1. INTRODUÇÃO
Com este texto pretende-se refletir sobre as dimensões relacionais na investigação biográfica no campo da educação de adultos. O texto resulta da reflexão da autora sobre a sua experiência na utilização do método biográfico, no âmbito de uma investigação de doutoramento em Educação, na especialidade de Formação de Adultos. A investigação realizada filia-se na metodologia qualitativa e a análise teve como base as narrativas provenientes de entrevistas biográficas, realizadas a educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Neste sentido, foram realizadas 32 entrevistas biográficas a educadores de adultos, com o objetivo de analisar os percursos escolar e profissional, a atividade profissional desempenhada, o processo de formação e a identidade profissional, tendo como ponto de partida a perspetiva dos próprios sujeitos.
A natureza dos objetivos de investigação formulados, centrados na singularidade e globalidade da pessoa entrevistada, em ligação com os contextos em que se move (Afonso, 2005), conduziu a que se tivesse optado pela investigação biográfica. A investigação biográfica dá conta do modo como os indivíduos atribuem significado às situações e aos acontecimentos da sua vida, às suas experiências e ao percurso de vida. O indivíduo pensa e elabora as situações de vida que vivencia de uma forma permanente, transformando-as em experiências, atividade que Delory-Momberger (2014) designa por biografar os contextos e os ambientes que fazem parte da sua inscrição histórica, social e cultural. As experiências de vida são elaboradas, construídas e registadas numa narrativa, e é porque o indivíduo conta a si próprio as situações e os acontecimentos que viveu, e os integra na história que conta a si próprio, que encontram um espaço na sua existência e adquirem um sentido na sua vida.
A investigação biográfica envolve abordagens nas quais o entrevistador e o entrevistado vivem um processo comum de investigação e de conhecimento (Delory-Momberger, 2016). O indivíduo entrevistado procura atribuir sentido à sua experiência de vida e o investigador é impelido a dar sentido ao trabalho que o indivíduo realiza ao criar sentido para as suas experiências. Nesta perspetiva, o espaço de pesquisa da investigação biográfica assenta numa forma de relacionamento, em que o discurso dos atores e a interação social assumem um papel central. A abordagem biográfica possui uma dimensão formativa, uma vez que a narrativa que se produz conduz a uma operação dupla e complementar de subjetivação do mundo histórico e social, e de socialização da experiência individual. Na autorrepresentação a que se acede através da narrativa, o indivíduo constrói-se a si próprio no contexto social (Delory-Momberger, 2014).
O artigo encontra-se organizado em três partes. A primeira parte aborda a investigação biográfica no campo das Ciências da Educação e o papel que esta metodologia desempenha na construção de si. A segunda parte descreve os procedimentos metodológicos utilizados na investigação, nomeadamente a realização de entrevistas biográficas a 32 educadores de adultos. Na terceira parte reflete-se sobre e problematiza-se as dimensões relacionais da investigação biográfica, partindo da experiência da autora na realização de entrevistas biográficas.
2. A INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA NO CAMPO DAS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
A investigação biográfica começou a ter visibilidade na investigação educacional a partir dos anos 70 do século XX (Afonso, 2005; Michelson, 2011). As suas raízes remontam à investigação filosófica de caráter hermenêutico e fenomenológico e aos desenvolvimentos proporcionados pelas Ciências Sociais, sobretudo pela Escola de Chicago (Amado & Ferreira, 2013; Delory-Momberger, 2014). A Escola de Chicago criou um método interpretativo a partir das narrativas orais sobre acontecimentos da vida quotidiana de pessoas comuns, adotando a linguagem, as perceções e os seus pontos de vista. Nesta perspetiva, o investigador adota uma postura empática com as pessoas e com as situações abordadas, assumindo que a descrição dos problemas é também um meio, tanto de revelação como de solução dos problemas sociais (Chizzotti, 2003).
