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Revista Portuguesa de Educação
versão impressa ISSN 0871-9187
Rev. Port. de Educação vol.29 no.1 Braga jun. 2016
https://doi.org/10.21814/rpe.7383
ARTIGOS
Fundamentos antropológicos do se-movimentar: Percepção, movimento e salutogênese1
Anthropological foundations of self-motion: Perception, movement and salutogenesis
Fondements anthropologiques du se mettre en mouvement: Perception, mouvement et salutogenèse
Carlos Luiz Cardosoi & Elenor Kunzi António Camilo Cunhaii
i Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
ii Universidade do Minho, Portugal
RESUMO
O presente ensaio tem como objetivo expandir o estudo do conceito se-movimentar como fundamento para uma Educação Física responsável. A partir de leitura fenomenológico-hermenêutica, destacamos dois autores centrais a respeito das bases antropológicas do movimento humano no interior da Gestaltkreis. Os resultados apontam que a partir de Viktor von Weizsäcker surgem novos fundamentos para uma intervenção diferenciada na área da saúde, denominada antropologia médica, tendo como eixo central a percepção-movimento. Em seguida, a partir de Paul Christian, emerge a nova compreensão de ser humano que se-move na e pela intencionalidade. Diante das constatações sugere-se temáticas para a formação de professores e elaboração de projetos escolares, com arranjos didáticos onde crianças e jovens podem seguir o paradigma da salutogênese, ao contrário da hegemônica patogênese. Sugerimos ainda que a meta educacional seja o mundo das relações em níveis salutares e que o eixo seja o sentido de vida em movimento.
Palavras-chave: Educação Física; Antropologia médica; Percepção-movimento; Se-movimentar
ABSTRACT
The present essay aims to expand the study of self-motion concept as the basis for responsible Physical Education. From a phenomenological-hermeneutic reading, it is worth highlighting two primary authors on the anthropological bases of human movement within the Gestaltkreis. From Viktor von Weizsäcker, results show that there are new foundations for a differentiated intervention in the health area called medical anthropology, and with the central axis in perception-movement. Then, from Paul Christian, a new understanding of the human being that moves in the intentionality emerges. Given these findings, it is possible to suggest topics for teachers’ training and for the development of school projects, with didactic arrangements where children and youth may follow the paradigm of salutogenesis, unlike the hegemonic pathogenesis. Also, it is worth suggesting that the educational goal can be the relationships in the world at healthy levels, and the axis may be the sense of life in movement.
Keywords: Physical Education, Medical anthropology; Perception-movement; self-motion
RÉSUMÉ
Le présent essai a pour objectif d’étendre l'étude du concept se mettre en mouvement comme fondement pour une Éducation Physique responsable. À partir d’une lecture phénoménologique-herméneutique, nous détachons deux auteurs centraux à propos des bases anthropologiques du mouvement humain à l’intérieur de la Gestaltkreis. Les résultats montrent qu’à partir de Viktor von Weizsäcker surgissent de nouveaux fondements pour une intervention différenciée dans le domaine de la santé, dénommé anthropologie médicale, ayant comme axe central la perception-mouvement. Ensuite, à partir de Paul Christian, émerge la nouvelle compréhension de l’être humain qui se bouge dans et pour l’intentionnalité. Durant ces constations nous suggérons des thématiques pour la formation de professeurs et l’élaboration de projets scolaires, comme les arrangements où les enfants et les jeunes peuvent suivre le paradigme de la salutogenèse, au contraire de l'hégémonique pathogenèse. Nous suggérons encore que l’objectif éducationnel soit le monde des relations aux niveaux salutaires et que l’axe soit le sens de la vie en mouvement.
Mots-clé: Éducation Physique; Anthropologie médicale; Perception-mouvement; Se mettre en mouvement
Introdução
Era observando o cosmos que os primeiros filósofos lançavam perguntas e, consequentemente, suas respostas têm sido temas filosóficos até hoje. Dessa ideia inicial, tanto o cosmos quanto o ser humano vêm sendo motivos de questionamentos: Como começou o universo no qual vivemos hoje? De onde veio e como o homem mora nesse planeta? O mundo sempre existiu antes de tudo? Portanto, os estudos sobre o ser humano ganham um campo denominado antropologia, que, juntamente com as novatas áreas científicas como psicologia e sociologia, forma um campo de investigação com maior amplitude nos dias atuais, mas parece não ter ainda as respostas para a imensidão daquelas primeiras questões gregas e também das que emergem nessa época.
Novas respostas vieram e ganharam novos contornos e, para uma aproximação entre essas mais novas teorias e os fundamentos antropológicos da teoria do movimento humano, vamos abordar a via da psicologia da Gestalt2, utilizando alguns textos traduzidos para o português e espanhol, principalmente de autores como Viktor von Weizsäcker e Paul Christian, em áreas como antropologia filosófica, medicina e fenomenologia.
Origens do Círculo da Gestalt (Gestaltkreis)
O diálogo dos dois cientistas em questão não esgota os integrantes dessa nova visão que surge no início do século passado; no entanto, são aqueles que de certa forma mais se aproximaram de nossa área de intervenção, como o esporte, o jogo, o movimento humano e a educação física. O primeiro, Viktor von Weizsäcker, dá origem à nova compreensão de movimento-percepção, unindo duas manifestações do ser humano que até então não tinham sido encaradas de tal forma. O segundo, Paul Christian, por seu lado, ajustou as ideias iniciais do seu professor, acrescentando que no momento do movimento-percepção está ocorrendo uma orientação de valor, pois todo o organismo vivo se dirige para algo e o sentimento de completude está intimamente relacionado ao fazer; por isso o ser humano se orienta na e pela intencionalidade.
Entende-se, portanto, que a ligação entre a Gestalt e a fenomenologia encontra-se na própria concepção de Gestalt. Esta concepção é utilizada tanto pelos professores do Círculo da Gestalt nas bases da antropologia médica quanto por professores holandeses nos princípios da teoria dialógica do se-movimentar, de modo que esses dois pilares sustentam e desenvolvem suas reflexões com a fidelidade gestáltica e a profundidade fenomenológica exigidas nos fundamentos antropológicos da concepção do movimento humano, na forma de modos de comportamento.
A palavra Gestalt tem origem alemã, com surgimento apontado em 1523, por meio da tradução da Bíblia, onde significaria o que é colocado diante dos olhos, ou exposto aos olhares. Em português, o seu significado refere-se à forma, figura, todo ou um padrão. Também se adota hoje, nas mais diversas línguas, para indicar aquilo que significa um processo de dar forma ou configuração, de modo que integra as partes em oposição à soma das partes num todo. Esta organização é o processo que leva a uma Gestalt, utilizado para definir a teoria da percepção visual com base na psicologia da forma. Engelmann (2002) diz que há uma pseudo-polêmica entre o uso da noção de forma ou uma entidade com atributos, inclusive a forma, na expressão da ideia de Gestalt em diferentes línguas e culturas:
O substantivo alemão "Gestalt", desde a época de Goethe, apresenta dois significados algo diferentes: (1) a forma; (2) uma entidade concreta que possui entre seus vários atributos a forma. É o segundo significado que os gestaltistas do grupo, que posteriormente vai se chamar Berlim, utilizam. É por isso que a tradução da palavra "Gestalt" não se acha nas outras línguas e a melhor maneira encontrada pelos próprios gestaltistas ao escrever em idiomas diferentes é simplesmente mantê-la (Engelmann, 2002, p. 3).
