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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187versão On-line ISSN 2183-0452

Rev. Port. de Educação vol.33 no.2 Braga dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.21814/rpe.19732 

Núcleo Temático

Dimensões relacionais na investigação biográfica: Reflexões em torno da prática

Relational dimensions in biographical research: Reflections based on practice

Dimensions relationnelles dans la recherche biographique: Réflexions basées sur la pratique

1Universidade de Lisboa, Instituto de Educação, Portugal.


Resumo

Com este texto pretende-se refletir sobre as dimensões relacionais na investigação biográfica, partindo da experiência da autora no âmbito de uma investigação de doutoramento em Educação, na especialidade de Formação de Adultos. Num primeiro momento, aborda-se a investigação biográfica no campo das Ciências da Educação e o papel que esta metodologia desempenha na construção de si. Num segundo momento, descrevem-se os procedimentos metodológicos utilizados na investigação, nomeadamente a realização de entrevistas biográficas a 32 educadores de adultos. Num terceiro momento, reflete-se sobre e problematizam-se as dimensões relacionais da investigação biográfica, partindo da experiência da autora na realização de entrevistas biográficas.

Palavras-chave Investigação biográfica; Entrevista biográfica; Dimensão relacional; Educadores de adultos

Abstract

This article is a reflection regarding the relational dimensions in the biographical research, based on the author's experience in the context of a PhD in Education, in the specialty of Adult Training. We start with the biographical research in the field of Educational Sciences, as well as the role that this methodology plays in the creation of the sense of the self. Afterwards there is a description of the methodological procedures used in the investigation, such as the biographical interviews with 32 adult educators. In a third moment we reflect on the relational dimensions of biographical research, based on the author's experience in conducting biographical interviews.

Keywords Biographical research; Biographical interview; Relational dimension; Adult educators

Résumé

L’objectif de ce texte consiste à mener une réflexion sur les dimensions relationnelles dans la recherche biographique en partant de l’expérience de l’auteure dans le cadre d’une recherche de doctorat en Education, dans la spécialité de la Formation des Adultes. Dans un premier temps, est abordée la recherche biographique dans le champ des Sciences de l’Education ainsi que le rôle joué par cette méthodologie dans la construction de soi. Dans un deuxième temps, les processus méthodologiques utilisés dans cette recherche sont décrits et plus précisément la réalisation d’entretiens biographiques de 32 éducateurs d’adultes. Puis, dans un troisième temps, une réflexion est menée sur les dimensions relationnelles de la recherche biographique, en partant de l’expérience de l’auteure dans la conduite d’entretiens biographiques.

Mots clés Recherche biographique; Entretien biographique; Dimension relationnelle; Éducateurs d’adultes

1. INTRODUÇÃO

Com este texto pretende-se refletir sobre as dimensões relacionais na investigação biográfica no campo da educação de adultos. O texto resulta da reflexão da autora sobre a sua experiência na utilização do método biográfico, no âmbito de uma investigação de doutoramento em Educação, na especialidade de Formação de Adultos. A investigação realizada filia-se na metodologia qualitativa e a análise teve como base as narrativas provenientes de entrevistas biográficas, realizadas a educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Neste sentido, foram realizadas 32 entrevistas biográficas a educadores de adultos, com o objetivo de analisar os percursos escolar e profissional, a atividade profissional desempenhada, o processo de formação e a identidade profissional, tendo como ponto de partida a perspetiva dos próprios sujeitos.

A natureza dos objetivos de investigação formulados, centrados na singularidade e globalidade da pessoa entrevistada, em ligação com os contextos em que se move (Afonso, 2005), conduziu a que se tivesse optado pela investigação biográfica. A investigação biográfica dá conta do modo como os indivíduos atribuem significado às situações e aos acontecimentos da sua vida, às suas experiências e ao percurso de vida. O indivíduo pensa e elabora as situações de vida que vivencia de uma forma permanente, transformando-as em experiências, atividade que Delory-Momberger (2014) designa por biografar os contextos e os ambientes que fazem parte da sua inscrição histórica, social e cultural. As experiências de vida são elaboradas, construídas e registadas numa narrativa, e é porque o indivíduo conta a si próprio as situações e os acontecimentos que viveu, e os integra na história que conta a si próprio, que encontram um espaço na sua existência e adquirem um sentido na sua vida.