Neste sentido, a investigação biográfica, enquanto metodologia de investigação qualitativa, aparece como uma alternativa ao positivismo e à investigação social baseada em procedimentos experimentais e na estatística (Monteagudo, 2009). Os investigadores que seguem abordagens qualitativas contestam a neutralidade científica do discurso positivista, ancorado na hegemonia dos pressupostos experimentais e no absolutismo da medida, e afirmam a vinculação da investigação aos problemas sociais e políticos, declarando-se comprometidos com a prática e com a transformação social (Chizzotti, 2003). A investigação biográfica permite aos investigadores explorar o significado e a importância que as pessoas atribuem a mudanças particulares nas suas vidas, incluindo as que estão relacionadas com transições entre diferentes etapas de vida (Field et al., 2012).
A investigação biográfica procura recolher, através de um relato ou narrativa, a interpretação que um indivíduo faz do seu percurso de vida (Delory-Momberger, 2012). Neste sentido, o objetivo da investigação biográfica é explorar os processos subjacentes ao indivíduo no espaço social, mostrar como é que dá forma à sua experiência e atribui significado às situações e acontecimentos da sua vida. A investigação biográfica permite compreender os processos de aprendizagem para, posteriormente, se poder teorizar a aprendizagem integrada num determinado contexto histórico, uma vez que “os seres humanos aprendem na prática social do tempo e da situação nos quais se encontram e conforme foram socializados” (Olesen, 2011, p. 143).
A investigação biográfica procura dar conta da relação singular que o indivíduo estabelece com o mundo social e histórico, e estudar os modos de formação do indivíduo enquanto ser social singular. Neste sentido, esta metodologia procura compreender como é que os indivíduos integram, estruturam e interpretam os espaços e as temporalidades do contexto social e histórico. Lechner (2014) refere que a investigação biográfica possui um duplo propósito, de dar a conhecer, por um lado, as formas de vivência e interpretação concretas de quem se conta e, por outro lado, o significado social e político dessas mesmas experiências privadas e a tentativa de conhecimento coletivo. Não obstante, o indivíduo não tem uma relação direta com o vivido, recorrendo a esquemas e a figuras que adotam formas narrativas (Delory-Momberger, 2014). Neste sentido, o indivíduo representa a sua vida por meio da linguagem e da sintaxe de uma narrativa, faz da sua vida uma história, recorrendo a uma atividade mental de representação e de construção de si, através da qual verifica, mantém e elabora a figura interior e exterior que reconhece ou entende como sendo ele próprio. A estas figuras da vida representadas, que não devem ser confundidas com a realidade e com o vivido, Delory-Momberger (2014) chama biografia (etimologicamente, escrita da vida) e biografização ao trabalho psico-cognitivo de configuração temporal da narrativa, através do qual o indivíduo dá uma forma própria ao percurso e às experiências de vida.
A investigação biográfica atribui um papel especial à enunciação e ao discurso narrativo. A enunciação oral promove a identificação e a seleção de momentos-chave, a reelaboração da experiência e a explicitação do percurso de vida (Cavaco, 2015). Através da narrativa, o investigador pode aceder aos processos de biografização e compreender as atividades e as operações realizadas pelos indivíduos para se formarem como seres sociais singulares.
2.1. A INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA E A CONSTRUÇÃO DE SI
A investigação biográfica no campo das Ciências da Educação considera que a formação e a biografização, e a aprendizagem e a biografia, encontram-se interligadas, uma vez que se parte do pressuposto que o percurso de vida é um percurso de formação, durante o qual as experiências são organizadas de forma a criar uma história de vida (Delory-Momberger, 2014). Neste sentido, a aprendizagem em contexto não formal e informal inscreve-se no percurso de vida, isto é, numa biografia, onde adquire uma forma e um sentido atribuído pelo indivíduo, tendo em conta os saberes prévios e as experiências de vida.