Os princípios da escola de pensamento da Gestalt desenvolvem-se na Alemanha nos inícios do século XX, com a escola de Berlim, mas essa não era a única escola gestaltista na época. Existiu antes dessa, em Leipzig, outra escola denominada totalidade gestáltica. Porém, a precursora das duas escolas está em terras austríacas, denominada escola da qualidade gestáltica, ou ainda escola de Graz. Seu criador foi Cristian von Ehrenfels, que, estando à frente do projeto já no final do século XIX, possibilitaria, posteriormente, realizar experimentos em relação à percepção em seus mais diversos campos de intervenção3. Colocar em destaque o surgimento dessas escolas tem como propósito aproximar tais iniciativas à ideia de Weizsäcker. O nome Gestaltkreis (O círculo da forma) é utilizado pelo médico alemão para conceber sua doutrina antropológica no interior da medicina da época, originada na concepção circular psicossomática. A antropologia médica passa a conceber a pessoa enferma, diferentemente da medicina hegemônica, que concebe a doença como se fora possível uma doença sem a presença da pessoa4. Seu pentagrama pático na obra Pathosophie aparece como alternativa ao método psicanalítico para comunicar as flutuações páticas da existência humana, que se expressam como unidades volitivas entre os estados permanentes (das coisas que subsistem) e os estados modificados (das coisas enfermas que se curam).
Outra escola gestáltica passa a ser chamada de Ganzheitspsychologie ou psicologia da totalidade; porém, aqui o conceito de totalidade se qualifica para sustentar o que até então era Gestalt, pois para essa escola era prudente colocar como situação básica de pesquisa a afetividade, já que entendiam que os psicólogos que seguiam a doutrina wundtiana destruíam tal qualificativo quando realizavam a observação dos experimentos psicológicos.
Na sequência dessas escolas iniciais, surge, no início dos anos de 1910, a psicologia da Gestalt, conhecida ou como psicologia da forma ou como psicologia da percepção. É em terras germânicas que o trabalho de três pesquisadores irá ganhar o mundo: Wertheimer (1880-1943), Köhler (1887-1967) e Koffka (1886-1941). A percepção é explicada de acordo com a análise atomista e associacionista, de modo que a percepção de uma figura é como se fora uma revelação, a partir de seus elementos e partes componentes, e a compreensão desse evento ocorre por associações com experiências passadas. No entanto, a partir dessa data, os psicólogos da Gestalt defendem que a percepção não é o resultado da soma de sensações de pontos luminosos individuais, mas sim uma apreensão imediata e unificada do todo, devido a uma necessidade interna da própria organização. É assim, então, que tal teoria define que não se pode ter conhecimento do todo por meio das partes, mas sim se conhece as partes por meio do todo. É o conjunto perceptivo que possui leis próprias e assim rege seus componentes; portanto, é através da capacidade de percepção da totalidade que podemos de fato perceber, decodificar e assimilar uma imagem ou um conceito: o todo é mais do que a soma das partes, de modo que aqui todo refere-se à capacidade de apreensão perceptiva e não à pretensão de totalidade ou apreensão total e absoluta da realidade.
A teoria da Gestalt vai permitir um alcance científico jamais imaginado, tanto que recentemente, a partir de 1985 aproximadamente, ressurge o universo gestáltico, por meio de uma abordagem denominada neo-gestáltica, e há também o renascimento da psicologia da Gestalt. Com o surgimento da tecnologia da computação e seus sofisticados aparelhos, os antigos problemas voltam a ser pesquisados, passam por um minucioso estudo e reafirmam o que os predecessores já diziam a respeito da Gestalt. Diante de tais constatações, nos parece razoável reconsiderar as ideias iniciais a respeito do Círculo da Gestalt que Trebels (2006) destaca em seu artigo, para uma ampliação e melhor compreensão daquilo que posteriormente veio se constituir na Teoria do Movimento Humano, tendo como categoria central a concepção dialógica do se-movimentar.
Viktor Freiherr von Weizsäcker – Antropologia médica e percepção-movimento
A intenção de Weizsäcker (1956) teve como meta a reformulação das bases da medicina da época; para isso, o médico alemão, que viveu no período de 1886-1957, elaborou a proposta de uma Medicina Antropológica. Essa mudança de perspectiva leva para o centro do debate na área da saúde o ser humano como o núcleo de desenvolvimento mais complexo entre os organismos vivos e passa a ser encarado como um todo orgânico, com corpo, alma e espírito unidos, de forma alguma deixando dúvidas sobre a mínima possibilidade de que fosse possível concebê-los em forma separável. Além do fato dessa nova concepção na área da saúde levar em conta a superação das bases filosóficas e científicas, radicadas no mecanicismo e no materialismo, considerava também a importância das condições sociais dos enfermos, e também os acometimentos religiosos, econômicos, culturais e políticos da época, na Europa.
O primeiro passo que ajudou a fundamentar a futura medicina antropológica estava depositado na Medicina psicossomática, o que posteriormente levou Weizsäcker a concluir, segundo seus estudos no campo da filosofia e da psicanálise, que esse seria um passo inicial, pois era evidente a realização da passagem da medicina psicossomática para a medicina antropológica. Apostava, portanto, numa psicologia com maior profundidade no interior da área da saúde, pois vislumbrava a medicina como um espaço na compreensão do padecimento e na constituição das enfermidades, de acordo com as condições das pessoas, pois para ele não há enfermidades, mas sim pessoas enfermas. Foi por isso que o médico alemão foi seduzido pela fenomenologia, principalmente a fenomenologia sociológica de Max Scheler, e pela teoria da Gestalt, abordando nesses espaços teóricos e práticos a totalidade do ser humano. É seguindo esse caminho da psiquiatria fenomenológica, medicina geral e neurologia que ele funda, no decorrer dos anos, a Medicina Antropológica, e argumenta para isso que tanto os fenômenos psíquicos quanto somáticos são integrantes de um mesmo fluxo vital, portanto as enfermidades são concebidas como doenças psicossomáticas, podendo ser diagnosticadas, de acordo a Weizsäcker (1968), pela unidade movimento-percepção, como resultado de estudos, investigações e intervenções práticas na área da saúde.
Em outros momentos, ainda como estudante, Weizsäcker pesquisa com afinco na área da fisiologia patológica as doenças internas e também a neurologia. Não só se dedica à área das doenças, mas também aos estudos filosóficos, como seu contemporâneo Edmundo Husserl. Com essa aproximação filosófica, fundamenta as principais linhas de intervenção de sua prática médica, juntamente com sua concepção epistemológica e visão antropológica. Para ele, a questão da saúde não pode ser encarada como ausência de doença, mas sim como uma coerência entre o ser humano e o meio em que se vive. Nascer e morrer são processos que ocorrem dentro de um mesmo sistema cósmico chamado vida, portanto o homem se encontra em unidade dentro desse sistema universal. É a unidade nascer-morrer dentro do único sistema vivo, a vida. O ser humano não é compreendido, dentro da visão antropológica de Weizsäcker, como apenas um corpo (Körper) que se move no espaço, ou seja, somente de acordo com a relação espacial tridimensional e seus correspondentes órgãos e funções, mas sim como um corpo (Leib) dinâmico, como ser vivo (organismo vivido) que está em constantes mudanças e impermanências. A vida é permanente (metafísica); no entanto o nascer e o morrer são características inseparáveis de todos os organismos vivos, é uma lei circular.
Acontece que, com o surgimento da Idade Moderna, emerge também uma cultura da luz e da escuridão. O Iluminismo, como representação das luzes, inaugura também a presença da sombra e, na área de saúde, aparecem culpa e medo. Numa cultura em que tanto a medicina natural como também a ciência biológica não conseguem minimizar catástrofes epidemiológicas, principalmente as que ocorrem na Europa Medieval, o homem fica sujeito a todas as espécies de doenças e enfermidades. Os órgãos do corpo, em geral, e a doença são encarados (e ainda acontece em grande maioria) como estando em campos existenciais diferentes, tanto que o problema era saber: estamos diante de qual tipo de doença? Superar essa visão exige, segundo Weizsäcker, perguntar sobre que tipo de ser humano poderia ser atingido por tal enfermidade que ora enfrentamos? Nesse sentido, o médico antropólogo alemão inaugura a biografia da doença e deixa a marca do papel da subjetividade no interior do paradigma médico.