A investigação biográfica envolve abordagens nas quais o entrevistador e o entrevistado vivem um processo comum de investigação e de conhecimento (Delory-Momberger, 2016). O indivíduo entrevistado procura atribuir sentido à sua experiência de vida e o investigador é impelido a dar sentido ao trabalho que o indivíduo realiza ao criar sentido para as suas experiências. Nesta perspetiva, o espaço de pesquisa da investigação biográfica assenta numa forma de relacionamento, em que o discurso dos atores e a interação social assumem um papel central. A abordagem biográfica possui uma dimensão formativa, uma vez que a narrativa que se produz conduz a uma operação dupla e complementar de subjetivação do mundo histórico e social, e de socialização da experiência individual. Na autorrepresentação a que se acede através da narrativa, o indivíduo constrói-se a si próprio no contexto social (Delory-Momberger, 2014).

O artigo encontra-se organizado em três partes. A primeira parte aborda a investigação biográfica no campo das Ciências da Educação e o papel que esta metodologia desempenha na construção de si. A segunda parte descreve os procedimentos metodológicos utilizados na investigação, nomeadamente a realização de entrevistas biográficas a 32 educadores de adultos. Na terceira parte reflete-se sobre e problematiza-se as dimensões relacionais da investigação biográfica, partindo da experiência da autora na realização de entrevistas biográficas.

2. A INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA NO CAMPO DAS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

A investigação biográfica começou a ter visibilidade na investigação educacional a partir dos anos 70 do século XX (Afonso, 2005; Michelson, 2011). As suas raízes remontam à investigação filosófica de caráter hermenêutico e fenomenológico e aos desenvolvimentos proporcionados pelas Ciências Sociais, sobretudo pela Escola de Chicago (Amado & Ferreira, 2013; Delory-Momberger, 2014). A Escola de Chicago criou um método interpretativo a partir das narrativas orais sobre acontecimentos da vida quotidiana de pessoas comuns, adotando a linguagem, as perceções e os seus pontos de vista. Nesta perspetiva, o investigador adota uma postura empática com as pessoas e com as situações abordadas, assumindo que a descrição dos problemas é também um meio, tanto de revelação como de solução dos problemas sociais (Chizzotti, 2003).

Neste sentido, a investigação biográfica, enquanto metodologia de investigação qualitativa, aparece como uma alternativa ao positivismo e à investigação social baseada em procedimentos experimentais e na estatística (Monteagudo, 2009). Os investigadores que seguem abordagens qualitativas contestam a neutralidade científica do discurso positivista, ancorado na hegemonia dos pressupostos experimentais e no absolutismo da medida, e afirmam a vinculação da investigação aos problemas sociais e políticos, declarando-se comprometidos com a prática e com a transformação social (Chizzotti, 2003). A investigação biográfica permite aos investigadores explorar o significado e a importância que as pessoas atribuem a mudanças particulares nas suas vidas, incluindo as que estão relacionadas com transições entre diferentes etapas de vida (Field et al., 2012).

A investigação biográfica procura recolher, através de um relato ou narrativa, a interpretação que um indivíduo faz do seu percurso de vida (Delory-Momberger, 2012). Neste sentido, o objetivo da investigação biográfica é explorar os processos subjacentes ao indivíduo no espaço social, mostrar como é que dá forma à sua experiência e atribui significado às situações e acontecimentos da sua vida. A investigação biográfica permite compreender os processos de aprendizagem para, posteriormente, se poder teorizar a aprendizagem integrada num determinado contexto histórico, uma vez que “os seres humanos aprendem na prática social do tempo e da situação nos quais se encontram e conforme foram socializados” (Olesen, 2011, p. 143).

A investigação biográfica procura dar conta da relação singular que o indivíduo estabelece com o mundo social e histórico, e estudar os modos de formação do indivíduo enquanto ser social singular. Neste sentido, esta metodologia procura compreender como é que os indivíduos integram, estruturam e interpretam os espaços e as temporalidades do contexto social e histórico. Lechner (2014) refere que a investigação biográfica possui um duplo propósito, de dar a conhecer, por um lado, as formas de vivência e interpretação concretas de quem se conta e, por outro lado, o significado social e político dessas mesmas experiências privadas e a tentativa de conhecimento coletivo. Não obstante, o indivíduo não tem uma relação direta com o vivido, recorrendo a esquemas e a figuras que adotam formas narrativas (Delory-Momberger, 2014). Neste sentido, o indivíduo representa a sua vida por meio da linguagem e da sintaxe de uma narrativa, faz da sua vida uma história, recorrendo a uma atividade mental de representação e de construção de si, através da qual verifica, mantém e elabora a figura interior e exterior que reconhece ou entende como sendo ele próprio. A estas figuras da vida representadas, que não devem ser confundidas com a realidade e com o vivido, Delory-Momberger (2014) chama biografia (etimologicamente, escrita da vida) e biografização ao trabalho psico-cognitivo de configuração temporal da narrativa, através do qual o indivíduo dá uma forma própria ao percurso e às experiências de vida.

