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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.26 no.2 Braga  2013

 

Políticas de descentralização da educação no Brasil e em Portugal: avanços e recuos da desconcentração de poderes

Decentralization policies of education in Brazil and Portugal: advances and setbacks

Politique de décentralisation de l`éducation au Brésil et au Portugal: progrès et reculs de la décentralisation des pouvoirs

 

Donaldo Bello de Souzai Dora Fonseca Castroii & Luís Rothes

iUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

iiInstituto Politécnico do Porto, Portugal

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

Este artigo visa estabelecer paralelos comparativos em torno da descentralização da educação no Brasil e em Portugal, a partir da década de 1990, com base na revisão da literatura pertinente e dos marcos jurídicos que vieram regulá-la, procurando problematizar as relações institucionais e sociopolíticas que medeiam este processo, no Brasil, sob a ótica do regime de colaboração e, em Portugal, segundo as relações estabelecidas entre os poderes central e local. Como conclusão mais geral, constata que, apesar de o poder central vir difundindo o discurso da descentralização nestes países, já há algum tempo, tudo leva a crer que o plano da retórica não logrou ser efetivamente superado, pois entre avanços e recuos deste processo as tentativas vêm se constituindo em movimentos de alguma desconcentração de poderes, ainda marcados pela mesma lógica centralizadora, herança histórico-social, em ambos os casos, dos seus respectivos períodos ditatoriais, agora também sob a modulação de políticas econômicas neoliberalizantes.

Palavras-chave: Descentralização da educação; Municipalização da educação; Relações interinstitucionais; Educação comparada Brasil-Portugal

 

ABSTRACT

This paper discusses, from a comparative perspective, the decentralization of education in Brazil and Portugal since the 1990s. Supported on relevant literature and on its legal framework, the researchers seek to investigate the interinstitutional and sociopolitical relations that mediate this process, in Brazil, under the collaboration regime and, in Portugal, among the relations between central and local power. The general conclusion notes that, although both central governments have generalized the decentralization discourse for some time now, it seems that the level of rhetoric has failed to be effectively overcome, due to a number of advances and setbacks. Attempts have constituted some devolution of power, still marked by the same centralizing logic, outcome of both countries historical and social heritage (their previous dictatorial regime), and currently under the modulation of neoliberal economic policies.

Keywords: Decentralization of education; Municipalization of education; Interinstitutional relations; Comparative education between Brazil and Portugal

 

RÉSUMÉ

Cet article vise l’établissement de comparaisons autour de la décentralisation de l’éducation, ayant pour base l’étude récapitulative pertinente et les cadres juridiques qui sont venus la réglementer, cherchant à problématiser les relations interinstitutionnelles et sociopolitiques qui interviennent dans ce processus, au Brésil, sous l’optique du système collaboratif et, au Portugal, selon les relations faites entre le pouvoir central et le pouvoir local. Pour conclure d’une forme plus générale, on constate que, même si le pouvoir central se voit de répandre un discours de décentralisation dans ces pays il y a déjà quelque temps, il semble que le plan de la rhétorique n’a pas été surmonté, car entre progrès et reculs de ce processus, les essais se sont formés en mouvements d’une certaine décentralisation de pouvoirs, encore déterminés par la même logique centralisatrice, un héritage historico-social, dans ces deux cas de ses périodes dictatoriales, maintenant aussi sous la modulation de politiques économiques neolibéralisantes.

Mots-clé: Décentralisation de l’éducation; Municipalisation de l’éducation; Relations interinstitutionnelles; Éducation comparée Brésil-Portugal

 

Introdução

Conforme destacado em outro estudo nosso (Souza & Martínez, 2009), é possível afirmar que os estudos ditos comparados vêm progressivamente assumindo centralidade no campo das Ciências da Educação, divorciados da chamada experiência do cotidiano – atinente ao senso comum e ao plano intuitivo –, afirmando-se enquanto área interdisciplinar que se funda numa atividade analítico-comparativa, por isso mesmo dependente da conceituação e do emprego de uma teoria da comparação, configurando-se em prática científico-social (Nóvoa, 1998).

Do ponto de vista histórico, a Educação Comparada teria percorrido caminhos nos e pelos quais seu sentido e função viriam sendo processualmente ressignificados, o que implica considerar que ao longo do tempo a relação com o outro igualmente tem vindo a modificar-se, com impactos nos modelos de classificações, comparações e hierarquizações empregues nessas análises (Nóvoa, 1998).

Diferentemente do passado, no presente século a Educação Comparada não se encontraria necessariamente associada aos processos de uniformização ou homogeneização dos sistemas de ensino, característicos do isomorfismo institucional que marcou a expansão da educação nos séculos XIX e XX – tanto das massas, quanto das elites (Meyer & Ramírez, 2002) –, mas se movendo dos sistemas de ensino para as escolas, das estruturas para os atores sociais, do plano das idéias para o do discurso, dos fatos para a dimensão política (Nóvoa, 1998), buscando identificar novos problemas, pondo em prática novos modelos de análise e formas de abordagem, de modo a produzir novos sentidos para os processos educacionais (Ferreira, 2009; Madeira, 2009a; Schriewer, 2009).

Esse movimento de renovação da Educação Comparada estaria marcado por um conjunto complexo de mutações que se estendem desde os sinais de adensamento das problemáticas educativas transculturais, passando pelo enfraquecimento dos Estados-nação e pela globalização, entendendo-se esta última enquanto fenômeno de expansão e interdependência cultural (Malet, 2004). Com isto, estaria a impor novos desafios às análises comparativas em educação, como as que se relacionam aos seus processos de regulação, apropriação e transformação regional/local das regras da globalização cultural, assim como uma maior atenção em relação aos conteúdos da educação e não unicamente aos seus resultados, implicando reconfiguração dos processos de produção dessas identidades (nacionais, locais, regionais), agora reconhecidamente híbridas (Madeira, 2009b).