Esse novo campo de investigação inaugura, na medicina da época, a metodologia dialética equilíbrio-desequilíbrio tanto do campo psicológico como em relação ao corpo (campo somático). Essa nova metodologia é a concepção do pentagrama pático, pois esse é quem irá comunicar, de agora em diante, as flutuações subjetivas da existência humana e dos estados mentais do homem. É um sistema de funcionamento volitivo5, no qual a percepção é a chave da compreensão do enigma homem integral. Segundo Rezer e Reggio (2013), são cinco os tipos de ações ou modos de ser distintos, porém pertencentes ao mesmo sistema orgânico coerente:
O que ele considerava ser as categorias páticas, Dürfen (poder, ter), Müssen (dever), Sollen (ser obrigado a), Können (poder), Wollen (querer) são as unidades volitivas profundamente enraizadas do Ser, algumas vezes superando possibilidades da existência, outras rareando, conforme estados de doença. Essas unidades formam a estrutura da forma da vida e da personalidade (p. 26).
É lamentável que, de toda a coleção da obra de Weizsäcker, pouca coisa foi traduzida para o português e o acesso às suas reflexões se dá por meio dos comentadores. Também não é de estranhar que o paradigma das escolas brasileiras de medicina passe pelos mesmos problemas paradigmáticos das escolas de educação física em geral. O campo da saúde, ao qual pertencem ambos os cursos e a consequente formação de profissionais, está fortemente submetido à ideia hegemônica de saúde mecânica, onde as partes do corpo que estão enfermas devem ser sanadas e/ou curadas, de modo que a atenção ao homem integral, segundo uma visão antropológica ou fenomenológica, fica restrita a um segundo plano.
Para Neuser (1994), a teoria do Gestaltkreis6 se utiliza do neoplatonismo metódico, onde as partes de um objeto ou momentos de um evento se dirigem a uma totalidade ou unidade. Seria o caso de uma lei superior que influencia uma lei inferior, ou seja, um grupo mais elevado e complexo da realidade sempre se dirige à totalidade e à unidade. Os elementos, como unidades menores, também seguem esses princípios da unidade, portanto a pergunta na teoria da auto-organização é como estes elementos se relacionam entre si e com o todo. Deve haver uma força ou energia no interior desses sistemas que possibilite a relação entre si. É nessa concepção que Viktor von Weizsäcker vai fundamentar sua medicina antropológica, pois o ser humano é um sistema de forças e energias que pertencem a uma unidade orgânica e a uma totalidade cósmica. A descrição que o médico utiliza indica a unidade de corpo-espírito de modo a configurar uma dinâmica psico-física. Mais tarde ele fundamenta esses princípios e diz que a medicina psicossomática é uma etapa de transição para a medicina antropológica. Para ele a unidade corpo-espírito é mais original do que a dualidade corpo e espírito. A unidade precede a dualidade, pois a unidade é perceptiva e a dualidade é análise intelectual. A máxima de sua obra que vai influenciar os fundamentos da concepção dialógica do movimento humano é o vínculo da unidade entre movimento (agir) e percepção (perceber), uma relação fundamental e que constitui tanto o sujeito em relação ao ambiente quanto o sujeito em relação a si mesmo. Neuser (1994) vai dizer que
(...) o corpo é a res extensa e os movimentos são mudanças de espaço. Corpos (movimentados) mostram-se, portanto, como a mudança do espaço. As mudanças da alma são as percepções. Se a identidade mútua de percepção – que é a mudança da alma – e movimento – que é a passagem de corpos no espaço – pode ser apresentada, então a tarefa da teoria do Gestaltkreis está cumprida. Para isso, o movimento do corpo alheio deve ser mostrado, num segundo passo, como equivalente do movimento do próprio corpo. (pp. 66-67)
Essa distinção necessária para a compreensão da unidade entre movimento do corpo no espaço e percepção das mudanças da alma é o círculo da gestalt, ou seja, a forma circular de compreensão do fluxo espacial-espiritual. A tentativa de Weizsäcker é alcançar as unidades corpo-alma e movimento-percepção caminhando na direção de estabelecer o conceito de sujeito; no entanto essa busca é pela unidade sujeito-objeto tanto nos processos espaciais como espirituais. Nos dois casos, sujeito e meio ambiente pertencem a uma coerência movimento-percepção como unidade originária, onde a vivência é a coincidente coerência não-local, porque o movimento surge como vivência na percepção. Essa é a Gestaltkreis do ato biológico e físico como um movimento próprio indicado posteriormente por Andreas Trebels. É a unidade do meio ambiente e corpo próprio que se torna objeto de investigação científica, pois existe, nesse caso, uma coincidência entre a vivência (interna) e o estímulo objetivo (externo). A relação entre ambos, construindo um só fluxo auto-organizado como unidade, aparece para Weizsäcker (cit. em Neuser, 1994) da seguinte forma:
O conteúdo da vivência da percepção tem a estrutura de uma declaração predizente: a coisa é movida. Isto significa, portanto, que na percepção aparece apenas um algo como movido. Movimento é, aqui, apenas predicado para um algo subjacente ao seu fenômeno. O ato composicional da percepção, portanto, não é comparável à montagem de uma máquina, pois sua estrutura tem, como predicativo, não apenas a estruturação justaposta das partes, mas sim a estruturação profunda de ser e aparecer... . Nós vemos, ouvimos, sentimos ‘uma coisa’ (ein Ding) – isto significa, agora, uma coisa aparece numa cor, num tom, numa forma e isto é neste fenômeno para mim (pp. 68-69).
Essa distância ou esse desvio no referido fluxo estrutural é o que determina, na medicina antropológica de Weizsäcker, aquilo que se pode chamar de uma forma doentia. A estrutura normal da unidade do ser humano fica em crise, ou melhor, perde seu critério de unidade. Essa Gestalt doentia, que se pode observar pelo simples ato de visão, pelo uso do diálogo ou no manuseio de algum outro modo de diagnóstico, permite perceber que o agir está acometido de uma deficiência, está distante de um agir vigoroso e decidido, e a medicina antropológica confirma a relação entre movimento (agir) e percepção quando o sujeito apresenta dificuldades de sentir-se inserido em qualquer evento ou circunstância cotidiana. Então, diante disso, Weizsäcker (cit. em Neuser, 1994) vai dizer que "São pessoas, que parecem ter uma elevada percepção interna, o que as capacita, não só a viver bem acima do usual do processo crítico, como também a perceber. Elas não apenas se transformam, mas elas experimentam a transformação como tal" (p. 69).
Em seguida o autor vai referendar que as crises com forma doentia são resultado de uma ruptura da identificação do sujeito com a continuidade da percepção do fluxo da vivência que lhe ocorre a cada instante. A crise aqui é o ápice da unidade sendo ameaçada e o organismo se prepara para a auto-organização da manutenção da unidade. A falsa percepção ou engano perceptivo é a origem da crise do sujeito, ou melhor, da forma doentia, porque movimento-percepção não permitem ruptura ou rompimento, pois é um processo que se dá numa coordenação unívoca sujeito-objeto ou sujeito-meio. Na medicina psicossomática do médico alemão, a debilidade do ser humano surge pelo medo diante da subjetividade, ou seja, das vivências do fluxo daquilo que ainda não é conhecido. Essa é a origem do medo, o desconhecido. Como pode o conhecer causar medo? Não é o conhecer que causa medo, mas sim permanecer no vazio aguardando o surgimento das vivências no interior da estruturação profunda do ser e do aparecer. Portanto, essa é a diferença de fundamento da concepção dialógica do movimento humano – não mecânico, como alternativa, que Trebels (2006) vai indicar em contribuição às reflexões dos professores de educação física holandeses no campo do ensino do movimento. Enquanto estiver ocorrendo uma espera no vazio, pela percepção das vivências que emergem no campo fenomenal, nada e ninguém pode interferir no processo, correndo o risco, se o fizer, de transformar o evento em algo mecânico. Qualquer tipo de interferência é a garantia de que se perde a originalidade do fluxo do movimento-percepção. É um processo que ocorre na primeira pessoa, tanto no cotidiano como no mundo da pesquisa, e é preciso desenvolver faculdades de compreensão de tal fenômeno.