A investigação biográfica atribui um papel especial à enunciação e ao discurso narrativo. A enunciação oral promove a identificação e a seleção de momentos-chave, a reelaboração da experiência e a explicitação do percurso de vida (Cavaco, 2015). Através da narrativa, o investigador pode aceder aos processos de biografização e compreender as atividades e as operações realizadas pelos indivíduos para se formarem como seres sociais singulares.

2.1. A INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA E A CONSTRUÇÃO DE SI

A investigação biográfica no campo das Ciências da Educação considera que a formação e a biografização, e a aprendizagem e a biografia, encontram-se interligadas, uma vez que se parte do pressuposto que o percurso de vida é um percurso de formação, durante o qual as experiências são organizadas de forma a criar uma história de vida (Delory-Momberger, 2014). Neste sentido, a aprendizagem em contexto não formal e informal inscreve-se no percurso de vida, isto é, numa biografia, onde adquire uma forma e um sentido atribuído pelo indivíduo, tendo em conta os saberes prévios e as experiências de vida.

A elaboração da biografia, na medida em que envolve a construção de uma narrativa sobre a existência e sobre o percurso de vida, pode ter um efeito formador e criar oportunidades de mudança. O indivíduo, através da narrativa, realiza um “trabalho de configuração e interpretação” (Delory-Momberger, 2016, p. 141), de dar forma e sentido à experiência vivida. A ideia subjacente é que, quando se elabora uma narrativa do que aconteceu, reconstroem-se situações e etapas do percurso de vida que tiveram um papel fundador na construção da individualidade. Não obstante, ao mesmo tempo que ocorre esta reconstrução do processo de formação, cria-se um espaço para que a mudança aconteça, isto é, surge uma margem de ação que pode ser usada pelo indivíduo em relação a si próprio e aos contextos onde se move. Neste sentido, a narrativa de vida constitui um espaço de reflexão e de aprendizagem, com impacto ao nível da ação (Field et al., 2012). A ideia subjacente é que o indivíduo é um todo e o processo formativo diz-lhe respeito em termos globais, é a pessoa que se forma. Neste processo são mobilizadas as aprendizagens existenciais, que englobam o conhecimento que o indivíduo possui acerca de si e da sua intervenção no mundo, e as aprendizagens reflexivas, que possibilitam ao indivíduo pensar acerca de si próprio e do mundo que o rodeia, utilizando “referenciais explicativos e compreensivos” (Josso, 2007, p. 422).

De acordo com esta conceção, todas as pessoas possuem saberes adquiridos ao longo da vida, que não são reconhecidos pelas instituições académicas. A abordagem biográfica veio permitir que estes saberes não formalizados, provenientes da experiência, sejam reconhecidos. O reconhecimento torna-se importante na medida em que estes saberes desempenham um papel fundamental na forma como os indivíduos se consciencializam das aprendizagens que realizaram ao longo da vida e se apropriam do papel que tiveram no processo de formação, o que lhes permite atuar sobre si e sobre os contextos onde estão inseridos, atribuindo sentido às experiências de vida. Neste sentido, a abordagem biográfica permite compreender como é que o indivíduo percebe subjetivamente a mudança e qual o papel que esta desempenha na aprendizagem, em diversos contextos de vida (Evans, 2008).

A abordagem biográfica permite a construção de uma representação de si, por vezes complexa, reporta-se a categorias temporais do passado, do presente e, mesmo, do futuro. De forma a compreender a narrativa de experiências de vida passadas, é necessário interpretá-la como fazendo parte do contexto global da vida atual, que resulta do presente e também da forma como se perspetiva o futuro (Rosenthal, 2007). A perspetiva presente condiciona a seleção das memórias, a ligação temporal e temática destas e o tipo de representação que se estabelece a partir das experiências recordadas. A trama temporal a que o narrador recorre obedece a uma lógica subjetiva, quer na articulação das sequências de acordo com um princípio de coerência, quer no acompanhamento do resultado de determinados acontecimentos. A temporalidade do relato biográfico, diferente da temporalidade estabelecida pelo calendário, é testemunho do trabalho do narrador em criar concordância relativamente a aspetos em que a memória biográfica não dá pleno acesso (Villers, 2009). O sujeito narrador produz uma imagem de si próprio, sob a forma de uma representação verbal na narrativa que construiu. Neste sentido, a abordagem biográfica é uma via privilegiada para a construção de si, uma vez que reúne os elementos inscritos na memória biográfica, isto é, os acontecimentos vividos pelo sujeito e os contextos espácio-temporais que lhe estão associados (Villers, 2009). Nesta perspetiva, a narrativa produzida reflete uma representação de si, fruto das diversas mediações sociais que constituem o contexto de vida do narrador, englobando o meio familiar, o percurso formativo, o mundo do trabalho, o local onde vive, as relações associativas, os tempos livres, entre outros aspetos.

