Esernio-Jenssen et al.18, a justificação mais comum dada pelos cuidadores é de pequena queda. Noutras situações, os acompanhantes não apresentam nenhuma explicação ou alegam que encontraram a criança em paragem cardiorrespiratória. No entanto, muitos estudos reportam que lesões severas da cabeça acidentais são extremamente raras neste grupo etário e que, inclusivamente, HS e HR são achados incomuns em episódios de pequenas quedas.3,5,15,24

Lesões neurológicas

Existe um amplo espetro de sintomas e sinais inespecíficos, desde manifestações menores como distúrbios de alimentação, vómitos, letargia, irritabilidade até severas como crises convulsivas, choque e coma.1,2,13,16

Os HS são encontrados em aproximadamente 90% dos casos e constituem um marcador primordial de trauma na SCA.4,5,22,25 Estudos descrevem maior frequência de HS bilateralmente, localizados na convexidade craniana, fissura interhemisférica ou fossa craniana posterior.3,7,16 Apesar de menos frequente, hemorragias subaracnoides, epidurais e intraparenquimatosas podem estar presentes. As lesões axonais difusas traumáticas são mais reconhecidas no corpo caloso, tronco cerebral, substância branca subcortical e na cápsula interna.3 As lesões hipoxico-isquémicas geralmente são multifocais, dispersas e poderão associar-se a moderado ou severo edema cerebral.3,16

Lesões oculares

As HR representam um sinal cardinal de SCA, sendo encontradas em aproximadamente 85% dos casos.4,21,22,25 Caracteristicamente, as HR têm sido descritas na sua maioria como extensas, bilaterais, localizadas no polo posterior ou na proximidade da ora serrata. Frequentemente restringem-se às camadas superficiais da retina, que lhe conferem um aspeto em forma de chama, no entanto, podem também ter uma apresentação multilaminar.5,15,21,25 Pregas retinianas, retinosquise macular traumática e hemorragias vítreas são outras lesões oculares associadas à SCA.15,21,22

Lesões ósseas

As fraturas ósseas, sobretudo costais ou apendiculares, são encontradas em cerca de 55% das vítimas.22 As fraturas posteriores de costelas assim como as fraturas metafisárias, mais frequentes na tíbia, no fémur distal e úmero proximal, definidas como fraturas do canto ou em alça de balde, são muito específicas de abuso infantil.1,3,26

Os hematomas subgaleais e do couro cabeludo e as fraturas cranianas surgem associados ao mecanismo de impacto em superfície de contacto.4 Estudos descrevem que fraturas múltiplas, bilaterais, diastáticas ou que cruzam suturas cranianas são sugestivas de causa não acidental.16

Investigação, diagnóstico e procedimentos no caso de suspeita de abuso

Apesar das recomendações respeitantes aos procedimentos no caso de suspeita de maus tratos, o preciso percurso de ação deve ser adaptado de acordo com cada situação individual (Tabela 1).5

 

 

Intervenção aguda e suporte de vida

Perante uma criança inconsciente, as medidas agudas passam por providenciar suporte respiratório e estabilidade hemodinâmica. o internamento em unidades de cuidados intensivos é indicado em doentes em estado crítico e a instituição de fluidoterapia, anticonvulsivantes, intubação e ventilação mecânica é muitas vezes requerida.1,3

História

Uma aquisição detalhada da história médica atual, passada, familiar e social da vítima, envolvendo uma análise dos registos perinatais e neonatais, é imprescindível. Diferentes versões do evento intra ou inter acompanhantes devem ser registadas.3,7,24 A discussão do caso deve envolver uma equipa multidisciplinar constituída por intensivista pediátrico, neurologista, neurocirurgião, oftalmologista, radiologista, médico legista e assistente social.3,24

Exame Físico

O exame físico completo e meticuloso é mandatório. Sinais de agressão nomeadamente equimoses de contornos digitiformes na parede torácica, ombros e braços são fortes indicadores de criança abanada. Todas as lesões externas devem ser descritas quanto à distribuição, padrão, forma, coreextensão e fotografadas. A repetição do exame objetivo pode revelar sinais adicionais de abuso.3,5,10,16,27

Lesões da medula espinhal cervical e toracolombar são raramente descritas no entanto, deve ser realizada uma avaliação neurológica detalhada para se detetar qualquer tipo de défice neurológico, de forma a adquirir, posteriormente, imagens de toda a estrutura axial.23,28

Lesões de órgãos internos, abaulamento, distensão das fontanelas e aumento do perímetro cefálico devem ser pesquisados. Os gráficos do perímetro cefálico são fundamentais para a identificação de fluidos extra-axiais e de hematomas e devem ser consultados na possibilidade de hemorragia subdural prévia.1,7

Exames auxiliares de diagnóstico

A fundoscopia é o exame de eleição para avaliar a existência de HR. Somente o exame oftalmológico indireto permite observar a retina periférica, devendo ser, preferivelmente, realizado em pupilas dilatadas.15,21 Levin et al.(21) recomendam fixação farmacológica, com recurso a midriáticos de curta ação, como fenilefrina a 2.5%, exceto em crianças comatosas, e a colaboração de um oftalmologista versado na área para descrição pormenorizada e detalhada do exame ocular.