A elaboração da biografia, na medida em que envolve a construção de uma narrativa sobre a existência e sobre o percurso de vida, pode ter um efeito formador e criar oportunidades de mudança. O indivíduo, através da narrativa, realiza um “trabalho de configuração e interpretação” (Delory-Momberger, 2016, p. 141), de dar forma e sentido à experiência vivida. A ideia subjacente é que, quando se elabora uma narrativa do que aconteceu, reconstroem-se situações e etapas do percurso de vida que tiveram um papel fundador na construção da individualidade. Não obstante, ao mesmo tempo que ocorre esta reconstrução do processo de formação, cria-se um espaço para que a mudança aconteça, isto é, surge uma margem de ação que pode ser usada pelo indivíduo em relação a si próprio e aos contextos onde se move. Neste sentido, a narrativa de vida constitui um espaço de reflexão e de aprendizagem, com impacto ao nível da ação (Field et al., 2012). A ideia subjacente é que o indivíduo é um todo e o processo formativo diz-lhe respeito em termos globais, é a pessoa que se forma. Neste processo são mobilizadas as aprendizagens existenciais, que englobam o conhecimento que o indivíduo possui acerca de si e da sua intervenção no mundo, e as aprendizagens reflexivas, que possibilitam ao indivíduo pensar acerca de si próprio e do mundo que o rodeia, utilizando “referenciais explicativos e compreensivos” (Josso, 2007, p. 422).
De acordo com esta conceção, todas as pessoas possuem saberes adquiridos ao longo da vida, que não são reconhecidos pelas instituições académicas. A abordagem biográfica veio permitir que estes saberes não formalizados, provenientes da experiência, sejam reconhecidos. O reconhecimento torna-se importante na medida em que estes saberes desempenham um papel fundamental na forma como os indivíduos se consciencializam das aprendizagens que realizaram ao longo da vida e se apropriam do papel que tiveram no processo de formação, o que lhes permite atuar sobre si e sobre os contextos onde estão inseridos, atribuindo sentido às experiências de vida. Neste sentido, a abordagem biográfica permite compreender como é que o indivíduo percebe subjetivamente a mudança e qual o papel que esta desempenha na aprendizagem, em diversos contextos de vida (Evans, 2008).
A abordagem biográfica permite a construção de uma representação de si, por vezes complexa, reporta-se a categorias temporais do passado, do presente e, mesmo, do futuro. De forma a compreender a narrativa de experiências de vida passadas, é necessário interpretá-la como fazendo parte do contexto global da vida atual, que resulta do presente e também da forma como se perspetiva o futuro (Rosenthal, 2007). A perspetiva presente condiciona a seleção das memórias, a ligação temporal e temática destas e o tipo de representação que se estabelece a partir das experiências recordadas. A trama temporal a que o narrador recorre obedece a uma lógica subjetiva, quer na articulação das sequências de acordo com um princípio de coerência, quer no acompanhamento do resultado de determinados acontecimentos. A temporalidade do relato biográfico, diferente da temporalidade estabelecida pelo calendário, é testemunho do trabalho do narrador em criar concordância relativamente a aspetos em que a memória biográfica não dá pleno acesso (Villers, 2009). O sujeito narrador produz uma imagem de si próprio, sob a forma de uma representação verbal na narrativa que construiu. Neste sentido, a abordagem biográfica é uma via privilegiada para a construção de si, uma vez que reúne os elementos inscritos na memória biográfica, isto é, os acontecimentos vividos pelo sujeito e os contextos espácio-temporais que lhe estão associados (Villers, 2009). Nesta perspetiva, a narrativa produzida reflete uma representação de si, fruto das diversas mediações sociais que constituem o contexto de vida do narrador, englobando o meio familiar, o percurso formativo, o mundo do trabalho, o local onde vive, as relações associativas, os tempos livres, entre outros aspetos.
3. ABORDAGEM METODOLÓGICA
Este texto tem como base uma investigação que teve como objetivo analisar os percursos escolar e profissional de educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais, conhecer o conteúdo funcional da atividade profissional desenvolvida por estes educadores e compreender o processo de formação e a identidade profissional construída. O estudo enquadra-se na área científica das Ciências da Educação, mais especificamente no domínio da educação de adultos.