A distinção entre sentir-se doente, ter uma doença ou ser considerado doente é uma visão que o psiquiatra chileno Stepke (2006, pp. 91-92)7 desenvolve no texto Muito além do corpo, escrito na década de 90 do século passado. Também aparecem ali outras distinções: curar, sarar e cuidar, e doença e transtorno. A medicina contemporânea se depara hoje com uma tríplice exigência na sua fundamentação teórico-prática: o comportamento, a mente e o corpo. A superação dessa separação origina-se na medicina antropológica, pois um estado normal pode abrigar um estado anômalo e isso só poderia ser percebido não na lesão corporal, mas sim na relação das lesões entre-corpos. Por isso o psiquiatra chileno vai dizer que, nos alvores da medicina psicossomática, a ênfase não estava nos aspectos cognoscitivos, mas nos aspectos emocionais. A teorização concentrou-se no papel e na função dos afetos, conscientes e inconscientes, e no adoecer somático. Um dos ensinamentos de Weizsäcker, segundo Stepke (2006), é o fato de que do páthico, da paixão e do afeto transborda aquilo que é ôntico e que pode se tornar racional; portanto, é possível prever que "A emoção – o aspecto motor do afeto – envolve todo o corpo. O campo expressivo é mais amplo que nos processos cognoscitivos"8 (p. 93). É dessa forma que o afeto passa a ser uma fase do processo cognitivo, auxiliando no afastamento da antiga visão emblemática de que razão e sentimento não poderiam estar próximos, mas sim separados na conhecida dualidade, tão reafirmada segundo a psicologia e a medicina de até então. A superação foi apresentada pela Gestalkreis, num termo técnico que se refere à unidade entre movimento e percepção. Esse movimento pode ser agir, atuar, comportar-se, atitude, conduta e ainda e-moção (e-motion), portanto para Weizsäcker (cit. em Stepke, 2006) "todo agir é perceptivo e todo perceber é ativo" (p. 111).
A unificação da emoção, da razão e da práxis na medicina antropológica de Weizsäcker (1956), permite compreender novas relações, outras realidades, portanto des-cobre e en-cobre os princípios complementares do conhecimento humano. Assim, a medicina antropológica e a psicossomática adotam os princípios da nova física quântica, que emerge nos meios acadêmico-científicos, mostrando como uma partícula possui a mesma realidade descrita como onda. Quando observamos é partícula e na retirada da observação torna-se uma onda de dimensão cósmica no meio sutil (éter ou Akasha)9. Weizsäcker denominou isso de princípio da porta giratória, onde se reconhece que toda a percepção precisa de um movimento e, como consequência, todo o movimento dá origem a uma nova percepção.
Essas são as leis da nova física teórica, inaugurada no início do século passado, e que juntamente com a criação da medicina antropológica (biologia), da teoria da Gestalt e das fenomenologias, configura uma contribuição da posterior emergência da concepção dialógica da teoria do movimento humano, tendo como conceito central o se-movimentar. É a abertura da nova compreensão para nossa conduta se manifestar no interior do fluxo circular da percepção-movimento (sensibilidade-mobilidade) como comunidade de comunicação.
Paul Christian – O ser humano move-se orientado na e pela intencionalidade
Paul Christian foi um médico alemão com grande participação na criação do conceito de medicina antropológica, junto com Viktor F. von Weizsäcker; porém, suas reflexões são conhecidas somente via traduções e diálogos de seus comentadores, pois seus textos originais em alemão não se encontram traduzidos para a língua portuguesa, nem mesmo para a língua espanhola. Um desses comentadores, nosso conhecido, por ser da área da educação física, é o professor alemão Andreas Trebels. Esteve no Brasil no final da década de 90 do século passado, participando de eventos acadêmico-científicos, culminando com a conferência de abertura no Congresso Brasileiro do Colégio de Ciências do Esporte – CBCE. Em seguida vamos dialogar com as reflexões do médico chileno Fernando Lolas Stepke, aluno de pós-doutorado de Paul Christian na Universidade de Heidelberg e que estabeleceu grande laço de amizade, não só entre eles, mas também em nível institucional com a Faculdade de Medicina da Universidade do Chile.
Paul Christian (1963, cit. em Trebels, 2006) continua com as reflexões de seu antecessor e criador da medicina antropológica e a consequente unidade entre movimento-percepção e apresenta, então, a ideia central da aprendizagem de movimento pela consciência de valor na superação das duas principais ideias que ainda vigoravam na compreensão do movimento humano: de um lado o ato biológico e de outro o ato mecânico. Com o texto onde descreve o evento da pessoa que toca um sino numa igreja, o autor questiona o processo no qual a aprendizagem ocorre, não sem antes questionar a forma como a pessoa aprende a tocar esse sino se ela nunca o fez antes, realizando os movimentos de forma harmônica e num fluxo coerente (Christian, 1948, cit. em Trebels, 2006).
A princípio, a psicofísica da época não dispunha de aparelhos que hoje existem, e nem o nome da área de investigação hoje em dia ainda se sustenta, pois passamos a conhecer hoje, no campo da neurociência, a aproximação das medidas e cálculos entre estímulos sensoriais e reações físicas. Seus métodos envolvem investigações fisiológicas e técnicas de imagiologia do cérebro e ressonância magnética para reconhecer áreas do cérebro envolvidas e correlacionadas no momento da existência do movimento. Esses dados iniciais, na época de 1879, aproximadamente, abrem caminho para as futuras ciências cognitivas e ciências da computação, o que resulta na união e emergência da área da inteligência artificial. Porém, essa não era a preocupação central de Christian, até porque a separação da filosofia em relação à psicologia foi o que originou a psicofísica, e passa a permitir, e ao mesmo tempo expandir, a compreensão do fenômeno do movimento humano num novo campo de observação, unindo e confrontando tanto o diálogo gestual quanto o meio ambiente. Para Christian, esse diálogo é uma emergência que nunca está dada de antemão, ou seja, é sempre algo novo e que ganha relevância tanto do lado biológico quanto mecânico, bem como do lado fenomenológico e da intencionalidade.
Aprender passa a ser uma questão que recebe somente orientação de uma consciência-de-valor, sendo que esta orientação emerge no instante da própria realização do movimento, confirmando assim a relação e união movimento-percepção, diálogo da sensibilidade corporal e meio ambiente, de modo que esse princípio terá, dando seguimento aos seus estudos, uma maior aproximação com a Filosofia dos Valores de Max Scheler. Para Christian, essa orientação durante o movimento-percepção viria de uma espécie de consciência do valor que orienta a realização do jogo, do gesto esportivo ou da obra de arte, existindo um valor próprio do movimento presente na realização original e espontânea. É uma gênese ou uma emergência que não segue plano algum, muito menos permite uma pré-paração na construção desse movimento, mas tão somente brota um diálogo com o meio ambiente. Esse diálogo é uma comunicação que só pode recorrer à percepção dos próprios gestos (movimentos) e da percepção do próprio ambiente onde esteja ocorrendo o evento ou a concretude da situação. Não pode haver planejamento prévio, mas sim um reconhecimento imediato, sem a presença de nenhuma faculdade interna que possa mediar tal fluxo, como aquelas que a psicologia da aprendizagem tradicional indica – intelecto, raciocínio, pensamento e outros do tipo. O que emerge nesse processo é uma linguagem da regra mecânica, não aquela que brota do entendimento da mecânica dos movimentos, mas sim das leis mecânicas que facilitam a percepção das ações, gestos e condutas do jogo, do esporte, enfim, do movimento humano e da intencionalidade.
