1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Atividades de produção de textos acompanham os aprendizes durante toda a vida escolar e, mesmo assim, é comum ouvirmos relatos de que estudantes universitários não se sentem confortáveis diante de tais tarefas. Esses aprendizes, muito provavelmente, trazem da educação básica uma noção de texto (e de processos de escrita) muito ancorada a uma concepção de erro/incoerência (isto é, a possibilidade de sujeitos competentes em suas próprias línguas produzirem textos errados e/ou incoerentes). Nessa concepção, o aprendiz acaba escrevendo um texto (mesmo na universidade) para que se faça um inventário de erros (muitas vezes, centrados no emprego de regras da gramática normativa), deixando, assim, de privilegiar uma demanda realmente textual (pragmática, sociocognitiva e sociointeracional), cuja função atenda a leitores e a escritores motivados por uma razão, de fato, social: ler.
Destacamos que o contexto universitário deveria possibilitar, na produção de textos escritos, oportunidades de interlocução, por meio de uma mediação (e não correção) textual, que privilegie uma construção conjunta de sentidos. Tal necessidade promoveria uma mudança paradigmática nas práticas pedagógicas: da correção estritamente formal dos textos (herdada de nossa tradição escolar) para o foco no interesse social, interlocutivo e mediativo tanto pela leitura em si quanto pela relação estabelecida pelos interlocutores inscritos nas tarefas de leitura e de escrita (professor e estudantes) (Soares, 2009).
Em nossa prática na universidade, realizamos uma atividade que envolveu todos os atores sociais inscritos na disciplina “Prática de Textos”, ofertada pela Universidade de Brasília: o professor e as monitoras, no papel de leitores; e os estudantes, no papel de legítimos autores. Acerca dos procedimentos envolvidos, os estudantes produziram uma nota de leitura1, a partir da apreciação de um texto teórico previsto na disciplina; e as monitoras, com a supervisão do professor, elaboraram um bilhete orientador, sugerindo investimentos linguístico-textuais à produção realizada pelos aprendizes. Logo, monitoras e professor foram considerados os leitores responsáveis pela mediação das notas de leitura dos discentes (autores).
Geraldi (1993, p. 179) concebe que o professor, ao ler a produção de um aluno, deve transcender a aferição, buscando, de fato, a interlocução. Ao sugerir que os textos dos alunos deveriam provocar perguntas efetivas (e não didáticas) (Geraldi, 1993, p. 179), imaginamos que o professor pode, a partir de um desejo real de interação, escrever para o aluno um bilhete orientador, que consiste em um gênero catalisador na construção de objetos de ensino e de aprendizagem que promovem “uma inserção mais efetiva do aprendiz . . . em práticas letradas específicas e socioculturalmente valorizadas” (Signorini, 2006, p. 10). A catálise, termo recorrente na área de físico-química, diz respeito a um processo de “modificação de velocidade de uma reação química” (Ferreira, 2008, p. 136). O catalisador, por sua vez, é aquele “que incentiva, estimula” (Ferreira, 2008, p. 136), o que, por analogia, corresponde ao propósito de um bilhete orientador, que, em nossa perspectiva, possibilita, como estratégia pedagógica, tanto apreciar a produção realizada quanto visibilizar os investimentos linguístico-textuais sugeridos pelos leitores (em nossa pesquisa, as monitoras e o professor), colaborando, para tanto, com a ampliação dos letramentos dos aprendizes.
Ainda que esperemos dos estudantes bom domínio da língua, tal aptidão não os torna, necessariamente, bons escritores (Fiad, 2013, p. 471), dado que as tarefas de escrita e de reescrita demandam, a cada releitura, esforço crítico sobre a própria produção. Nas palavras de Bazerman (2009), “a escrita pode nos ajudar a nos mover para um novo estágio de pensamento” (p. 127). Em conformidade com Sommers (1980), acreditamos que o ato de reescrever não consiste em processo terminal, mas em constante revisitação, o que implica, portanto, a ação de re-ver (sobretudo com um olhar diferente – com “estranhamento”).
Diante da tarefa de produzir um texto, os estudantes devem se atrever a realizar mudanças, considerando que o texto constitui um objeto “não completamente terminado”, o que abre espaço para efetuar ajustes (Dolz & Pasquier, 1994, p. 175). Sendo assim, o objetivo de uma reescrita, em alinhamento com Köche et al. (2004, p. 143), se efetiva ao considerarmos que o texto original é, de algum modo, inacabado, o qual será considerado, a partir de uma reflexão linguístico-textual2, uma nova produção.
Por meio deste artigo, objetivamos analisar como a interação entre professor/monitoras e estudantes, por meio de bilhetes orientadores (Brannon & Knoblauch, 1982; Gimbel & Mills, 2013; Mangabeira et al., 2011; Smith, 1997; Sommers, 1980), pode potencializar a reescrita de notas de leitura, levando em consideração: a atuação docente em processos de composição de textos (Flower & Hayes, 1981; Murray, 1997); os papéis do professor na correção/mediação de textos (Smith, 1997; Straub, 1996; Tribble, 1996); e as tendências de correção/mediação de textos (Ruiz, 1998; Serafini, 1995). Em sintonia com Sommers (1982) e Brannon e Knoblauch (1982), nosso objetivo transcende a investigação das mensagens que os professores produzem para os aprendizes, devido ao nosso interesse por avaliar aspectos que incentivam os discentes a, de fato, refletirem acerca da sugestão ofertada.
É de suma importância aventarmos um debate em torno do teor desse processo de mediação (escrita e reescrita), extrapolando, desse modo, as ações de apontar prováveis deslizes de escrita. Nesse sentido, nosso estudo se alinha plenamente ao conceito de mediação, encontrado nos pressupostos vygotskyanos, por almejar o estabelecimento de uma proximidade entre o autor do texto e o objetivo proposto na tarefa das notas de leitura. Em se tratando de estudantes do curso de Letras, essa prática se torna ainda mais relevante, uma vez que esses atores sociais serão futuros mediadores de outros textos, na busca por oferecer espaço, em suas ações pedagógicas, para a reflexão linguístico-textual. Ademais, como salienta Marinho (2010), a escrita acadêmica não tem recebido a merecida atenção, quando comparada a pesquisas voltadas para o ensino fundamental e o médio, o que fortalece ainda mais a necessidade de investigações, como a nossa, voltadas para o contexto da universidade.