Do ponto de vista epistemológico, a investigação filia-se na perspetiva fenomenológica. A fenomenologia analisa os fenómenos centrando-se no sentido que é atribuído pelos indivíduos que os vivenciam (Giorgi, 1997). O objetivo desta perspetiva é recolher várias descrições dos mesmos fenómenos, provenientes de indivíduos diferentes, numa tentativa de encontrar semelhanças nas abordagens produzidas, podendo levar à formação de tipologias (Mucchielli, 2007).
A investigação apresenta um caráter descritivo por se proceder a uma narrativa ou descrição de processos ou fenómenos (Afonso, 2005), relatados pelos educadores de adultos, relativamente aos percursos escolar e profissional, atividade profissional, processo de formação e identidade profissional. Do ponto de vista epistemológico é de ressaltar a influência da hermenêutica, cujo objetivo é compreender os significados e sentidos que os indivíduos atribuem às situações. A investigação assenta numa perspetiva compreensiva, que visa a descrição, interpretação e análise crítica e reflexiva do percurso e da atividade profissional dos educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais.
Do ponto de vista metodológico, utilizou-se a abordagem qualitativa, por se considerar ser este o tipo de metodologia que possibilita uma compreensão detalhada das questões a investigar, e que pode ser assegurado falando diretamente com as pessoas (Bogdan & Biklen, 1994; Creswell, 2007). Optou-se pela estratégia de investigação biográfica. A investigação biográfica procura compreender os processos de formação e o modo como os indivíduos atribuem significado às experiências e aos acontecimentos que ocorrem nas suas vidas. Este tipo de investigação proporciona uma abordagem humanista para o estudo dos percursos de vida e permite que os processos de formação e a identidade profissional sejam estudados em profundidade. A abordagem biográfica, ao dar voz aos indivíduos, coloca-os no centro do processo de investigação (Merrill, 2008). O indivíduo entrevistado procura atribuir sentido à sua experiência de vida e o investigador é impelido a dar sentido ao trabalho que o indivíduo realiza, ao criar sentido para as suas experiências. As experiências de vida são elaboradas, construídas e registadas numa narrativa, e é porque contamos a nós próprios as situações e os acontecimentos que vivemos, e os integramos na história que contamos a nós próprios, que eles encontram um espaço na nossa existência e adquirem um sentido na nossa vida.
Optou-se por utilizar um instrumento de recolha de dados que possibilitasse ter acesso às narrativas biográficas dos educadores de adultos. A entrevista biográfica foi o instrumento escolhido por consistir “numa narrativa que resulta da análise e tomada de consciência de actos, atitudes e comportamentos constituintes da história de vida de cada pessoa” (Cavaco, 2009, p. 81). A opção pela entrevista biográfica decorre da necessidade de perceber a forma como os educadores de adultos interpretam e representam as suas experiências de vida (Delory-Momberger, 2012). Deste modo, assumiu-se que é importante compreender os percursos escolar e profissional, a atividade profissional, o processo de formação e a identidade profissional de educadores de adultos, tendo como ponto de partida a perspetiva dos próprios indivíduos.
Foram realizadas entrevistas biográficas a 32 educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Optou-se por não prosseguir com a realização de mais entrevistas por se considerar que tinham sido reunidas as condições para se analisar em profundidade os temas em estudo, isto é, tinha-se alcançado a saturação dos dados (Bogdan & Biklen, 1994). Não obstante, quando se utiliza a entrevista biográfica, a reunião de condições que torna possível analisar em profundidade os temas em estudo é mais importante do que a quantidade de elementos recolhidos. Todas as entrevistas foram gravadas em suporte áudio, após a autorização dada pelos entrevistados.