Às leis mecânicas a que Christian se refere dizem respeito, em primeiro lugar, uma lei com linguagem para a aprendizagem e aquisição de movimentos e, em segundo, uma lei para a reconstrução mecânica dos movimentos. Ambas fazem parte do processo de ensino e de aprendizagem do movimento humano que farão parte das reflexões dos professores holandeses na área do ensino do movimento (educação física escolar). O avanço na compreensão da concepção dialógica da teoria do movimento humano ganha abrangência com as atuais pesquisas na física teórica: o grande e o pequeno nos comentários sobre mecânica quântica de Penrose e Hameroff; na biologia do conhecer e do amar de Maturana; e na neurociência com a neurofenomenologia de Varela.
Paul Christian foi o sucessor de Weizsäcker na Escola de Heidelberg, tanto que, segundo Stepke (2006), ele "manteve seu espírito e renovou suas concepções" (p. 102), ampliando a concepção de medicina antropológica e sua atuação no trato psiquiátrico com aqueles acometidos de enfermidades. Uma dessas renovações foi o desenvolvimento da relação de correspondência entre o somático (corpo) e o psíquico (mente-espírito). Embora essas duas esferas (psico e somática) não pertençam ao mundo exterior, e nem dali brotem os dados, constroem modos de relação e modos de comportamento nas experiências de movimento que se pode chamar de correspondência. Segundo Stepke (2006), "O somático não causa o psíquico. O psíquico não determina o somático. A relação entre eles não é unívoca, mas de correspondência" (p. 105). Por isso ele pode afirmar que não é o corpo-coisa, mas sim o corpo-próprio que se manifesta como um campo de intencionalidades. Podemos viver e habitar, diante dessa concepção, vários corpos, em conformidade com os mais variados contextos sociais: papéis públicos, práticas corporais, seduções e persuasões, afetos e riscos. Christian (cit. em Stepke, 2006) finaliza essa ideia dizendo que "O corpo é vivido de muitas maneiras e não de uma apenas" (p. 104), pois corpo, espírito e pessoa formam a fusão do falante e linguagem e o mundo vivido é o palco das aventuras humanas. Outra contribuição de Paul Christian em forma de inovação, no interior da antropologia médica além da ação e valor, é a bipersonalidade.
Das contribuições de Paul Christian, a primeira, relação de correspondência entre o corpo e mente-espírito, aparece com inestimável auxílio didático-pedagógico para que os professores holandeses pudessem organizar a concepção dialógica do movimento humano para o ensino do movimento nas escolas. Já a segunda contribuição, de acordo ao conceito de bipersonalidade, aparece como sustentação no tratamento das enfermidades quando da relação médico-paciente. Essa última contribuição, embora ganhe importância na área médica, foi retirada de circunstâncias do cotidiano.
Muitos podem se lembrar de uma vida no campo e lá se encontram dois trabalhadores. Eles vão serrar um tronco de madeira. Inicialmente colocam-no sobre dois cavaletes. Em seguida empunham a serra e cada um toma lugar na extremidade da serra. Para que o tronco comece a sofrer um corte, os dois trabalhadores precisam necessariamente entrar em harmonia quanto ao serrar. Esse processo vai ganhando coerência à medida que os dois serram. Não tem como definir nada antes, só se pode organizar a atividade, fazendo-a, ou seja, serrando. É assim que Christian pensa a bipersonalidade, ou seja, duas pessoas sujeitam-se ao desenvolvimento de uma única atividade. Ela passa a ganhar coerência e harmonia só quando o conjunto como um todo se-movimenta: trabalhadores, serra, tronco e valor no fazer.
Próximo desse exemplo, onde dois trabalhadores serram um tronco, Trebels (2006, p. 29) apresenta outro exemplo de harmonia e coerência quando um sujeito vai tocar um sino. Esses exemplos ajudam a pensar situações de aprendizagem de movimentos no esporte, nas aulas de educação física, nos jogos em geral, e nas brincadeiras, não só com crianças, mas também com jovens e adultos. Não podemos esquecer que o corpo é vivido de acordo às circunstâncias, de modo que a originalidade e a espontaneidade é a característica do se-movimentar no mundo de movimento e nos modos de relação com os outros, consigo próprio e com o ambiente. Stepke (2008) vai dizer que essa relação não se organiza no espaço interior do indivíduo, mas sim que ela se organiza tão somente no intercâmbio que tem lugar num entre-espaço chamado linguagem, ou melhor, no diálogo sujeito-meio ambiente, podendo ser expandido para sujeito-sujeito, médico-paciente, professor-aluno e outras circunstâncias cotidianas.
Em 1948 Paul Christian faz uma homenagem a seu professor Viktor von Weizsäcker, publicando seu famoso trabalho sobre A consciência de valor no fazer (Vom Werthewusstsein im Tun). Já no início das argumentações, esclarece que, na experiência natural, o movimento aparece como uma atividade carregada de intento, portanto já existem as intenções do que se seguirá posteriormente, de modo que, segundo Stepke (2008), "El hacer, el movimiento humano no será objeto de una mecânica corporal. Será objeto de una reflexión dadora de sentido" (p. 41)10. Esta é a ampliação que Paul Christian faz em relação às colocações de Weizsäcker, quando ele já distinguia, no interior do sistema nervoso, entre condução (Leitung) e rendimento (Leistung). Christian (cit. em Stepke, 2008) se refere ao movimento dizendo: "Pues no se mueve el hombre, y tampoco el animal, simplemente por mover-se…. Los organismos se mueven para algo y no solamente por algo" (p. 41)11 .
Aqui o autor esclarece que não entende o movimento só a partir do exterior, mas antes de tudo o compreende a partir da dimensão interior ou subjetiva, ou seja, da intencionalidade operante de Husserl, com características intimamente adequadas ao valor do movimento, do fazer e do se-movimentar. Existe aí uma perfeição intrínseca e uma completude organizativa que não permite nada que não seja a inerente virtude do se-mover para a verdade. É uma intuição que precede o mover-se, um sentimento de orientação que já está antecipadamente em posição e vínculo movente. Christian vai dizer que essa é a vida do esporte (igualmente do jogo e da brincadeira das crianças), onde o resultado já está conquistado antecipadamente e o jogador não joga, mas é jogado. É o prazer de ver um exímio desportista executando um movimento de modo virtuoso, tal como um dançarino ou um ator, e cabe ao espectador participar desse momento como regozijo na conquista da execução. É o valor do fazer que deleita o espectador e não o gesto corporal mecânico em si, muito menos o conjunto de músculos e nervos aí envolvidos. O valor do fazer, no movimento humano, chega à consciência do espectador como algo correto, justo, apropriado, adequado e coerente, na mais perfeita harmonia. É a arte de expressar-se como homem na dimensão da existência humana. É a síntese de uma Gestalt na música, na dança, no teatro, no circo, na brincadeira e no movimento humano em geral. Uma forma única de ser, um fundamento tanto da ética como da estética. Fazer o que se deve fazer, querendo ser aquilo que se faz. Para Christian (1997), a medicina não é só ciência ou técnica, senão um tratamento com o ser humano no mais alto nível dialógico e de compreensão sapiente.
A medicina antropológica, para ambos, professor e aluno (Weizsäcker e Christian), não é algo concluído, mas sim algo em construção, é uma ciência que se auto-produz, tanto na teoria como na prática. Por isso, do ponto de vista teórico, não é só fazer ver, mas antes de tudo saber ver. Já do ponto de vista prático, não é só um saber fazer, mas sim a precedência de um fazer saber, como um verdadeiro ensinar, pois aí entre a teoria e a prática existe o mundo empírico, com um lado metódico e científico e, por outro, com nosso mundo de relações, ações e movimentos (valor no fazer). Pelo mesmo dilema passa o nosso mundo de intervenções pedagógicas, pois não é uma exigência no sentido de trabalhar em pessoas (ou sobre pessoas), mas sim trabalhar dialogando com pessoas. O processo de ensino e de aprendizagem é um conjunto de procedimentos tal qual uma investigação terapêutica, portanto não pode ser encarado como uma investigação em pessoas, reduzindo-as a coisas, instrumentalizando-as. Deve ser encarado como concepção dialógica do movimento humano, tendo no se-movimentar a compreensão comunicativa, tanto verbal quanto não-verbal, ou seja, gestual, ou ainda, segundo o biólogo chileno Humberto Maturana, um linguajear.