Análises anteriormente realizadas acerca da produção científica na área da gestão/administração da educação sob perspectiva comparada Brasil-Portugal, cobrindo o período 1986-2006 (Souza & Martínez, 2009, 2010), além de revelarem sua escassez e incipiência, indicaram que as aproximações analíticas entre essas duas realidades sinalizam certa tradição em torno da centralização do poder administrativo, embora recentemente tal facto venha dando lugar a um diálogo mais profícuo entre o poder público e a sociedade civil, em especial no processo de construção da autonomia escolar e de seus órgãos colegiados, a par do dissenso observado em relação a outros estudos que, de um lado, apontam influências neoliberais ou advindas de determinados organismos internacionais nas políticas de gestão da educação, em específico no plano da gestão da avaliação, e, de outro, os que negam, acriticamente, tais contaminações. Nota-se ainda que nesses trabalhos as diferenças são estabelecidas sobre o grau de comprometimento do Município na gestão da oferta local da educação, de complexidade da estrutura administrativa das escolas e da espécie do ordenamento jurídico pertinente, em paralelo à sinalização de dissemelhanças relacionadas às condições do trabalho docente e à consciência dessa classe sobre as políticas avaliativas.

O presente artigo visa discutir, sob enfoque comparativo, a descentralização da educação via municipalização no Brasil e em Portugal a partir da década de 1990, com base na revisão da literatura pertinente e nos marcos jurídicos que vieram regulá-la em ambos os países, procurando problematizar as relações interinstitucionais que medeiam aquele processo, no Brasil, sob a ótica do regime de colaboração entre os entes federados e, em Portugal, segundo as relações estabelecidas entre os poderes central e local.

Trata-se de um estudo que deriva de reflexões preliminares relativas à pesquisa denominada "Os Planos Municipais de Educação (Brasil) e as Cartas Educativas Municipais (Portugal): perspectiva comparada entre as Regiões/Áreas Metropolitanas do Rio de Janeiro e do Porto" (Souza & Castro, 2011), em processo de execução, desde o mês de outubro de 2011, via convênio de cooperação acadêmica internacional entre o Núcleo de Estudos em Política e História da Educação Municipal (NEPHEM) da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e o Centro de Investigação e Inovação em Educação (inED) da Escola Superior de Educação (ESE) do Instituto Politécnico do Porto (IPPorto), tendo por objetivo central a análise comparada em torno da gestão democrática da educação e da relação entre o poder central e local que emerge dos referidos documentos1.

 

Descentralização da educação no Brasil e em Portugal

Em linhas gerais, é possível afirmar que foi somente na segunda metade dos idos de 1990 que, coincidentemente às reformas educacionais em curso no Brasil, pós-Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, se observou um apelo sistemático à adoção de medidas descentralizadoras de algumas das competências do governo central português no campo educacional, em que pese o facto de a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) nº 46, de 14 de outubro de 1986, tê-la preconizado em meados da década anterior, em paralelo a propostas também de participação e autonomia (Afonso, 2000; Lima, 2000).

No Brasil, a Constituição Federal (CF) de 1988, a par de um conjunto extenso de avanços que trouxe para a vida nacional, veio suscitar algumas importantes mudanças na legislação educacional, indo ao encontro das expectativas da sociedade brasileira em torno da elaboração de normas mais adequadas às transformações democráticas inauguradas no país a partir dos anos 1980, em que pesem as tensões político-sociais e partidárias que se faziam presentes desde a Assembléia Nacional Constituinte (ANC), expressão do conflito de interesses que marca a diversidade sócio-econômica e, por conseguinte, sócio-política no Brasil.

No campo da educação, apesar das demandas sociais existentes, a regulamentação dos dispositivos constitucionais de 1988 só foi realizada oito anos depois, por intermédio da promulgação da LDB n° 9.394/1996, cujo texto não apenas ratificou a organização sistêmica já praticada em larga medida em algumas regiões do país, como normatizou a condição de sistemas 'autônomos' atribuída aos Municípios por aquela CF. Com isto, a organização sistêmica anterior, que considerava apenas três esferas governamentais (federal, estadual e Distrito Federal), passou a integrar um quarto ente federado (o Município), apontando para a autonomia relativa de seus respectivos sistemas diferenciando-os quanto às incumbências e prioridades, contudo, advogando a prática do regime de colaboração entre eles. Tal concepção de colaboração passou formalmente a prever ações conjuntas entre aqueles entes federados, abarcando, por exemplo: a divisão de responsabilidades pela oferta do ensino fundamental; o planejamento educacional (Planos de Educação e censos escolares); a superação de decisões impostas ou a simples transferência de encargos, sem que houvesse o repasse devido dos meios e recursos necessários; e, ainda, a garantia de participação da sociedade por meio dos Conselhos Municipais de Educação (CMEs), com representação popular e poder deliberativo (Oliveira & Santana, 2010; Abreu, 1998; Abreu & Sari, 1999).

No caso dos Conselhos Municipais, as perspectivas gerencialistas, que se disseminaram no país a partir dos idos de 1990, os tomaram enquanto órgãos de atuação colegiada, capazes de possibilitar prestações de contas do poder público à sociedade (accountability), enquanto para a "tradição política autoritária constituiriam entidades concorrentes na competência normativa e, possivelmente, intervenientes sobre a eficácia das decisões do executivo" (Souza, Duarte, & Oliveira, 2013, p. 24). Em contrapartida, para os setores ditos progressistas da sociedade brasileira, esses Conselhos passaram a representar a possibilidade de efetivação dos princípios de gestão democrática da educação. Apesar de os CMEs não virem a dispor de regulamentação nacional específica em torno da sua criação e funcionamento institucional e sociopolítico, o que significa que, entre outros aspetos, não vieram a se tornar obrigatórios ao nível local, a sua disseminação vem se mostrando ampla2.