O estudo laboratorial tem utilidade para avaliar a severidade e extensão das lesões e para a diferenciação de outros potenciais diagnósticos. Os testes analíticos devem incluir hemograma completo, bioquímica com prova da função hepática e estudo da coagulação.5,10,19

A American Academy of Pediatrics (AAP) assume a Tomografia Computarizada (TC) cerebral sem contraste como exame de 1ª linha para deteção de HS e hemorragias subaracnoideias (Fig.1 e 2). Idealmente deve ser complementada com informação de ressonância magnética nuclear (RMN), obtida num período de 7 dias e repetida 14 dias depois.16,29 recentemente, vários estudos evidenciaram que a RMN em difusão ponderada é o exame mais sensível e específico, pois permite detetar precocemente edema citotóxico, lesões isquémicas e distinguir enfartes agudos de crónicos.1,3,19,29,30 Altinok et al.31 Alertam ainda para o exame cuidadoso das órbitas em sequência gradiente eco de RMN cerebral, passível de sugerir a presença de HR.

 

 

 

 

A radiografia craniana e torácica são os exames de eleição para deteção de fraturas cranianas e costais, respetivamente. Lesões recentes podem não ser visíveis na avaliação inicial, pelo que algumas opiniões insistem na repetição da radiografia torácica após 10 a 14 dias perante elevada suspeita de abuso, em que a formação calosa se tornará imagiologicamente evidente.1,26

Diagnósticos diferenciais

Os achados clínicos e imagiológicos, tendo em conta a idade e toda a sintomatologia da criança, devem ser interpretados no contexto das diferentes etiologias possíveis.26

Existem várias causas para HR na infância como traumatismo craniano acidental, síndrome de Terson, sepsis, vasculopatias, coagulopatias, doenças metabólicas e malformações cranianas. Para além da raridade de associação das HR com estas condições, os seus padrões diferem consideravelmente do correlacionado ao SCA.1,3,4,6 no entanto, as HR são uma complicação comum do parto. Vários estudos, um dos quais desenvolvido por Hughes et al, constatam uma maior associação com parto distócico por ventosa e uma resolução completa das HR neonatais em menos de 8 dias, contudo documentam alguns casos com persistências das lesões até cerca dos 2 meses de idade.15,32

A lista de diagnósticos diferenciais de HS também é extensa, destacando-se traumatismo acidental, do parto, coagulopatias e doenças metabólicas, como acidúria glutárica tipo 1.24

Apesar dos vários diagnósticos diferenciais, Morad et al.25 suportam a forte correlação entre a severidade das HR e dos HS, tornando a co-existência das lesões muito sugestiva da síndrome.

Comunicação aos serviços sociais e de Proteção de crianças

Os serviços sociais devem ser precocemente informados para corrente e futura proteção da criança e possíveis irmãos ou membros da família, que porventura sejam vítimas da mesma situação. O envolvimento policial é necessário para identificar possíveis registos criminais relevantes dos cuidadores e para facilitar a investigação forense. o internamento da criança pode ser indicado não só por razões clínicas, mas também como medida de prevenção de novos abusos.5,16,27

Prognóstico

A SCA exprime um mau prognóstico que se correlaciona com a severidade das lesões. A mortalidade ronda aproximadamente os 30%, e 30 a 70% das vítimas podem vir a manifestar sequelas neurológicas graves.4,16,22 Alguns estudos levados a cabo para avaliar a evolução de vítimas de lesão traumática cerebral revelam que muitas crianças apresentam complexas incapacidades a nível cognitivo, motor, linguístico e comportamental. Várias sequelas pós-traumáticas são descritas, incluindo paralisia cerebral e motora, epilepsia, deficiência visual, alterações da fala, dificuldades de aprendizagem e desenvolvimento, que podem revelar-se até anos mais tarde, razão pela qual se enfatiza a necessidade de seguimento destas crianças até ao período escolar ou da adolescência, quando as consequências do trauma serão mais evidentes e para a criação de programas de habilitação individuais com base nessas reavaliações.12,13,16,22,33

