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Revista Portuguesa de Educação
versão impressa ISSN 0871-9187
Rev. Port. de Educação vol.31 no.Especial Braga out. 2018
https://doi.org/10.21814/rpe.14806
ARTIGOS
Dimensões político-epistemológicas do equívoco conservador na educação: A base curricular brasileira no contexto dos currículos nacionais
Political and epistemological dimensions of the conservative misconception in education: the Brazilian common core in the context of national curricula
Les dimensions politiques-épistémologiques d’une erreur conservatrice en éducation : la base curriculaire brésilienne dans le cadre des curricula nationaux
Inês Barbosa de Oliveirai, Maria Luiza Süssekindii
i Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Estácio de Sá (UNESA) e Faculdade de Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
ii Departamento de Didática/CCHS, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRio), Brasil.
RESUMO
Nesse artigo questionamos as políticas de currículos nacionais, seu ideário e possibilidades de “sucesso”. Diante das promessas de iguais aprendizagens, consideramos relevante trazer pesquisas anteriores e conhecimentos que com elas vimos tecendo sobre os equívocos políticos e fragilidades epistemológicas dessas propostas. Recontar os embates que se desenrolaram no Brasil nos últimos anos com foco nas implicações do Golpe de 2016 para as políticas educacionais vem nos permitindo reforçar que os cotidianos, escolares ou não, se tecem numa permanente interlocução entre diferentes instâncias, conhecimentos, valores e possibilidades, como espaçostempos de criação e reinvenção do mundo e não como receptáculos. O texto é uma defesa da educação pública e de seus atores; portanto, uma primeira conclusão possível é a de que pesquisar a vida cotidiana nas escolas se configura como ação políticoepistemológica importante, na medida em que se constitui como um meio de incorporar ao campo do currículo outras possibilidades de compreensão da complexidade que é inerente tanto aos cotidianos escolares quanto aos currículos que neles são criados. Aprendemos, também, com esse tipo de pesquisa, que a vida não é controlável, que currículos nacionais estão fadados ao fracasso e que sua proposição é, além de politicamente excludente, academicamente desprovida de fundamento razoável.
Palavras-chave: Currículos nacionais; Indissociabilidade político-epistemológica; Cotidiano; Educação pública
ABSTRACT
In this article we interrogate the policies of national curricula, their ideals and possibilities of “success”. Facing the promises of equal learning, we consider relevant to bring previous research and knowledge that we have woven with the former about the political misunderstandings and epistemological weaknesses of these proposals. Telling the struggles that have unfolded in Brazil in recent years focusing on the implications of the 2016 Coup d’ État for educational policies has allowed us to reinforce that everyday life, within schools or not, is woven in a permanent interlocution between different instances of knowledges, values and possibilities, as spacetimes of creation and reinvention of the world and not as receptacles. The text is a defense of the public education and its actors. Therefore, a first possible conclusion is that to investigate everyday life in the schools is an important political-epistemological action, since it constitutes a means to incorporate into the field of curriculum other possibilities of understanding the complexity that is inherent both to school everyday life and to the curricula that are created within. We also learn from this type of research that life is not controllable, that national curricula are doomed to failure, and that their proposition is, in addition to being politically excluding, academically devoid of reasonable foundation.
Keywords: National curricula; Political and epistemological inseparability; Everyday life; Public education
RÉSUMÉ
Dans cet article, nous interrogeons les politiques des curricula nationaux, leurs idéaux et leurs possibilités de réussite. Face à des promesses d'apprentissages égaux, nous revenons sur des recherches antérieures et ses résultats, pour apporter des connaissances préalables qui nous permettent d'affirmer que, dans ces propositions, il est possible de trouver des idées politiques fausses, ainsi que des faiblesses épistémologiques. Raconter les affrontements qui ont eu lieu au Brésil au cours des dernières années, particulièrement sur les conséquences du Coup d'Etat de 2016, pour les politiques éducatives, nous a permis de renforcer que le quotidien des écoles et ses pratiques sont tissés dans un dialogue permanent entre les différentes instances, les connaissances, les valeurs et les possibilités, comme des espaces de création et de réinvention du monde et non comme des réceptacles. Le texte est une défense de l'éducation publique et de ses acteurs. Par conséquent, une première conclusion possible est celle qui dit que la recherche de la vie quotidienne dans les écoles configure une importante action politique-épistémologique, dans la mesure où elle constitue un moyen d'intégrer le champ d'autres possibilités de comprendre la complexité inhérente à la vie quotidienne de l'école et aux curricula qui y sont créés. Nous avons appris aussi, avec ce genre de recherche, que la vie n'est pas contrôlable, dont les programmes nationaux sont voués à l'échec et que sa proposition est politiquement productrice d'exclusion sociale et académiquement dépourvue de fondement raisonnable.
Mots-clé : Curricula nationaux ; Indissociabilité politique-épistémologique ; Vie quotidienne ; Éducation publique
Introdução
A discussão em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil tomou vulto em 2014, ainda no primeiro governo da Presidente Dilma Rousseff – que seria em 2016 derrubada por um golpe político-jurídico-midiático (Souza, 2016) –, na perspectiva de que seria preciso formular e apresentar uma base nacional comum para os currículos como meio de assegurar ao Ministério da Educação (MEC), ou seja ao governo federal, o protagonismo da política curricular no Brasil. Se, por um lado, acreditavam seus defensores que o controle dos currículos (das ensinagens) era uma “arma” de construção do pensamento crítico, dos comportamentos cidadãos e de uma sociedade justa e democrática, por outro, identificavam como uma ameaça às redes públicas os inúmeros sistemas privados de ensino que penetravam nos municípios e estados do país, comprados de institutos, fundações e ONG por secretarias de educação que sentiam falta de uma melhor definição, mais precisa e mais eficaz, do que deveria ser feito nas salas de aula para assegurar a aprendizagem e o sucesso escolar dos estudantes do sistema público. Seria, portanto, uma necessidade política.
Em audiência pública no Conselho Nacional de Educação (CNE)1 , a Professora Paula Louzano apresentou sua tese de doutorado (Louzano, 2007) que comparava currículos nacionais de sete países que haviam optado por esse tipo de organização do seu sistema de ensino. A professora, especialista em ação estratégica, confessou, quando inquirida, desconhecer os debates curriculares desenvolvidos no Brasil. Sua resposta evidenciou a pertinência de nossa preocupação com sua presença no cenário do CNE, falando sobre um modelo de política curricular – o da unificação nacional do currículo – que nos parecia fora de contexto, considerando todo o trabalho realizado em anos anteriores pelo MEC em discussões e negociações plurais para a definição das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), então em vigor.
Outro aspecto importante do debate, na ocasião, era a questão do modo como essa base se organizaria, a partir de documento produzido anteriormente e que se estruturava em torno de objetivos de aprendizagem, o que nos parecia muito bom, pois a proposta deslocaria o foco de conteúdos como meta para a noção de conteúdos como meio, para assegurar o direito de aprender dos estudantes. Por outro lado, nosso desacordo com a proposta devia-se, sobretudo, ao fato de que entendíamos que as Diretrizes Curriculares Nacionais eram o documento curricular vigente no país. Sustentávamos essa afirmação no entendimento de que elas haviam sido democraticamente elaboradas, em governos anteriores, existiam e precisavam de tempo para que fossem avaliadas e reformuladas ou não. Portanto, seriam suficientes. O contra-argumento era de que, para as autoridades locais, não bastariam. Recorrentemente, argumentavam que professores/as precisavam de manuais de ensino, que as diretrizes eram vagas e que seria necessário algo mais preciso e detalhado.