Na organização e sistematização dos dados das entrevistas biográficas, utilizou-se a análise de conteúdo categorial (Bardin, 2011). A análise de conteúdo desenrolou-se em três etapas: pré-análise, que consistiu na transcrição integral das entrevistas, o que permitiu uma rememoração espácio-temporal dos discursos; exploração do material e tratamento de resultados, consistindo num período de análise circular entre os principais conceitos teóricos provenientes do enquadramento teórico e as narrativas produzidas; inferência e interpretação. As categorias de codificação resultaram das questões de investigação formuladas, indo ao encontro do referido por Bogdan e Biklen (1994) quando enunciam que “determinadas questões e preocupações de investigação dão origem a determinadas categorias” (p. 221) do quadro concetual abordado, mas também surgiram à medida que se ia imergindo na transcrição das entrevistas e se tentava sistematizar a informação. As subcategorias de codificação foram sendo definidas à medida que se ia efetuando a leitura das transcrições das entrevistas e se procedia à sistematização e análise dos dados. No processo de análise, confluem os dados provenientes das entrevistas e as relações que se vão estabelecendo, mas também as perspetivas que o investigador possui sobre o tema em estudo, que modela a forma como aborda, considera e atribui sentido aos dados (Bogdan & Biklen, 1994). O tratamento dos dados das entrevistas biográficas permitiu o ensaio e a construção de um quadro descritivo, a partir do qual se foram extraindo elementos e significados que possibilitaram dar resposta às questões de investigação formuladas, utilizando-se o processo indutivo.
3.1. A ENTREVISTA BIOGRÁFICA COMO UM ESPAÇO RELACIONAL E HEURÍSTICO
A entrevista biográfica, enquadrada no método biográfico, é “uma interação social completa” (Ferrarotti, 2010, p. 46), durante a qual estão presentes “um sistema de papéis, de expectativa, de injunções de normas e de valores implícitos” (Ferrarotti, 2010, p. 46), mas também tensões e conflitos, quer da parte do entrevistador, quer do entrevistado.
A entrevista biográfica tem como objetivo recolher o discurso de um indivíduo, num determinado momento do seu percurso de vida (Delory-Momberger, 2014). Este tipo de entrevista atribui um lugar importante aos pontos de vista dos indivíduos entrevistados na análise do mundo social e dos saberes práticos que advêm de determinadas situações de vida (Demazière, 2008). O objetivo da entrevista biográfica é conduzir à produção de uma narrativa centrada na pessoa entrevistada, dando conta de fragmentos da sua existência, de partes da sua experiência, de momentos do seu percurso e de elementos da sua situação de vida. Neste sentido, Cavaco (2009) refere que a entrevista biográfica permite reconhecer momentos-chave da vida, compreender os processos de formação, identificar os adquiridos daí resultantes, perceber o significado atribuído às experiências e a relação que as pessoas estabelecem com o saber.
A entrevista biográfica considera que a narrativa, e concomitantemente a experiência a que faz referência, é moldada por acontecimentos sociais, históricos e políticos, e é composta por representações e crenças coletivas, elementos responsáveis pela individualidade. Neste sentido, Delory-Momberger (2014) refere que para a compreensão do percurso de vida do indivíduo contribui o conhecimento do campo e dos contextos nos quais a investigação se desenvolve, isto é, dos espaços e tempos singulares que cada pessoa configura a partir da conjugação da sua experiência, dos modos de vida, e das formas de pensar e de agir. A narrativa é o produto da interação entre a ação e o modo como o indivíduo toma consciência e dá conta, através do discurso, dos processos através dos quais se forma. A entrevista biográfica é um instrumento interativo que visa a recolha de dados sobre o indivíduo e é também um espaço de construção de sentido (Evans, 2008). Este tipo de entrevista procura apreender e compreender a configuração singular de factos, situações, relações, significados e interpretações que cada indivíduo atribui à sua existência e que estruturam o sentido que tem de si próprio como ser singular, com uma individualidade própria. O indivíduo, ao relatar as suas experiências, produz categorizações que lhe permitem apropriar-se do mundo social e definir nele o seu lugar (Delory-Momberger, 2014).