Considerações sobre o movimento humano
A teoria do movimento humano emerge de duas fontes: Gestalt e Fenomenologia francesa. Suas relações estão intimamente vinculadas à antropologia filosófica; no entanto, nosso objetivo passa pela revisão criteriosa das bases antropológicas vindas da doutrina gestáltica, de modo que encontramos na medicina antropológica os fundamentos para tratamentos terapêuticos e pedagógicos no campo da saúde. É assim que o antigo paradigma de tratar a doença é substituído pelo tratar a pessoa doente. À medida que a pessoa descreve sua enfermidade, o médico percebe por onde ela caminhou, pois deixa marcas ao falar dos estados emocionais vividos. A antropologia médica dá um passo a mais no seu desenvolvimento e concebe a unidade da percepção-movimento. O que a pessoa doente percebe é descrito ao médico e assim ambos podem compreender o processo pelo qual a enfermidade se instalou no organismo. Todo o organismo tende para alguma coisa e essa coisa é a cura, o estado de completude, de equilíbrio, de harmonia saudável e coerência. É daí que essa medicina antropológica cria seus critérios para o tratamento dos desvios no campo da saúde. A distância a que a pessoa se encontra da unidade percepção-movimento, quando descreve eventos vividos, suas relações com as coisas, com os outros, consigo mesma e com o mundo, indica os níveis da enfermidade-pessoa. O mundo em que vive a pessoa é o sinal e vestígio de seu comprometimento. As dificuldades de encontrar aceitação, por parte dos profissionais, torna a medicina antropológica, por um lado, esquecida e, por outro, algo que exige um maior vínculo entre médico e paciente, de modo que o modelo hospitalar, clínico, assistencial e de atendimento ao público em geral passa obedecendo ao modelo hegemônico do tratamento da doença e não da pessoa enferma.
São similares as dificuldades que a concepção de movimento humano enfrenta, quando tenta conquistar espaço entre os profissionais no ensino da educação física escolar, bem como nas formações inicial e continuada. Embora essa influência didático-pedagógica tenha conquistado espaço no interior das universidades, Kunz (2001) destaca a dificuldade que professores enfrentam, nas escolas das redes de ensino estaduais e municipais no Brasil, quando na elaboração de projetos pedagógicos direcionados para atividades concretas de ensino. As conquistas acadêmicas, embora escassas, não refletem a realidade das escolas, pois no interior dos estabelecimentos de ensino, de um modo geral, os avanços não passam de instrumentalização físico-técnica. Combinar o pensar e fazer, segundo o autor, exige um esforço didático-pedagógico na transformação de realidades e práticas no exercício do magistério.
Além da dificuldade acima mencionada, Kunz (2001) indica também a dificuldade relacionada à carência de aprofundamentos e esclarecimentos teórico-práticos, considerando essa nova influência no pensamento pedagógico da educação física. Portanto, destaca-se, na tentativa de compreensão desse movimento renovador, a hegemonia da razão instrumental na leitura, discussões e debates acadêmicos, sempre cultivando resultados imediatos e procedimentos didático-pedagógicos utilitários, de modo que a educação física é vista sempre estando a serviço de algo, de alguma coisa. Acompanha essa pressa, a ideia já conhecida, denominada processo de semi-formação, determinada pelos rápidos avanços na ciência, na tecnologia, e principalmente nos meios de comunicação de massa, retardando uma posição mais firme em relação ao papel da educação física escolar, principalmente quando o tema central é o movimento humano, e por consequência a percepção. Se por um lado fica difícil conceber a nova ideia a partir do conceito do movimento humano, tendo como eixo central o se-movimentar, mais complicado tem se tornado a temática quando junta a percepção, de modo que o novo enlace didático-pedagógico se dá na mobilidade movimento-percepção.
Dos três níveis de interpretação possíveis, a partir da ideia de percepção, Weizsäcker (2009) indica primeiro a sensação, que é realizada por meio dos órgãos dos sentidos; a segunda, o juízo, que possibilita inclusive a interpretação da primeira, a sensação; e, para finalizar, o afeto, que é aquilo que provoca este juízo. Essas percepções não ocorrem separadamente, no entanto podem ser separadas quando de uma análise posterior ao acontecido. Portanto, quando da presença de uma percepção afetiva, como as demais, o agir e o perceber são inseparáveis. Somente parâmetros sensualistas, cineantropológicos ou psicológicos poderiam sugerir motivos, justificativas ou parâmetros de medida para tais percepções afetivas, como, por exemplo, aqueles já conhecidos na aprendizagem motora. Aqui surgem os vínculos com a causa do movimento, separando aspectos sensoriais das funções motoras. Perceber algo acontece antes do reagir sobre esse algo, com nítida vinculação à concepção da doutrina behaviorista de estímulo-resposta, aumentando o distanciamento daquilo que defendemos sobre a nova compreensão fenomenológica do movimento humano.
Kunz (2001) vai destacar posições que se afastam desse esquema estímulo-respostas. Refere as ideias de Maturana (1997), que apresenta uma visão estrutural-sistêmica, onde a percepção é considerada, segundo algumas perspectivas cognitivistas, como conhecimento puro, de modo que os praticantes de esporte e jogos em geral podem desenvolver as dimensões da percepção, chegando a captar aquelas que antes apresentavam dificuldades. Kunz (2012) também destaca Bergson (1999), pois a percepção é um fenômeno fisiológico corporal e material, de modo que a função do movimento das moléculas depende desses. Distinguindo percepção de matéria, Bergson (1999) diz que essa é um conjunto de imagens, enquanto aquela é a constituição dessas imagens relacionadas ao mover o corpo. É assim que Bergson (1999) entende a influência dos órgãos dos sentidos do corpo na percepção, ou seja, o próprio corpo é a percepção, tal qual a ideia de corpo-próprio de Merleau-Ponty (2009), que, por outro lado, lamenta, em textos da última fase, o fato de seus professores não terem lhe falado mais sobre a doutrina intuicional bergsoniana.
Dessas concepções se confirma a distinção entre corpo físico (Körper) e corpo humano (Leib), bem como corpo-substância e corpo-relacional. É nesse último que ocorre a relação de coincidência entre movimento e percepção. É daí que também se origina, na psicologia da Gestalt, a distinção entre tatear e contato. No tatear se apresenta o corpo físico e no contato temos a presença do corpo humano, o corpo-relacional, aquele que percebe as relações multidimensionais em seus diferentes níveis de ação: a relação com o mundo, a relação com os outros e com seu corpo-próprio e, ainda, a sua relação com a essência humana, o ser.
Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2007) demonstram a distinção entre a experiência tátil, aquela que é entendida pela física tradicional e pela fisiologia, onde ocorre uma aderência ou atrito de duas superfícies materiais. No entanto, o contato não se limita a uma experiência estimulante, mas sim a uma ideia de sensação como algo mais que um circuito neurológico, e dão exemplo de soldados que perdem seus membros (braços ou pernas) na guerra e ainda continuam a sentir coceiras e mesmo gestos habituais como mover-se para pegar coisas com a mão quando esta já não se encontra mais ali. Esses casos indicam, segundo os autores, a presença de um saber operativo, que Merleau-Ponty (2009) diz nos ligar ao mundo e aos nossos semelhantes sem a necessidade de mediação reflexiva. É o conceito de contato e seu saber operativo que se alarga, se antecipa em forma de um conhecimento pré-objetivo e que vigora mesmo que estejamos submetidos às condições adversas, como é o caso dos soldados amputados.