Além das seções considerações iniciais e considerações finais, nosso artigo é constituído pelas seguintes partes: (a) o processo de reescrita em cena, nas reflexões concernentes ao processo de reescrita no contexto universitário; (b) ações e reflexões metodológicas, na narração/descrição dos procedimentos de pesquisa e dos princípios metodológicos norteadores; e (c) eu escrevo, tu escreves, nós dialogamos, na análise de duas produções (escrita e reescrita) de dois estudantes, a partir do bilhete orientador proposto pelas monitoras e orientado pelo professor. Tal estruturação é fruto de nossa perspectiva sociointeracional de linguagem, que compreende o processo de reescrita de modo colaborativo e reflexivo, a qual prevê possibilidades de ampliação linguístico-textual.
2. O PROCESSO DE REESCRITA EM CENA
O processo de escrita, inerente à vida escolar dos estudantes, articula diversos processos em sua construção, a saber: escrita, revisões, reescritas, e, em última instância, uma versão final. Logo, o docente, como mediador, tem oportunidades para operar na orientação dessas ações, desde o primeiro rascunho até a última versão. Tais ações, provavelmente, colaboram para potencializar as habilidades de escrita do aprendiz em distintos momentos.
Tradicionalmente, ao ter contato com o texto do estudante, o professor se restringia à tarefa de corrigir 3 os textos, buscando sinalizar todos os erros cometidos. No entanto, Soares (2009) nos chama a atenção para a necessidade de mudança desse paradigma tradicional: de mera revisão (formal) dos textos para atuações mais interativas, cujo foco incide no processo de assistência contínua do professor (leitor) ao aprendiz (escritor). Consoante com o nosso objetivo de pesquisa, sinalizamos, nesta seção teórica, que tal necessidade de mudança paradigmática nos convoca a repensar, à luz do conceito de zona de desenvolvimento proximal (Vygotsky, 1978, 2008) e da noção de dissonância (Sommers, 1980), nos processos de composição de um texto (Flower & Hayes, 1981; Murray, 1997); nos papéis do professor (Smith, 1997; Straub, 1996; Tribble, 1996); nas tendências de correção/mediação (Ruiz, 1998; Serafini, 1995); e no papel dos bilhetes orientadores (Brannon & Knoblauch, 1982; Gimbel & Mills, 2013; Mangabeira et al., 2011; Smith, 1997; Sommers, 1982).
No que que tange à assistência (mediação), Vygotsky (1978, 2008) estabelece que um interlocutor mais experiente pode atuar na zona de desenvolvimento proximal (ZDP), que compreende a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial de um interlocutor menos experiente. O primeiro nível diz respeito ao conhecimento do aprendiz para a solução de dado problema; ao passo que o segundo, ao conhecimento a ser alcançado pelo aprendiz, com vistas a resolver, sob a orientação de alguém mais capaz, dado problema. Relativamente aos processos de escrita, esse interlocutor mais experiente (que pode ser um professor/monitor, ou até um colega) pode reduzir a distância entre os dois níveis citados, mediando, portanto, o processo de escrita, e colaborando para que esta se torne mais eficaz para o propósito de produção (no caso de nossa pesquisa, um registro de impressões de leitura em formato de nota). O amadurecimento da ZDP, acrescenta Bazerman (2009), pode se dar a partir da “participação colaborativa em atividades tipificadas e formas discursivas familiares ao instrutor, adulto ou mais qualificado, [colaborando] em algo que o aprendiz ainda não é competente” (p. 136), como é o caso de nossas atividades, inscritas no contexto universitário.
O conceito de dissonância, proposto por Sommers (1980), fortalece essa necessidade de mediação. A noção de dissonância refere-se às incongruências existentes entre a intenção do produtor e sua execução. O escritor, nesse sentido, antecipa as possíveis dissonâncias causadas a seu leitor e, portanto, procede com uma revisão, com vistas a sanar as prováveis incongruências (Sommers, 1980). Em virtude de nossos estudantes estarem diante de uma prática de texto acadêmica, pressupomos haver certa dificuldade em visionar tais dissonâncias, o que justifica, sob a ótica vygotskyana, promover uma sensibilização para os investimentos de escrita que esses sujeitos podem fazer. O bilhete orientador, nesse viés, pode se tornar o instrumento capaz de conferir visibilidade à dissonância da descoberta (Sommers, 1980) no momento da reflexão sobre o texto. Em nossa análise, é necessário que o sujeito-autor, a partir da dissonância propiciada pela experiência pedagógica de escrita-mediação-reescrita, desenvolva gradativamente um olhar de estranhamento para práticas futuras e, por conseguinte, visione os potenciais investimentos para a reescrita de seus textos.
Na composição de um texto, de modo geral, estão envolvidos não só as etapas de pré-escrita, escrita e reescrita (Flower & Hayes, 1981; Murray, 1997), contempladas por um paradigma tradicional, mas também (e principalmente) os processos de geração de ideias, fundamentais para um modelo cognitivo. Em relação às etapas, a pré-escrita envolve as escolhas prévias relacionadas ao processo de escrita (foco, público, modo de escrever); a escrita consiste em um primeiro esboço, haja vista seu caráter “rude, investigativo e inacabado” (Murray, 1997, p. 4); e a reescrita, por fim, prevê “a reinvestigação, o repensar, o redesenhar e o reescrever” (Murray, 1997, p. 4). Os processos de geração de ideias, centrais na composição de um texto, ocorrem, em nossa visão, em instâncias (inter)cognitivas/(inter)subjetivas. Logo, consideramos que, em uma instância cognitiva/subjetiva, o sujeito-autor (estratégico, por excelência) constrói sentidos em um texto. Todavia, tal construção não se dá de modo isolado/estéril, visto que, em alusão a uma instância intercognitiva/intersubjetiva, a escrita conjuga um propósito interacional e, por essa razão, uma negociação de sentidos com o outro. Em suma, os escritores não só planejam (pré-escrita), produzem (escrita) e revisam (reescrita) (Flower & Hayes, 1981), mas também constroem sentidos conjuntamente com os leitores, de modo que as atividades de mediação funcionem, portanto, como espaço salutar para a reflexão em torno da escrita.