É possível ainda afirmar que, ao longo da década de 1990, as políticas governamentais passam a adotar o caminho da racionalidade financeira (Saviani, 1999), implicando redução dos gastos públicos e do tamanho do Estado, assim como a intensificação da abertura do país ao capital financeiro internacional. O uso instrumental do conceito de descentralização passa a ser, majoritariamente, aplicado como desconcentração, exprimindo a estratégia de retirada do Estado da prestação dos serviços públicos essenciais da sociedade (Vieira & Farias, 2007; Adrião & Peroni, 2005, 2008; Martins, 2001). Por esta razão, ao abordar-se a problemática da descentralização das políticas públicas na área social no Brasil, duas vertentes devem ser consideradas: a da ótica interna ao próprio Estado federativo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e a dos vínculos existentes entre Estado e Sociedade. A qualidade democrática dessas relações, tanto no âmbito do relacionamento entre os entes federados, como na esfera do binômio Estado-Sociedade, é que irá sinalizar, portanto, a possibilidade de estar havendo a esperada transferência do poder decisório (descentralização) ou a ocorrência de um simples deslocamento de atribuições, problemas e encargos (desconcentração), que frequentemente também implicam privatização dos serviços públicos (Abreu, 1999; Abreu & Sari, 1999; Duarte, 2002; Freitas, 1998).

No caso de simples deslocamento de atribuições entre os entes federados, fenômeno preponderante no Brasil, ocorre, apenas, a desconcentração (Abreu, 2002; Cassassus, 1995; Souza & Carvalho, 1999) das ações do governo federal ou estadual para a esfera municipal, não sendo notada a partilha de poderes, configurando, portanto, o que se convencionou denominar "prefeiturização política", ou seja, a mera incorporação e administração pela prefeitura dos recursos institucionais federais e estaduais instalados no Município (Both, 1997; Abreu, 1999). Confirmando este movimento, Azevedo (2001) destaca a desarticulação entre as políticas executadas pelos governos federal e estaduais em relação aos Municípios que, muitas vezes, desconsideram as prioridades e especificidades locais, também acabando por se limitarem às ações de cunho administrativo e político-institucional.

Sobre o vínculo Estado-Sociedade, Arelaro (1999, p. 65) afirma que o processo de municipalização das políticas públicas na área social no Brasil vem se constituindo, quase que exclusivamente, enquanto "fruto das iniciativas do governo [federal e estadual], visando adequar o Estado aos novos modelos de racionalidade", contribuindo, conforme anteriormente sinalizado, para o "enxugamento do aparato estatal" (Arelaro, 1999, p. 65) e não para o atendimento às reivindicações da sociedade civil.

Todavia, não se deve perder de vista que os mecanismos de participação que a partir daí serão criados no país, voltados ao envolvimento da sociedade civil na gestão das políticas públicas locais (Lavalle, Houtzager, & Castello, 2006) decorrem da influência de diversos movimentos democrático-populares iniciados ao longo das décadas de 1960 e 1970, manifestos em várias frentes de lutas sociais (Calderón & Marim, 2003), e também constituídos a partir de experiências remanescentes de alguns outros movimentos sociais dos anos 1980 (Gohn, 1998, 2001), que lograram êxito em estabelecer pressões em prol de ideais democráticos e de institucionalização de canais de participação popular na gestão pública, especialmente em meio aos debates da ANC, em fins da década de 1980.

Conforme mais adiante evidenciado, no Brasil, ao contrário de Portugal, o processo dito descentralizador tenderá a repercutir, mais rapidamente, numa maior responsabilização direta do Município na captação de recursos para o atendimento de suas próprias demandas, no monitoramento de gastos e na inspeção do cumprimento das metas federais e/ou estaduais estabelecidas, agora não unicamente pelo poder público local, mas, também, pela via da responsabilização da sociedade civil (Menezes, 2001; Jacobi, 2008; Nogueira, 1997).

Em síntese, a dita descentralização no Brasil virá implicar processos de privatização, terceirização ou publicização dos serviços públicos (Peroni, 2008), com forte apelo às práticas sociais voluntárias de apoio à escola, de caráter tipicamente assistencial (Calderón & Marim, 2003), mas com elevado controle dos níveis superiores do governo sobre os fluxos financeiros e as transferências de recursos intergovernamentais (Gonçalves, 1998), visivelmente ancorado na manutenção da centralização normativa e política em relação à instância executora (Vieira & Farias, 2007; Montaño, 2003).

Por seu turno, a análise aos processos de desenvolvimento da descentralização da educação em Portugal revela que a partir de finais dos anos 1980 começa a esboçar-se uma clara intenção de a administração educacional abandonar a prática de tomada de decisões uniformizantes em nível central (Formosinho & Machado, 2000), herança tanto da época da Ditadura militar (1926-1933), quanto do Estado Novo (1933-1974), neste último caso momento no qual a relação autoritária do poder central com a escola veio a atingir o seu auge, havendo, entre outros aspectos, a retirada dos poderes dos Municípios sobre a administração das escolas primárias (Pires, 2003).

A publicação da LBSE nº 46, de 14 de outubro de 1986, pode ser tomada como um marco significativo, em termos legislativos, para o desenvolvimento das ideias de participação e descentralização, na medida em que recusa o modelo burocrático e centralizado de administração na sua forma concentrada. Formosinho e Machado (2000) também nos dão conta que esta lei define os princípios a que deveria obedecer a administração e gestão educativa ao nível central, regional autónomo, regional, local e de estabelecimento. Esta LBSE, que, segundo Lima (1992), obteve consenso entre os partidos políticos, acabou, no entanto, por contribuir para a implementação de medidas de desconcentração dos serviços de educação em Portugal e não necessariamente descentralizadoras.