Chefiada por uma colega pesquisadora, a Professora Beatriz Luce, a Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC seria parceira das associações em presença – ABdC (Associação Brasileira de Currículo) e ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação) – na reflexão sobre o que fazer para assegurar uma política de currículo comprometida com os direitos dos estudantes da escola pública, em sua imensa maioria oriundos de classes sociais desfavorecidas. Também demonstravam preocupação com “os currículos” que já existiam e aconteciam nas redes e escolas, que não deveriam ser simplesmente ignorados, mereciam ser considerados.
A partir de 2015, num cenário sendo modificado pela intensidade do processo eleitoral que levou a Presidente ao seu segundo mandato, em condições de tensão especialmente relevantes e com a hegemonia da Frente Brasil Popular, representada pela Presidente fragilizada, a gestão do MEC foi inteiramente modificada. O Professor Manuel Palácios assumiu a SEB e montou uma equipe de “especialistas” para a elaboração da BNCC, apoiado em um discurso de que a BNCC estaria sendo democraticamente formulada por contar com professores de todos os níveis de ensino e de todas as regiões do país. Omitia em seu discurso o fato de que cada uma das equipes disciplinares, num total de 29, era composta por apenas quatro docentes. Ou seja, a “democraticidade” do conjunto escondia uma fragilidade real de equipes pequenas, trabalhando isoladamente, apenas em torno dos conteúdos de suas respectivas disciplinas. Chamávamos a atenção para o fato de que o debate curricular não estava sendo feito nas escolas, nem com as escolas.
A primeira versão (oficial e publicada) da BNCC nos prometia embates. Antes mesmo de sua publicação, em reunião realizada em São Paulo, ainda em 20152 , ao ser inquirido sobre onde estavam os especialistas do campo do Currículo na formulação da BNCC, o Professor Manuel Palácios não teve dúvidas para responder: “Não estão, porque não estamos tratando de currículo, mas sim de ensino!”. Completou dizendo que a importância das aprendizagens dos/as estudantes da nação não poderia ficar submetida a uma discussão do tipo “blá blá blá” como aquela que é feita no campo da teoria do currículo. Por um momento estupefatas, logo compreendemos nosso lugar no debate: o de nos opormos à BNCC, ao seu processo de formulação e às metas que assumia. Na linha advogada por um dos maiores opositores das políticas conservadoras, mercadológicas e de unificação curricular, desde o início dos anos 2000, nos EUA, William Pinar, defendemos que “a teoria do currículo rejeita a atual reforma do ensino ‘inspirada no mundo dos negócios’, com sua ênfase em notas de provas padronizadas, análogos acadêmicos do produto final das empresas, isto é, ‘lucros’” (Pinar, 2008, p. 140-141). Isso porque entendemos que currículo é um espaçotempo de reescrita de si e do mundo, relaciona-se “à descoberta e à articulação, para si e para os outros, do significado educacional das disciplinas escolares” (Pinar, 2008, pp. 140-141) para as pessoas e para a sociedade, na história.
Compreendemos, nas tantas reuniões, audiências e mesas redondas realizadas na ocasião, que a BNCC assumia, chamando de direito de aprendizagem, determinados conjuntos de conteúdos como obrigatórios para estudantes de todo o território nacional. Ou seja, chamava de direito o que era obrigação. Definindo, ainda, esses conteúdos como aqueles que integrariam as avaliações nacionais em larga escala, a proposta da BNCC reafirmava sua intencionalidade padronizadora, controladora e, portanto, antidemocrática. Foi nesse período que produzimos e formulamos nossos primeiros documentos contra a BNCC, que questionamos suas premissas político-epistemológicas, sua lógica estrutural e suas metas.
A presença do Professor Luiz Carlos de Freitas nas discussões foi de particular importância, pelo tanto que contribuía com informes e reflexões sobre o que vinha ocorrendo em países como os EUA – cuja base (common core) vinha já na ocasião sendo questionada pelos seus próprios elaboradores –, bem como sobre a presença relevante de interesses mercadológicos – do capital, portanto – na implantação dos currículos nacionais em diferentes países. Alimentando com dados quantitativos e financeiros o seu blog, o Professor nos ajudava a demonstrar que, longe de se tratar de uma proposta pedagógica para a melhoria da qualidade do ensino nos diferentes países, a elaboração e implantação de bases curriculares nacionais atendia aos interesses utilitaristas do capital, saindo “bem a gosto de liberais e conservadores”3 . No Brasil, as alianças com o capital eram bastante nítidas já na ocasião: a Fundação Lemann – pertencente ao homem mais rico do Brasil –, o Instituto Ayrton Senna e o CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação) – do Banco Itaú – eram e permanecem sendo algumas das entidades “parceiras” do governo na divulgação publicitária da base, na sua elaboração e, atualmente, na sua implementação. Em artigo da Carta Capital baseado em textos e depoimentos também de Luiz Carlos de Freitas e Elizabeth Macedo, Alexandre Freitas (2016) denunciava uma educação banqueira:
Com maior ou menor protagonismo, estão entre os parceiros: Itaú - Unibanco, Bradesco, Santander, Gerdau, Natura, Fundação Victor Civita, Fundação Roberto Marinho, Camargo Corrêa, Fundação Lemann e Todos pela Educação e Amigos da Escola. Algumas vezes financiados pelas grandes fundações, tais encontros reuniam agentes privados e públicos (MEC, Conselho Nacional de Educação, Conselho Nacional de Secretários de Educação e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação). Dentre os agentes privados despontou, com protagonismo, a Fundação Lemann, de Jorge Paulo Lemann, um dos controladores da cervejaria Anheuser-Busch InBev e do fundo de participações 3G Capital (dono do Burger King, Americanas, Submarino, Shoptime e da Heinz).
A questão que se coloca é: por que uma elite financeira estaria interessada em promover iniciativas na educação em âmbito nacional?
A professora Elizabeth Macedo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, nos ajuda na resposta. Tais agentes políticos privados estão ávidos por incorporar vigorosamente à educação pública uma lógica empresarial contemporânea. A escola como empresa. Aliás, dentro dessa lógica, toda atividade humana organizada pode ser uma empresa. E uma empresa visa resultados e esses resultados devem ser medidos.
A partir do golpe de 2016, identificamos uma sucessão de medidas que, para nós, representam (e almejam) um desmonte da educação pública, democrática, gratuita, laica e de qualidade para todos. Assistimos ao aprofundamento da defesa dos interesses do mercado, da promiscuidade entre o governo e as fundações e entidades privadas e, sobretudo, ao aprofundamento do tecnicismo como epistemologia fundante da concepção de Educação que anima a BNCC.
Interrogando a inspiração político-epistemológica conservadora da BNCC
As discussões que ainda hoje se desenvolvem em torno da BNCC, em que se busca pensar em meios de nela intervir para sua melhoria, nos parecem extemporâneas e fadadas ao fracasso. Isso porque compreendemos como irreconciliáveis suas premissas com a busca de uma educação democrática, pública, laica, gratuita e de qualidade social para todos: suas concepções de conhecimento, de educação e de currículo. Entendemos que a BNCC tem esses pecados de origem, nos quais nos detemos a seguir.