Adicionalmente, Flower e Hayes (1981) concebem que o ato de escrever engloba três elementos: ambiente de tarefas, memória de longo termo do escritor e processos de escrita. O primeiro elemento envolve a avaliação do tópico, da audiência e das exigências de escrita; o segundo reúne os conhecimentos armazenados relativos ao tópico, à audiência e aos planos de escrita; o terceiro, por fim, abarca o planejamento (geração de ideias, organização das informações e estabelecimento de metas), a tradução (ideias em linguagem clara) e a inspeção [reviewing] (avaliação e ajustes [revising])4 (Flower & Hayes, 1981).
Para compreendermos a escrita como processo, e não como produto, é fundamental, antes de tudo, deslocarmos um olhar puramente formal para uma visão que focalize aspectos funcionais (Perl, 1997), considerando, no contexto de ensino, que
(1) a escrita em curso pertence ao estudante; (2) o estudante encontra o seu próprio assunto; (3) o estudante lança mão de sua própria linguagem; (4) o estudante precisa ter a liberdade de realizar quantos rascunhos julgar necessários; (5) o estudante precisa ser incentivado a tentar todo tipo de escrita que possa ajudá-lo na expressão do que pretende; (6) os aspectos normativos devem ser checados por último; (7) o processo de escrita requer tempo e local adequados; (8) os escritos precisam ser avaliados para poder se vislumbrar outras escolhas possíveis; (9) cada estudante tem seu tempo para a escrita; e (10) a escrita é um processo experimental, não deve ter regras, absolutismos, somente alternativas. (Murray, 1997, pp. 5-6 – com adaptações)
Reforçamos, portanto, que o estudante precisa se sentir protagonista nesse processo de escrita, apropriando-se das ferramentas desta; e o professor precisa atuar como mediador de toda essa aprendizagem. Nessa linha de raciocínio, os bilhetes orientadores colaboram com esse gradativo protagonismo, na medida em que, devido ao caráter apreciativo e sugestivo (e não injuntivo), sensibilizam o estudante para o caráter processual de sua escrita no que tange às possibilidades de que ele pode se valer no momento de escrever.
Diante dessa busca por assessorar os nossos interlocutores na tarefa da (re)escrita, Tribble (1996) apresenta quatro papéis (ethos) assumidos pelo professor, a saber: leitor (ao reagir às ideias que o aprendiz desenvolveu em seu texto, preocupando-se com a adequação do texto ao propósito da escrita); assistente (ao sinalizar sugestões para tornar o texto mais eficaz, no que tange a aspectos linguístico-pragmáticos); avaliador (ao tecer comentários gerais sobre a produção, porém sem atuar de forma colaborativa); e examinador (ao apresentar uma avaliação objetiva e clara do processo de produção). Para esta pesquisa, consideramos essenciais os quatro papéis, à proporção que o professor é, antes de tudo, um leitor, porém não é um leitor lato sensu, mas alguém que almeja fornecer insumos linguístico-textuais para que seu estudante capitalize sua produção e, ao mesmo tempo, seja avaliado.
Embora a terminologia de Serafini (1995) denuncie uma não adesão plena a construtos sociointeracionais, suas contribuições são altamente relevantes para a ação de reescrita, ao pressupor que o processo de correção pode ser realizado a partir de três tendências: correção indicativa, resolutiva e classificatória. Na primeira, o professor assinala os erros encontrados (no geral, inadequações ortográficas e lexicais); na segunda, a preocupação incide em corrigir diretamente o erro (é comum reescrever palavras, frases e períodos inteiros); na terceira, por fim, os erros são classificados de forma clara, a fim de que o estudante possa corrigi-los, a partir das sugestões dadas pelo professor (Serafini, 1995).
Ruiz (1998), por sua vez, transcende a tipologia de Serafini (1995), ao propor a correção textual-interativa. Nela Ruiz (1998) prevê a produção de comentários mais longos (denominados por ela de pós-texto ou bilhetes), cuja função consiste em “falar acerca da tarefa de revisão pelo aluno (ou, mais especificamente, sobre os problemas do texto), ou falar, metadiscursivamente, acerca da própria tarefa de correção pelo professor” (pp. 67-68, grifos nossos), objetivando, de todo modo, incentivar a reescrita.
A correção textual-interativa, proposta por Ruiz (1998), diferentemente das correções anteriores (vinculadas apenas ao papel de assistente), posiciona o professor, ao mesmo tempo, nos papéis de leitor (apreciador de conteúdo); assistente (sinalizador de investimentos); e avaliador (comentarista do texto). Nela utilizamos bilhetes orientadores, a fim de estabelecermos uma interlocução com o aprendiz, de modo a apontar possíveis investimentos linguístico-textuais e oferecer, por conseguinte, sugestões para o aprimoramento da escrita.
Esse tipo de interação costuma ser mais eficaz para a sinalização de feedbacks textuais, por possibilitar diálogo com o estudante sobre a natureza textual (apreciação do texto e sinalização de investimentos linguístico-textuais a serem feitos), pois os apontamentos gramaticais podem ser eficazmente mapeados no próprio texto (com correção corretiva, resolutiva ou classificatória, a depender dos objetivos do professor). São consideradas ações desmotivadoras e contraproducentes, na composição do bilhete orientador, a busca por um texto ideal (Brannon & Knoblauch, 1982); a ausência de expectativas do revisor (Gimbel & Mills, 2013); a elaboração de comentários inespecíficos5 (Gimbel & Mills, 2013; Sommers, 1982), excessivos, muito severos e/ou focalizados exclusivamente em desvios gramaticais (Gimbel & Mills, 2013); e a obscuridade quanto aos aspectos a serem aprimorados na reescrita (Mangabeira et al., 2011).