Em prol da descentralização anunciada em vários normativos legais, na década de 1990 intensificou-se apenas a desconcentração dos serviços da educação com a transferência de competências da administração central para estruturas de gestão intermédia: as Direções Regionais de Educação (DREs) e Centros de Área Educativa (CAEs). O Decreto-Lei nº 141, de 26 de abril de 1993, determinara que as DREs constituíssem serviços regionais do Ministério da Educação (ME), dotados de autonomia administrativa, que viessem assegurar a orientação, coordenação e apoio às escolas de ensino não superior ao nível regional. Afonso (2006) considera essas DREs instâncias de regulação intermédia da educação, e os CAEs enquanto um prolongamento das estruturas anteriores que, em seu conjunto, acabaram por contribuir para a manutenção de uma lógica de funcionamento hierarquizada e burocratizada.

Com o reordenamento escolar e o surgir de novas tipologias organizacionais, se observa uma sobreposição das competências e funções dos vários órgãos de gestão dos diferentes níveis de decisão. Possivelmente devido a esse facto, mas também, porventura, em virtude da assunção (em especial no plano dos discursos políticos) da autonomia dos agrupamentos de escolas, os CAEs, estruturas de gestão intermédia e periférica, começam a extinguir-se, ficando apenas em funcionamento as várias DREs.

Assim, em termos esquemáticos, podíamos identificar diferentes níveis de gestão da educação em Portugal: ao nível central, os serviços do ME (serviços da administração central); ao nível regional, as DREs; e, na instância local, os agrupamentos de escolas, embora na fase de formação destes últimos aqueles outros níveis não tenham se mostrado facilitadores do processo de descentralização da educação (Pinhal & Dinis, 2002), uma vez que a administração central as utilizou para retomar o controle sobre o sistema educativo, mais uma vez revelando a faceta de um Estado centralizador, controlador e burocrático.

Em 2003, com o Decreto-Lei nº 7, de 15 de janeiro, são reativados, apenas ainda no plano legal, os CMEs, sendo a publicação deste normativo o resultado de um processo anterior de criação de um órgão consultivo ao nível municipal – o Conselho Local de Educação (CLE). Formosinho e Machado (2005) entendem que este órgão teria a função de coordenar localmente a educação, reconhecendo, contudo, algumas debilidades no que diz respeito à representatividade das diferentes forças sociais, econômicas e políticas do território educativo. Em 2004, é celebrado um Protocolo entre o Ministério da Educação (ME) e a Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP), que parte da assunção do DL acima mencionado como um importante passo para o desenvolvimento da descentralização administrativa ao nível educativo, contando para a execução da territorialização das políticas educativas com o papel crucial do CME, um órgão que tem como objetivo promover a coordenação, ao nível do Município, da política educativa (art. 3º), sendo considerada esta medida, ao nível do preâmbulo do normativo, como uma "nova visão estrutural do sistema educativo português e um passo da maior importância no sentido da aproximação entre os cidadãos e o sistema educativo, e de co-responsabilização entre ambos". No plano da ação dos CMEs, perceciona-se que estes órgãos apresentam pouco poder de coordenação das políticas educativas locais e que continuam a ter um papel direcionado para a legitimação de decisões ou ações já tomadas ou em curso, sendo a sua ação predominantemente consultiva. É comumente aceite na academia científica que a excessiva regulamentação dos CMEs é fortemente condicionadora da ação política deste órgão. Cruz (2012) considera que sendo o CME "concebido com a intenção de ser um instrumento de regulação, de controlo da Administração Central sobre a Administração Local (a pretexto de uma política de descentralização)" (p. 254), os estudos da ação dos atores que o compõem revelam que existe "um espaço para a regulação autónoma a partir das estratégias dos actores em cada espaço local" (p. 255) e que a "diversidade destes processos resultou do desfasamento entre a norma, a regra e a prática, ou seja, dos modos diferentes de interpretar as normas, de exercer a regulação de controlo e de estruturar os CME" (p. 255).

O Decreto-Lei nº 75, de 22 de abril de 2008, viria a consagrar a participação de atores do poder local (Município) no órgão de gestão das escolas/Agrupamentos (Conselho Geral) tendo em vista a futura construção de projetos educativos de âmbito territorial/local. Atualmente, numa lógica de redução de estruturas e de racionalização de recursos, extinguiram-se a DREs, ao mesmo tempo em que se discutem possibilidades de transferir algumas competências destas estruturas para os poderes locais (Municípios), conforme mais adiante sinalizado. Numa lógica centralista, as DREs deram lugar a uma outra instituição, a Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares, ao mesmo tempo em que se inicia a terceira fase de reorganização da rede escolar com a formação dos 'mega-agrupamentos' de escolas. Estas novas 'unidades' organizacionais resultam, por imposição do poder central, da associação de agrupamentos de escolas com escolas secundárias ou mesmo da associação de dois agrupamentos de escolas já existentes. Lembrando o que acontecera em 2003, com o Despacho 13.133, de 13 de junho, os atores das escolas foram obrigados a operacionalizar uma medida decidida pelo poder central sem o aval das comunidades educativas locais. O Estado atua assim numa lógica fortemente racionalizadora, burocrática e centralista num quadro econômico e político de crise, regulado por instâncias externas. Estas regulações crescentes à escala transnacional, a decadência do Estado-Educador e a impossibilidade do poder central dar respostas diferenciadas a um sistema educativo que se revela cada vez mais complexo "acentua a crise de legitimidade e de governabilidade e do próprio modelo" (Barroso, 1999, p. 130), procurando o Estado, "na localização das políticas, nos reajustamentos e nos compromissos locais, na redistribuição de competências, saídas para a crise geral que o atravessa" (Cruz, 2012, p. 64). Nesta linha e seguindo de perto a autora referenciada, a territorialização pode ser considerada como "uma política nacional num contexto de crise de legitimação da acção do Estado, que, quebrando a lógica de Estado Educador delega poderes na comunidade reservando-se a um papel de regulação e de controlo" (Cruz, 2012, p. 40).