Em primeiro lugar, a concepção de educação da BNCC compreende o ato educativo como algo que começa no ensino e depois chega à aprendizagem. Concepção ensinante, reducionista e desrespeitosa com as trajetórias de vida dos estudantes que a ele são submetidos. Essa concepção define que o que cabe ao estudante no exercício do seu direito de aprender é vir a conhecer apenas aquilo que a norma curricular prevê ensinar. Atribuindo relevância aos conteúdos dessa norma e a mais nenhum outro tipo de conhecimento, a BNCC reduz o direito de aprender à obrigação de aprender aquilo que dela consta e nada mais, cassando o direito de serem respeitados naquilo que são, sabem e pensam os estudantes. Corolário dessa crença e de seus efeitos, já citados, é o fato de que ela ignora a existência de conhecimentos anteriores e externos à escolarização, fundantes dos modos de compreender o mundo e de agir sobre ele desses mesmos estudantes. Assim, ao desrespeitar esses saberes anteriores com os quais os estudantes chegam às escolas, assume como ignorância a bagagem histórica, social e cognitiva destes, e, ao fazê-lo, a invisibiliza e torna inexistente (Santos, 2004), transformando sujeitos de conhecimentos em sujeitos de ignorância, e contribuindo, com isso, para a hegemonia do pensamento conteudista cientificista sobre outras compreensões de educação, mais plurais epistemologicamente, mais dialógicas e, portanto, mais democráticas.
Ou seja, esse primeiro aspecto da BNCC, sua concepção de educação como processo de ensino formal/aprendizagem de conteúdos permite reforçar o ideário social e epistemológico hegemônico, contribuindo para a reprodução das hierarquias sociais, ao mesmo tempo em que busca controlar o que devem saber todos os cidadãos do país, independentemente de condição sociocultural, política, econômica ou individual.
Entendemos, com Boaventura de Sousa Santos (2004), que essa concepção de educação se fundamenta no ideário moderno de uma escola capitalista, ocidental, burguesa, fundada na ciência moderna, na absolutização do saber formal como única forma de saber e na crença de que cabe à escolarização ‘elevar’ o educando da ‘cultura popular’ e dos conhecimentos do senso comum à alta cultura e aos conhecimentos científicos. É um modelo de escola que promove a inferiorização discriminatória dos diferentes, universalizando particularismos, tanto na estruturação dos programas e conteúdos de ensino quanto na estruturação do próprio sistema. É um modelo comprometido com o projeto capitalista de progresso calcado no desenvolvimento ilimitado, crescentemente competitivo e desumanizante, viabilizado pela melhoria de produtividade e da competitividade de produtos que negligencia necessidades, possibilidades e desejos humanos.
É esse modelo de escola herdado da modernidade que serve de referência à BNCC, negligenciando tudo o que existe nos fazeressaberes cotidianos presentes nas escolas e operando com base numa fé infinita na ciência moderna, em sua objetividade, neutralidade e, sobretudo, na sua capacidade de oferecer respostas satisfatórias aos problemas sobre os quais se debruça, mesmo ignorando variáveis relevantes, porque não quantificáveis, especificidades locais, porque não padronizáveis, e necessidades humanas, porque não domáveis. Desconsiderando conhecimentos e a própria inteligência dos estudantes, contribui para uma visão corrompida de um docente manipulador, ideologizante, como será pintado pelo “Escola Sem Partido”4 , outro dos grupos que aposta alto no leilão da BNCC.
Outro problema original da BNCC está na sua concepção de currículo que, embora seja decorrente da concepção de educação à qual já nos referimos, possui especificidades que valem discuti-la. É uma concepção de currículo que consideramos ultrapassada, de viés tecnicista, conteudista e disciplinarista. Essa concepção, ainda considerada válida pelo senso comum e fortemente presente na sociedade, formulada há cerca de cem anos (Lopes & Macedo, 2014; Silva, 1999), não encontra, hoje, entre os educadores em geral, e ainda mais fortemente nos pesquisadores do campo, nenhum respaldo. Entre os estudiosos do campo, embora haja imensas discordâncias e divergências, podemos dizer que a imensa maioria entende que os processos de ensino-aprendizagem, ou aprendizagemensino, como preferimos (Oliveira, 2013), não podem ser reduzidos nem compreendidos em sua complexidade a partir da ideia da transmissão “objetiva” de conteúdos estanquizados, disciplinarmente organizados. Entendemos que as aprendizagens não decorrem do “ato ensinante” de conteúdos e a formação dos sujeitos não se dá por meio da aprendizagem de conteúdos estanquizados, dissociados uns dos outros a partir de disciplinas fechadas em si mesmas. Essa concepção curricular que se faz presente na BNCC é, portanto, uma concepção condenada pelos estudiosos do campo, que vêm descobrindo e demonstrando, por meio de incontáveis pesquisas, que os processos de formação e as aprendizagens dos sujeitos se vinculam a múltiplos fatores. Os diferentes modos de conhecer e de estar no mundo e as relações que estabelecem com os conhecimentos escolares passam pelos ambientes mais ou menos propícios de aprendizagem, tanto considerados em sua dimensão física, quanto social, em processos que se constituem como redes de conhecimentossignificações (Alves, Caldas, & Brandão, 2015) tecidas em função de possibilidades, desejos, dificuldades e limites de todas essas variáveis. Ou seja, é uma concepção condenada porque sabidamente equivocada.
A complexificação dos estudos curriculares pela inserção de novos e relevantes elementos de análise das variáveis intervenientes na sua produção e compreensão foi apresentada em livro, hoje considerado clássico na área (Silva, 1999). O autor alertava, na ocasião, para essa evolução na qual ele identificava três grupos de tendências: as conservadoras ou não críticas, as críticas e as pós-críticas, todas elas nuançadas por múltiplas vertentes, conforme comentamos anteriormente (Oliveira & Süssekind, 2017). A BNCC aparece, para os profissionais da área, como tributária da primeira tendência, que surge no início do século passado com os primeiros estudos de Bobbit, Tyler e outros e expressa um modo de pensar e definir o currículo como o conjunto de conteúdos de ensino das diversas disciplinas para cumprir um projeto nacional de formação de pessoas aptas ao trabalho.
O movimento escolanovista renova e desenvolve essa compreensão, tornando mais completa a proposição, introduzindo no debate preocupações relacionadas à qualidade da aprendizagem, aos métodos e instrumentos de ensino e de avaliação, aos objetivos a serem atingidos, sem modificar substantivamente as concepções anteriores, como atestamos em publicação anterior sobre a questão:
Em que pesem as muitas diferenças de perspectiva entre uns e outros, todos esses iniciadores dos debates curriculares entendiam o currículo de modo técnico e tecnicista, subtraindo-lhe aspectos de caráter mais político, ideológico ou cultural, mesmo quando pensavam os estar considerando, como é o caso de muitas propostas escolanovistas.Identificadas como diferentes versões da pedagogia liberal, essas leituras e concepções curriculares podem ser associadas ao pensamento cientificista da modernidade e às ideias de neutralidade e objetividade dos conhecimentos “acumulados pela humanidade” como base das diferentes disciplinas e, portanto, da elaboração dos currículos escolares. Os críticos do pensamento liberal moderno não demoraram a identificá-lo nessas proposições sobre o currículo e desenvolveram críticas diversas a elas, de acordo com seus diferentes interesses epistemológicos e políticos. (Oliveira, 2012, p. 66)
Soa, portanto, no mínimo estranho que, ignorando todo esse conhecimento produzido no campo nos últimos quarenta ou cinquenta anos, no Brasil e no exterior – conforme aprendemos com Silva (1999) (e aprofundamos em Oliveira & Süssekind, 2017) –, o MEC proponha uma base nacional “tradicionalista”, sabidamente retrógrada, baseada num ideário educacional superado, considerado quase unanimemente como incapaz de contribuir para a construção de uma educação democrática, plural, socialmente inclusiva e respeitosa da diversidade e, por isso, de qualidade social.