3. ABORDAGEM METODOLÓGICA

Este texto tem como base uma investigação que teve como objetivo analisar os percursos escolar e profissional de educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais, conhecer o conteúdo funcional da atividade profissional desenvolvida por estes educadores e compreender o processo de formação e a identidade profissional construída. O estudo enquadra-se na área científica das Ciências da Educação, mais especificamente no domínio da educação de adultos.

Do ponto de vista epistemológico, a investigação filia-se na perspetiva fenomenológica. A fenomenologia analisa os fenómenos centrando-se no sentido que é atribuído pelos indivíduos que os vivenciam (Giorgi, 1997). O objetivo desta perspetiva é recolher várias descrições dos mesmos fenómenos, provenientes de indivíduos diferentes, numa tentativa de encontrar semelhanças nas abordagens produzidas, podendo levar à formação de tipologias (Mucchielli, 2007).

A investigação apresenta um caráter descritivo por se proceder a uma narrativa ou descrição de processos ou fenómenos (Afonso, 2005), relatados pelos educadores de adultos, relativamente aos percursos escolar e profissional, atividade profissional, processo de formação e identidade profissional. Do ponto de vista epistemológico é de ressaltar a influência da hermenêutica, cujo objetivo é compreender os significados e sentidos que os indivíduos atribuem às situações. A investigação assenta numa perspetiva compreensiva, que visa a descrição, interpretação e análise crítica e reflexiva do percurso e da atividade profissional dos educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais.

Do ponto de vista metodológico, utilizou-se a abordagem qualitativa, por se considerar ser este o tipo de metodologia que possibilita uma compreensão detalhada das questões a investigar, e que pode ser assegurado falando diretamente com as pessoas (Bogdan & Biklen, 1994; Creswell, 2007). Optou-se pela estratégia de investigação biográfica. A investigação biográfica procura compreender os processos de formação e o modo como os indivíduos atribuem significado às experiências e aos acontecimentos que ocorrem nas suas vidas. Este tipo de investigação proporciona uma abordagem humanista para o estudo dos percursos de vida e permite que os processos de formação e a identidade profissional sejam estudados em profundidade. A abordagem biográfica, ao dar voz aos indivíduos, coloca-os no centro do processo de investigação (Merrill, 2008). O indivíduo entrevistado procura atribuir sentido à sua experiência de vida e o investigador é impelido a dar sentido ao trabalho que o indivíduo realiza, ao criar sentido para as suas experiências. As experiências de vida são elaboradas, construídas e registadas numa narrativa, e é porque contamos a nós próprios as situações e os acontecimentos que vivemos, e os integramos na história que contamos a nós próprios, que eles encontram um espaço na nossa existência e adquirem um sentido na nossa vida.

Optou-se por utilizar um instrumento de recolha de dados que possibilitasse ter acesso às narrativas biográficas dos educadores de adultos. A entrevista biográfica foi o instrumento escolhido por consistir “numa narrativa que resulta da análise e tomada de consciência de actos, atitudes e comportamentos constituintes da história de vida de cada pessoa” (Cavaco, 2009, p. 81). A opção pela entrevista biográfica decorre da necessidade de perceber a forma como os educadores de adultos interpretam e representam as suas experiências de vida (Delory-Momberger, 2012). Deste modo, assumiu-se que é importante compreender os percursos escolar e profissional, a atividade profissional, o processo de formação e a identidade profissional de educadores de adultos, tendo como ponto de partida a perspetiva dos próprios indivíduos.

Foram realizadas entrevistas biográficas a 32 educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Optou-se por não prosseguir com a realização de mais entrevistas por se considerar que tinham sido reunidas as condições para se analisar em profundidade os temas em estudo, isto é, tinha-se alcançado a saturação dos dados (Bogdan & Biklen, 1994). Não obstante, quando se utiliza a entrevista biográfica, a reunião de condições que torna possível analisar em profundidade os temas em estudo é mais importante do que a quantidade de elementos recolhidos. Todas as entrevistas foram gravadas em suporte áudio, após a autorização dada pelos entrevistados.