O Estado, apesar de continuar a desenvolver um discurso apelando à descentralização, tem vindo a desenvolver um conjunto de medidas marcadas por lógicas centralistas-burocráticas e que podem controlar a ação dos atores condicionando o desenvolvimento da autonomia das instituições locais. Contudo, estudos recentes realizados ao nível da administração educacional (Barroso, 2006; Costa, 2007; Castro, 2010; Cruz, 2012) levantam algumas dúvidas a respeito do quadro acima traçado. Várias investigações realizadas no plano da ação dos atores, nas diferentes instâncias das organizações educativas, vão mostrando que a ação se pode afastar do estabelecido ou do previsto. Neste sentido, poder-se-ia afirmar que à margem das estruturas formais que apontam para cadeias hierárquicas que promovem regulações no sentido descendente vertical e que à partida dificultariam o desenvolvimento da autonomia das organizações educativas, uma face mais oculta, e que diz respeito às dinâmicas reais dos atores sociais, parece revelar muitas ambiguidades e contradições, mostrando que os processos de desenvolvimento de autonomia não são movimentos lineares dependentes exclusivamente das estruturas formais. Em determinadas realidades, parecem emergir regulações no sentido das periferias para os centros de poder instituídos, e que nos remetem para a consideração da existência de outros centros de decisão (Lima, 1999) e de espaços de autonomia administrativa e pedagógica.

 

Relações interinstitucionais no Brasil em Portugal

A partir do novo ordenamento jurídico que emerge no Brasil entre o final dos idos de 1980 e a segunda metade de 1990, anteriormente aludido, a colaboração passa a assumir caráter obrigatório na organização dos sistemas de ensino no país, com vista, especialmente, à minimização dos riscos de uma fragmentação desregulada da organização da educação nacional entre os sistemas de ensino, agora incluindo os sistemas municipais, já que, a partir de então, a autonomia passava a ser extensiva, pelo menos formalmente, a todos os entes federados.

A tentativa de instituição dessa forma de relacionamento solidário entre os sistemas de ensino repercutiria no conjunto de práticas de gestão e de implementação de políticas públicas educacionais, por exemplo: i) na divisão de encargos relativa à oferta do ensino fundamental por Estados e Municípios, com ênfase na distribuição proporcional de responsabilidades pelas matrículas – com ou sem transferência de recursos financeiros – e, ainda, na garantia de implementação de programas suplementares federais – como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o atual Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (PNATE), além de outros mantidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); ii) no planejamento, notadamente em termos da elaboração dos planos nacional, estaduais e municipais de educação; iii) no estabelecimento de normas, no sentido da definição de competências e diretrizes educacionais, de padrões mínimos de oportunidades educacionais, da oferta de ensino com qualidade e, ainda, de avaliação do rendimento escolar (Abreu & Sari, 1999; Farenzena, 2006; Machado, 2002; Sari, Abreu, & Rodrigues, 2001).

Embora a CF de 1988 tenha sinalizado algumas incumbências educacionais da União (Artigo 211º, §1º) e dos Municípios (Artigo 211º, §2º) em torno da Educação Básica3, nada foi dito sobre os Estados. Essa lacuna foi parcialmente preenchida pela Emenda Constitucional (EC) nº 14, de 12 de setembro de 1996, que, ao proporcionar nova redação ao artigo 211 em questão, incluiu, entre outros aspectos, a menção no seu Artigo 3°, §3°, de que "[o]s Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio", sendo mantida a definição no Artigo 3º, §2º, que os Municípios devem atuar "prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil". Com isto, na LDB 9.394/1996, no Artigo 10º, inciso II, os Estados são chamados a "definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuição proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder Público", enquanto é reiterado aos Municípios, Artigo 11º, inciso V, seu comprometimento para com a oferta da "educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino".

A par desses aspectos, a EC nº 14/1996 acrescentaria no Artigo 3º, § 4º, que "[n]a organização de seus sistemas de ensino, os Estados e Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório", aspecto reiterado na LDB 9.394/1996, no Artigo 5º, § 1º, agora com a indicação de que a participação da União no regime de colaboração será a de "assistência" – nestes termos, em coerência às funções "normativa, redistributiva e supletiva" previstas no Artigo 8º, §1º, para fins da organização da educação nacional –, mas omisso em relação a um engajamento da União em mesmo nível de responsabilidades para com os demais entes federados, mesmo que resguardadas as prerrogativas de sua necessária ação coordenadora.

Mais recentemente, com a aprovação da Lei do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) – Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007 –, regulamentadora da EC nº 53, de 19 de dezembro de 2006, observa-se que o regime de colaboração será timidamente evocado, de um lado, no Artigo 7º, inciso I, enquanto uma das exigências para que a União, nos casos em que o valor per capita do FUNDEB estadual não venha a alcançar o mínimo nacional, libere a sua parcela de complementação aos Estados e Municípios, isto mediante, entre outras exigências, "a apresentação de projetos em regime de colaboração por Estado e respectivos Municípios ou por consórcios municipais", e, de outro, quando prevê, no Artigo 39º, incisos I e II, o desenvolvimento de programas voltados para a conclusão da educação básica por parte de alunos regularmente matriculados no sistema público de educação que estejam tanto cumprindo pena judiciária, quanto sob medidas sócio-educativas.