Por essas duas razões principais, entendemos que não há salvação possível para a BNCC, pois sua premissa estruturante é equivocada, testemunha a compreensão conservadora tradicionalista/moderna da escola e do fazer pedagógico, entendida como espaçotempo de transmissão dos chamados “conhecimentos acumulados pela humanidade” a serem aprendidos cumulativamente, “adquiridos” pelos alunos, que, ao repeti-los tais e quais, se tornam sabedores daquilo de que necessitam para “ingressar” no mundo adulto, na vida profissional. Os questionamentos epistemológicos e políticos de caráter filosófico, sociológico, científico e outros que essa visão vem recebendo da parte de inúmeros estudiosos, autores e intelectuais, nos últimos cinquenta ou sessenta anos, são ignorados pelas políticas de unificação dos currículos nacionais, em geral, e, em particular, por essa BNCC, que representa, desde suas versões iniciais, um grande atraso neoconservador da política curricular brasileira.
Ainda a destacar nessa avaliação: a BNCC se considera não como o currículo, mas como uma base que configuraria 60% do conteúdo, supostamente abrindo espaço para que os sistemas locais insiram 40% de conteúdos próprios, de modo a assegurar a presença de suas especificidades e necessidades. No entanto, mais uma vez, a proposta evidencia a compreensão tecnicista de currículo e positivista de conhecimento e a intencionalidade de controle e homogeneização das aprendizagens:
A BNCC é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica. (Brasil, 2017, p. 7)
Ao considerar os conteúdos escolares quantitativamente apenas, a proposta desconsidera que existem fundamentos epistemológico-políticos dos conhecimentos que interditam complementações, muitas vezes desejadas e necessárias. Um exemplo disso seria o ensino da História, que, uma vez estruturado a partir de um ponto de vista eurocêntrico, não pode ser complementado com 40% de visão indígena ou afro, ou local. Ou seja, uma vez afirmada uma afiliação político-epistemológica hegemônica para a abordagem dos conteúdos, todas as outras se tornam com ela incompatíveis e qualquer complementação quantitativa será insuficiente para devolver à proposta curricular sua necessária pluralidade, caso o respeito aos diferentes conhecimentos e modos de estar no mundo seja o objetivo, como defendemos (Oliveira, 2012) com base na ecologia de saberes, conforme formulada por Santos (2004):
A pluralidade e heterogeneidade de conhecimentos e ignorâncias que estão presentes e se enredam na ecologia de saberes, associadas às aprendizagens e desaprendizagens que caracterizam os processos, por meio dos quais tecemos nossas redes de conhecimentos, indicam que, ao contrário do que supõe a linearidade da concepção moderna de conhecimento/ignorância, a ignorância não é necessariamente um ponto de partida, podendo ser ponto de chegada, resultado de esquecimentos ou desaprendizagens, que fazem parte dos processos de aprendizagens recíprocas existentes nos diálogos entre diferentes conhecimentos na perspectiva da ecologia de saberes. A utopia é a de que sejamos capazes de, neste diálogo, não substituir os conhecimentos por outros, mas complexificar nossas redes com mais e mais diálogos produtores de interconhecimentos – conhecimentos plurais, produzidos dialogicamente, que incorporem e criem modos de intervenção sobre o mundo, mais do que possibilidades de representá-lo. (Oliveira, 2012, p. 25)
Mais uma vez, atestamos o caráter antidemocrático da estrutura da BNCC e, portanto, sua impossibilidade de atender aos princípios da educação brasileira elencados na Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (Brasil, 1996) e defendidos por educadores de todo o país.
Finalmente, entendemos ser importante marcar que, ao contrário do que supõem alguns, nossa crítica veemente e rejeição à BNCC não significa oposição a qualquer proposta organizadora do sistema educacional brasileiro, mas a defesa de que as DCN produzidas anteriormente nos parecem mais apropriadas para assegurar o respeito às especificidades locais, ao mesmo tempo em que asseguram ao Estado o protagonismo necessário na condução da política curricular do país. E sem desvalorizar o chão da escola.
As Bases Nacionais nos outros países: incontáveis pesquisas e incontáveis fracassos
Parte dos defensores, consultores e mentores das reformas de unificação curricular, no modelo BNCC, engrossa hoje de uma legião de arrependidos liderada por ninguém menos que a musa inspiradora do common core estadunidense, Diane Ravitch. Defensora dos testes padronizados, da competição e da responsabilização de docentes e gestores escolares pelos resultados atingidos pelos estudantes, maestra da charterização do sistema de educação pública nos EUA, ela hoje culpa o common core (currículos unificados nacionais) pela falência de seu projeto. Em entrevista concedida na época do lançamento do livro (2016) em que faz um mea culpa diante dos terríveis resultados da política do common core, Ravitch5 admite abertamente que
a busca de padrões nacionais, currículo nacional e testes nacionais é um beco sem saída. Parece haver uma suposição de que, se cada criança for exposta exatamente ao mesmo material, ao mesmo tempo, as lacunas de desempenho entre crianças de lares ricos e lares pobres serão completadas. Se o currículo estiver acima das inteligências dos alunos, e se os testes forem mais difíceis, o sucesso escolar aumentará. Eu agora acho que tudo isso é um absurdo. (traduzido do inglês pelas autoras)
Leslie Le Grange, também arrependido, narrou6 o processo de unificação das 19 matrizes curriculares na África do Sul, dando particular destaque ao fracasso da política no sentido de reduzir as desigualdades educacionais. Nos EUA, em 2017, os currículos nacionais já haviam sido abandonados como política educacional pelos seus resultados avassaladores em relação à qualidade, credibilidade e equanimidade do sistema. Desde 2009, os fracassos retumbantes do common core americano são comentados como parte da “mais calorosamente contestada legislação educacional do país”, apesar de sua ampla adoção7 .
Nos estados de Illinois e Wisconsin, precursores da unificação, não só os resultados dos estudantes não melhoravam, como houve grande número de demissões de professores, causando longas greves, desgastes e, de certo modo, estimulando a charterização. O que produziu mais desigualdade do que havia antes. Todd A. Price vem pesquisando essa reforma desde seu início e narra o imenso desgaste da classe de professores com as políticas de testes e treinamentos. Para ele, “o maior problema com as Normas Comuns é a forma com que corporações, na cama com o governo, estão administrando a reforma educacional e, no processo, deixando de lado as vozes dos alunos, professores e pais” (Price, 2014, p. 15). Denuncia ser um processo de privatização da educação pública baseado em práticas como “pagamento por mérito, e vigilância nas escolas” (p. 15).
Para Price, a unificação curricular não tem como objetivo senão “um currículo nacional, mas com corporações ao centro do governo” (Price, 2014, p. 16). Por isso, sob “tais condições, não é surpreendente que a promessa do programa de criar alunos que serão competitivos no mercado global de trabalho” (p. 15) soe oca, fazendo-o questionar para quem esse currículo seria comum.