Merleau-Ponty (2014) vai dizer que o nosso corpo se organiza de modo a suportar camadas distintas, uma chamada habitual e a outra atual. Nelas somos atravessados por marcas invisíveis que não são submetidas aos atos reflexivos e o contato é mais uma expressão e menos um fenômeno físico ou fisiológico. Ligação essa impessoal com o mundo e com nossos semelhantes, de modo que surge espontaneamente sem que tivéssemos apreendido algo em forma de ações já produzidas ou repetidas. É possível observar essas manifestações corporais não só com amputados, mas também no esporte, no jogo e nas brincadeiras de uma forma geral. Quando uma bola é arremessada em nossa direção, tal movimento da bola exige que algo ocorra entre a observação e a ação. O contato visual é o meio mais eficiente para nossa orientação no meio ambiente, portanto o espaço do se-movimentar não é o espaço tridimensional e geométrico indicado pelas orientações behavioristas, mas sim uma percepção do espaço para algo, que é o jogar, o correr, o saltar e o brincar. Sempre tem uma intencionalidade que denomina esse espaço como espaço vital, onde o eu posso indica de forma pré-objetiva e afetiva, mas não reflexiva, a autorrealização da conduta esportiva. O campo de contato é alargado onde a percepção acompanha desde a origem o fundamento do movimento que emerge. Não é uma cópia, mas sim uma intencionalidade ganhando forma, segundo Heij (2009), contato no campo existencial sendo ser-aí-em-movimento.
Considerações sobre como pro-mover crianças e jovens salutares
Para nós, pedagogos, torna-se de suma importância uma compreensão da combinação percepção-movimento, de modo que a ideia de saúde na educação física escolar tenha campo distinto daquele até então conhecido como exercício físico. Não seria mais uma concepção patogênica, onde movimento serviria de compensação para a vida agitada e estressante dos tempos modernos, mas sim uma concepção salutogênica, que, segundo Brodtmann (2006), serviria de promoção para a saúde e educação como um princípio único. A educação física responsável é aquela que conta com uma escola que desenvolve atividades não no modelo terapêutico, mas sim na concepção da antropologia médica de Weizsäcker e até mesmo na sociologia médica, como é o caso da solutogênese, onde se procura: a) atender a pessoa com enfermidade; b) manter a saúde das pessoas, apesar dos contrastes da vida moderna; e c) finalmente, adotar a conduta perceber-movimentar diante das situações do cotidiano. Nossas crianças e jovens precisam ser atendidos naquilo que diz respeito a ser mais saudável e não fazer exercícios simplesmente para evitar doenças cardiorrespiratórias, para uma melhoria na flexibilidade, reforço na musculatura dorso-lombar e prática de exercícios de descontração e de habilidades gerais12.
A percepção pode ser desenvolvida, ampliada e expandida. Cabe destacar a importância da atenção como foco e exercício, pois o corpo percebido no interior do mundo percebido se modifica e se transforma em função da experiência de movimento no campo de existência. Quando o corpo se move, o faz em função de algo, na direção de algo que já está dado no objeto mirado pela intencionalidade. É assim que percepção e movimento são coincidentes no fluxo espaço-temporal. Ao abordar um objeto perceptivamente, já estamos adotando uma forma de abordagem pré-determinada, não pelo campo intelectual, mas sim graças à conexão com o para que da própria manifestação da percepção-movimento. Com os cinco sentidos, percebemos um campo de contato; no entanto, quando todos os cinco sentidos atuam, é como se surgisse um sexto que une a todos os anteriores. Então os estímulos são percebidos mesmo sem a presença de objetos, de modo que podemos treinar gestos e condutas pelo simples fato de compreendermos o significado desses estímulos. As pessoas enfermas também percebem estímulos, e quando se expressam se-movimentando é possível sugerir mudanças na conduta, de modo que a experiência de movimento amplia essa percepção limitada pela enfermidade. O corpo está acometido de uma redução da capacidade de percepção, pois se encontra limitado em algumas de suas funções psicossomáticas, ou melhor, antropológicas.
Em seminário de professores no Brasil, Maturana (2004) esclarece alguns conceitos que são centrais na compreensão do movimento relacional. Em primeiro lugar, pelo linguajear e pelo emocionar tudo o que é humano se constitui pela conversa, de modo que estamos sempre inseridos numa rede de conversações. Uma rede, por exemplo, na qual essa conversação ocorre é a profissão de professor, e os ambientes educacionais se tornam espaços de aprendizagem do linguajear e do emocionar. As crianças começam a desenvolver as metodologias relacionais na linguagem corporal, bem como se expressam a partir do emocionar, tendo em vista que dali se origina o se-movimentar. Na sequência, ganham o acompanhamento do pensar, e só mais tarde, se houver necessidade, ganham o agir, a ação em si. Portanto, linguajear e emocionar, para Maturana, que acabou por transformá-los em verbos, se apresentam no fluir do conviver, pois só ocorrem nesse fluxo de vida. Esse fluxo não se encontra na palavra, mas sim no fluxo de vida que se expressa em coordenações de coordenações e assim sucessivamente, nas mais diversas dimensões e níveis distintos. Idêntico processo ocorre com o emocionar: encontrando-se em rede de conexão com o viver dos sistemas vivos e na comunidade de seres em coordenação como a nossa, tanto os gestos quanto os movimentos, ou melhor, o se-movimentar se manifesta segundo o emocionar que lhe dá origem. O emocionar encontra-se antes do pensamento e esse antes do agir. Para Maturana, as culturas são redes fechadas de conversação, se transmitem de geração para geração. Elas produzem as configurações nas quais as conversações vão se originar. Cada geração se configura numa forma de emocionar e as conversações brotam do caráter dessa cultura, e, sendo assim, é a emoção quem vai formar o caráter dessa cultura, de modo que ela se torna o guia do fluir histórico das conversações de geração em geração.
A importância dessa compreensão do fluxo histórico das conversações vai se refletir no campo da educação e da saúde, pois as pessoas se-movem a partir dos seus estados emocionais, das suas emoções, que originam as conversações e os discursos, aquilo do qual elas falam no dia a dia e também, inclusive, das duas ações e condutas. É assim que o espaço relacional vai se definindo continuamente e também é assim que nos encontramos no curso daquilo que vai ser o nosso viver. A educação física responsável e a saúde confiável são fluxos de vital importância nos dias de hoje, assim como o foram no passado histórico. Responsabilidade e confiança se constituem nosso guia, são nossas emoções construindo nossa aprendizagem e nossa evolução, de modo que esse emocionar, ao ser conservado de geração em geração, permite a aprendizagem, pelas crianças, do emocionar confiável, salutar e responsável. Ao conquistarmos um campo onde educação, saúde e movimento humano se apresentem de forma amorosa e afetiva, teremos crianças com capacidade perceptiva para o respeito e confiança em si próprias, nos outros e no universo.
Em segundo lugar, é pela cultura matrística que a biologia do amar se fundamenta, pois se-mover num ser vivo é manifestação de afeto e prazer por estar no mundo em acolhimento confiável pelos outros seres. Garante ao ser humano o crescimento e desenvolvimento de uma criança que respeita a si mesma, portanto torna-se um adulto responsável por si, pelos outros e pelo ambiente. O contraste emerge de culturas matriarcais ou patriarcais, pois o emocionar tem origem na violência, subserviência, escravidão e medo, de modo que isso é a negação do amar, é a violação da identidade humana, a falta de respeito e, no fundo, é a negação do ser. Com o tempo, as gerações se alternam, porém continuam mantendo um estado conservador, pois a mudança é imperceptível e, nas palavras de Norbert Elias (1998), é também não-planejada, no sentido de que não nos damos conta que a vida vai mudando. Mas o emocionar segue seu fluxo, dando origem às redes de conversação, e nelas nos encontramos e nelas vamos mudando as condições de vida, tal como ocorreu com o evento dos modelos cibernéticos a influenciar nossa vida no campo da tecnologia. Em questão de aproximadamente 50/70 anos tudo mudou, embora a mudança cultural do emocionar siga sendo a mesma nesse período; vivemos num mundo relacional que nos nega, nega aos outros e nega o próprio universo, tendo em vista a degradação ambiental. Exigir mudanças para espaços e momentos de convívio amoroso é pensar, principalmente, a educação, a saúde e o movimento humano como ambientes de amorosidade e afetividade.