Contudo, o regime de colaboração entre os entes federados vem se realizando e em meio a um contexto no qual a translação de responsabilidades tem levado não à cooperação, mas a um quadro de concorrência entre os entes federados, à desconcentração da administração educacional – entre as instâncias públicas e a partir destas para a sociedade civil – e, sobretudo, implicado privatizações. A par das poucas experiências academicamente avaliadas como bem-sucedidas em torno da implementação do regime de colaboração (Aguiar, 2002; Gadotti, 2000; Machado, 2002), a literatura pertinente vem apontando múltiplas dificuldades para sua difusão, como: i) a ausência de regras institucionais que aprofundem o estímulo a práticas cooperativas entre os entes federados; ii) a precariedade dos dados e informações sobre a realidade escolar no país; iii) a tradição autoritária nas relações intergovernamentais, aqui caracterizada pela tendência à centralização e concentração do poder decisório nas esferas federal e estaduais; iv) a carência de espaços oficiais de coordenação, barganha e deliberação conjunta entre as instâncias federadas, em que pesem as iniciativas tanto do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) quanto da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) nessa área (Abicalil, 2001; Abreu & Sari, 1999; Duarte, 2002; Machado, 2002; Souza & Faria, 2003, 2004).

No que remete aos níveis e modalidades de ensino previstos na LDB 9.394/1996, é possível afirmar que na prática o regime de colaboração, embora precarizado pelas dificuldades acima apontadas, gravita em torno da oferta da educação infantil e, em especial, do ensino fundamental – articuladamente à noção de ensino obrigatório –, como também no que remete ao atendimento do ensino médio (Gomes, 2000) e da formação de professores (Aguiar, 2002; Machado, 2002), indicando que deveria se fazer presente com maior amplitude e intensidade na esfera municipal. Conforme sinalizado por Machado (2002), sob a perspectiva da interdependência e da co-responsabilidade intrínseca ao federalismo cooperativo, as demandas e competências constitucionais municipais "se inserem, de algum modo, na esfera de responsabilidades do Estado e até da União, seja do ponto de vista da interdependência com as competências de coordenação, implementação e avaliação das políticas educacionais dessas instâncias, seja no que tange às responsabilidades fiscais e de financiamento, quando for o caso" (p. 127).

Já em Portugal, desde a emergência do sistema educativo no país, com o Marquês de Pombal (na segunda metade do século XVIII), que definia uma matriz centralizada, às políticas educativas de Salazar, apenas interrompidas pelas políticas mais descentralizadoras, em particular, dos períodos da Primeira República e, mais recentemente, do período que se seguiu à revolução de Abril, ainda que de carácter distinto, podemos perceber as várias descontinuidades ao longo do desenvolvimento do processo de desconcentração de poderes.

No que respeita aos discursos políticos, Flores (2005) assinala dois marcos importantes relacionados ao processo de administração das escolas. O primeiro corresponde ao contexto político marcado pela aprovação da LBSE nº 46/1986, por se encontrar associado à retórica da descentralização, enquanto o segundo corresponde ao Pacto Educativo para o Futuro4, no qual se dava ênfase à territorialização e autonomia. Contudo, apesar dos discursos políticos apontarem para a descentralização, territorialização e autonomia no campo da gestão educativa, parece que muitas das práticas levadas a cabo pela administração central acabaram por comprometer o processo para que esses planos se transformassem em realidades, conforme anteriormente destacado.

Atualmente, não obstante as influências das tendências transnacionais e o facto de as políticas educativas nacionais apontarem para a necessidade do desenvolvimento da autonomia das organizações educativas e para o aumento e transferência de competências para níveis de decisão local, ainda não se registam em Portugal avanços muito significativos nesse sentido, por razões diversas que se estendem desde as resistências e/ou ações desenvolvidas pelos diferentes atores sociais envolvidos nestes processos até às ambiguidades e contradições entre o discurso político-legal e as ações reais desenvolvidas pela administração central e instâncias intermédias de gestão.

Flores (2005) refere que as mudanças operadas na organização e administração das escolas em Portugal centraram-se mais ao nível das alterações estruturais e morfológicas dos modelos de administração e gestão das escolas do que propriamente em práticas reais de ruptura com a tradição centralizadora da administração. Com isto, Fernandes (2005) diz-nos que a desconcentração é uma modalidade atenuada da centralização, enquanto Lima (2006) destaca que, na verdade, não houve em Portugal uma alternativa descentralizada que transformasse o caráter centralizado da administração, em congruência com o preconizado na LBSE nº 46/1986 e pela CRSE.

Ferreira (2004) entende que a valorização do local não é uma situação nova, considerando que a novidade na importância atribuída ao local se deve ao fato de a "relocalização ocorrer em simultâneo com a desestruturação do Estado-Providência (…), com o questionamento das instituições nacionais-estatais, e com o fenómeno da globalização" (p. 61), chamando a atenção para o fato de a revalorização da descentralização, da autonomia e da participação dos atores ao nível local poder estar associada, de certa forma, às lógicas mercantis defendidas pela perspectiva neoliberal. Barroso (1998, p. 11), apesar de entender que, em alguns casos, a "territorialização" pode ser vista como uma medida promotora da introdução da "lógica de mercado", considera que é possível encará-la como um processo de "apropriação, por uma determinada comunidade, de diversos espaços sociais" baseando-se no que entende ser a "mobilização" como "reunião de um núcleo de actores com o fim de empreenderem uma acção coletiva".