A entrevista biográfica cria um duplo espaço heurístico (Delory-Momberger, 2016). Por um lado, o espaço do investigador e do objeto de pesquisa e, por outro lado, o espaço do indivíduo participante convocado, através da narrativa, a fazer um trabalho de reflexão sobre as suas experiências de vida. Neste sentido, a narrativa biográfica contribui para a criação de conhecimento em situação e para a “compreensão do interior das vivências humanas” (Delory-Momberger, 2016, p. 144). Este tipo de entrevista permite aceder à forma como os atores vivem, pensam e agem, considerando os contextos onde se inserem, ao evidenciar o ponto de vista do sujeito e os tipos de saberes que possui. A entrevista biográfica dá voz à globalidade do indivíduo, às suas experiências e aos processos de formação, formal, não formal e informal, que ocorreram ao longo da vida.
Contudo, o recurso à narrativa levanta dificuldades epistemológicas e metodológicas (Delory-Momberger, 2014). De acordo com Delory-Momberger (2014), a principal dificuldade reside em identificar o que acontece entre o ato de viver, o ato de contar e o texto produzido na atividade narrativa. Neste sentido, a narrativa é o produto de uma operação de configuração que transforma acontecimentos diversos numa história organizada, que se apresenta como um todo, junta e organiza diferentes elementos (tais como agentes, objetivos, meios, interações, circunstâncias e resultados), e transforma o encadeamento dos acontecimentos, atribuindo a cada elemento uma função e sentido, de acordo com a contribuição para a história contada. Villers (2009) sublinha que nos relatos biográficos há um trabalho de configuração, isto é, de construção de uma imagem sobre o que se passou. Este autor refere, ainda, que a experiência narrativa comporta três momentos. O primeiro momento prende-se com o relato das atividades da vida, da forma como foram vividas pelo indivíduo. O segundo momento é caraterizado pela construção, por parte do indivíduo, de uma representação sobre as experiências de vida relatadas. O terceiro momento, designado de refiguração, reporta-se ao leitor da história biográfica, uma vez que, ao se embrenhar no relato produzido, vai também atribuir-lhe sentido, atendendo à sua experiência de vida.
A narrativa, para além de ser o produto do ato de contar, tem também o poder de produzir efeitos sobre a vida que se conta, o que lhe acrescenta uma função formativa, que pode conduzir a processos de mudança e de desenvolvimento pessoal e social (Delory-Momberger, 2014). A narrativa de vida pode ser usada para investigar o processo através do qual profissionais se tornam educadores de adultos, uma vez que contribui para a compreensão das mudanças experienciadas no que concerne à situação profissional (Bron & Jarvis, 2008). Para além disso, esta abordagem permite aos educadores de adultos refletirem acerca das suas identidades profissionais e dos processos de formação que contribuem para o desenvolvimento de competências profissionais na área da educação de adultos.
4. O TRABALHO DE CAMPO: REFLEXÕES EM TORNO DAS DIMENSÕES RELACIONAIS NA INVESTIGAÇÃO BIOGRÁFICA
No que concerne ao trabalho de campo desenvolvido, foram realizadas entrevistas biográficas a 32 educadores de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Os educadores de adultos entrevistados foram contactados através do método bola de neve (Creswell, 2012), através do qual a investigadora pediu a educadores de adultos que conhecia para referenciarem outros que pudessem integrar a investigação. No período temporal em que foram realizadas as entrevistas biográficas, que decorreu no primeiro semestre de 2012, a investigadora trabalhava como educadora de adultos no processo de reconhecimento e validação de adquiridos experienciais. Foi através do contacto com colegas que exerciam a atividade de educadores de adultos nesta prática educativa que a investigadora obteve as referências e os contactos dos educadores de adultos entrevistados.
