1. INTRODUÇÃO
O uso de narrativas biográficas em investigações qualitativas não é uma tendência recente, segundo Passeggi et al. (2016). Apesar dos momentos de maior e menor valorização enquanto método, fonte e recurso de investigação, as narrativas fazem-se presentes há quase um século nos mais diversos cenários e línguas (alemão, anglo-saxão, francês, espanhol e português), encetando o desenvolvimento de abordagens epistemológicas e metodológicas (Passeggi et al., 2016).
No campo da saúde, seu uso consagrado, sobretudo nos contextos abertos às interseções com as ciências humanas e sociais, fez das narrativas um meio de acesso às histórias vividas por pacientes, acompanhantes e profissionais, além de instrumento para refletir sobre os discursos e as ações empreendidas no curso de intervenções e implementações de programas, projetos e ações políticas e estratégicas (Onocko Campos & Furtado, 2008). Mais recentemente, coloca-se em relevo o documento lançado pela Organização Mundial da Saúde intitulado “Cultural contexts of health: The use of narrative research in the health sector” (Greenhalgh, 2016), no qual as narrativas são apresentadas enquanto uma ferramenta essencial para relatar e compreender as práticas e os comportamentos de pessoas e grupos.
No que se refere ao cenário francês, o desenvolvimento da abordagem biográfica em educação assume como preocupação central a compreensão dos processos de construção dos sujeitos no seio do espaço social, apreendendo as maneiras pelas quais eles dão forma às suas experiências, como fazem para encontrar um sentido às situações e fatos vividos. Seus objetos/sujeitos de estudo são o indivíduo como ser social singular, a temporalidade da experiência, a configuração histórica da relação entre o indivíduo e o social, o que permite a análise do processo de biografização1 (Delory-Momberger, 2012, 2014). Os sujeitos são, mais do que portadores de suas histórias, protagonistas das mesmas e dos saberes e conhecimentos adquiridos no curso da trajetória de vida. O investigador que deseja fazer uso das narrativas no escopo dessa abordagem é levado, portanto, a construir relações horizontais com os participantes da investigação baseadas no diálogo, na escuta, na empatia, na alteridade e em uma postura compreensiva. Esses elementos, tomados como valores, tornam-se meios que favorecem a construção de elos de confiança através dos quais a narrativa ganha forma e o conhecimento é produzido.
Todavia, a passagem da teoria ao campo, através dos atos de estruturação da investigação, exige do pesquisador uma reflexão acerca dos modos pelos quais os encontros se darão e as etapas de pesquisa serão estruturadas. Tal reflexão torna-se ainda mais central quando o investigador é confrontado permanentemente com situações sensíveis de vulnerabilidade, de sofrimento, de dor, onde a fragilidade dos elos entre vida e morte coloca os sujeitos à prova de seus próprios recursos psíquicos para elaborar o vivido. A questão que emerge diz respeito a como desenvolver uma sensibilidade e uma escuta de si e do outro em tais contextos de pesquisa.
A fim de responder a esse questionamento, com vias a explorar as diferentes dimensões da relação entre investigadores e participantes das investigações a partir da abordagem da pesquisa biográfica em educação, o presente artigo colocará em relevo as dimensões que estão no centro das preocupações da referida abordagem – ética e deontológica; heterobiográfica; engajamento social –, em diálogo com uma investigação de pós-doutoramento realizada em um serviço de reanimação pediátrica e cuidados paliativos de um hospital de referência da cidade de Paris/França. Pretendeu-se, com isso, trazer à luz a postura adotada pelo investigador, as escolhas metodológicas, a maneira de conduzir o trabalho de campo e o processo de interpretação e análise, a fim de tecer os laços entre investigação, saúde e educação com vistas a enfatizar a relevância social da abordagem biográfica em educação e seu carácter interdisciplinar. Para tanto, o universo do estudo será, primeiramente, apresentado para ser possível, em seguida, discutir sobre as dimensões
2. O UNIVERSO DA REANIMAÇÃO PEDIÁTRICA E DOS CUIDADOS PALIATIVOS
O universo da reanimação pediátrica e dos cuidados intensivos pediátricos é marcado por um conjunto de situações complexas, difíceis e duras de serem vividas tanto pelas crianças e suas famílias, quanto pelos profissionais de saúde. Tendo por objetivo restabelecer funções vitais – respiratória, metabólica, digestiva, neurológica – que porventura apresentem algum tipo de disfunção ou comprometimento, a reanimação pediátrica e os cuidados intensivos pediátricos constituem-se um campo de saber e práticas que acolhem crianças que apresentam situações agudas e/ou crónicas, nas quais a vida está em risco (Séguret et al., 2012). Nesse universo, a confrontação entre vida e morte, com a finitude humana, tão bem reprimida à esfera do inconsciente a fim de tornar possível o investimento em projetos de vida, atravessa, marca e baliza a prática dos profissionais, assim como altera, atravessa, transforma a dinâmica de vida de crianças e suas famílias.