Os comentários podem incentivar mudanças no próximo rascunho e criam motivo para revisar o texto, desde que sejam cuidadosos no sentido de não gerarem imposição no processo de revisão do texto, pois o estudante pode mudar drasticamente o que gostaria de escrever para aquilo que o professor solicita, descaracterizando, com isso, o real objetivo de sua escrita (Sommers, 1982). Essa cautela se justifica por haver certa tendência no processo de correção de demonstrar ao aprendiz que a agenda do professor e as expectativas deste são mais importantes que as necessidades e os desejos do aprendiz (Brannon & Knoblauch, 1982). O incentivo e o desejo sincero de realizar a leitura constituem ações que colaboram para o aperfeiçoamento linguístico-textual, minimizando essa provável dissintonia entre professor e estudante (Brannon & Knoblauch, 1982).
No processo de revisão, Straub (1996) entende que as ações do professor devem ser situadas sob o formato de comentário, estando a escrita configurada em tom de conversa com o autor do texto (o estudante). Para que haja, de fato, interação entre a escrita do aluno e a avaliação do professor, este deve atuar como facilitador, podendo assumir o papel de
um leitor-professor, um guia, um conselheiro amigável, um diagnosticador, um treinador, um motivador, um colaborador, um explorador companheiro, um investigador, um confidente, um leitor questionador, um leitor representativo, um leitor comum, uma ‘caixa de ressonância’, um leitor subjetivo, um leitor peculiar, um leitor simpático, um adulto confiável e um amigo. (Straub, 1996, p. 225)
Ao avaliar o papel do professor, Smith (1997) sugere que o docente busque personalizar o comentário que fará ao texto do aprendiz, inserindo-o em um gênero de resposta ao leitor6, de modo a que possa enfatizar a sua posição de professor como leitor (e o provável efeito gerado pelo texto em outros potenciais leitores) no que tange ao conteúdo da produção. Complementa Sommers (1982) que, como escritores, esperamos tanto um comentário cuidadoso relacionado ao (in)sucesso na comunicação de nossas ideias quanto a menção a aspectos do texto que passaram imperceptíveis por nossa leitura.
Atinente ao caráter do bilhete orientador, Fuzer (2012) descreve a existência de “quatro movimentos básicos: reações do leitor ao texto do aluno, elogios à produção, orientações para a reescrita e incentivo à reescrita” (p. 236). Menegassi (2000), por sua vez, visiona quatro componentes básicos: apresentação do problema, identificação deste na primeira versão, apresentação do contexto em que o problema se situa e orientações de reformulação.
No que concerne à natureza dos comentários realizados em bilhetes orientadores, Cho et al. (2006) propõem uma taxonomia para codificar tais comentários [comment-coding scheme] em seis tipos: (a) diretivo (sugere uma mudança específica, pontual); (b) indiretivo (sugere uma alteração inespecífica, genérica); (c) elogio (qualifica a produção ou parte dela, incluindo observações encorajadoras); (d) crítica (atribui uma avaliação negativa à produção – ou a uma parte dela –, apontando para uma área subdesenvolvida, sem apresentar sugestões); (e) síntese (recapitula o principal aspecto da produção – ou de parte dela); e (f) fora da tarefa (reúne comentários ambíguos ou desconectados das categorias codificadas).
Diante das reflexões realizadas no que diz respeito ao processo de (re)escrita, consideramos salutar compreender que a dissonância da descoberta (Sommers, 1980) se dará, provavelmente, em decorrência da atuação do professor na ZDP do estudante, como atividade mediadora (Vygotsky, 1978, 2008). Ao nos inscrevermos num paradigma vygotskyano, assumimos que (1) o professor pode reivindicar para si os papéis de leitor, assistente e avaliador (Tribble, 1996), minimizando, sempre que possível, a assimetria entre ele e o discente nos comentários realizados em torno da escrita; (2) a reescrita prevê leitura, análise, reflexão e recriação (Köche et al., 2004) não só no âmbito intrapessoal, mas também no âmbito interpessoal (interação entre um sujeito mais experiente e um sujeito menos experiente); (3) a correção textual-interativa (Ruiz, 1998) constitui a nossa tendência de correção (ou melhor, a nossa tendência de mediação), em decorrência de promovermos a possibilidade de reflexão junto aos autores do texto quanto aos investimentos linguístico-textuais a serem feitos; e (4) os bilhetes orientadores, fruto de uma mediação textual-interativa, devem contemplar reações ao texto do aprendiz, elogios à sua produção, orientações e incentivo à reescrita (Fuzer, 2012), podendo o leitor, para tanto, lançar mão de atos diretivos ou indiretivos (Cho et al., 2006), colaborando, por meio da interlocução com o discente, com a formação de um escritor cada vez mais protagonista e consciente dos recursos linguístico-textuais mais congruentes com suas finalidades sociointeracionais.
3. AÇÕES E REFLEXÕES METODOLÓGICAS
Antes de detalharmos os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa, julgamos relevante tratar de nossa concepção metodológica, que conduzirá nossa análise de dados na seção posterior. Nosso estudo vincula-se a um paradigma qualitativo, por pressupormos, assim como Schwandt (2006), que só temos acesso às ações dos atores sociais, que são inerentemente significativas, por meio da interpretação. Nesse sentido, a pesquisa qualitativa nos possibilita ter acesso a essas práticas interpretativas e à “compreensão interpretativa da natureza humana”, por contemplar um foco multiparadigmático (Nelson et al., 1992) e uma multiplicidade de métodos (Flick, 2004), a fim de “assegurar uma compreensão em profundidade do fenômeno em questão” (Denzin & Lincoln, 2006, p. 19).