Para finalizar, temos o vínculo dos conceitos acima com o mundo da criança, pois estas emoções competitivas e rancorosas, sendo motivo de propaganda, transformam as crianças em consumidores contumazes e cobiçosos. Tornam-se adultos que crescem na busca da satisfação a qualquer custo, e se afastam do espaço relacional da consciência social e convivência afetiva. As crianças que se dedicam ao jogar e brincar o fazem pelo simples prazer de fazê-lo. Não há outra atenção na conversação, no emocionar do jogar, do que aquela com origem na emoção prazeirosa consigo mesmo e afetiva com os outros, e também de simplesmente se encontrar no mundo, brincando. Não há possibilidade de colocar a atenção na consequência desse evento denominado jogar e brincar. A conversação gestual das crianças brincando é com o momento de prazer, pois este permite a colaboração, a seriedade e o respeito pelo fazer; é o viver sendo aprendido quando se joga, e a responsabilidade está no próprio jogar e brincar, donde emerge a liberdade de ação e um agir não subserviente.
Maturana (2004) encerra a entrevista dada aos professores da Universidade Católica de Brasília – UCB, em seminário comemorativo aos 10 anos do mestrado em Educação, dizendo que não se pode, como pedagogo responsável, trair as crianças. Não se pode desconsiderá-las quando se diz que aquele ambiente é de acolhimento e afetividade, ambiente de aprendizagem e espaço de experiências da existência humana. Também seria inadequado didaticamente, por parte do pedagogo, prometer brincar e em seguida ordenar silêncio, quietude e atenção forçada. Essa experiência a criança vive como uma traição, uma violência e brutal falta de respeito, pois as crianças já adquiriram uma quantidade de conversação na rede de conversações culturais fora da escola e sabem distinguir questões de fundo amoroso e afetivo. O emocionar não engana porque não pode ser manipulado, ele antecede todas as outras manifestações como falar, discursar e agir. As crianças o sabem e percebem, e quando surge dor e sofrimento na conversação é porque a presença de sentimentos alheios ou distintos do emocionar e linguajear da biologia do amar estão tomando a coordenação da rede de conversações daquele ambiente. As emoções como configurações se encontram na fluência e na dinâmica do nosso sistema nervoso e do nosso organismo, e o amar como emocionar básico constitui o humano na base do fenômeno social e afetivo.
Em lugar da escola postural, que só se esmera na postura corporal, buscamos uma escola universal, aquela que mostre às crianças e jovens o sentido da vida, tomando como referência a existência cósmica e universal, tal qual a própria vida. Não há fronteiras e limites para essa concepção; portanto, movimento é vida e vida é movimento, e mais: perceber é se-mover e as experiências de movimento ampliam a percepção, assim como colocam em sintonia corpo, movimento e universo. Um sentido de vida para o sentido humano. Que nos alegremos com isso!
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Recebido em setembro/2015
Aceite para publicação em fevereiro/2016
Notas
1 O presente artigo é resultado de um recorte do Relatório de Atividades do Estágio Científico Avançado de Doutoramento, realizado sob os auspícios da CAPES, pelo PDSE – Bolsa Sanduíche, no PPGEF – CDS, da UFSC, Florianópolis/Brasil, como Bolsista no Processo BExt. n. 3370/2015-1, tendo como co-orientador estrangeiro António Camilo Teles Nascimento Cunha e como orientador brasileiro Elenor Kunz.
2 Seguimos aqui a estratégia de Trebels (2006), quando refere a concepção dialógica do movimento humano, segundo a teoria do se-movimentar, apresentando inicialmente o campo gestáltico e em seguida a fenomenologia francesa. Procuramos ampliar principalmente a compreensão dos conceitos de antropologia médica e percepção-movimento para a educação física escolar.
3 Não vamos aqui abordar as derivações denominadas Gestalt-terapia, e menos ainda as implicações da Gestalt no processo de psicologia da aprendizagem escolar.
4 Assim como a antropologia médica passa a conceber a pessoa enferma diferentemente da medicina hegemônica que concebe somente a doença, como se fora possível uma doença sem a presença da pessoa, também no campo da Educação Física a concepção dialógica do se-movimentar passa a conceber a pessoa que se-move, diferentemente da Educação Física hegemônica ou tradicional, que concebe somente o movimento, como se fora possível um movimento sem a presença da pessoa.
5 O conceito de volitivo refere-se ao termo em latim ‘volo’, que quer dizer ‘quero’. A relação do termo encontra-se em ações e fenômenos da vontade, ou seja, voluntários (em espanhol voluntad). Essa é também a faculdade de decidir e organizar o próprio comportamento ou conduta, estando intimamente relacionada ao livre arbítrio, livre determinação ou livre opção de seguir ou recusar uma inclinação ou tendência.
6 Der Geltaltkreis foi escrito em 1939 e na década de 50 foi traduzido na França pelos filósofos Henry Ey e Michel Foucault. O primeiro, psiquiatra, psicanalista e filósofo, desenvolvia na época uma teoria da estrutura de estados de consciência. O segundo foi filósofo, historiador das ideias e teórico social; dedicou-se às teorias que abordavam a relação entre poder e conhecimento e como isso é usado em forma de controle social por meio das instituições sociais, principalmente clínicas de saúde, prisões, conventos e instituições psiquiátricas.
7 O psiquiatra chileno tem estudos de pós-graduação desenvolvidos em medicina psicossomática e história na Universidade de Heidelberg – Alemanha; em neurociências na Universidade de Chicago – EUA; e em psiquiatria na Universidade de Sheffield – Reino Unido.
8 Ver, a esse respeito, em Depraz (2012, p. 40), uma nota do tradutor do artigo, onde diz que o verbo e-mover é uma adaptação francesa. Para todos os efeitos, o verbo em francês fica sendo emouvoir (emover), pois emotionner (emocionar) é mais uma questão coloquial.
9 Éter ou, mais especificamente, Akasha é uma palavra que vem do sânscrito, também pertencente ao hinduísmo, e por diversas correntes místicas. Akasha (ā-ĸā-sha) significa éter: espaço que permeia tudo, originalmente é radiação ou brilho. Na tradição indiana akasha é o primeiro e fundamental dos cinco elementos (além do ar, fogo, água e terra + éter).
10 "No fazer, o movimento humano não será objeto de uma mecânica corporal. Será objeto de uma reflexão dadora de sentido" (Tradução nossa). Aqui é necessário fazer distinção entre ação dadora e doação. No primeiro caso, a ação exige diferença de níveis, de modo que a ação é realizada sem que o recebedor e aquele que dá pertençam ao mesmo círculo existencial, pois o sentido para orientar a ação vem de uma unidade de sentimento que não se encontra no mesmo plano da ação; já no segundo, a ação se dá no mesmo nível, ou seja, ambos pertencem ao mesmo ambiente existencial, como por exemplo uma doação de órgãos, uma doação de alimentos ou uma doação financeira.
11 "Pois não se move o homem, e tampouco o animal, simplesmente por mover-se.… Os organismos se movem para algo e não somente por algo" (Tradução nossa).
12 A esse respeito ver também Baecker (2004), O desenvolvimento das crianças e jovens pelo movimento: Quais são as perspectivas resultantes do desenvolvimento, pelo movimento, para a formação dos professores brasileiros de educação física? A autora aborda aqui a questão da formação da identidade na prática educativa, que pode ser construída nas interações sociais, tanto na escola como nas diversas circunstâncias da vida.