O quotidiano do trabalho nesse universo é, inevitavelmente, atravessado pelo medo, pela dor, pela tristeza, pela angústia diante da possibilidade de morte de um filho, de um paciente. Investidos de seus saberes e conhecimentos, os profissionais que se engajam em trabalhar nesse universo carregam consigo o intuito de salvar, curar, recuperar e contribuir para uma alta hospitalar que permita à criança um recomeço, uma nova oportunidade e uma continuidade do seu projeto de vida junto à sua família. Um elemento-chave que deu corpo e robustez a esse intuído diz respeito ao progresso científico do campo biomédico, que evoluiu imenso no curso dos últimos 20 anos, diversificando e aumentando a oferta de técnicas, intervenções clínicas e cirúrgicas voltadas para o cuidado e para a sobrevida de crianças portadoras de patologias crónicas (Dubois et al., 2018). Se há pouco mais de 20 anos os profissionais de saúde viam-se limitados em suas intervenções devido aos recursos existentes, hoje em dia os limites são colocados por questões éticas e legais que os levam a questionar suas práticas e refletir sobre o rumo das mesmas a fim de não insistir em certos projetos de cuidado que levariam à obstinação terapêutica ou que produziriam novas deficiências e limitações nas crianças em decorrência da tentativa de salvá-las (Dubois et al., 2018). Os profissionais podem, com isso, encontrar-se atravessados por questionamentos e sentimentos de responsabilidade e de culpa oriundos das escolhas que precisam fazer no curso de suas trajetórias de trabalho (Séguret et al., 2012).
Especialmente no cenário francês, de onde emergem as reflexões e a discussão propostas neste artigo, a promulgação da lei Leonetti, número 2005-370, de 22 de abril de 2005, vem balizando as decisões dos profissionais de saúde acerca dos projetos de cuidado propostos aos doentes de modo que, atualmente, pode-se falar que um em cada dois casos de insucesso na tentativa de salvar um doente em reanimação e cuidados intensivos deve-se à decisão de suspender ou limitar os tratamentos que levem à obstinação terapêutica e ao sofrimento do doente (Dubois et al., 2018). Soma-se, então, a esse universo marcado por tantas situações complexas e difíceis, a mudança de projeto de cuidado que passa do curativo ao paliativo, da intervenção ao acompanhamento.
No que diz respeito à dinâmica do trabalho em reanimação pediátrica e cuidados intensivos, destacam-se as jornadas repletas de imprevistos, emergências, os plantões de 12 ou 24 horas em um serviço fechado, o que demanda um elevado grau de concentração dos profissionais. A lógica do trabalho compartilhado e interdisciplinar vem dar o tom da interação entre os colegas e demanda o aprendizado de competências e habilidades comunicacionais que favoreçam uma boa interlocução entre os mesmos e com as crianças e suas famílias.
Diante dos elementos em tela, realizou-se uma pesquisa que buscou compreender a construção da trajetória biográfica dos profissionais de saúde que trabalham em reanimação e cuidados intensivos, assim como os aprendizados adquiridos no curso das experiências vividas pelos mesmos. Para tanto, a pesquisa desenvolveu-se segundo um enfoque qualitativo, de base antropológica, tendo como abordagem a pesquisa biográfica em educação.
O local de estudo foi um serviço de reanimação pediátrica e cuidados intensivos de um hospital de referência aos cuidados de crianças, situados na cidade de Paris/França. Trata-se de um serviço composto por 32 leitos, que conta com 13 médicos, além de psicólogos, terapeuta ocupacional, assistente social, educadora hospitalar, enfermeiros, técnicos de enfermagem e secretárias, que juntos compõem a equipe do serviço. A pesquisa desenvolveu-se entre os meses de junho/2018 e setembro/2019, tendo como participantes os profissionais do serviço. Os demais detalhes da investigação serão abordados nas seções subsequentes do presente artigo a fim de articulá-los à reflexão acerca das dimensões que compõem a abordagem biográfica em educação.