Na Suécia, ensinar democracia através de exercícios unificados da nova Base Nacional mostra-se muito pouco democrático, já que os significados dados pelos estudantes são diferentes dos oferecidos nos exercícios, o que os faz se sentirem péssimos cidadãos, já que não possuem o entendimento comum desejado sobre democracia. Em sua pesquisa, Silvia Edling (2014) avalia os impactos da unificação curricular na formação de professores, quando apenas três manuais passaram a ser utilizados no ensino de didática. Preocupada com o quanto o currículo nacional sueco é pouco sueco, ela denuncia o reformismo globalizante conservador e mercadológico:
O que se percebe globalmente é uma crescente unificação de políticas mundiais, indicando que estruturas e conteúdos educacionais estão se tornando cada vez mais similares ao redor do mundo. A estas tendências, nos referimos como um Global Education Reform Movement (GERM) – ou Movimento Global de Reforma Educacional – (Sahlberg, 2011), influenciado por ideias neoconservadoras e neoliberais, que determina o propósito e a direção da educação (Apple, 2013; Stephen J. Ball, 2008; Stephen J. Ball, Goodson, Maguire, 2007). GERM também encorajou países a definir currículos comuns para a educação (cf. Priestley & Biesta, 2013b; Ross, 2000), e a Suécia não é exceção. Apesar de vários países abordarem o currículo nacional de forma diferente (Priestley & Biesta, 2013a), a tendência é traduzir o conteúdo do currículo para englobar desenvolvimento individual e instrumentalismo econômico (Yates & Collin, 2010). (Edling, 2014, p. 1636)
Nesse sentido, Edling mostra o perigo de tratar a violência como algo unidimensional e de único sentido, como um conteúdo neutro e universal nos livros didáticos. Para ela, “descrever pluralidade como perigoso indica algo diferente do que descrevê-la como desejável” (Edling, 2014, p. 1643) e isso denuncia, não só a impossibilidade de neutralidade, como o conservadorismo e o ataque à democracia componentes do movimento reformista.
Discutindo a inviabilidade de uma base e enfrentando a ideia de conhecimento poderoso, Macedo (2016) traz o caso australiano para interrogar “a percepção de que um currículo nacional padronizado vai resultar em maior acesso, equidade e resultados educacionais para todos os alunos” (Harris-Hart, 2010, p. 313, cit. em Macedo, 2016, p. 51). Sobretudo, questiona os brados de sucesso dessa reforma, trazendo idas e vindas e insatisfações de todas as partes:
A fala do ministro da Educação da Austrália que liderou a revisão explicita a ausência de consenso sobre o que deve ser ensinado: “o currículo de história não reconhece o legado da civilização ocidental e não dá a proeminência devida a importantes eventos da história australiana, como o Anzac Day”. (Macedo, 2016, p. 52)
Vale notar a similar e significativa insatisfação com os currículos de História na África do Sul e no Brasil. No caso australiano, também, a reforma que unificou os currículos ocorre no contexto de uma “virada conservadora” (Macedo, 2016, p. 52) e seus críticos destacam a pressa e a pouca participação das comunidades escolares adotadas como metodologia, tal qual chamaram a atenção Price, no caso dos EUA, e Edling, no caso sueco, e “como costuma acontecer no Brasil, o tempo para a discussão foi insuficiente para se fazer uma análise mais profunda da temática” (Macedo, 2016, p. 52). Também na Austrália foi relevante a “preocupação em relação ao efeito da padronização curricular sobre a agência do professor e sobre seu papel ativo como mediador (recontextualizador) das políticas” (Briant & Doherty, 2012, cit. em Macedo, 2016, p. 52).
Outros pontos poderiam ser trazidos para questionar os currículos nacionais e entendemos que é inevitável sublinhar seu caráter internacional, globalizante. Portanto, se o objetivo é melhorar o desempenho dos estudantes em testes comparativos internacionais como o PISA, seremos obrigados a reconhecer que alguns desses países listados de fato melhoraram, pelo menos em parte, seus resultados. Isso pode parecer promissor; contudo, no tocante à redução das desigualdades educacionais, colhemos os piores resultados relacionados a essas políticas. Reconhecendo os currículos nacionais, unificados, homogeneizantes, como sendo promessas ilusórias, Macedo (2016) assume que “aqueles que discordamos da inevitabilidade de bases comuns nacionais… sabemos que o mercado não pode prescindir de estratificação, mesmo que esconda essa necessidade” (p. 63). As pesquisas que conhecemos, tal qual no caso australiano, apontam, que
em termos de diminuição das desigualdades educacionais, os resultados não são tão animadores. Estudos realizados por lá parecem chegar à mesma conclusão que fez Ravitch (2013) iniciar sua campanha contra o Common Core americano, a de que a centralização curricular (e sua relação com a avaliação) tem aumentado as desigualdades em vez de diminuí-las. (Macedo, 2016, p. 53)
Por uma outra compreensão de currículo: processos de tessitura de conhecimento nos estudos do cotidiano
Defendemos a ideia certeauniana de que cada sujeito interfere e modifica os produtos e regras com os quais mantém contato, em virtude das especificidades dos modos de entender, pensar, pretender e poder, diferentes uns dos outros. Quando desenvolvemos nossa reflexão em torno de produtos materiais, é fácil perceber essas operações cotidianas em simples observações do modo como cada sujeito organiza seus telefones, computadores ou bolsas de mão. Os mesmos produtos são “personalizados” conforme desejos e possibilidades de diferentes usuários. Essas formas específicas de lidar com produtos e regras fazem com que, nas relações que estabelecem com normas – como aquelas definidas pelas políticas educacionais em geral, e curriculares em particular –, os diferentes sujeitos as modifiquem, em função daquilo que são, pensam, percebem, desejam, etc.
Ou seja, na sua efetividade cotidiana, as regras só ganham existência por meio de exceções, sendo que algumas dessas exceções são transgressões. Tudo o que existe é específico, conforme expresso no diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan. abaixo, apresentado por Italo Calvino em seu Cidades Invisíveis (2000):
– De agora em diante serei eu a descrever as cidades – disse o Kan. – Tu nas tuas viagens verificarás se existem.
Mas as cidades visitadas por Marco Polo eram sempre diferentes das pensadas pelo imperador.
– Contudo eu tinha construído na minha mente um modelo de cidade de que deveriam deduzir-se todos os modelos de cidades possíveis – disse Kublai. – Contém tudo o que corresponde à norma. Como as cidades que existem se afastam em grau diverso da norma, basta-me prever as exceções à norma e calcular as combinações mais prováveis.
– Também pensei num modelo de cidade de que deduzo todas as outras – respondeu Marco. – É uma cidade feita só de exceções, impedimentos, contradições, incongruências, contra-sensos. Se uma cidade assim é o que há de mais improvável, diminuindo o número dos elementos anormais aumentam as probabilidades de existir realmente a cidade. Portanto basta que eu subtraia exceções ao meu modelo, e proceda com que ordem proceder, chegarei a encontrar-me perante uma das cidades que existem, embora sempre como exceção. Mas não posso fazer avançar a minha operação para além de um certo limite: obteria cidades demasiado verossímeis para serem verdadeiras. (p. 71)
Com relação aos cotidianos das escolas – e universidades –, o que assistimos é a uma pluralidade de modos de dar aula, de abordar os estudantes e os conhecimentos, conforme magistralmente evidenciado em tese recentemente defendida por Nolasco (2018). O trabalho do autor não deixa dúvidas de que na aula reside a riqueza vivenciada em processos de formação/escolarização, seja por formadores, seja por formandos, que aprendem uns com os outros, transformando permanentemente suas redes de conhecimentos, mais do que acumulando ou transmitindo conhecimentos que os precederiam e transcenderiam, sem mudanças ou intervenções. A observação e acompanhamento dos cotidianos nos ensinam que as aulas ministradas por diferentes professores são distintas umas das outras – mesmo quando os conteúdos são os mesmos. As aulas dos mesmos professores em turmas diferentes também são distintas, o modo como os alunos se relacionam com os estilos docentes e suas diferenças é igualmente plural, e é positivo para a formação, em todos os níveis, exatamente porque coloca formandos e formadores diante da realidade da diferença, da pluralidade do mundo e da complementariedade entre os diferentes, fazendo dos educandos educadores. Nenhuma novidade nessa afirmação, mas sim na atenção que entendemos ser necessário dar a ela.