Em Portugal, portanto, longe de uma efetiva descentralização, vão sendo apenas ensaiados alguns passos nesse caminho, com uma desconcentração de poderes que passa pela transferência de algumas competências do poder central para outros níveis de gestão mais periférica, sendo este processo visto não como uma questão de fundo, de natureza estrutural, mas antes tratada como mera técnica de gestão de recursos. Contudo, à semelhança de outros períodos, este processo de transferência de competências e funções é também marcado por contradições, desconexões, ambiguidades e sobreposições de papéis e funções. Conforme já discutido, numa lógica de valorização das políticas públicas locais foram reativados os CMEs, apenas no plano legal, pois no plano da ação ainda não se perceciona, claramente, o trabalho desenvolvido por estes órgãos consultivos. Também as Cartas Educativas (CEs), que são entendidas como instrumentos estratégicos de planeamento assumidos como centrais nos processos de descentralização, na prática centram-se apenas na gestão do parque escolar e respetivos equipamentos, não resultando da participação ativa da comunidade educativa. O processo de criação, desenvolvimento, acompanhamento e eventual revisão ou atualização das CEs é fortemente regulado e condicionado pelo ME e pela NAMP, transparecendo uma visão técnico-instrumental e não tanto um processo participativo de natureza política.

A celebração de contratos de autonomia entre a administração central e os agrupamentos de escolas, referidos no Decreto-Lei nº 115-A, de 4 de maio de 1998, tem sido um outro assunto que constitui alvo de várias críticas e problematização por vários autores (Lima, 2006; Afonso, 1999; Alves, 1999; Roque, 1999). O contrato de autonomia parece constituir, na situação atual da administração educativa, o (único) dispositivo político-jurídico capaz de fazer inverter a relação de desconfiança, atualmente existente, entre a administração da escola e a administração do Estado ou outro poder público (Roque, 1999). No entanto, Costa (2007, p. 87) entende que, volvidos vários anos, os contratos de autonomia encontram-se envoltos numa "certa miragem", até porque, segundo o autor, não tem havido uma efetiva iniciativa político-administrativa para a sua implementação, continuando este processo a desenvolver-se de uma forma muito lenta.

No quadro atual da reconfiguração da rede da organização educacional pretende-se que os Municípios assumam, agora, competências de regulação das políticas educativas locais. É neste panorama que as Câmaras vão desenvolvendo, gradualmente, ações de decisão e controle sobre o funcionamento e gestão das escolas, nomeadamente ao nível da educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico (organização da componente de apoio à família, gestão de transportes escolares, implementação de atividades de enriquecimento curricular, gestão das cantinas escolares e gestão do pessoal não docente). Esta nova regulação do Município que se faz sentir nas escolas permite abrir caminho para um questionamento sobre o tipo de parceria, participação ou contrato que se estabelece, ao nível local, entre o Município e os Agrupamentos de escolas. A transferência de competências da administração central para a administração local tem vindo a realizar-se e, a partir de 2008, através de um contrato entre o ME e os Municípios – estabelecimento de "contratos de execução", através do DL nº 144/2008, de 28 de julho. Contudo, esse processo tem sido lento, encontrando-se muitos Municípios ainda sem contrato. Os contratos que foram estabelecidos vieram regular muitas das competências que já pertenciam às escolas ou a outras instâncias do ME (DREs) e, sobretudo, refletem uma ação pouco negociada, transparecendo o poder regulador do poder central em relação à ação do Município.

Apesar da retórica da descentralização, territorialização e contratualização alimentada por termos como participação, colaboração e parceria assiste-se, "simultaneamente, à manutenção de práticas centralizadas e burocráticas" (Ferreira, 2005, p. 189), que são também "reproduzidas ao nível local, muitas vezes, com maior afinco do que foram ou são observadas noutros níveis da administração da educação" (Ferreira, 2005, p. 189).

A importância que é dada à cidade educadora fundamenta-se na revalorização do local enquanto espaço promotor de aprendizagens para todos, de forma contextualizada. A este propósito, Ferreira (2004) diz-nos que "o local – espaço local, os actores locais, os dinamismos locais – tem sido alvo de um interesse crescente nas sociedades contemporâneas" e, ainda, que "a proliferação de noções como autonomia, participação, comunidade, território, contrato, projecto e parceria (…) constituem alguns exemplos desse renovado interesse" (p. 61). Também Lopes e Sanches (2004, p. 135) se referem ao interesse pelo local e, sobretudo, à colaboração entre os Municípios e escolas como sendo resultado de uma política de territorialização que é motivada por diversos fatores, entre os quais o renascer dos valores políticos e sociais com "ênfase numa cidadania inclusiva, no aprofundamento da democratização da escola e na construção participada das próprias comunidades educativas". Fernandes (2005) atribui o atual interesse pela ligação das escolas às entidades locais e, nomeadamente, ao Município, em certa medida, às crescentes dificuldades dos sistemas educativos centralizados em dar respostas aos problemas surgidos na sociedade moderna. Ferreira (2005) acrescenta que as políticas educativas se voltaram para o "local" como estratégia de recuperação, por parte do Estado-Nação, da confiança e legitimidade que tem vindo a perder. A cidade educadora emerge assim "num contexto em que se entrecruzam uma nova concepção do lugar da criança e do jovem na vida da cidade, a tensão entre o global e o local e a redefinição do papel regulador do Estado na definição e gestão do sistema educativo" (Machado, 2005, p. 253). Para Fernandes (2004), o Município, outrora numa posição marginal e subordinada aos objetivos nacionais do sistema educativo, deveria hoje constituir-se como dinamizador e coordenador de uma política educativa local, remetendo esta nova posição para novas relações interinstitucionais ao nível dos territórios educativos.

 

Considerações finais

Grosso modo, é possível inferir que as contradições que vêm demarcando os processos de descentralização da educação no Brasil e em Portugal caracterizam a própria natureza desses Estados que, embora distintos (no Brasil, de estrutura federativa, e em Portugal unitária), possuem muitas leis supostamente democráticas, embora tendam a manter práticas centralistas e pouco participadas, não garantindo, até o presente momento, a possibilidade de uma emancipação local qualificada, quer do ponto de vista dos sistemas de ensino e de suas unidades escolares, quer no que remete a uma maior participação sociopolítica no processo decisório, de forma a inclinar-se para uma democracia de caráter cooperativo/participativo.