Na organização e sistematização dos dados das entrevistas biográficas, utilizou-se a análise de conteúdo categorial (Bardin, 2011). A análise de conteúdo desenrolou-se em três etapas: pré-análise, que consistiu na transcrição integral das entrevistas, o que permitiu uma rememoração espácio-temporal dos discursos; exploração do material e tratamento de resultados, consistindo num período de análise circular entre os principais conceitos teóricos provenientes do enquadramento teórico e as narrativas produzidas; inferência e interpretação. As categorias de codificação resultaram das questões de investigação formuladas, indo ao encontro do referido por Bogdan e Biklen (1994) quando enunciam que “determinadas questões e preocupações de investigação dão origem a determinadas categorias” (p. 221) do quadro concetual abordado, mas também surgiram à medida que se ia imergindo na transcrição das entrevistas e se tentava sistematizar a informação. As subcategorias de codificação foram sendo definidas à medida que se ia efetuando a leitura das transcrições das entrevistas e se procedia à sistematização e análise dos dados. No processo de análise, confluem os dados provenientes das entrevistas e as relações que se vão estabelecendo, mas também as perspetivas que o investigador possui sobre o tema em estudo, que modela a forma como aborda, considera e atribui sentido aos dados (Bogdan & Biklen, 1994). O tratamento dos dados das entrevistas biográficas permitiu o ensaio e a construção de um quadro descritivo, a partir do qual se foram extraindo elementos e significados que possibilitaram dar resposta às questões de investigação formuladas, utilizando-se o processo indutivo.

3.1. A ENTREVISTA BIOGRÁFICA COMO UM ESPAÇO RELACIONAL E HEURÍSTICO

A entrevista biográfica, enquadrada no método biográfico, é “uma interação social completa” (Ferrarotti, 2010, p. 46), durante a qual estão presentes “um sistema de papéis, de expectativa, de injunções de normas e de valores implícitos” (Ferrarotti, 2010, p. 46), mas também tensões e conflitos, quer da parte do entrevistador, quer do entrevistado.

A entrevista biográfica tem como objetivo recolher o discurso de um indivíduo, num determinado momento do seu percurso de vida (Delory-Momberger, 2014). Este tipo de entrevista atribui um lugar importante aos pontos de vista dos indivíduos entrevistados na análise do mundo social e dos saberes práticos que advêm de determinadas situações de vida (Demazière, 2008). O objetivo da entrevista biográfica é conduzir à produção de uma narrativa centrada na pessoa entrevistada, dando conta de fragmentos da sua existência, de partes da sua experiência, de momentos do seu percurso e de elementos da sua situação de vida. Neste sentido, Cavaco (2009) refere que a entrevista biográfica permite reconhecer momentos-chave da vida, compreender os processos de formação, identificar os adquiridos daí resultantes, perceber o significado atribuído às experiências e a relação que as pessoas estabelecem com o saber.

A entrevista biográfica considera que a narrativa, e concomitantemente a experiência a que faz referência, é moldada por acontecimentos sociais, históricos e políticos, e é composta por representações e crenças coletivas, elementos responsáveis pela individualidade. Neste sentido, Delory-Momberger (2014) refere que para a compreensão do percurso de vida do indivíduo contribui o conhecimento do campo e dos contextos nos quais a investigação se desenvolve, isto é, dos espaços e tempos singulares que cada pessoa configura a partir da conjugação da sua experiência, dos modos de vida, e das formas de pensar e de agir. A narrativa é o produto da interação entre a ação e o modo como o indivíduo toma consciência e dá conta, através do discurso, dos processos através dos quais se forma. A entrevista biográfica é um instrumento interativo que visa a recolha de dados sobre o indivíduo e é também um espaço de construção de sentido (Evans, 2008). Este tipo de entrevista procura apreender e compreender a configuração singular de factos, situações, relações, significados e interpretações que cada indivíduo atribui à sua existência e que estruturam o sentido que tem de si próprio como ser singular, com uma individualidade própria. O indivíduo, ao relatar as suas experiências, produz categorizações que lhe permitem apropriar-se do mundo social e definir nele o seu lugar (Delory-Momberger, 2014).

A entrevista biográfica cria um duplo espaço heurístico (Delory-Momberger, 2016). Por um lado, o espaço do investigador e do objeto de pesquisa e, por outro lado, o espaço do indivíduo participante convocado, através da narrativa, a fazer um trabalho de reflexão sobre as suas experiências de vida. Neste sentido, a narrativa biográfica contribui para a criação de conhecimento em situação e para a “compreensão do interior das vivências humanas” (Delory-Momberger, 2016, p. 144). Este tipo de entrevista permite aceder à forma como os atores vivem, pensam e agem, considerando os contextos onde se inserem, ao evidenciar o ponto de vista do sujeito e os tipos de saberes que possui. A entrevista biográfica dá voz à globalidade do indivíduo, às suas experiências e aos processos de formação, formal, não formal e informal, que ocorreram ao longo da vida.