Quando nos dedicamos a estudar a vida cotidiana, partindo da ideia de que as realidades sociais são complexas e algo “desorganizadas”, além de dinâmicas e provisórias, aceitamos como um seu corolário que, nos diferentes espaçostempos cotidianos de prática social, dentre os quais incluímos as escolas e as universidades, muitas práticas sociais não enquadráveis naqueles padrões e parâmetros da “ciência” estão em andamento. Só o “mergulho” (Alves, 2008) no cotidiano permite o acesso, mesmo que parcial, a práticas que desinvisibilizam possibilidades potenciais inscritas naquilo que existe, permitindo vislumbrar possibilidades dessas realidades se tornarem mais do que aquilo que já são (Santos, 2004).
Isso significa dizer também que é impossível reduzir a vida cotidiana aos seus elementos controláveis, organizáveis e quantificáveis em função das permanências que nela encontramos, como pretendeu fazer a ciência moderna. Enredamentos dinâmicos e provisórios tornam o cotidiano inaprisionável em leituras definitivas ou em projetos que, autoritariamente, pretendem controlá-lo. A invisibilidade de alguns de seus aspectos, causada tanto pelos processos de invisibilização do qual é “vítima”, quanto pelos limites dos que o observam (Oliveira, 2005), nos ensina que:
Existe, portanto, fora daquilo que à ciência é permitido organizar e definir em função de estruturas e permanências, uma vida cotidiana, com operações, atos e usos práticos de objetos, regras e linguagens, historicamente constituídos e reconstituídos de acordo e em função de situações, de conjunturas plurais e móveis. Há maneiras de fazer (caminhar, ler, produzir, falar), maneiras de utilizar que se tecem em redes de ações reais, que não são e não poderiam ser mera repetição de uma ordem social preestabelecida e explicada no abstrato. Desse modo, podemos afirmar que a tessitura das redes de práticas sociais reais se dá através de usos e táticas dos praticantes, que inserem na estrutura social criatividade e pluralidade, modificadores das regras e das relações entre o poder da dominação e a vida dos que a ele estão, supostamente, submetidos. E isto acontece no cotidiano. (p. 44)
A vida cotidiana é complexa, enredada, imprevisível e incontrolável, e os estudos do cotidiano buscam evidenciar os limites e fragilidades de propostas normatizantes que desconsideram essas complexidade e indissociabilidade entre as diferentes instâncias, pretendendo controlar a realidade social, selecionando e engessando os aspectos considerados mais relevantes, isolando-os do conjunto no seio do qual eles se tecem e ganham sentidos. Ao entendermos a vida cotidiana como espaçotempo complexo, enredado, no qual o sistema social, as normas e regras de interação social ganham sentidos diferenciados em função dos modos como os praticantes da vida cotidiana agem, aproveitando as ocasiões, e usam, de modo próprio, as regras às quais estão supostamente submetidos, entendemos, igualmente, que não é possível considerar a existência de um cotidiano vivido fora das estruturas sociais, regras e valores nos quais ele se inscreve (Oliveira, 2005), ao mesmo tempo em que também não seria razoável compreendê-lo fora das ações reais dos sujeitos que nele vivem. Há, portanto, uma interlocução permanente entre norma e uso, entre limites e possibilidades, raízes e opções (Santos, 2001) que, entendidas como dimensões que se interpenetram e modificam permanentemente, exigem repensar algumas das ideias hegemônicas que pensam e preconizam prescrições a serem aplicadas e controladas externamente.
Aprendemos com a modernidade a acreditar que essas questões da vida cotidiana, sabidas e atestadas por todos, são irrelevantes (cf. Alves, 2000), desvios em relação ao que realmente importa num modelo idealizado, bom para todos, definido por percepções macroscópicas, sistêmicas, de como as coisas deveriam ser, iguais para todos. No entanto, na realidade tudo o que acontece é único, é diferente de todos os outros acontecimentos.
Constatar que os cotidianos das salas de aula são espaçostempos complexos em que redes de sujeitos e de conhecimentos/valores/práticas interagem, transformando-se uns aos outros permanentemente, nos ajuda a perceber a importância de considerá-los e interrogá-los para compreender aquilo que se passa nas escolas, os processos reais de aprendizagemensino (Oliveira, 2013), as criações curriculares cotidianas (Oliveira, 2012).
Os currículos pensadospraticados são criação cotidiana dos praticantespensantes do cotidiano escolar, por meio de processos circulares8 em que se enredam conhecimentos, valores, crenças e convicções que habitam diferentes instâncias sociais, diferentes sujeitos individuais e sociais em interação. Assim, falar em currículo como criação cotidiana pressupõe, entre outras coisas, que as diferentes formas de tecer conhecimentos – que estão na base de diferentes modos de agir, mesmo que jamais de modo linear – dialogam permanentemente umas com as outras, dando origem a resultados tão diversos quanto provisórios. Assim, nos diferentes e múltiplos momentos de suas vidas pessoais e profissionais, em virtude do acionamento de umas ou outras de suas subjetividades, em relação com outras diferentes e plurais redes de conhecimentos e sujeitos que habitam, fisicamente ou não, os cotidianos das escolas, os praticantespensantes das escolas criam currículos únicos, inéditos, “irrepetíveis”, alternativas aos problemas e dificuldades que enfrentam, ao que não lhes agrada ou contempla, ao já existente e ao já sabido, contrariamente ao que supõem as perspectivas hegemônicas de compreensão dos currículos escolares, que os compreendem como um eterno reproduzir daquilo que foi previsto e prescrito. (p. 71)
A noção de tessitura do conhecimento em redes, acima referida, pressupõe, portanto, a impossibilidade de se produzir aprendizagens iguais por meio de “aulas iguais”, também impossíveis de existirem, e pela mesma razão, qual seja: as informações só passam a constituir conhecimento quando se enredam a outros fios já presentes nas redes de conhecimentos que os diferentes sujeitos sociais possuem, ganhando, nesse processo, um sentido próprio, não necessariamente aquele que o transmissor da informação deseja ou pressupõe. Assim, nem instruir docentes a fazerem as mesmas coisas, dando-lhes a mesma informação normativa do que deve ser feito, nem repetir a mesma aula em diferentes espaçostempos levará à padronização das aprendizagens, supostamente possível na perspectiva cientificista adotada pela BNCC em sua ânsia de “aplicar” a teoria/norma curricular na prática/cotidiano. Os processos reais de tessitura de conhecimento se dão em redes que se modificam permanentemente, por meio de processos sempre distintos uns dos outros, provisórios, inaprisionáveis. Ou seja, quando “ensinamos” algo a alguém, para que a aprendizagem ocorra é necessário que aquilo que foi dito se conecte às redes já existentes em sua complexidade de valores, experiências, conhecimentos formais, crenças, convicções, emoções, sensações, sentimentos, passando a integrá-las, modificando-as (Oliveira, 2012).