Pelo elevado risco acrescido de défices visuais desde estrabismo, ambliopia, atrofia ótica, diminuição da acuidade visual e cegueira, causados na sua grande maioria por lesão cortical, estudos recomendam o rastreio dessas lesões até um período alargado de 4 a 6 meses, mesmo perante a inexistência de lesões oculares na primeira observação.12,13,22 As hemorragias vítreas também podem comprometer a visão, pelo que todos os doentes devem ser seguidos e vigiados até à sua completa resolução.21,22

Prevenção

A associação do choro como um importante estímulo de SCA e o caráter preventivo da síndrome incentivou o desenvolvimento de campanhas de sensibilização e alerta nos EUA, que têm mostrado resultados promissores.8,34

O mais recente programa educativo do National Center on Shaken Baby Syndrome éo Period of PURPLE Crying, que visa a distribuição de material informativo pela população parental sobre os perigos de abanar, com sugestões de como reagir ao choro da criança e a importância de partilhar esta informação com outros cuidadores.35 Barr et al. avaliaram o efeito do programa PURPLE Crying no conhecimento e comportamento maternal relacionado com o abanar. Os seus resultados encorajam ao investimento preventivo, na medida em que o referido programa parece produzir diferenças no conhecimento individual e na disseminação da informação sobre a síndrome.34

O estudo prospetivo de Dias36 evidenciou que a implementação de um programa educativo hospitalar dirigido aos pais de recém-nascidos na altura do nascimento do bebé em oito regiões do estado de Nova Iorque foi eficaz na redução significativa da SCA.

Os pediatras podem ter um papel de intervenção suportando esforços preventivos na sua prática clínica e na comunidade. A AAP recomenda uma maior compreensão no reconhecimento, diagnóstico, tratamento e prognóstico do SCA pelos especialistas e reforça a importância dos mesmos estarem recordados da sua obrigação em reportar estes casos para que uma cuidadosa investigação se prossiga. Adicionalmente, a comissão científica relembra que os pediatras podem informar os pais sobre os perigos de abanar e aconselhá-los sobre as melhoras estratégias para lidar com a frustração perante o choro do seu filho, que faz parte do seu normal desenvolvimento e que assume um padrão previsível, diminuindo com o tempo.2,8,11,16,17,27,33

 

Discussão

O abuso infantil é um grave problema social. A SCA traduz-se num diagnóstico difícil pelos casos raros de abuso testemunhado, pela deficiente compreensão da sua patogénese e pelas significativas implicações medico-socio-legais.33 A improbabilidade de eventos isolados, a comum evidência de lesões anteriores e o mau prognóstico tornam a identificação de potenciais casos crucial e a sua prevenção urgente.14 o médico deve salvaguardar a saúde e proteger a criança de contínua vitimização, no entanto, sempre sobre uma avaliação de elevada suspeição e interpretação crítica dos achados, pelos danos profundos no seio familiar causados por um incorreto diagnóstico e pelo envolvimento num complexo processo judicial.9,18,24,30 Trata-se de um diagnóstico de exclusão sendo fundamental o envolvimento de uma equipa multidisciplinar para melhorar a qualidade, fidelidade e precocidade do diagnóstico, assim como para o adequado tratamento e seguimento destas vítimas.3,24,33 A AAP recomenda ainda a colaboração de um subespecialista na área de abuso infantil para garantir uma completa avaliação médica e um correto diagnóstico.10,33

A tríade de diagnóstico, que é extremamente rara em casos não traumáticos, permanece aceite até hoje.17 Contudo, é importante não restringir a tríade como único critério de diagnóstico, mas considerar outros achados, o que confere uma importância acrescida ao exame físico, aos exames complementares e à investigação adicional de causas infeciosas, hematológicas e metabólicas.17,24,30

Os diferentes modelos animais e mecânicos, desenhados na tentativa de perceber o mecanismo de lesão, não se têm traduzido numa fiel simulação e apresentam alguns resultados contraditórios. Apesar das limitações, a impossibilidade de realizar estudos prospetivos em crianças pelas razões éticas subjacentes reforça a necessidade de investir em novos modelos biomecânicos.3,33 Contudo, numa perspetiva clínico-legal, será mais importante reconhecer quando a severidade das sequelas não é congruente com a história e assegurar a proteção do menor, do que o exato mecanismo implícito das lesões que permanece discutível.3,33