Ainda sem perder de vista o fato de que a descentralização traduz-se, em última instância, em um fenômeno de natureza política, dependente, por conseguinte, do contexto histórico e social atinente a cada um desses países, se verifica que a sua exequibilidade se mostra sobremaneira dependente do grau e amplitude dos vínculos que potencialmente venham a ser estabelecidos entre as instâncias de gestão pública e as práticas de controle e acompanhamento social, não se portando como consequ¨ência imediata das esferas governamentais brasileiras ou portuguesas, tampouco dos seus respectivos dispositivos legislativos e normativos, embora sem estes não se disponha das garantias mínimas para a sua realização.

Em outras palavras, postula-se que, apesar de o poder central vir difundindo os discursos da descentralização nestes países já há algum tempo, parece que o plano da retórica não logrou ser efetivamente superado, pois entre avanços e recuos deste processo as tentativas vêm se constituindo não mais do que em movimentos de alguma desconcentração de poderes, ainda marcados pela mesma lógica centralizadora, herança histórico-social, em ambas as nações, dos seus respectivos períodos ditatoriais civis e militares, agora também sob modulação de políticas econômicas neoliberalizantes.

Em que pesem as semelhanças acima aludidas entre os países em tela, nota-se que no Brasil o Município, elevado pela CF de 1988 à condição de ente autônomo federado, relativamente ao seu equivalente território português, goza de maior autonomia na constituição dos seus sistemas de educação e, consequentemente, na formulação de suas políticas, inclusive em termos da aplicação de determinados recursos no âmbito do financiamento dos sistemas e das unidades escolares, embora ainda seja grande a dependência das transferências financeiras intergovernamentais, especialmente em relação à União. O cenário português anteriormente traçado sugere que, mesmo a passos mais lentos, a tendência de reforço das competências das entidades locais encontra-se mais direcionada às instituições escolares do que à esfera autárquica. Nesta matéria, os últimos tempos têm sido marcados por tensões, contradições e ambiguidades entre o plano dos discursos e o plano da ação. Por um lado, assiste-se à revalorização do local (ao nível do discurso político-normativo) e que pode estar associada, de certa forma, às pressões e regulações externas marcadas pelas lógicas mercantis defendidas pela perspectiva neoliberal; e, por outro lado, talvez da conjugação de uma corrente neoconservadora que tem vindo a emergir e das imposições determinadas pelas entidades externas, nomeadamente de 'cortes' aos gastos públicos decorrentes da profunda crise econômica em que o país se encontra, perceciona-se o reforço de práticas racionalizadoras, centralizadas, hierárquicas e burocráticas e que contrariam, naturalmente, o desenvolvimento do processo de descentralização.

 

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Endereço para Correspondência

Donaldo Bello de Souza, Av. Oswaldo Cruz 12 / 801, Flamengo, Rio de Janeiro - RJ, Brasil, CEP: 22250-060. E-mail: donaldosouza@hotmail.com

 

Recebido em outubro, 2012. Aceite para publicação em julho, 2013

 

Notas

1 No Brasil, a investigação é coordenada pelo Prof. Dr. Donaldo Bello de Souza (UERJ), contando com a participação da Profa. Dra. Maria Celi Chaves Vasconcelos (UERJ/UCP) e da Profa. Dra. Alzira Batalha Alcântara (FEBF/UERJ), tendo como consultores o Prof. Dr. Nicholas Davies (UFF) e a Profa. Dra. Sofia Lerche Vieira (UEC/UFC). Em Portugal, encontra-se sobre coordenação da Profa. Dra. Dora Maria Ramos Fonseca de Castro (IPPorto), contando com a participação, desta mesma instituição, do Prof. Dr. Fernando Luís Teixeira Diogo, da Profa. Dra. Maria Irene de Melo Lourenço Fonseca Figueiredo, do Prof. Dr. Luís Maria Fernandes Areal Rothes e consultoria do Prof. Dr. Jorge Adelino Costa (U. Aveiro) e do Prof. Dr. José Alberto Correia (U. Porto).

2 Para o ano de 2009, a pesquisa Perfil de Informações Básicas Municipais levada a efeito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) "constatou a existência de CMEs em, apenas, 1.161 cidades brasileiras, ou seja, menos de um quarto (20,1%) das [5.565] cidades brasileiras informam que não os tinham criado" (Sousa, Duarte, & Oliveira, 2013, p. 27).

3 A educação básica no Brasil refere-se ao primeiro nível do ensino escolar, que antecede ao ensino superior, compreendendo três etapas: a educação infantil (para crianças de zero a cinco anos de idade), o ensino fundamental (para alunos de seis a catorze anos de idade) e o ensino médio (para alunos de quinze a dezassete anos de idade), sendo, todavia, obrigação do Estado garantir os meios para que os jovens e adultos que não tenham frequentado a escola segundo esta relação idade-etapa educacional possam acelerar seus estudos e alcançar formação equivalente à educação básica. Já em Portugal, a educação básica compreende a educação pré-escolar (para crianças dos três aos cinco anos) e – o ensino básico dividido em três ciclos – o primeiro ciclo (para alunos dos seis aos nove anos), o segundo ciclo (alunos dos dez aos doze), o terceiro ciclo (alunos dos treze aos quinze) -, cabendo ao Estado garantir os meios e a flexibilização curricular para que cada jovem complete com sucesso a educação básica ou equivalente.

4 Diário da República nº 083, p. 2777, 1996, VII Legislatura,sessão de 12.06.1996.