A análise de textos, frente a esse paradigma, constitui “a base do trabalho interpretativo e das inferências realizadas a partir do conjunto de materiais empíricos” (Flick, 2004, p. 222). Em decorrência do caráter multiparadigmático, da presença de múltiplos métodos e da realização de pesquisa com base em materiais empíricos, decidimos triangular7 as seguintes perspectivas: a análise de texto (interpretativa/inferencial), os depoimentos dos sujeitos autores do texto (entrevista semiestruturada8) e as reflexões teóricas relacionadas ao ato de (re)escrever um texto (tratadas na seção anterior). Em virtude do caráter qualitativo de nossa pesquisa, não almejamos a busca por uma representatividade numérica, mas pela intensidade do fenômeno, preocupando-nos menos com os aspectos que se repetem e mais com a dimensão sociocultural do dado em questão (Minayo, 2017).
Em atendimento às orientações de uma pesquisa qualitativa, nosso estudo se deu a partir de uma ação prevista na disciplina “Prática de Textos”, ofertada ao curso de Letras da Universidade de Brasília (UnB), que consistia na produção de notas de leitura. A orientação conferida aos discentes para a produção do texto buscava focalizar aspectos funcionais do gênero discursivo, como o registro das impressões pessoais quanto à leitura realizada, deixando claro não haver qualquer modelo preexistente para a realização da tarefa.
Com essa ação, objetivávamos minimizar o tradicional peso que aspectos formais do gênero poderiam trazer ao momento da produção e, por conseguinte, maximizar a importância da expressão criativa, autoral e subjetiva. Ou seja, não havia um modelo a ser seguido, mas uma orientação funcional única: a escrita livre9 quanto às impressões particulares acerca de um texto teórico lido, para que, posteriormente, fosse realizado um debate acerca dele. Em suma, os relatos dos estudantes sinalizaram inicialmente um desconforto pela ausência de instruções relativas a aspectos formais, mas, ao mesmo tempo, maior motivação para a escrita, já que, por ser uma escrita pessoal, não haveria, segundo eles, qualquer incoerência durante esse processo.
Em todo o semestre letivo, os alunos realizaram quatro notas de leitura, resultantes da apreciação de quatro textos teóricos, que eram disponibilizados na plataforma Moodle. Cada produção de texto foi lida pelas monitoras da disciplina (alunas que se inscreveram para tal atividade) e pelo professor regente, que procederam a mediação.
Essa atividade previu que os aprendizes fizessem, para cada nota de leitura, uma primeira versão e, após o debate em sala, uma segunda versão, com base nas reflexões sobre o texto teórico com a turma e nos bilhetes orientadores que acompanhariam a leitura da primeira versão. O debate, que surgia após uma breve exposição do professor sobre o assunto, levava em consideração a análise de textos empíricos: eram projetados pequenos textos para que os discentes, a partir de questões motivadoras, pudessem discutir a aplicação do assunto do texto teórico nos textos sob análise. Tal prática visava a ampliar as leituras dos estudantes acerca dos assuntos tratados, a dirimir prováveis dúvidas concernentes ao tópico em questão e, por conseguinte, a promover a reflexão quanto ao processo de reescrita das notas de leitura, em complementaridade ao feedback dado nos bilhetes orientadores. Todos esses procedimentos foram propostos para mediar, de modo mais dialógico, o processo de escrita, contemplando, assim, tópicos de gramática normativa e, especialmente, reflexões relativas à textualidade – coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, intertextualidade e informatividade (Beaugrande & Dressler, 1981) – e ao gênero discursivo.
As sugestões no âmbito da gramática normativa eram feitas através de marcações por cores no próprio texto (sinalizávamos a inadequação com uma cor e disponibilizávamos as orientações quanto ao ajuste a ser feito). A análise textual, por sua vez, foi a etapa em que reagíamos ao texto como leitores-assistentes: reagíamos à construção de ideias, aos fatos relatados, e ao (não) atendimento ao tema e ao gênero propostos, incluindo nossa observação ao final do texto sob o formato de um bilhete. Assim, cada primeira versão continha orientações de ajustes gramaticais no próprio texto, e, como recurso textual-interativo, nossa interlocução sobre os aspectos semânticos, pragmáticos, discursivos e interacionais da produção (reflexões relativas à textualidade e ao gênero discursivo).
A produção de uma segunda versão era opcional, assim como o atendimento às sugestões dadas na primeira versão. Ademais, os discentes eram incentivados a reescreverem somente em caso de ajustes no campo da escrita do texto (a atividade não se dedicava, por exemplo, a ajustes gramaticais), haja vista que a demanda real (e social) dos textos encontra-se tanto nas condições de textualidade quanto nas demandas do gênero discursivo.
4. EU ESCREVO, TU ESCREVES, NÓS DIALOGAMOS
Nesta seção, analisaremos os processos de escrita e de reescrita das notas de leitura 1 e 4, realizados, respectivamente, pelos estudantes Marcos e Lúcia10. Assim como já mencionamos, a primeira versão foi lida por nós (professor e monitoras) e, em seguida, propusemos a ampliação do texto (segunda versão), a partir das correções classificatória (para aspectos gramaticais) e textual-interativa (para investimentos linguístico-textuais). Na proposição do bilhete orientador, previsto na correção textual-interativa, assumimos, em especial, os papéis de leitor e assistente, mas, evidentemente, com interesse em avaliar a escrita como processo.
No que tange ao nosso processo de interação, tivemos início com as ações dos estudantes (leitura do texto teórico e elaboração das notas de leitura), sob o argumento de que os aprendizes eram co-partícipes desse processo de leitura e de escrita, o que conferia a essas ações um caráter igualmente sociointeracional. Na sequência, seguimos com os processos de mediação, que abarcaram as ações, em um primeiro momento, das monitoras (tanto na leitura do texto teórico e das notas de leitura quanto na escrita do bilhete orientador) e, posteriormente, do professor (na leitura do texto teórico e das notas de leitura, na orientação e na mediação da escrita do bilhete orientador, e na reflexão com os estudantes, propiciada pela entrevista semiestruturada, quanto às motivações para suas escolhas textuais). Esclarecemos que, em um olhar quantitativo, reunimos apenas quatro textos (duas escritas e duas reescritas) produzidos por dois estudantes. Todavia, diante de tantos processos em torno da escrita e da triangulação de perspectivas, nosso trabalho, afiliado ao paradigma qualitativo, reúne um corpus suficiente para uma pesquisa com foco tanto na escrita como processo quanto na microanálise de dados contextualmente situados.