Contudo, o recurso à narrativa levanta dificuldades epistemológicas e metodológicas (Delory-Momberger, 2014). De acordo com Delory-Momberger (2014), a principal dificuldade reside em identificar o que acontece entre o ato de viver, o ato de contar e o texto produzido na atividade narrativa. Neste sentido, a narrativa é o produto de uma operação de configuração que transforma acontecimentos diversos numa história organizada, que se apresenta como um todo, junta e organiza diferentes elementos (tais como agentes, objetivos, meios, interações, circunstâncias e resultados), e transforma o encadeamento dos acontecimentos, atribuindo a cada elemento uma função e sentido, de acordo com a contribuição para a história contada. Villers (2009) sublinha que nos relatos biográficos há um trabalho de configuração, isto é, de construção de uma imagem sobre o que se passou. Este autor refere, ainda, que a experiência narrativa comporta três momentos. O primeiro momento prende-se com o relato das atividades da vida, da forma como foram vividas pelo indivíduo. O segundo momento é caraterizado pela construção, por parte do indivíduo, de uma representação sobre as experiências de vida relatadas. O terceiro momento, designado de refiguração, reporta-se ao leitor da história biográfica, uma vez que, ao se embrenhar no relato produzido, vai também atribuir-lhe sentido, atendendo à sua experiência de vida.

A narrativa, para além de ser o produto do ato de contar, tem também o poder de produzir efeitos sobre a vida que se conta, o que lhe acrescenta uma função formativa, que pode conduzir a processos de mudança e de desenvolvimento pessoal e social (Delory-Momberger, 2014). A narrativa de vida pode ser usada para investigar o processo através do qual profissionais se tornam educadores de adultos, uma vez que contribui para a compreensão das mudanças experienciadas no que concerne à situação profissional (Bron & Jarvis, 2008). Para além disso, esta abordagem permite aos educadores de adultos refletirem acerca das suas identidades profissionais e dos processos de formação que contribuem para o desenvolvimento de competências profissionais na área da educação de adultos.

4. O TRABALHO DE CAMPO: REFLEXÕES EM TORNO DAS DIMENSÕES RELACIONAIS NA INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA

No que concerne ao trabalho de campo desenvolvido, foram realizadas entrevistas biográficas a 32 educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Os educadores de adultos entrevistados foram contactados através do método bola de neve (Creswell, 2012), através do qual a investigadora pediu a educadores de adultos que conhecia para referenciarem outros que pudessem integrar a investigação. No período temporal em que foram realizadas as entrevistas biográficas, que decorreu no primeiro semestre de 2012, a investigadora trabalhava como educadora de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Foi através do contacto com colegas que exerciam a atividade de educadores de adultos nesta prática educativa que a investigadora obteve as referências e os contactos dos educadores de adultos entrevistados.

Quando a investigadora contactou os educadores de adultos, informou-os do âmbito, dos objetivos do estudo e da duração previsível da entrevista, tendo sido salientado que poderiam tomar a decisão sem sentir qualquer tipo de obrigatoriedade, e de também ser possível suspender a participação se o desejassem. No início da entrevista, a entrevistadora (investigadora) voltou a informar os entrevistados do objetivo da entrevista. Para além disso, a entrevistadora efetuava uma breve apresentação, quer do projeto de investigação, quer do seu percurso profissional, de forma a criar uma relação empática com os entrevistados, uma vez que desempenhava a mesma atividade profissional e passava pelos mesmos constrangimentos que decorriam da incerteza relativamente ao futuro profissional. O facto de a investigadora/entrevistadora desempenhar a mesma atividade profissional dos participantes e partilhar os mesmos receios e incertezas fomentou uma relação de identificação dos entrevistados com a entrevistadora, na medida em que assumiam que o seu discurso era compreendido e a relação estabelecida era percecionada como sendo de confiança. Neste sentido, as narrativas de vida são inseparáveis da relação que se estabelece entre o entrevistador e o entrevistado, num determinado espaço e tempo (Field et al., 2012). Todos os educadores de adultos contactados aceitaram ser entrevistados, não tendo havido desistências. Era, também, assegurado aos educadores de adultos participantes na investigação que o conteúdo da entrevista seria tratado de forma confidencial, de modo a que não fosse possível a sua identificação. Os participantes foram previamente informados sobre a natureza e os objetivos da investigação, indo ao encontro do preconizado na Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação [SPCE], 2014).

