SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número1O “ofício de aluno” e o “ofício de criança”: articulações entre a sociologia da educação e a sociologia da infância índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

Compartilhar


Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação v.23 n.1 Braga  2010

 

NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do (2007). Educar, Curar, Salvar: Uma Ilha de Civilização no Brasil Tropical. Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas.

NASCIMENTO, Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do (2008). Fontes para a História da Educação: Documentos da Missão Presbiteriana dos Estados Unidos no Brasil. Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas [Inclui CD].

 

José António Afonso

Instituto de Educação, Universidade do Minho

 

Educar, Curar, Salvar… é uma investigação exemplar e relança debates e controvérsias que têm estado marginalizados na historiografia hegemónica da educação, tanto brasileira como portuguesa. A tendência para ocultar as dinâmicas protagonizadas por movimentos acatólicos no campo educativo marca a agenda de investigação no Brasil e em Portugal em consonância com uma invariante que ainda percorre os registos hagiográficos: o acentuar excessivo da excelência em abstracto das manifestações de dissidência religiosa em torno de uma imaginada identidade simplificadora e fixista. Ester Fraga rompe com este duplo contexto (intelectual e ideológico) ao propor-nos uma dialéctica da economia da experiência e da memória, ancorada no processo de construção da liberdade, enquanto operacionalização da inscrição de cada um no seio da comunidade. Este percurso comporta tensões, vulnerabilidades, fragilidades e fragmentações, mas, em simultâneo, é uma enorme afirmação de luta contra o fatalismo e a demissão, ou desresponsabilização, das populações. Ester Fraga tem como objecto de investigação a presença dos missionários presbiterianos no hinterland brasileiro. Aparentemente poderia ser mais um texto laudatório e inócuo no contexto das problemáticas que marcam os protocolos de investigação da História da Educação, mas o resultado final é justamente o contrário: um estudo teoricamente sustentado, empiricamente estribado num amplo espectro de documentação1 (em que o cruzamento das fontes é primacial e o recurso a testemunhos orais se revela pertinente) e narrativamente muito bem conduzido. Objectivamente as conclusões a que a Autora chega são valiosos contributos para se renovar o debate no campo da História da Educação, salientemos nomeadamente aqueles conexos com a valorização e reconhecimento de projectos educacionais dinâmicos e democráticos e os que rompem com os julgamentos morais sobre o protagonismo de particulares actores. Mas, e esta é uma última nota, não está no horizonte de Ester Fraga veicular qualquer proselitismo, pelo que o distanciamento objectivo do objecto de investigação não cerceia o objectivo central: visibilizar diacronicamente o contributo dos presbiterianos como um dos projectos modernizadores do Brasil.

O estudo de Ester Fraga estriba-se na disseminação dos ideais educativos presbiterianos, enquanto "produtores de um novo modo de viver" (p. 26). Identificando com precisão a presença protestante no Brasil, vai destacando a organização dos presbiterianos, particularmente a partir de 1896, e focaliza-se no estudo de caso da cidade baiana de Wagner. Partindo das estratégias de diálogo entre a cultura norte-americana e a cultura brasileira no hinterland aproxima-se da lógica de produção e construção do modelo de intervenção. Prevalecendo a dinâmica de um fenómeno local (ou microsociológico) tal contudo revela-se precioso para compreender a globalidade de uma forma de vida, de uma prática. O contexto sócio-simbólico do Brasil Oitocentista dita que no inquérito conduzido por Ester Fraga surjam as especificidades de uma sociedade, as particularidades de uma região e o modus vivendi do projecto presbiteriano. De forma distinta de outros territórios do Brasil, onde a presença protestante cuidou de criar estruturas educativas seculares, o projecto religioso de modernização balizou-se, no hinterland, em construir uma região civilizada.

O "protestantismo de povoamento" (p. 52) está matriciado pela dimensão evangelizadora, modelizada pela "singular combinação" – religião, educação e saúde – e traduzido na construção de um espaço urbano. A trajectória deste projecto civilizacional é-nos descrita em dois registos: um interno à própria estrutura da organização presbiteriana, e um outro, em que se privilegia a actuação pública dos actores protestantes. Uma nota comum aos dois registos é o agir prudente e realista dos missionários denotando um naipe de competências antropológicas que lhes permitiam operar a tradução cultural com pertinência pragmática (cf. 207 sq.). No âmbito organizacional poder-se-ão enfatizar duas dimensões. Uma primeira muito ligada aos princípios e propósitos de uma estrutura calvinista, em que, em termos operacionais, a educação era um elemento indispensável que permitiria religar princípios religiosos e ideais democráticos, de modo a inverter um processo de desvalorização do indivíduo, ou seja regenerando a sociedade promover-se-ia o "bem-estar individual". O que para os presbiterianos era crucial passava pela "prosperidade social", com base numa identificação dos "males sociais e espirituais". Em última estância as práticas educativas são "práticas civilizatórias" (p. 125), já que formar o cidadão, comporta indelevelmente a preparação para a vida racional e exemplar. Deste modo, a "ilha norte-americana" ou a "fronteira civilizadora no Brasil Tropical" – como foi denominada a cidade de Wagner – era o reflexo da ordem social presbiteriana, replicando um modelo norte-americano. Se educar significava um registo utilitário e secular, também se declinava com intensidade como "salvação das almas". É precisamente, esta característica do projecto presbiteriano que se reflecte no projecto civilizador de Wagner (ver pp. 79-97 e 119-202). A segunda dimensão, traduz-se na implementação do modelo, que foi sempre objecto de uma constante reformulação de objectivos acompanhada por ponderações económicas que ditavam a assunção das prioridades de actuação.