4.1. ESCRITA, MEDIAÇÃO E REESCRITA DE MARCOS
A escrita de Marcos foi decorrente da leitura do texto teórico 1, denominado Coerência Textual: um princípio de interpretabilidade, da autoria de Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias. Após esse procedimento, Marcos, assim como seus colegas de turma, teve de escrever um texto acerca das impressões em relação ao texto lido, registrando-as como nota de leitura. O excerto 1, que se segue, representa apenas um trecho do texto de Marcos.
Ao analisarmos o excerto 1, notamos que o estudante iniciou sua nota de leitura fazendo uma referência ao conceito de coerência global (linha 1) e prosseguiu elencando os tipos de coerência (linhas 1 e 2). Na sequência, Marcos optou por apresentar, entre as linhas 2 e 5, definições que se relacionavam com o tema em desenvolvimento (a coesão). Todavia, o referente definições (à linha 2) gerou certa ambivalência de sentidos, dado que a ativação referencial poderia estar ancorada (Koch, 2015) ao conceito geral de coerência ou aos tipos de coerência, ambos anteriormente expostos. Ademais, pressupondo que o termo definições fizesse referência aos tipos de coerência, em razão da proximidade com os seis tipos e do uso do substantivo no plural (definições), não houve qualquer marcador coesivo que assegurasse, entre as linhas 3 e 5, que cada trecho com vírgula corresponderia a um tipo de coerência. Porém, uma pista foi gerada no texto: a primeira definição, à linha 3, envolvia os conhecimentos sintáticos e, portanto, estaria associada à coerência sintática (linha 2).
Como assumimos o papel de leitores (colaborativos), mesmo movidos pela atividade de dar assistência e de avaliar (assistentes e avaliadores), e, com isso, atuar no amadurecimento da ZDP, poderíamos inferir que cada trecho com vírgula, entre as linhas 3 e 5, se relacionaria com seu respectivo tipo de coerência: o princípio da não contradição (semântica), a intenção de se constituir um texto claro e objetivo (temática), a necessidade de se conhecer sua função e não se desviar dela durante a fala (pragmática), a aplicação formal da língua de acordo com a possibilidade (estilística) e o uso do gênero adequado com a necessidade ou com o espaço (genérica). Contudo, como reivindicamos frente a uma tarefa pedagógica o papel de assistentes, buscamos no bilhete orientador, oriundo de uma correção textual-interativa, a oportunidade para sinalizarmos os investimentos relativos ao amadurecimento linguístico-textual. Visamos, com essas ações, a despertar em Marcos a dissonância da descoberta, possibilitando reinvestigar, repensar, redesenhar e reescrever (Murray, 1997). Entendemos que a falta de articulação entre os tipos de coerência e as definições comprometeu a partilha de sentidos, principalmente com leitores menos familiarizados com os estudos de coerência.
Ante a essa análise textual, incluímos no bilhete orientador o seguinte trecho relacionado à nossa expectativa para o texto: “Marcos, gostei do seu texto, mas você poderia ter explorado mais as coerências: semântica, pragmática, estilística, genérica, sintática, temática”.
Em relação ao trecho escrito no bilhete orientador, a mediadora11 escolheu iniciá-lo com o elogio à produção, de modo geral, com o intuito de encorajar o discente na tarefa de reescrever. Mesmo entendendo que o texto, como um todo, atendeu ao propósito da produção, que era discorrer sobre os pontos principais do texto-base, a mediadora, como leitora e assistente, sinalizou que Marcos poderia ter explorado mais os tipos de coerência. O fato de o aprendiz ter utilizado a expressão conhecimentos sintáticos pareceu ter deixado claro à mediadora que ele tinha abordado a coerência sintática, diferentemente dos outros casos, que não faziam referência direta à coerência e foram, por conseguinte, sinalizados no bilhete orientador (“...você poderia ter explorado mais as coerências: semântica, pragmática, estilística, genérica, sintática, temática”). Além disso, constatamos que os tipos de coerência haviam sido mencionados e a orientação dada se mostrou um tanto vaga, faltando, nesse caso, sinalizar no bilhete um ajuste relacionado à articulação entre os tipos de coesão e seus respectivos conceitos. Após a leitura, a análise e a reflexão do/sobre o bilhete, o aluno passou para a etapa de recriação, propondo a seguinte segunda versão de sua nota de leitura.
O parágrafo reescrito (excerto 2) pareceu, num primeiro momento, atender à sugestão da mediadora para o aluno explorar, de forma mais ampla, os conceitos dos tipos de coerência. O aprendiz acrescentou, em sua reescrita, cada um dos tipos de coerência e relacionou-os, de forma linear, ao respectivo conceito.
Com essa decisão, notamos que o estudante havia duplicado a classificação e a conceituação, porém adotou estratégias linguístico-textuais distintas: manteve a referenciação ambivalente (linhas 1 a 5) e reforçou a relação entre tipos de coerência e conceito de modo linear (linhas 5 a 11). Entendemos, inicialmente, que tal ação se deu em função do teor do comentário no bilhete orientador: “você poderia ter explorado mais as coerências”. Ao ler essa sugestão, era esperado que o estudante tivesse a percepção de que não havia explorado adequadamente (o termo pode ter sido interpretado com vagueza e imprecisão por parte do aluno), o que implicaria a duplicação do conteúdo, no intuito de ratificar a informação exposta.
Ao conversar com o estudante acerca dos processos de escrita, de mediação e de reescrita, Marcos afirmou que achava que seu trecho estava adequado na primeira versão, pois como o avaliador, provavelmente, teria feito a leitura do texto teórico, não haveria dificuldade em fazer a correlação entre os conceitos e os tipos de coerência. O aprendiz, assim, contou com um leitor colaborativo, que teria de empreender um esforço maior para compreender o comentário produzido pelo estudante. De posse desse registro, incentivamos Marcos a buscar realizar essas conexões de modo mais linear, com o intuito de reduzir esse esforço inferencial, além de ser mais colaborativo com leitores iniciantes em outras situações de escrita. Sobre o bilhete orientador, o aluno achou estranha a solicitação, uma vez que já havia citado e definido os tipos de coerência, porém imaginou que deveria deixar o texto mais claro para o leitor, pois sentiu, ao reanalisar sua escrita, que as informações estavam meio bagunçadas, o que favoreceu, portanto, a minimização de incongruências entre sua intenção e sua execução (Sommers, 1980). Marcos, ao final, relatou que esqueceu de apagar as informações anteriores (situadas entre as linhas 1 e 5), haja vista que sua intenção não consistia em repetir o texto, mas manter apenas a relação linear entre tipos de coerência e conceitos.
4.2. ESCRITA, MEDIAÇÃO E REESCRITA DE LÚCIA
A nota de leitura de Lúcia foi produzida a partir da avaliação do texto teórico 4, denominado Notas sobre Estilo, da autoria de Márcia Niederauer. O texto da aluna contemplou aspectos relevantes da leitura, porém, em referência ao próprio título do texto teórico, a mediadora sentiu falta de uma definição mais explícita acerca de estilo. O excerto 3, a seguir, consiste em um trecho do texto de Lúcia.
Notamos, à linha 1, um registro informal (macetes) e uma seleção lexical indevida (discurso), que poderia causar certa dúvida, em uma leitura rápida, entre o substantivo (o discurso) e o verbo (eu discurso). No primeiro período (entre as linhas 1 e 3), Lúcia lançou mão da metáfora do desfile militar, mencionada pela autora do texto teórico, e esclareceu que as normas não eram as únicas exigências para se escrever um bom texto. A discente deixou para apresentar o que seria necessário para a escrita de um bom texto somente no período subsequente (linhas 3 e 4). À linha 4, fez referência ao termo estilo, sem tê-lo definido, e, na sequência, suavizou o argumento utilizado (de que não era necessário apenas obedecer normas pré-estabelecidas para se ter um bom texto), entre as linhas 4 e 6, embora tivesse reforçado a serventia das normas para fortalecer o texto, entre as linhas 6 e 7.
Dando continuidade ao texto, Lúcia, às linhas 8 e 9, citou aspectos necessários para um bom texto e reforçou-os às linhas 9 e 10. A aprendiz esclareceu, entre as linhas 10 e 12, que a impessoalidade e a objetividade não garantiam uma boa escrita, porém seu texto apresentou trecho pouco informativo: “isso não significa que deva ser apenas isso”. O emprego do adjetivo estiloso, presente à linha 12, ocorreu sem que houvesse explicação anterior acerca de estilo, tampouco esclarecimento sobre o adjetivo em uso. Por fim, a discente, mesmo sem ter conceituado estilo/estiloso, encerrou seu texto, à linha 13, afirmando que a escrita de texto estiloso poderia ser aprendida.
Nos papéis de leitores, assistentes e avaliadores, encontramos no texto de Lúcia várias informações oriundas do texto teórico, ficando implícito na produção da estudante que o estilo estaria ligado às escolhas particulares. Para que ativássemos essa leitura, era necessário nos atentarmos para as pistas lançadas no texto: desfile militar e normas pré-estabelecidas (linhas 2 e 3); marcar presença e ser notado (linhas 3 e 4); normas não são suficientes para a composição de um bom texto (linhas 4 e 5); serventia das normas para fortalecer o texto (linhas 6 e 7); textos impessoais e objetivos podem ser tediosos (linhas 10 a 12). Tais pistas, contudo, só foram acessadas em função de termos realizado a leitura do texto teórico, o que sugeriria que estilo estaria ligado a particularidades de cada sujeito (as marcas pessoais) expressas em seu próprio texto. Coube a nós, como leitores e assistentes, propormos no bilhete orientador uma reflexão quanto à dificuldade do leitor em acessar a perspectiva de estilo da autora e, mais especificamente, de estilo no texto acadêmico. Essa associação estava muito clara para a estudante e para nós, por termos lido o texto teórico, porém o acesso era indireto, o que poderia gerar sobrecarga inferencial e baixa informatividade no que tange à produção textual. Assim como na análise anterior, almejamos despertar em Lúcia, por meio de atividade mediativa (Vygostksy, 1978, 2008), a dissonância da descoberta e, consequentemente, a reflexividade linguístico-textual.
Com base nessa constatação, produzimos a seguinte orientação, buscando ampliar o texto produzido e aplicar o conceito de estilo no texto acadêmico: “Lúcia, gostei muito do seu texto, porém as perspectivas de estilo no texto acadêmico, defendidas pela autora, apareceram muito sucintamente em seu texto. Sugiro, então, que aprofunde mais essa reflexão”. Nossa meta, ao elogiar a discente, era sinalizar que ela havia atendido a uma das finalidades da nota de leitura, que consistia em registrar as suas impressões acerca do texto, e tal conteúdo estava, de certo modo, presente na obra avaliada.
O bilhete orientador teve teor diretivo, na medida em que propôs uma mudança pontual e qualificou a produção da estudante com o elogio intensificado (“gostei muito do seu texto”). Além disso, a mediadora suavizou o teor crítico da orientação, ao mencionar que as reflexões relativas a estilo no texto acadêmico aconteceram, porém essa ação não havia sido suficiente e poderia, assim, ser ampliada na segunda versão. Em atendimento à demanda proposta no bilhete, apresentamos o excerto 4, que representa o trecho acrescentado pela estudante ao excerto 3, com a finalidade de acatar a recomendação da mediadora.
Em conversa sobre a sua produção, a aluna afirmou que recebeu a sugestão do bilhete orientador, refletiu sobre a necessidade de atendimento às sinalizações e promoveu o acréscimo de informações relativas à perspectiva de estilo no texto acadêmico, buscando, com isso, aprimorar a sua produção, decorrente das ações de leitura, de análise, de reflexão e de recriação, sem, entretanto, avaliar as sugestões como impositivas ou voltadas para a produção de um texto ideal. A reescrita de Lúcia ainda reproduzia um conceito indireto, pois a autora optou por exemplificar o que seria o estilo em um texto acadêmico, abrindo mão de propor qualquer definição mais técnica que o texto teórico pudesse ter inspirado. Todavia, não podemos negar que a discente exemplificou e, com essa decisão, forneceu mais elementos para que o leitor pudesse construir o seu conceito de estilo em textos acadêmicos.
Em face dessa opção da estudante em não aplicar, diretamente, o conceito de estilo em textos acadêmicos, Lúcia relatou que os exemplos já faziam indiretamente essa associação e preferia deixar a nota de leitura mais leve, uma vez que o estilo da aprendiz, confessou ela, tendia mais para uma escrita informal, por avaliar que tal estilo promovia maior adesão dos leitores. Desse modo, como os nossos bilhetes eram orientadores (e não determinantes) para a reescrita, compreendemos que a opção de Lúcia pareceu bastante coerente, uma vez que o estilo da mediadora solicitava uma definição mais explícita, e a autora buscava ser mais indireta na conceituação do que seria o estilo em textos acadêmicos, o que reforça a nossa pressuposição de que as orientações para a reescrita devem sempre respeitar as intenções do sujeito-autor.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escrita, mediação e reescrita constituem etapas fulcrais no processo de aprendizagem. Entretanto, o que nos parece central nessas tarefas é a reflexividade quanto a investimentos necessários para a reescrita, inerente, em primeiro lugar, aos debates realizados em sala e, em especial, aos bilhetes orientadores, visto não considerarmos coerente o atendimento (irrefletido) à proposta do mediador, causada pela assimetria existente entre professor/monitoras e aprendiz. Nesse ínterim, cabe ao mediador, como leitor, assistente e avaliador, sugerir ferramentas mais adequadas para que leitura, análise, reflexão e recriação sejam etapas contínuas no exercício crítico do próprio processo de composição textual, com vistas a minimizar as prováveis incongruências e, com isso, ampliar a capacidade de escrita do aprendiz. Cabe ressaltar, ainda, que o espaço dedicado à reflexão sobre a escrita propiciado pela entrevista semiestruturada tornou possível ter acesso ao estilo dos estudantes (as escolhas concernentes ao processo de escrita) e dar visibilidade às impressões que tivemos durante a leitura do texto. Nesse sentido, consideramos salutares, no âmbito pedagógico, práticas de leitura, escrita, debate, mediação escrita, reescrita e entrevista oral, ao visionarmos, sobretudo, que uma prática engendra a outra. Ou seja, a leitura, por meio de uma proposta de produção, motiva a escrita; esta, por materializar uma reflexão, alimenta o debate; este, em conjunto com a mediação escrita decorrente do bilhete orientador, gera uma reescrita; e esta, por fim, torna possível refletir não só sobre a escrita, mas sobre todo o processo, que é criativo, autoral e idiossincrático.
Sob essa perspectiva, notamos que o contexto acadêmico precisa sensibilizar o professor para a percepção do efeito resultante de suas próprias ações, de modo a refletir, antes de tudo, em relação ao teor de seu bilhete orientador, na busca por sugestões claras, específicas e, especialmente, consonantes com as metas do sujeito-autor. Ao assumir o papel de leitor, assistente e avaliador, o professor acaba ponderando bem, em nossa visão, suas ações, pois se o docente assume caráter muito professoral (normativo), o aprendiz, provavelmente, tenderá a não se sentir autor legítimo de sua produção, retificando exclusivamente aspectos normativos sinalizados; e se o mediador se porta como leitor comum, o estudante pode não atribuir qualquer crédito à análise realizada.
Em suma, os resultados da pesquisa sinalizaram que ambos os estudantes leram, analisaram e refletiram, antes de recriarem seus textos, o que resulta afirmar que tais processos motivaram os estudantes a, de fato, reescreverem, distanciando-se de tarefas meramente mecânicas e normativas. Acreditamos que a estratégia de elogio colaborou para que os aprendizes pudessem sentir que suas escritas foram, de certa forma, apreciadas, incentivando a reflexão e a ampliação linguístico-textual.
Em referência ao objetivo proposto para este estudo, concluímos que a interação entre mediadores e estudantes se deu, em certa medida, por meio dos bilhetes orientadores, na medida em que propiciaram o amadurecimento da ZDP (Vygotsky, 1978, 2008); a redução da dissonância (Sommers, 1980); o favorecimento tanto do exercício de reinvestigar, repensar, redesenhar e reescrever (Murray, 1997) quanto de revisar (planejamento, tradução, inspeção) (Flower & Hayes, 1981) em uma instância intercognitiva/intersubjetiva; a atuação de um mediador, ao mesmo tempo, leitor, assistente, avaliador e examinador (Tribble, 1996), por meio de uma correção classificatória (Serafini, 1995) e, principalmente, textual-interativa (Ruiz, 1998). Esse conjunto de ações ratificaram, assim, nossa expectativa linguístico-textual e, portanto, discursiva em relação às produções dos estudantes. Consideramos, nesse viés, que a mediação propiciou a reflexão e a ampliação linguístico-textual das primeiras versões apresentadas, colaborando para que os estudantes pudessem acatar ou desacatar as instruções que lhes foram sugeridas, a depender de suas intencionalidades na produção de seus textos.
Quando o professor compreende, de fato, a importância de seus comentários na ampliação textual dos aprendizes, ele acaba por refletir acerca do teor de suas observações, o que pode acarretar uma melhoria na qualidade dos comentários e, por conseguinte, progressos avaliativos (Menegassi, 2000, p. 84). No processo de pré-escrita, escrita e reescrita, salientamos, por fim, que professor, monitoras e estudantes se tornam, de fato, atores sociais em pleno exercício de negociação linguageira.