Uma entrevista é uma intrusão na vida das pessoas entrevistadas, por constituir uma intromissão na organização do tempo e do seu mundo pessoal (Demazière, 2008). De forma a reduzir o impacto da intrusão na vida dos entrevistados, a investigadora deslocou-se ao local de trabalho dos educadores de adultos e, em alguns casos, encontrou-se com eles em locais previamente indicados por estes, nomeadamente no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, num café junto ao local de trabalho, nos seus domicílios e no Centro Cultural de Belém.

A entrevista foi iniciada com o seguinte mote: “Gostava que me falasse sobre o seu percurso profissional”. Os educadores de adultos discorriam sobre o seu percurso profissional, produzindo uma narrativa sobre esta dimensão das suas vidas. Posteriormente, o papel da entrevistadora consistia em centrar o discurso nos eixos de análise em estudo, isto é, percursos escolar e profissional, atividade profissional, processos de formação e identidade profissional. Neste sentido, relançava questões do tipo “Gostava que me falasse mais deste ponto…” e deixava os entrevistados discorrer, até esgotarem o assunto.

A história que cada educador de adultos relata sobre si e a forma como problematiza, concetualiza e se posiciona no mundo possui valor testemunhal (Villers, 2009). A narrativa que produz vai abordar o desenrolar dos acontecimentos e o modo como foram experienciados por parte do sujeito narrador, sendo marcada por uma forte dimensão relacional. Os educadores de adultos refletiam sobre os seus percursos escolares e profissionais, a forma como aprenderam a desempenhar a atividade profissional, as tarefas e atividades que desenvolviam, e o modo como se viam a si próprios e ao trabalho que executavam. Como refere Bertaux (2010), uma narrativa estrutura-se em torno de uma sucessão de acontecimentos, situações, projetos e ações, que, para além de constituírem um testemunho sobre a experiência vivida, são também um testemunho orientado pela intenção de conhecimento da investigadora.

Cada entrevista biográfica constitui uma interação social, caraterizada por um sistema de papéis, expetativas, normas e valores implícitos. Neste sentido, a entrevista biográfica “esconde tensões, conflitos e hierarquias de poder” (Ferrarotti, 2013, p. 59) entre o entrevistador e o entrevistado. Os educadores de adultos entrevistados não contam as suas vidas a um gravador, mas a um indivíduo, à investigadora que também assumiu o papel de entrevistadora. A forma e o conteúdo do relato biográfico seriam diferentes se o investigador fosse outra pessoa, estando dependentes da interação que se cria. Para além disso, a reflexividade do investigador, bem como a sua capacidade para prestar atenção, também podem influenciar a qualidade da narrativa (Field et al., 2012).

A realização da entrevista tem subjacente uma assimetria de papéis, em que o entrevistador coloca questões e incita o entrevistado ao diálogo, ocupando, entrevistador e entrevistado, posições diferenciadas no espaço social (Demazière, 2008). De forma a lidar com o “desequilíbrio de posições” (Demazière, 2008, p. 18), em que a investigadora podia ser percecionada pelos entrevistados como tendo um papel dominante, foi adotada uma postura compreensiva e empática. Neste sentido, as narrativas constituem espaços de pertença, tanto para o investigador como para os participantes, marcados pela responsabilidade ética, abertura, reciprocidade e cuidado (Dyson, 2020).

Durante a entrevista, entrevistador e entrevistado influenciam-se mutuamente, o que leva Ferrarotti (2010) a referir que o observador, leia-se entrevistador, se encontra implicado no campo do seu objeto e o indivíduo entrevistado, “longe de ser passivo, modifica continuamente o seu comportamento em função do comportamento do seu observador” (p. 49). Este processo de natureza circular e recíproca inviabiliza “qualquer conjuntura de conhecimento objetivo” (Ferrarotti, 2010, p. 49). Neste sentido, o conhecimento não tem o entrevistado por objeto, “mas sim a interação inextricável e recíproca” (p. 49) que se estabelece entre os dois elementos da díade que é constituída no decorrer da entrevista biográfica, isto é, entre o entrevistador e o entrevistado, que se configura nos 32 educadores de adultos. A entrevista biográfica é “uma construção narrativa ou discursiva” (Alheit & Dausien, 2018, p. 759) e constitui um “espaço de relacionamento” (Delory-Momberger, 2016, p. 143), onde a fala dos atores e a interação social ocupam um papel central. Contudo, a forma e os conteúdos da entrevista biográfica não se reproduzem do mesmo modo no tempo e no espaço, ainda que a entrevistadora e os entrevistados se mantenham.