Sublinhe-se que a ideia primitiva de uma "escola-fazenda" se complexificou com uma série de dispositivos que passaram pela articulação entre escola, igreja e hospital, em estreita consonância com a criação de transportes, a urbanização e a arquitectura do território. O redimensionar do projecto para o hinterland, passou indelevelmente pelo modo como os missionários se foram inserindo no microcosmo do sertão baiano, e por extensão na sociedade brasileira (refira-se, por exemplo as ligações com a maçonaria (pp. 65, 96), as tensões que estiveram presentes na difusão da Bíblia (p. 93) ou o ritmo da estratégia editorial ligada à difusão de um ideal liberal, iluminista e anti-clerical num registo de moderação) e tendo como princípio uma "política de auto-sustentação" (p. 193). Entroncamos, neste aspecto, com a actuação dos agentes missionários. Destaca-se então, a questão das relações com a Igreja Católica (que passa pela representação que os missionários erigiam sobre as instituições de ensino), a identificação sociológica das "camadas sociais que construíram a região" (que passou pela "conversão dos coronéis" (p. 112) como ainda por um diálogo com os poderes fácticos da região) e, por último, a identificação das potencialidades e constrangimentos ao crescimento e desenvolvimento do território (ou seja, um minucioso conhecimento do contexto geográfico, económico e social), que permitia estabelecer as prioridades de construção de uma estrutura (cf. p. 103 sq.). Neste processo de afirmação de posições não se deverá escamotear as auto-representações dos missionários que tinham presente a "educação como estratégia missionária" (p. 186; cf. p. 166 sq.), enquadrada numa óptica de protestantismo evangelizador – diferente, no contexto brasileiro, de outros protestantismos, denominados, por Ester Fraga, de secularizados. O projecto de Ponte Nova é o corolário desta estratégia, plasmando-se na criação de escolas primárias, secundárias, escolas de formação de professores, internatos, formação de enfermeiros – dever-se-á notar que a valorização da profissão docente e a disseminação do modelo higiénico estruturado no enfermeiro, declinou-se no feminino, no quadro da valorização da mulher e da consequente participação no espaço público – e construção de estruturas hospitalares. Difundia a coeducação e praticavam-se princípios da educação integral, quer nas escolas paroquiais, quer nas escolas missionárias, quer nas escolas itinerantes, sejam elas rurais ou urbanas, como também se dinamizavam as actividades culturais e cívicas.

Sendo escolas confessionais o modelo difundido identificava o cristão verdadeiro com o cidadão numa perspectiva de responsabilizar cada um pelo seu destino (pp. 129, 171), com forte ênfase na articulação educação-trabalho (p. 130) em ambiência puritana (p. 196). A importância deste projecto, dissecado por Ester Fraga, plasma-se ainda pelo reconhecimento que lhe foi dado no início da República brasileira (p. 211). O rigor teórico do estudo está aferido pela elucidação pertinente com que são trabalhados os conceitos de secularização, cultura, associação voluntária, representação social e modernização, entre outros, na linha de M. Weber e A. de Tocqueville, em face da realidade brasileira, por um lado, e, por outro lado, aplicados a um movimento social com um repertório de acção muito particular: os presbiterianos. Uma ilação se pode inferir do estudo: a incontornável proposta liberal dos acatólicos para a modernização das sociedades ancorada na inquebrantável crença numa humanidade educável2.

 

Notas

1   Fontes para a História da Educação… é um notável exercício de democratização das fontes históricas, patenteando uma preocupação patrimonial assinalável ao promover a sua salvaguarda arquivística. Uma outra vantagem deve ser assinalada: possibilitar ao leitor de Educar, Curar, Salvar…, compulsar os documentos aí utilizados.

2    Um dos inegáveis contributos de Ester Fraga é dar-nos a conhecer a lógica do projecto civilizador presbiteriano, que nas suas dimensões, pode ser útil para se repensar, no quadro da historiografia educacional portuguesa, a acção desenvolvida na Madeira, a partir de 1838, pelo médico escocês Robert Reid Kalley. Este missionário presbiteriano, pioneiro do protestantismo em Portugal, desenvolveu no Funchal um modelo análogo ao brasileiro. A intolerância religiosa ditou que, a partir de meados de 1840, se iniciassem processos de perseguição à designada "heresia calvinista" que culminaram com a fuga de cerca de três milhares de madeirenses. Um projecto filantrópico importante, que ia da educação até aos cuidados de saúde, foi abruptamente interrompido, com consequências trágicas para o desenvolvimento da Ilha.