O crescente reconhecimento e alerta pela sociedade científica internacional têm-se refletido numa recente expansão da literatura sobre o tema.14,33 Em contraste, as publicações nesta área em Portugal são escassas, o que amplia a subvalorização e a incerteza do diagnóstico. Assim, apesar dos casos da SCA serem reais, os dados estatísticos nacionais são desconhecidos. Perante os resultados efetivos e incentivadores das campanhas de sensibilização na população parental americana, Portugal poderá adotar condutas preventivas semelhantes. No entanto, ainda se verifica pouca literatura sobre o tratamento e acompanhamento especializado das vítimas, não se constatando referência ao controlo da dor e a cuidados paliativos. Assim torna-se imperativo o desenvolvimento de um estudo epidemiológico em Portugal, de forma a obter números concretos que sensibilizem forçosamente a necessidade de investir nesta área e de oferecer melhores opções de tratamento e prevenção ajustados à esfera em Portugal.

 

Conclusão

O trauma cerebral não acidental é um grave e real problema da saúde infantil. Uma história inconsistente com a severidade e o padrão das lesões e a presença de fatores de risco constituem sinais de alerta. O estudo clínico apoiado pelos exames oftalmológico e imagiológico e após exclusão de outros possíveis diagnósticos traduzem-se numa forte probabilidade de ser SCA. A prevenção é a chave para diminuir a frequência e as consequências devastadoras de SCA.

 

Referências

1. Blumenthal I. Shaken baby syndrome. Postgrad Med J 2002;78(926):732-5.         [ Links ]

2. Lewin L. Shaken baby syndrome: facts, education, and advocacy. Nurs Womens Health 2008;12(3):235-9.         [ Links ]

3. Gerber P, Coffman K. Nonaccidental head trauma in infants. Childs Nerv Syst 2007;23(5):499-507.         [ Links ]

4. Case ME. Abusive head injuries in infants and young children. Leg Med (Tokyo) 2007;9(2):83-7.         [ Links ]

5. Matschke J, Herrmann B, Sperhake J, Korber F, Bajanowski T, Glatzel M. Shaken baby syndrome: a common variant of non-accidental head injury in infants. Dtsch Arztebl Int 2009;106(13):211-7.         [ Links ]

6. Salehi-Had H, Brandt JD, Rosas AJ, Rogers KK . Findings in older children with abusive head injury: does shaken-child syndrome exist? Pediatrics 2006;117(5):1039-44.         [ Links ]

7. Squier W. The “Shaken Baby” syndrome: pathology and mechanisms. Acta Neuropathol 2011;122(5):519-42.         [ Links ]

8. Barr RG , Trent RB , Cross J. Age-related incidence curve of hospitalized Shaken Baby Syndrome cases: convergent evidence for crying as a trigger to shaking. Child Abuse Negl 2006;30(1):7-16.         [ Links ]

9. Arun Babu T, Venkatesh C, Mahadevan S. Shaken baby syndrome. Indian J Pediatr 2009;76(9):954-5.         [ Links ]

10. Jacobi G, Dettmeyer R, Banaschak S, Brosig B, Herrmann B. Child abuse and neglect: diagnosis and management. Dtsch Arztebl Int 2010;107(13):231-39.         [ Links ]

11. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Nonfatal maltreatment of infants--United States, October 2005-September 2006. MM WR Morb Mortal Wkly Rep 2008;57(13):336-9.         [ Links ]

12. Talvik I, Mannamaa M, Juri P, Leito K, Poder H, Hamarik M, et al. Outcome of infants with inflicted traumatic brain injury (shaken baby syndrome) in Estonia. Acta Paediatr 2007;96(8):1164-8.         [ Links ]

13. Barlow KM , Thomson E, Johnson DM inns RA. Late neurologic and cognitive sequelae of inflicted traumatic brain injury in infancy. Pediatrics 2005;116(2):174-85.         [ Links ]

14. Walls C. Shaken baby syndrome education: a role for nurse practitioners working with families of small children. J Pediatr Health Care 2006;20(5):304-10.         [ Links ]

15. Togioka BM , Arnold MA, Bathurst MA, Ziegfeld SM, Nabaweesi R, Colombani PM, et al. Retinal hemorrhages and shaken baby syndrome: an evidence-based review. J Emerg Med 2009;37(1):98-106.         [ Links ]

16. American Academy of Pediatrics: Committee on Child Abuse and Neglect. Shaken baby syndrome: rotational cranial injuries-technical report. Pediatrics 2001;108(1):206-10.         [ Links ]

17. Richards PG, Bertocci GE, Bonshek RE, Giangrande PL, Gregson RM , Jaspan T, et al. Shaken baby syndrome. Arch Dis Child 2006;91(3):205-6.         [ Links ]