A dimensão relacional está também presente ao nível da análise que o investigador efetua em relação aos discursos produzidos durante as entrevistas biográficas, na medida em que valoriza determinados aspetos do discurso em detrimento de outros, e dos extratos das entrevistas que são selecionados para ilustrar as categorias e as subcategorias definidas. Para a análise dos dados contribuiu o olhar do investigador, moldado pelas suas experiências de vida, expetativas e relação com o objeto de investigação, e o olhar dos educadores de adultos entrevistados, construído a partir da forma como apreendem a realidade e elaboram as suas experiências de vida, num discurso organizador de sentido para os próprios e compreensível para os outros. A complexidade da análise dos discursos e a riqueza que dela se pode extrair não é passível de uma “submissão passiva ao texto ou a seu autor” (Olesen, 2011, p. 144), uma vez que o investigador interpreta “o possível excedente de sentido do texto” (p. 144) de acordo com a sua subjetividade. O processo de análise dos dados é subsidiário das vivências da investigadora, que influenciaram, num primeiro momento, a escolha do objeto de estudo, e posteriormente a forma como a investigação empírica foi delineada e implementada, as abordagens teóricas escolhidas para orientar a interpretação dos discursos dos educadores de adultos, e das suas “reações conscientes e inconscientes . . . sentimentos e associações” (Olesen, 2011, p. 145) durante o processo de recolha e de interpretação da informação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problematização que se apresenta resultou da reflexão e da análise, por parte da autora, relativamente à utilização da abordagem biográfica e, nomeadamente, da realização de entrevistas biográficas a educadores de adultos. Parte-se do pressuposto que o entrevistador é “um estrangeiro cuja solicitação constitui uma anomalia” (Demazière, 2008, p. 20) na vida das pessoas entrevistadas. De forma a minimizar a intromissão na organização do tempo e do espaço dos educadores de adultos, a entrevistadora/investigadora teve em atenção algumas normas de conduta, como o agendar as entrevistas num horário e local previamente indicados pelos entrevistados. Neste sentido, a entrevista biográfica é assegurada por uma sucessão de ajustamentos por parte do entrevistador e do entrevistado, que se consubstancia numa interação social caraterizada pela empatia, escuta ativa e respeito mútuo.

Na realização da entrevista, teve-se em atenção que os entrevistados, a partir de uma pergunta que funcionava como um mote de conversa, fossem discorrendo sobre as suas experiências, refletissem e organizassem a narrativa de uma forma coerente e com significado. Neste processo, a criação de sentido e significado para as experiências relatadas resulta da enunciação feita pelos educadores de adultos e da forma como o relato é recebido pelo entrevistador e é posteriormente interpretado pelos entrevistados. A dinâmica que se gera durante uma entrevista é fruto da “interação que serve de campo social à comunicação” (Ferrarotti, 2010, p. 46), inscrevendo-se “no quadro de uma reciprocidade relacional” (Ferrarotti, 2010, p. 46). A forma e o conteúdo da narrativa biográfica dependem da interação que se cria entre o entrevistador e o entrevistado.

A dimensão relacional está presente na medida em que a narrativa produzida pelo entrevistado, num dado momento, não seria de forma alguma a mesma se ocorresse num outro período temporal e num espaço diferente. Para além disso, o modo como o entrevistado se expressa e encadeia os vários elementos da sua narrativa sofrem a influência do entrevistador-interlocutor, da forma como se apresenta perante o entrevistado e introduz a temática sobre a qual se centra a entrevista, das suas caraterísticas de personalidade, valores, tensões e conflitos implícitos. Por outro lado, o conteúdo da entrevista também depende da forma como o entrevistado (re)elabora a sua experiência naquele momento.

A investigação biográfica permite compreender a complexidade e a especificidade do percurso de vida e de formação do indivíduo (Cavaco, 2015; Merrill, 2008). A narrativa biográfica, que resulta da entrevista biográfica, permite a construção de uma representação de si, confere um sentido à existência e contribui para o aparecimento de um eu mais consciente (Josso, 2007). A investigação biográfica implica uma relação de proximidade e de reciprocidade entre o investigador e os sujeitos participantes na investigação. Este processo mobiliza uma “hermenêutica da relação” (Delory-Momberger, 2012, p. 535), em que o investigador empreende também o trabalho de interpretar e contar, por sua vez, os relatos biográficos dos outros.

Agradecimentos

Fundação para a Ciência e Tecnologia, Bolsa de Doutoramento SFRH/BD/101541/2014.

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