3. VALORES, POSTURAS E ATITUDES A DEFENDER EM INVESTIGAÇÕES DE BASE BIOGRÁFICA: A DIMENSÃO ÉTICA E DEONTOLÓGICA
A fim de refletir sobre a primeira dimensão em questão, é preciso, inicialmente, levar em consideração a intencionalidade de uma investigação realizada segundo a abordagem da pesquisa biográfica em educação: compreender o processo de génese social dos indivíduos com vistas a mostrar como os mesmos passam a significar as experiências vividas no curso de suas existências no seio do espaço social (Delory-Momberger, 2012, 2014). Trata-se de um estudo sobre “como os seres humanos experimentam o mundo” (Vásquez & Arena, 2017, p. 192).
O desenvolvimento de uma investigação de base biográfica tomará a narrativa como meio privilegiado de acesso à experiência vivida, uma vez que através da mesma é possível compreender, na sequência das etapas da investigação, os vínculos existentes entre o contexto social, suas transformações e a vida de indivíduos, os eventos vividos, seus relacionamentos, seus projetos interpessoais futuros, etc. (Josso, 2007). A narração das experiências vividas possibilita observar como os indivíduos constroem sua existência no espaço e no tempo a partir de certos padrões discursivos, figuras de linguagem e de sintaxe, que tomam forma através das palavras (Delory-Momberger, 2014). A narração possibilita, portanto, destacar a pluralidade, a fragilidade e a mobilidade desse processo de construção da identidade durante o curso de uma vida (Josso, 2007).
Entende-se, com isso, que esse tipo de investigação irá se debruçar sobre a história de vida dos indivíduos, o que pressupõe não se restringir aos níveis superficiais das experiências, mas erigir um olhar e uma postura que ajude os participantes da investigação a entrarem em contacto consigo mesmos e explorarem em profundidade as experiências vividas.
Sendo assim, os primeiros aspetos a considerar na dimensão ética e deontológica giram em torno dos valores que norteiam a conduta do pesquisador, assim como as posturas e as atitudes a serem assumidas na condução da investigação. Como ponto de partida, salienta-se a adoção de uma postura de abertura sincera ao universo onde estão inseridos os participantes e de onde emergem e são construídos os saberes e conhecimentos ligados às suas práticas e ações. Tal abertura exige também considerar que a dimensão da coconstrução do conhecimento não deve circunscrever-se ao momento da produção dos resultados e discussão, mas precisa ser objeto de preocupação desde a entrada do campo.
No contexto da investigação realizada junto ao grupo de profissionais do serviço de reanimação pediátrica e cuidados intensivos pediátricos em Paris, a resposta a essa preocupação foi construída por meio da adoção da observação participante como técnica de entrada no campo. Segundo Laplantine (2003), a observação participante possibilita levar em conta e apreender as atividades e os relacionamentos construídos pelo grupo de indivíduos observados. Para além disso, escolher começar a investigação pela observação participante favoreceu uma apresentação paulatina da investigação em curso, a criação de espaços de troca e diálogo com os participantes com vistas a entender como os profissionais em seus espaços de trabalho constroem-se enquanto grupo e como fazem circular valores, normas e códigos sociais (Canesqui, 2007; Creswell, 1997; Machado, 1995; Moreira & Souza, 2002; Nunes, 2009).
Em termos práticos, a observação participante foi organizada em torno do acompanhamento dos profissionais em suas tarefas diárias, a fim de compreender as especificidades de cada categoria profissional no universo estudado e as atividades coletivas da equipa, como os staffs éticos, as passagens de plantão de médicos e de enfermeiros, os staffs médico-psicológicos de natureza interdisciplinar e a “heure de pose” (tempo organizado pelo psicólogo dedicado aos cuidadores para discutir sobre o trabalho, os eventos vivenciados durante a semana, etc.). Durante um mês e meio, o trabalho de campo foi, portanto, dividido entre as tarefas específicas de cada profissional e as atividades coletivas da equipa.
Dessa forma, foi possível entender a organização do serviço e a dinâmica do processo de trabalho, o que permitiu também entender como o ethos do grupo é construído por meio de interações sociais. Um diário de bordo foi usado como uma ferramenta para registar tudo o que foi observado.
A articulação entre a abordagem da pesquisa biográfica em educação e a observação participante permitiu, assim, tecer os primeiros fios entre a dimensão individual da constituição dos indivíduos no espaço social, profissional e as práticas de cuidado construídas e compartilhadas. Além disso, tal articulação permitiu, em termos éticos, construir uma relação com os participantes pautada pela transparência no desenvolvimento da investigação. A construção desse vínculo transformou paulatinamente o estranhamento inicial ligado à presença da pesquisadora em um universo que, por natureza, é fechado e restrito. Primar por esses princípios desde o início da investigação repercutiu na realização posterior das entrevistas biográficas, o que será abordado nos parágrafos subsequentes.
Partindo da ideia de que a partilha de uma história de vida é favorecida quando estabeleço uma relação de proximidade com o interlocutor, ao final do primeiro mês de observação participante foi iniciada a etapa das entrevistas biográficas não diretivas com os profissionais. Da pergunta inicial “Conte-me: como começou sua trajetória no campo dos cuidados intensivos pediátricos e da reanimação pediátrica?”, os participantes foram convidados a dialogar com a pesquisadora sobre os eventos vivenciados, as escolhas feitas, as decisões tomadas, as situações e experiências vividas, assim como os aprendizados adquiridos durante a formação e prática profissional2.
Em termos de conduta do pesquisador, é importante salientar que esse tipo de entrevista exige o desenvolvimento de uma atitude compreensiva que, segundo o célebre estudo de Porter (1950), corresponde à atitude empática defendida por Carl Rogers (1967) em sua abordagem humanista, a qual busca compreender a interioridade do estado do outro e apreender os aspetos afetivos relacionados ao significado do que foi vivido. No seio da construção dessa atitude, outros princípios humanistas defendidos por Rogers (1967) destacam-se: maturação, congruência e neutralidade atenciosa. Por maturação compreende-se o direito do outro de autodirigir-se no curso da construção da narrativa. Por congruência, a importância de ser honesto frente ao entrevistado quando algo que foi dito não foi compreendido e demandar, por isso, algum tipo de esclarecimento ou aprofundamento. E por neutralidade atenciosa, a ausência de julgamento e acolhida sincera daquilo que o outro compartilha em sua narrativa.
Assim, a realização de entrevistas biográficas não diretivas exige conceber os sujeitos participantes da pesquisa como atores sociais que participam ativamente do processo de construção do conhecimento, o que demanda do pesquisador o estabelecimento de relações horizontais e respeitosas do outro enquanto sujeito da sua história. Tais valores, posturas e atitudes continuam guiando o pesquisador no curso da investigação, porém novas estratégias e novos recursos metodológicos são acionados a fim de explorar a segunda dimensão em foco nesse artigo: heterobiográfica.
4. ENCONTROS, RECIPROCIDADE E REVERBERAÇÕES: A DIMENSÃO HETEROBIOGRÁFICA
Se a pesquisa biográfica em educação busca apreender como o indivíduo se constrói na vida e compreender a inscrição da experiência humana em certos padrões narrativos e temporais que trazem à tona os projetos biográficos elaborados pelos indivíduos, organizando seus comportamentos e ações, a narrativa torna-se o material de base e um território central de trabalho (Delory-Momberger, 2014). A construção dessa narrativa passa não somente por uma relação de confiança e proximidade, como já evocado no item anterior, como é geradora de efeitos e reverberações a partir do ato de contar sua história e de escutar a história do outro. Para o sujeito participante da investigação, o convite para construir uma narrativa em torno daquilo que foi experienciado é um elemento que desencadeia um movimento de revisão, reflexão, reencontro consigo mesmo a fim de encontrar sentido e dar forma ao que foi vivido. Por meio da narrativa, os indivíduos encontram meios de religar os fatos, eventos e experiências vividos. A construção da história de vida também leva o indivíduo a explorar seus recursos, o que pode ajudá-lo a descobrir, redescobrir, valorizar e fortalecer suas forças internas e seu potencial de ação no mundo (Delory-Momberger, 2014).
No que diz respeito ao pesquisador, a escuta de uma história de vida, não só permite aprofundar o grau de apreensão e compreensão dos fenômenos estudados, mas também ampliar sua visão de mundo. Como nesta abordagem existe uma inflexão entre o indivíduo e o social, entende-se que o mundo social se constitui paulatinamente na medida em que as experiências vão acontecendo e os saberes vão sendo construídos. A realidade a ser estudada e compreendida não é tida como um fato social dado, mas construída através das experiências vividas e acumuladas. Assim, a escuta ativa da história do outro permite ao pesquisador desencadear um exercício compreensivo tanto do sujeito, enquanto explorador e construtor de sua história de vida, quanto do espaço social no qual o sujeito está inserido.
Esses encontros e reverberações são os fios que começam a tecer a dimensão heterobiográfica dentro do espaço-tempo no qual se desenvolve a investigação. Dentro do mesmo, os sujeitos participantes têm a oportunidade de se reconhecerem como partes integrantes da investigação e de ampliarem o sentido de participarem da mesma, assim como o pesquisador pode aprender como os sujeitos se constroem em relação com o espaço social, fazendo evoluir suas reflexões de forma engajada eticamente na busca por sentidos que estejam em consonância com o universo estudado.
No contexto da investigação em tela, a dimensão heterobiográfica foi explorada em diferentes momentos, com maior ênfase na fase da interpretação das entrevistas, a qual foi dividida em três etapas principais. A primeira dedicada à transcrição de cada entrevista, seguida pelo seu envio a cada participante para leitura, comentários e acréscimos, se assim o desejassem. Alguns profissionais fizeram comentários por escrito, outros fizeram comentários durante as reuniões de serviço e outros não retornaram. Entre os que retornaram com comentários, destacam-se falas como: “Desde a entrevista venho pensando sobre tudo o que conversamos” (médico 1); “Pela primeira vez leio uma entrevista que fizeram comigo e isso não me causou nenhum desconforto, ao contrário, tem me feito pensar sobre o meu trabalho” (médico 2); “É interessante ver como vivi tantas coisas nesses últimos anos... não tinha me dado conta” (enfermeira 1).
A segunda etapa foi organizada em torno da interpretação de cada história, individualmente, de acordo com o método hermenêutico desenvolvido por Delory-Momberger (2014), utilizando o modelo de Walter Heinz. Este trabalho iniciou-se com dois momentos de leitura, que permitiram identificar como cada um construiu sua história através das diferentes formas de discurso, dos motivos recorrentes na história, do uso de palavras para significar, sublinhar, ilustrar os eventos passados, dos padrões de ação construídos e que mostram como cada profissional de saúde articula os principais temas e argumentos evocados em sua história de vida.
Além disso, os conceitos de transação (ação que produz uma relação entre dois elementos), de eventos (ação exercida pelo ambiente sobre o ser) (Pineau & Marie-Michelle, 2012) e de “turning point” (ponto de virada no curso da vida, da transição) (Abbot, 2009) possibilitaram apreender o trabalho de reflexão e raciocínio em torno das experiências vividas, as quais permitiram aos profissionais fazer certas escolhas na construção de sua carreira e avançar no engajamento profissional.
Se a narração é o local central em que a experiência privada torna-se pública por meio da linguagem, um meio de expressão da racionalidade humana e que permite ao pesquisador entender a experiência vivida pelo indivíduo (Ricœur, 1965), o método estabelecido colocou em relevo as experiências significativas destacadas pelos participantes, as estratégias encontradas para enfrentar as dificuldades da profissão e a correlação entre o que foi vivido e os aprendizados adquiridos. Trata-se de encontrar elos entre o que o indivíduo conta, como ele conta o que foi vivido no espaço e no tempo de sua história.
Essa segunda etapa de interpretação deu origem a um documento referente a cada participante, no qual foram destacados os principais elementos da história e as correlações estabelecidas durante os eventos vivenciados no curso de suas vidas. Este documento foi composto por uma linha do tempo (Lainé, 2007), construída com os elementos mais marcantes mencionados na narrativa da experiência vivida, seguida do texto de interpretação da narrativa. A linha do tempo serviu como suporte para fazer um inventário das experiências que constituíram a trajetória de cada profissional, o que ajudou a enriquecer o trabalho de interpretação e a destacar as correlações entre determinados eventos, seus impactos na tomada de decisões e as lições aprendidas (Lainé, 2007). Cada participante recebeu seu próprio texto e um novo espaço de diálogo com o pesquisador foi aberto para comentários, críticas e esclarecimentos.
A partilha deste material aprofundou o pertencimento dos sujeitos participantes à investigação, na medida em que o mesmo serviu como um primeiro resultado do trabalho de campo, fazendo com que os participantes acompanhassem a evolução da investigação e se sentissem colaborando a cada etapa.
Para o pesquisador, trata-se do momento mais delicado no processo investigativo, que carece de atenção e zelo para, de um lado, usar as ferramentas adequadas para uma interpretação em consonância com o objetivo da pesquisa e, de outro, ofertar um material aos sujeitos participantes que respeite suas histórias de vida, suas trajetórias, colocando em relevo a dimensão de construção biográfica no seio do espaço social onde trabalham. Os primeiros fios da dimensão heterobiográfica auxiliaram nessa tarefa, mas sobretudo o compromisso com a partilha da fase interpretativa reforçou tal dimensão, aprofundando-a e ampliando-a. No retorno de certos participantes, após leitura do material interpretativo, destacam-se falas tais como: “Foi muito interessante ler a interpretação, pois me fez ver como aprendi na minha trajetória” (terapeuta ocupacional); “Foi engraçado ler a interpretação, pois não tinha me dado conta das correlações entre pessoas e fatos na minha vida” (psicóloga 1); “Que trabalho interessante... é isso mesmo! [em relação à correlação de eventos vividos no curso da história de vida] (médico 3); “Não vejo a hora de ver os resultados finais do teu trabalho” (enfermeira 4).
Assim, a partilha tanto das narrativas transcritas, quanto da interpretação das mesmas abre e explora esse espaço heterobiográfico, o qual permite dar continuidade às trocas e partilhas em torno dos objetivos da pesquisa, aprofundar e enriquecer as reflexões e compreensões dos fenómenos vividos pelos sujeitos participantes. Participantes e pesquisador evoluem através do exercício hermenêutico. Os sentidos de engajar-se na investigação e de participar da mesma encontram um espaço fértil de partilha, que favorece a construção de um significado horizontal acerca da realização da investigação no espaço da reanimação pediátrica e dos cuidados intensivos pediátricos3. A construção desse significado horizontal reflete na próxima dimensão em questão e leva o pesquisador a evoluir em suas reflexões acerca das contribuições do trabalho não só para cada participante, mas também para o conjunto de profissionais.
5. TECENDO OS ELOS ENTRE AS ESFERAS INDIVIDUAL E COLETIVA: A DIMENSÃO DE ENGAJAMENTO SOCIAL
Se as narrativas construídas estão forçosamente relacionadas com a ação de cada sujeito participante no espaço social do trabalho, é preciso que a investigação biográfica avance em direção às contribuições que pode ofertar em termos coletivos, ou seja, com vistas a trazer para o conjunto de profissionais conhecimentos, saberes e referências que colaborem com a melhoria de suas ações enquanto grupo que vive e partilha de experiências de vida semelhantes e construídas no mesmo espaço-tempo. Como salientam Vásquez e Arena (2017), a investigação narrativa marca a sua importância tanto trazendo à luz ideias oriundas da experiência humana, quanto analisando as relações entre o conhecimento e a vida humana, o que permite interrogar as práticas nos diferentes campos do conhecimento.
Segundo a abordagem de Ricœur (1965), que assume o exercício hermenêutico a partir de uma perspetiva que ele chama em seus estudos e reflexões de “via longa”, o trabalho de interpretação requer que o pesquisador se esforce para penetrar, através da linguagem, no trabalho subjetivo que o sujeito faz através das palavras para dar forma à sua história de vida. Contudo, se a história de cada um encontra a história do outro no contexto social (Honoré, 2013a), os sujeitos que participam de um mesmo coletivo estão sempre em estado de interformação de suas práticas.
Segundo Henriques (2014), com base em seus estudos sobre o trabalho de Ricœur, o discurso é o lugar onde se cruzam os sinais e símbolos da linguagem e a relação com o mundo estabelecida pelo indivíduo. Assim, a terceira etapa metodológica da investigação em tela avançou em direção à dimensão coletiva das experiências dos sujeitos participantes. Ou seja, a partir da interpretação de cada história e do material produzido no segundo momento, foi possível estabelecer um cruzamento entre as diferentes trajetórias de vida, a fim de apreender os pontos de convergência e de singularidade entre os participantes. Do trabalho interpretativo emergiram os elementos que desvelaram os pontos de intersecção, de cruzamento entre o nível singular da experiência vivida e o coletivo, que pertence ao grupo enquanto organismo vivo que se forma, se socializa e se transforma em permanência. Esta terceira etapa possibilitou compreender os fenómenos vivenciados pelos participantes sob uma perspetiva global, apreendendo os elementos presentes no processo de socialização e interação social construídos no serviço e que contribuem para a construção de uma ação de cuidar em reanimação pediátrica e cuidados intensivos pediátricos.
Os resultados desse exercício analítico e sintético, que caracterizam a terceira etapa, colocaram em evidência os elementos comuns que dão forma aos processos de socialização e de interação social pelos quais os profissionais passam no seio do serviço, assim como os processos formativos que emergem das experiências vividas, suas potencialidades, barreiras e dificuldades, bem como os saberes experienciais que nascem no quotidiano do trabalho. A partilha e apresentação dos resultados dessa etapa final desencadeou discussões coletivas com o grupo de profissionais que se viram representados e compreendidos pela investigação e pelo pesquisador, o que gerou a demanda de organizar novos encontros para apresentação da análise e síntese dos resultados a fim de abarcar os mais de 100 profissionais do serviço. Além disso, estimulou a reflexão sobre a forma como os novos colegas que chegam ao serviço se formam, como acompanham aqueles que ali trabalham, levando em conta os múltiplos elementos presentes no cenário de estudo e que atravessam, esculpem e forjam o processo formativo dos sujeitos.
6. CONCLUSÃO
Investigações que tomam como método a construção de narrativas e que se focam nas histórias de vida como meio e terreno de produção de conhecimento são, antes de tudo, atravessadas por um conjunto de reflexões de ordem ética, deontológica e social. O investigador vai ao encontro dos sujeitos, adentra nos espaços de sociabilidade, circula nas esferas públicas e privadas seja pela observação, seja através da narração do outro. Portanto, trata-se de uma investigação que exige levar em conta as assimetrias das relações, os estranhamentos produzidos pelo olhar e pela presença do pesquisador e a construção de vínculos com os sujeitos.
A captação pela narrativa dos eventos marcantes, das interações e dos processos de transação, de biografizacão e, portanto, de gestão biográfica face às experiências vividas são vantagens da abordagem em tela. Ou seja, são tanto especificidades quanto potências da abordagem que permitem compreender como as pessoas se formam por meio das experiências vividas. O diálogo tecido entre as dimensões do social e do indivíduo permite igualmente compreender a construção dos sujeitos e suas influências na dinâmica do trabalho e do cuidado. Todavia, o acesso a esses elementos, processos e dinâmicas, sobretudo em cenários complexos como o universo da reanimação pediátrica e dos cuidados intensivos pediátricos, exige uma implicação do investigador e a construção de elos de confiança com os sujeitos participantes do estudo e com o universo onde estão inseridos, buscando apreender o campo a partir de uma perspetiva vivencial. A boa medida para conjugar distanciamento, implicação e confiança emerge da reflexão ética em torno da postura do pesquisador, que o leva a adotar as ferramentas metodológicas que o ajudarão a tecer os elos que permitirão conduzir uma investigação horizontalizada, próxima dos participantes, que faça sentido não só para o pesquisador, mas que também cumpra com o compromisso social de trazer ao coletivo conhecimentos que o auxiliem em seus processos de transformação e emancipação.
Apesar da separação didática das três dimensões abordadas neste artigo, no plano real da investigação elas encontram-se imbricadas, convocando o investigador a desenvolver o exercício de situar-se no ponto de intersecção entre elas e de onde o mesmo pode erigir sua forma de estar com os sujeitos participantes a fim de compreender como aprendem o que lhes ocorre e se constroem no curso de suas histórias. Apreender esses aspetos por meio de um exercício reflexivo e implicado com o universo de estudo é uma condição central para captar o processo de biografização que emerge das histórias contadas, para construir conhecimentos que colaborem com a ampliação dos sentidos dados ao vivido e para favorecer mudanças e transformações sociais.