18. Esernio-Jenssen D, Tai J, Kodsi S. Abusive head trauma in children: a comparison of male and female perpetrators. Pediatrics 2011;127(4):649-57.         [ Links ]

19. Paiva WS, Soares MS, Amorim RL, de Andrade AF, Matushita H, Teixeira MJ. Traumatic brain injury and shaken baby syndrome. Acta Med Port 2011;24(5):805-8.         [ Links ]

20. Geddes JF, Vowles GH , Hackshaw AK, Nickols CD, Scott IS, Whitwell HL. Neuropathology of inflicted head injury in children. II . Microscopic brain injury in infants. Brain 2001;124(Pt 7):1299-306.         [ Links ]

21. Levin AV. Retinal hemorrhage in abusive head trauma. Pediatrics 2010;126(5):961-70.         [ Links ]

22. Morad Y, Wygnansky-Jaffe T, Levin AV. Retinal haemorrhage in abusive head trauma. Clin Experiment Ophthalmol 2010;38(5):514-20.         [ Links ]

23. Geddes JF, Hackshaw AK, Vowles GH , Nickols CD, Whitwell HL. Neuropathology of inflicted head injury in children. I. Patterns of brain damage. Brain 2001;124(Pt 7):1290-8.         [ Links ]

24. Sieswerda-Hoogendoorn T, Boos S, Spivack B, Bilo R, Avan Rijn RR . Educational paper: Abusive Head Trauma part I. Clinical aspects. Eur J Pediatr 2012;171(3):415-23.         [ Links ]

25. Morad Y, Kim YM , Armstrong DC, Huyer D, Mian M, Levin AV. Correlation between retinal abnormalities and intracranial abnormalities in the shaken baby syndrome. Am J Ophthalmol 2002;134(3):354-9.         [ Links ]

26. Erfurt C, Hahn G, Roesner D, Schmidt U. Pediatric radiological diagnostic procedures in cases of suspected child abuse. Forensic Sci Med Pathol 2011;7(1):65-74.         [ Links ]

27. Kibayashi K, Shojo H. Patterned injuries in children who have suffered repeated physical abuse. Pediatr Int 2003;45(2):193-5.         [ Links ]

28. Gruber TJ, Rozzelle CJ. Thoracolumbar spine subdural hematoma as a result of nonaccidental trauma in a 4-month-old infant. J Neurosurg Pediatr 2008;2(2):139-42.         [ Links ]

29. Biousse V, Suh DY , Newman NJ, Davis PC, Mapstone T, Lambert SR. Diffusion-weighted magnetic resonance imaging in Shaken Baby Syndrome. Am J Ophthalmol 2002;133(2):249-55.         [ Links ]

30. Parizel PM, Ceulemans B, Laridon A, Ozsarlak O, Van Goethem JW, Jorens PG. Cortical hypoxic-ischemic brain damage in shaken-baby (shaken impact) syndrome: value of diffusionweighted MRI . Pediatr Radiol 2003;33(12):868-71.         [ Links ]

31. Altinok D, Saleem S, Zhang Z, Markman L, Smith W. MR imaging findings of retinal hemorrhage in a case of nonaccidental trauma. Pediatr Radiol 2009;39(3):290-2.         [ Links ]

32. Hughes LA, May K, Talbot JF, Parsons MA. Incidence, distribution, and duration of birth-related retinal hemorrhages: a prospective study. J AAPOS 2006;10(2):102-6.         [ Links ]

33. Christian CW, Block R; Committee on Child Abuse and Neglect; American Academy of Pediatrics. Abusive head trauma in infants and children. Pediatrics 2009;123(5):1409-11.         [ Links ]

34. Barr RG , Barr M, Fujiwara T, Conway J, Catherine N, Brant R. Do educational materials change knowledge and behaviour about crying and shaken baby syndrome? A randomized controlled trial. CMAJ 2009;180(7):727-33.         [ Links ]

35. National Center on Shaken Baby Syndrome. [consultado 2012 Nov 15]. Disponível em: http://www.dontshake.org.         [ Links ]

36. Dias MS, Smith K, DeGuehery K, Mazur P, Li V, Shaffer ML. Preventing abusive head trauma among infants and young children: a hospital-based, parent education program. Pediatrics2005;115(4):470-7.         [ Links ]

 

Correspondencia:

Raquel Ferreira

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Al. Prof. Hernâni Monteiro; 4200-319 Porto. E-mail: rakelmiriam@gmail.com

 

Data de recepção / reception date: 27/05/2013

Data de aprovação / approval date: 05/12/2013

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons