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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.25 no.1 Braga  2012

 

CARVALHO, Carlos Henriques de & NETO, Wenceslau Gonçalves (Orgs.) (2010). Estado, Igreja e Educação. O Mundo Ibero-Americano nos Séculos XIX e XX. Campinas, SP: Editora Alínea.

 

José António Moreno Afonso

Universidade do Minho

 

O inquérito sócio-histórico que a presente publicação traduz relaciona-se com os itinerários de construção, em diferentes contextos sociais e políticos, das relações entre poderes religiosos (Igreja) e poderes seculares (Estado). Não pretende reconstituir a(s) história(s) desse processo, mas sinaliza com pertinência a complexidade, os paradoxos e as dinâmicas patentes na construção de sociedades democráticas e liberais. Recusando quaisquer pressupostos teleológicos, vai sugerindo como se foi processando a paulatina compaginação de duas culturas em sociedades europeias (Portugal e Espanha) e em sociedades ibero-americanas (Brasil, Chile, Perú e Argentina), desvendando equívocos, caraterizando os mecanismos profundos da vida social e das relações com a realidade e identificando as relações de dominação que fazem a sociedade. As análises permitem a compreensão das particulares articulações entre o tempo longo da modernização (na sua pluridimensionalidade) e o tempo curto de emblemáticas mobilizações radicais, quer se situem num registo restauracionista de uma ordem imobilista ou ancestral, quer tenham um recorte radical e transcendental, e possibilitam também indagar os modos como as sociedades foram temperando as derivas na génese de um modus vivendi novo que concilia as duas fontes do poder – a secular e a sagrada –, ou seja: uma que se legitima no sufrágio e a outra que deriva diretamente do sagrado.

Este processo tem subjacente a separação dos poderes e os princípios da liberdade e da igualdade, o que significa a instauração da laicidade e da democracia, reconhecendo-se a legitimidade social da religião e o pluralismo dos cultos num contexto de neutralidade e de separação, ou, de forma mais abrangente, num quadro de secularização. A organização da vida em comum no âmbito da disseminação dos elementos de laicidade origina combinatórias diferentes com a secularização (processo de distanciamento cultural com o sagrado). A educação (significando escola pública) é por excelência o local da dialética entre o jurídico e o cultural, ou de confronto entre as ‘duas verdades’. A neutralidade é, portanto, condição essencial para se reorganizarem as dimensões coletivas (religiosas e sociais) do viver em comum.

A revolução simbólica pressupõe desenhar os territórios da res publica objetivando a coesão social e homogeneidade cívica através de um meio efetivo de socialização: a educação. É um projeto nacional que se ergue elaborando uma nova cultura, erigindo sociabilidades distintas e criando redes simbólicas modernas. As reações da hierarquia eclesiástica fizeram-se sentir através da manutenção do status quo ante, especialmente reivindicando a ascendência secular sobre a sociedade, o que, no limite, coincidia com uma pretensa identidade nacional. Esta cultura é ela própria estribada num sistema educativo. A rivalidade (ou a dicotomia) com um sistema educativo público é uma realidade que coexiste na génese dos Estados modernos – pluriculturais, civis e aconfessionais. As sociedades mudam, emergem novos atores (movimentos sociais) e as hierarquias cristalizam, mas também há rearticulações, imitações, concorrências, dependências e efeitos de difusão, que vão permitindo compaginar a homogeneidade com a heterogeneidade, assim como estabelecer um desenho constitucional capaz de encastrar os diferentes legados intelectuais e as várias genealogias teleológicas e responder, portanto, aos problemas simbólicos e às dinâmicas sociais da modernização implícitas nos processos de construção da esfera pública e da mudança dos valores políticos.

É deste mapa social (em permanente reactualização) que o livro nos convoca, com cartografias muito concretas onde estão patentes as relações entre os países colonizadores (e defensores da Contra-Reforma) e a vivência da independência das antigas colónias, de recorte Republicano e neutras em matéria religiosa. Colónias que viveram a independência com vários ritmos, sendo de destacar um primeiro momento (até cerca de 1830), uma assunção de não enfrentar a heterogeneidade, assumindo-se as repúblicas nascentes como integradas numa religião e moral católicas, passando-se progressivamente (segundo momento) para a defesa de uma identidade étnica e cultural, que pressupôs uma reconfiguração social baseada num afrontamento contra as corporações (igreja, exército, etc.). Os anos de 1870 marcam um momento alto da mudança estrutural das sociedades. Estas nações continuam, no entanto, marcadas pelo peso excessivo das economias e culturas locais, que são forças centrífugas contrárias aos projetos de unidade nacional e de resistência à lei, à institucionalização e à modernização, e são forças centrípetas da ordem corporativa do antigo regime colonial. É neste contexto de pluralidade geolinguística, e de heterogeneidade étnica, regional, económica e cultural, que se vai erigir um Estado moderno.

Os países colonizadores passam por momentos dilemáticos no seu processo de construção simbólica da pátria. São de enfatizar, ainda, as pressões sócio-simbólicas face à aconfessionalidade do Estado, como também as resistências à modernização. Por último, nota-se que as forças sociais se vão reconfigurando e criando novas sociabilidades no âmbito da secularização, não se isentando neste processo as reações da Igreja Católica, que passaram por diferentes estratégias (semanticamente conotadas com recristianização), nem o modo como elas reivindicaram a sua independência, que, de forma muito particular, vai tonificando vivências muito específicas do catolicismo (e, quiçá, da incorporação de diferentes tradições eclesiológicas) que o colocam tanto refém de governos autoritários ou mentor indelével da intransigência e do totalitarismo, como voz contra a opressão.

Em vários tempos e em diferentes antropologias, mas onde subjaz a constatação histórica e sociológica de que o catolicismo figura como religião tendencialmente maioritária, os presentes textos aportam contributos significativos do modo como paulatinamente se abandona o tempo do religioso, se instalam ruturas e sociabilidades não universais, e se processa a construção do tempo civil e a instauração de imaginários e sociabilidades políticas, tal não significando que o religioso se tenha dissolvido na modernização, nem que a secularização não tenha sido conduzida a extremos: a laicização. São processos históricos captados na sua essência e que estão indelevelmente ancorados na memória das sociedades e que a história reabilita como momentos de compreensão das lógicas e racionalidades que presidem quer à sua constituição, quer ao seu funcionamento.

A educação é, portanto, o amplexo onde se confrontam posições políticas, ora religiosas, ora seculares, eminentemente centradas num objetivo de união, mas polarizadas por lógicas diferentes. Os vários textos são, assim, um reflexo de como se foi operando a conciliação entre religião e moral num quadro de diferenciação e pluralidade, não obstante os ritmos de retrocesso que em algumas sociedades se patenteiam, em termos da ordem política. Por certo, estes também são momentos a ser captados, justamente para se perceber como a retórica da universalidade dimanada do religioso claudica face a um exacerbado patriotismo civil, ou como a autonomia dos poderes religioso e secular não se cumpriu nos seus postulados essenciais, significando a incompletude do processo de secularização porque os seus fins (liberdade e igualdade) não se articularam com os meios (neutralidade e a separação), denotando-se, então, os frágeis equilíbrios – e as persistentes dicotomias – na formação das sociedades democráticas, para além de alertar que a dialética entre rutura e reconfiguração é um processo que se declina de forma múltipla, quer socialmente, quer simbolicamente.

Sobre a realidade brasileira são apresentados quatro estudos que analisam sobre diversos ângulos o processo histórico das relações Igreja-Estado. Um primeiro, de Carlos Roberto Jamil Cury – “Ensino Religioso. Retrato histórico de uma polémica” (pp. 11-50) –, situa-se num período longo, percorrendo um tempo desde a Independência até aos anos finais do século XX. O autor capta as modulações no campo jurídico e, descendo ao nível das realidades dos Estados, mostra diferentes sensibilidades regionais (as Constituições Federais), como analisa com finura as oscilações políticas – desde uns primeiros momentos de pendor laicista até à “discriminação positiva da Igreja Católica”, passando pela ditadura militar. A sua análise tem presente o processo de secularização e as oscilações entre a manutenção e a flexibilização do ensino religioso.

O segundo estudo, de Ivan A. Manoel – “Os Colégios das ‘Freiras Francesas’. Um exemplo das relações entre Igreja Católica e Estado no Brasil (1859-1919)” (pp. 51-72) –, situado entre 1859 e 1919 no Estado de S. Paulo, elucida sobre os processos usados pela oligarquia paulista para fomentar a educação das suas filhas. A estratégia passou por apoiar “um sistema de escolas particulares” protagonizado pelas Irmãs de São José de Chamberry e que contou com o apoio tácito da Igreja Católica.

Um terceiro estudo, de Wenceslau Gonçalves Neto – “A Secularização da Sociedade Brasileira. Tensões e conflitos em Minas Gerais nos primórdios da República” (pp. 199-222) –, localiza-se em Minas Gerais nos tempos subsequentes à implantação da República. A conclusão do autor, com base na análise da imprensa regional e das atas das câmaras, vai no sentido de enfatizar a adoção tácita, por parte da Igreja Católica, das políticas governamentais, sem provocar qualquer rutura. Tal, no entanto, não evitou conflitos intensos em torno do ensino religioso, da laicização do espaço público e do casamento civil. Como sublinha o autor, alcançou-se “um patamar civilizado de convivência” e a Igreja criou estratégias de “manutenção do prestígio e do poder de intervenção perante a sociedade”, bem como de apropriação do ensino secundário.

O quarto estudo, de Arthur Cesar Isaía – “Educação das Elites e Formação de um Laicado Militante no Rio Grande do Sul” (pp. 73-89) –, refere-se à emergência e consolidação do laicado católico e ao foco na “cristianização” das elites. A Região de Rio Grande do Sul, entre os anos 20 e 40 do século XX, é objeto de estudo. Carateriza as relações económicas e de poder no espaço e define o governo como não “anticlerical”. A progressiva ação dos jesuítas, dos irmãos maristas e dos franciscanos capuchinhos configura um ethos de catolicismo militante que culmina com a fundação da Ação Católica. No entanto, por volta dos anos 30, verifica-se uma tendência oriunda destas elites, com forte sentido crítico, que propõe “cristianizar” o capitalismo, originando conflitos com a hierarquia da Igreja Católica.

Sobre Espanha, dois estudos vincam a íntima relação entre a Igreja Católica e o poder político, que sobreviveu a todas as alterações democráticas e, inclusive, teve influência decisiva na reação fascista. Assim, o primeiro texto, de Ana Maria Badanelli Rubio – “La enseñanza de la Religión en los Manuales Escolares Españoles. Un estúdio a través de sus imagéns – 1900-1970” (pp. 91-116) –, analisa, por via do estudo dos manuais escolares, a temperã e longa persistência do ensino da Religião na escola pública. O segundo, de Manuel Ferraz Lorenzo – “La Educación como Símbolo de Poder para la Iglesia en España durante la Etapa Franquista. La labor pastoral y pastoril de Fray Albino G. Menéndez-Reigado, O bispo de Tenerife (1925-1946)” (pp. 117-141) –, reporta-nos ao eclodir da Guerra Civil e, com detalhe, vai elucidando sobre a violenta reação da Igreja Católica à República, destacando o papel do Bispo de Tenerife na emergência de uma “cruzada” a favor da “ordem e da paz”. É notória a utilização da educação como meio de mobilização das hostes antirrepublicanas.

Sobre Portugal, quatro estudos vão-nos introduzindo nos contextos pré-república, 1ª República e Estado Novo. Um primeiro texto, de Rita Mendonça Leite – “O papel do Ensino na Dinâmica Evangélica Portuguesa Oitocentista” (pp. 245-263) –, destaca, na ambiência oitocentista, a emergência dos protestantes como atores coletivos de inequívoco recorte democrático que, pela sua missionação e pelas iniciativas sociais e educativas, se demonstraram elementos fundamentais na luta pela pluralidade e liberdade de cultos. O segundo texto, de Paulo Bruno Pereira Paiva Alves – “As Relações Estado-Igreja e a Questão do Ensino na Primeira República (1910-1926)” (pp. 223-243) –, é uma incisiva viagem à 1ª República que, com finura, vai fazendo um repertório do argumentário da Igreja Católica face à Lei da Separação, bem como detalha as posições dos republicanos nas suas várias matizações. A questão educativa é o cerne da discussão que o autor estabelece.

Os dois outros textos são uma entrada no Estado Novo e pretendem captar as “tensões e divergências” que vão germinando em alguns setores da Igreja Católica face ao poder secular. A premissa partilhada pelos autores é que o salazarismo defendeu com veemência o poder do Estado “face a quaisquer outros poderes, incluindo a Igreja”, apesar de que o “Estado e a Igreja Católica estiveram juntos na genealogia do Estado Novo”. Em ambos os textos o objeto de estudo é “a esfera educacional”. Assim, o primeiro texto, de Carlos Henrique de Carvalho – “A Igreja Católica no Contexto do Estado Novo Português. As tensões no campo político-educacional (1940 a 1965)” (p. 143-180) –, vai-nos introduzindo nas “fissuras” que se podem observar na hierarquia da Igreja Católica e que tiveram a sua máxima expressão com D. António Ferreira Gomes. Mas, socorrendo-se da imprensa católica (Brotéria e Novidades), pode-se ir entendendo a incomodidade da Igreja Católica face à questão da liberdade de ensino e, muito particularmente, de as famílias poderem escolher o tipo de ensino. É, justamente, este problema que o segundo texto, de Joaquim António de Sousa Pintassilgo – “A Igreja, Estado e Família no Debate sobre o Ensino Particular em Portugal (Meados do século XX)” (p. 181-189) –, capta, através do debate parlamentar surgido na Assembleia Nacional aquando da feitura da Lei de Bases do Ensino Particular. O autor sintetiza o que estava em jogo: “a linha divisória que coloca, de um lado, os partidários da razão do Estado e da sua lógica centralizadora e, do outro, os defensores de uma situação de privilégio para a Igreja, cuja legitimidade era, simultaneamente, histórica e religiosa”. Também os dois textos partilham a tensão que presidiu à assinatura da Concordata de 1940.

Os textos sobre o Chile, o Perú e a Argentina são antecedidos de um denso estudo de Héctor Omar Noejovich Ch – “Iglesia y Estado en Hispanoamerica. Sus origens” (pp. 301-317) – sobre as origens da Igreja Católica nos países sul-americanos de fala castelhana, nomeadamente o estabelecimento dos Patronatos Reais. Esta instituição, marcadamente regalista, unia à dimensão de evangelização a dimensão essencialmente política de assegurar a “governabilidade” das colónias, ou, como diz o autor: “legitimação jurídica do poder político hierarquizado, cujo vértice superior é a Santa Sé”.

Sobre o Chile, Jaime Caiceo Escudero – “Presencias de la Iglesia y el Estado Chileno Republicano en el Sistema Educativo” (pp. 265-299) – destaca a lenta consolidação de um ensino público surgido após a Independência e as lutas surgidas na 2ª metade do séc. XIX face às “leis laicas”. O autor enfatiza que no período colonial a educação era assegurada pelas congregações religiosas, marcando as propostas liberais sobre o ensino primário um momento de viragem, já que se constituiu como imperativo constitucional. Mesmo sendo um Estado confessional, a liberdade de ensino prevaleceu. Os anos de 1880 marcam uma tensão com a Igreja Católica, mas a situação tende a diluir-se e os conflitos abrandam. O autor ilustra este momento pela receção que o pensamento de Dewey teve, quer nos círculos católicos, quer nos círculos laicos. A oferta educativa é feita num regime de aceitação de “outras religiões”, aliás, como estipula a Constituição de 1925. Interessante neste texto é a demonstração das posições da Igreja Católica – “a voz dos sem voz” – durante a ditadura de Pinochet.

Sobre o Perú, Fernando Armas Asín – “Iglesia Católica y Estado. Armonías y desarmonias en la construcción educativa nacional (Perú, 1820-2009)” (p. 319-336) – enfatiza (como no anterior texto) o papel, no período colonial, das congregações, assim como o arranque de um sistema público de educação, pós-Independência, em que a influência do método de Lancaster está patente. Esta constatação vai permitir ao autor destacar a diversidade religiosa (quer as andinas, quer as amazónicas, quer também a presença dos protestantes) como um dos elementos que permitiram a manutenção de um clima de tolerância religiosa, assim como a prudência com que a Igreja Católica foi atuando, “entendendo muito bem as recomposições das relações Igreja-Estado”. O autor destaca ainda a dilemática reconstrução nacional e o modo como tal se refletiu no campo do ensino. Em 1905 dá-se uma revolução no ensino primário, que contou com a “assessoria norte-americana”. Outra nota que o autor sublinha é a diversidade religiosa que, só em 1933, encontra expressão constitucional ao “liquidar-se juridicamente a confessionalidade estatal”.

Finalmente, sobre a Argentina, Francisco Muscará – “Estado, Iglesia y Educación en Argentina (ss. XIX y XX)” (pp. 337-372) – também estabelece cronologias semelhantes às dos países acima referidos, nomeadamente o estabelecimento, em 1884, da “educação primária obrigatória, gratuita e laica”. O autor aflora os conflitos, entre os vários setores liberais, aquando da feitura da Constituição, cuja inspiração deve muito ao modelo norte-americano, como também destaca as posições de confronto por parte da Igreja Católica, além de pontualizar a atuação muito tácita dos grupos de protestantes. Tal teve tradução na assunção do estabelecimento de um ensino neutro e na formação de “escolas laicas e integrais” por parte dos “estrangeiros”. Contudo, não se anularam as reações da Igreja face à pretensa monopolização, por parte do Estado, da oferta educativa. A deambulação por um período longo da história da Argentina permite ao autor concluir que o “pluralismo escolar foi a melhor resposta ao pluralismo cultural”.

As conclusões pertinentes que os estudos refletem situam-se como hipóteses para futuras sondagens. A historiografia da educação está a construir um objeto de investigação que permitirá compreender que a “questão educativa” é o cerne dos projetos de sociedades democráticas e laicas, nos seus afrontamentos e nas suas utopias.