Ainda com relação às unificações curriculares e, notadamente, às avaliações em larga escala – mecanismo complementar à tentativa de padronização e controle dos currículos e aprendizagens –, a consequência desse processo acima identificado é a de que as conexões são sempre singulares, e por isso múltiplas, e dependem das experiências e conhecimentos anteriores dos sujeitos, das especificidades do meio social em que se encontram. Por isso, entendemos que não faz sentido pressupor um trajeto único e obrigatório para todos os sujeitos em seus processos de tessitura de redes de conhecimentos e de aprendizagens, como pretende a BNCC e outras prescrições curriculares de mesma inspiração.
É possível, ainda, afirmar que as aprendizagens podem ser consideradas como sendo produzidas pelas atribuições e negociações de sentidos próprias de cada ambiente escolar no modo como “encena”9 as políticas curriculares (Ball, 2016). Já na apresentação à edição brasileira, Ball (2016) afirma a preocupação que presidiu a pesquisa apresentada no livro, que teria sido a de “desenvolver e ampliar uma teoria de atuação (encenação) de política, em vez de implementação” (p. 10), entendendo que as escolas lidam de formas complexas com as numerosas questões suscitadas pelas políticas, e esclarece:
Em nossas escolas, professores e outros atores de políticas não estavam simplesmente envolvidos na realização do trabalho de política; ou seja, implementando reformas. Ao contrário, eles estavam envolvidos em processos, lutas e negociações sobre o que certas políticas significavam, o que poderia ser ou deveria ser feito na prática, como essas interpretações poderiam ser construídas e reconstruídas. O que descobrimos foi que, em todas as nossas quatro escolas do estudo de caso, as políticas foram “personalizadas” e estavam ativas na construção e na reconstrução das identidades profissionais de vários atores de políticas. Assim, as políticas foram atuadas (encenadas) e não implementadas. (Ball, 2016, p. 10)
Juntando-nos a Ball nessa convicção de que os usos das normas definidas pelas políticas educacionais são sempre específicos das escolas e de seus sujeitos, vamos reafirmar o que nossos estudos vêm evidenciando: que não há aplicabilidade de regras, nem controle possível de como elas são ressignificadas e encenadas em diferentes espaçostempos escolares. Ou seja, além de todos os problemas intrínsecos à proposta, a BNCC não passa de uma quimera de um poder autoritário que tudo quer controlar, sem saber que o fracasso de outras experiências de mesmo perfil não repousa sobre a fragilidade do controle – conforme parecem acreditar alguns dos defensores da BNCC – mas na absoluta impossibilidade de padronizar a existência pulsante, dinâmica, plural e incontrolável das escolas. As máquinas barulhentas nos ensurdecem para as criações das pessoas comuns, mas elas existem e não podem ser “tomadas por idiotas” (Certeau, 1994, p. 273).
Já argumentamos que escolas, professores e estudantes são tornados ruins quando exigimos que produzam resultados iguais (Pinar, 2008; Süssekind, 2014), pois “é impossível encontrar duas escolas iguais” (Ezpeleta & Rockwell, 1986, p. 58). Nesse processo, profissionais vêm sendo, assim, idiotizados, desvalorizados, demonizados, desqualificados em pesquisas, na mídia e pela sociedade em geral. Nesse sentido, as (im)possibilidades – ontológica, epistemológica – de os professores darem as mesmas aulas, seguirem manuais ou treinarem seus estudantes para darem respostas padronizadas são percebidas como (in)capacidade ou (des)preparo (Süssekind, 2014). Por isso, as pesquisas do campo do currículo entendem os professores “não apenas como consumidores do conhecimento, mas como participantes ativos nas conversas que vão liderar” (Pinar, 2008, p. 153).
A esperança equilibrista tem que continuar
Mas sei, que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente, a esperança, dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar. Azar, a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar. (João Bosco e Aldir Blanc)10É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo... (Paulo Freire)11
Enfrentar as políticas de unificação curricular e suas nefastas consequências, notadamente sobre as populações mais fragilizadas, mais subalternizadas e mais carentes de uma escola pública acolhedora e respeitosa daquilo que são e pensam, sentem e vivem, vem sendo uma dura tarefa, repleta de dor a cada derrota – e essas têm sido muitas. Por outro lado, andando nessa corda bamba entre o desânimo e a necessidade da luta, entre as perdas e a esperança de que há ganhos possíveis no horizonte, que só serão efetivados se nos mantivermos caminhando juntando-nos aos que connosco querem e conseguem seguir, permanecemos vigilantes, construindo possibilidades – este texto é uma delas –, levando adiante e fazendo de muitos modos a nossa luta pela educação pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade social para todos.
No questionamento da BNCC, seu ideário e possibilidades de “sucesso”, consideramos relevante trazer elementos de pesquisas anteriores e dos conhecimentos que com elas vimos tecendo, seja sobre os equívocos políticos, seja sobre as fragilidades epistemológicas de propostas com esse perfil. Esse material vem nos permitindo considerar que entender os cotidianos, escolares ou não, como produto de uma permanente interlocução entre diferentes instâncias, conhecimentos, valores e possibilidades nos leva a compreender de que modo esses espaçostempos de criação e reinvenção do mundo funcionam, não como receptáculos, mas como modificadores de tudo o que a eles chega.
Vimos, acima, que esse trabalho vem permitindo, também, redesenhar a relação entre as normas e as exceções, defendendo, com auxílio de Ítalo Calvino, que só as segundas existem. Ao procedermos a essa desinvisibilização (Santos, 2004) das existências reais em sua validade, denunciamos o desperdício da experiência promovido pelo cientificismo moderno, recuperando, com isso, a voz das dimensões da vida que a modernidade emudeceu e que a BNCC busca manter silenciada, ao mesmo tempo em que reafirmamos a esperança freireana de que somos capazes de nos levantarmos e de nos juntarmos a tantos que lutam esse combate em defesa da educação pública.
Do ponto de vista do nosso trabalho, uma primeira conclusão possível é a de que pesquisar a vida cotidiana nas escolas se configura como ação políticoepistemológica importante, na medida em que se constitui como um meio de incorporar ao campo do currículo outras possibilidades de compreensão da complexidade que é inerente, tanto aos cotidianos escolares, quanto aos currículos que neles são criados. Aprendemos, também, com esse tipo de pesquisa, que a vida não é controlável, que currículos nacionais estão fadados ao fracasso e que sua proposição é, além de politicamente excludente, academicamente desprovida de fundamento razoável.
Essa reflexãoconvicção que procuramos desenvolver aqui nos remete a outro relevante debate, sobre o que é conhecimento, como ele se cria, se desenvolve, se manifesta e se legitima. Recuperamos, para tal, texto anterior:
Segundo a noção de tessitura dos conhecimentos em redes, estes se tecem em redes constituídas de todas as experiências individuais e coletivas que vivemos, de todos os modos como nos inserimos na dinâmica constitutiva do mundo à nossa volta, não tendo, portanto, origem nem desenvolvimento localizáveis, prioridades hierárquicas, previsibilidade ou obrigatoriedade de rota. Essa ideia busca superar o paradigma da árvore do conhecimento e, também, a própria forma como são entendidos, nessa perspectiva, os processos individuais e coletivos de aprendizagem – cumulativos e adquiridos. Conceber a construção do conhecimento usando a imagem da árvore pressupõe que esta se dá de modo linear, por meio de um processo em que a sucessão e sequenciamento das etapas se dão do mais simples – e básico – ao mais complexo, hierarquizando-se por meio de uma única operação os conhecimentos e os seus sujeitos, de acordo com o estágio da árvore em que se encontram. Além disso, a noção de árvore do conhecimento entende que os conhecimentos preexistem aos sujeitos que conhecem. A árvore está lá, e a nossa tarefa é acessá-la, preferencialmente, por meio da aprendizagem daquilo que outros, que se encontram em partes “superiores” dessa árvore, em etapas superiores de aprendizagem, já sabem. Nesse sentido, a ação externa é considerada como elemento fundador da aquisição de conhecimentos. (Oliveira, 2012, p. 53)
Assim, com base nessa noção de tessitura do conhecimento em redes, entendendo-as como complexas, multifacetadas e plurais, com seus macro e microelementos em permanente diálogo, evidenciamos que estas modificam-se permanentemente a si próprias e umas às outras nesses processos de tessitura de aprendizagens nas diferentes experiências escolares. Com isso, torna-se possível afirmar que é por meio desses processos que currículos e conhecimentos curriculares se tecem, muito para além do que supõem os defensores das normatizações e controle rígidos, com suas suposições cientificistas subliminares de que, nas escolas, essas são aplicadas ou implementadas, como prefere denunciar Stephen Ball (2016).
Percebemos, nessa reflexão, como a concepção de conhecimento e de currículo que anima a BNCC se vincula ao conservadorismo epistemológico e político na compreensão do que é e de como se tece o conhecimento, negligenciando tanto a dinâmica da vida real nas escolas quanto a dos próprios processos de conhecer e, portanto, de ensinar e aprender. Denunciamos, ao mesmo tempo, como o problema transcende a BNCC brasileira, inscrevendo-se nos diferentes países como um processo de submissão da educação pública aos interesses de formação do grande capital, promovendo simultaneamente aprendizagens limitadas e endereçadas a uma formação tecnicista e a exclusão social daqueles que não se enquadrarem aos padrões e normas.
Por outro lado, esperamos ter trazido elementos suficientes sobre os problemas que habitam essas propostas de unificação curricular e seus princípios, ao mesmo tempo em que apresentamos elementos de reconhecimento de que professores inventam mundos criando currículos com seus estudantes, por meio de mil maneiras de caça não autorizadas (Certeau, 1994), jamais perceptíveis aos olhos das avaliações em larga escala ou das “bases nacionais curriculares”.
Com isso, acreditamos ser possível manter nossa esperança de que escolas e seus sujeitos manterão coletivamente a resistência e suas existências para além dessas normas, uma esperança que não é vã nem é apenas espera ou expectativa sem base real. Ao contrário, apesar dos graves ataques à educação pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade social para todos que essas propostas representam, e do fato de que, na dimensão macro dos sistemas educacionais, elas estejam “no poder”, as dimensões da vida supostamente emudecidas criam e difundem vozes dissonantes, vozes de existências outras, fugazes mas reais, vozes por vezes inaudíveis, pequenos zumbidos, mas suficientemente fortes para nos permitir nos equilibrarmos na nossa esperança freireana (Galeano, 1993), em diálogo com o sempre indispensável sociólogo uruguaio Eduardo Galeano, com quem aprendemos que:
Com a história ocorre o mesmo que com o futebol: o melhor que oferece é a capacidade de surpresa. Às vezes, contra todos os prognósticos, contra toda evidência, o pequeno aplica um tremendo baile no grandão invencível.Na urdidura da realidade, por pior que seja, novos tecidos estão nascendo e esses tecidos são feitos de uma mistura de muitas e diversas cores. Os movimentos sociais alternativos se expressam não só através dos partidos e dos sindicatos: também assim, mas não só assim. O processo nada tem de espetacular e ocorre, sobretudo, em nível local, mas por toda parte, no mundo inteiro, estão surgindo mil e uma forças novas. Brotam de baixo para cima e de dentro para fora. Sem estardalhaço, estão contribuindo expressivamente para a retomada da democracia, nutrida pela participação popular, e estão recuperando as maltratadas tradições da tolerância, ajuda mútua e comunhão com a natureza. Um de seus porta-vozes, Manfred Max-Neef, compara-as a uma nuvem de mosquitos atacando o sistema que trocou os abraços pelas cotoveladas:
– Mais poderosa do que o rinoceronte – diz – é a nuvem de mosquitos. Eles vão crescendo e crescendo, zumbindo e zumbindo. (p. 331)
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Endereço para Correspondência
Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Inês Barbosa de Oliveira, Rua Bulhões de Carvalho, 296, apt. 401, CEP: 22081000, Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: inesbo2108@gmail.com
Recebido em junho 2018
Aceite em junho 2018
NOTAS
1 Ambas estivemos presentes, em 04/09/2014.
2 Reunião de Trabalho referente à formulação da Base Nacional Comum para a Educação Básica realizada pelo MEC/SEB, na sede da SBPC/SP, em 19 de maio de 2015, com a presença do ministro Renato Janine Ribeiro. Também ambas estivemos presentes.
3 Em: https://avaliacaoeducacional.com/2017/12/15/bncc-acabou/ (acesso: 12/jun/2018).
4 Assim se autonomeia um grupo ultraconservador, composto inclusive por parlamentares, que defende uma educação conforme as crenças parentais, na qual o professor não teria direito à livre opinião em sala de aula ou à apresentação da pluralidade de ideias do mundo. Sob o discurso da desideologização, esconde a tentativa de criminalização do professor por “doutrinação ideológica” a cada vez que não houver rigorosa observação dos valores hegemônicos conservadores em sala de aula. Estruturou-se em modelo de projeto de lei que visa a inspirar o controle e a punição de professores e vem sendo propagado pelo país afora.
5 Em: https://www.washingtonpost.com/gdpr-consent/?destination=%2fnews%2fanswer-sheet%2fwp%2f2016%2f06%2f13%2fdiane-ravitch-to-obama-i-will-never-understand-why-you-decided-to-align-your-education-policy-with-that-of-george-w-bush%2f%3fnoredirect%3don%26utm_term%3d.9fdfd7ed7161&noredirect=on&utm_term=.ea51870e65d1. Acesso em 17/05/2018.
6 Mesa redonda: “Estudos Curriculares: Debates na África do Sul”. Palestrantes: Lesley Le Grange (Stellenbosch University); Chris Reddy (Stellenbosch University) e Fadli Waglet (Western Cape Education Department). UERJ, 20/07/2015.
7 Em: https://www.huffingtonpost.com/ted-dintersmith/the-real-failure-of-common-core_b_7997912.html. Acesso em 17/05/2018. Tradução das autoras.
8 Circulares por não permitirem a identificação precisa do início ou do fim do processo, e não por retornarem ao mesmo ponto indefinidamente, pois isso, para nós, constitui-se numa impossibilidade epistemológica, conforme esperamos ter demonstrado.
9 Na obra em português, o tradutor reconhece que Ball se refere ao modo como as escolas “fazem” as políticas como sendo uma forma de encená-las, de colocar em cena uma versão própria daquilo que as políticas preveem e preconizam. O tradutor opta pelo termo atuação, aproximando-se da referência que Ball faz ao trabalho de Bruno Latour na sua teoria do ator-rede. No entanto, preferimos falar em encenação, de mais fácil compreensão, no nosso entendimento.
10 Em: https://www.google.com.br/search?q=o+b%C3%AAbado+e+o+equilibrista&oq=o+bebado+e+o+equilibrista&aqs=chrome.1.69i57j0l5.10205j1j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8 (acesso: 12/jun/2018).
11 Disponível em: https://www.facebook.com/1713313515554256/photos/2016-06-04/1785287435023530/ (acesso: 12/jun/2018).