Quando a investigadora contactou os educadores de adultos, informou-os do âmbito, dos objetivos do estudo e da duração previsível da entrevista, tendo sido salientado que poderiam tomar a decisão sem sentir qualquer tipo de obrigatoriedade, e de também ser possível suspender a participação se o desejassem. No início da entrevista, a entrevistadora (investigadora) voltou a informar os entrevistados do objetivo da entrevista. Para além disso, a entrevistadora efetuava uma breve apresentação, quer do projeto de investigação, quer do seu percurso profissional, de forma a criar uma relação empática com os entrevistados, uma vez que desempenhava a mesma atividade profissional e passava pelos mesmos constrangimentos que decorriam da incerteza relativamente ao futuro profissional. O facto de a investigadora/entrevistadora desempenhar a mesma atividade profissional dos participantes e partilhar os mesmos receios e incertezas fomentou uma relação de identificação dos entrevistados com a entrevistadora, na medida em que assumiam que o seu discurso era compreendido e a relação estabelecida era percecionada como sendo de confiança. Neste sentido, as narrativas de vida são inseparáveis da relação que se estabelece entre o entrevistador e o entrevistado, num determinado espaço e tempo (Field et al., 2012). Todos os educadores de adultos contactados aceitaram ser entrevistados, não tendo havido desistências. Era, também, assegurado aos educadores de adultos participantes na investigação que o conteúdo da entrevista seria tratado de forma confidencial, de modo a que não fosse possível a sua identificação. Os participantes foram previamente informados sobre a natureza e os objetivos da investigação, indo ao encontro do preconizado na Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação [SPCE], 2014).
Uma entrevista é uma intrusão na vida das pessoas entrevistadas, por constituir uma intromissão na organização do tempo e do seu mundo pessoal (Demazière, 2008). De forma a reduzir o impacto da intrusão na vida dos entrevistados, a investigadora deslocou-se ao local de trabalho dos educadores de adultos e, em alguns casos, encontrou-se com eles em locais previamente indicados por estes, nomeadamente no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, num café junto ao local de trabalho, nos seus domicílios e no Centro Cultural de Belém.
A entrevista foi iniciada com o seguinte mote: “Gostava que me falasse sobre o seu percurso profissional”. Os educadores de adultos discorriam sobre o seu percurso profissional, produzindo uma narrativa sobre esta dimensão das suas vidas. Posteriormente, o papel da entrevistadora consistia em centrar o discurso nos eixos de análise em estudo, isto é, percursos escolar e profissional, atividade profissional, processos de formação e identidade profissional. Neste sentido, relançava questões do tipo “Gostava que me falasse mais deste ponto…” e deixava os entrevistados discorrer, até esgotarem o assunto.
A história que cada educador de adultos relata sobre si e a forma como problematiza, concetualiza e se posiciona no mundo possui valor testemunhal (Villers, 2009). A narrativa que produz vai abordar o desenrolar dos acontecimentos e o modo como foram experienciados por parte do sujeito narrador, sendo marcada por uma forte dimensão relacional. Os educadores de adultos refletiam sobre os seus percursos escolares e profissionais, a forma como aprenderam a desempenhar a atividade profissional, as tarefas e atividades que desenvolviam, e o modo como se viam a si próprios e ao trabalho que executavam. Como refere Bertaux (2010), uma narrativa estrutura-se em torno de uma sucessão de acontecimentos, situações, projetos e ações, que, para além de constituírem um testemunho sobre a experiência vivida, são também um testemunho orientado pela intenção de conhecimento da investigadora.
Cada entrevista biográfica constitui uma interação social, caraterizada por um sistema de papéis, expetativas, normas e valores implícitos. Neste sentido, a entrevista biográfica “esconde tensões, conflitos e hierarquias de poder” (Ferrarotti, 2013, p. 59) entre o entrevistador e o entrevistado. Os educadores de adultos entrevistados não contam as suas vidas a um gravador, mas a um indivíduo, à investigadora que também assumiu o papel de entrevistadora. A forma e o conteúdo do relato biográfico seriam diferentes se o investigador fosse outra pessoa, estando dependentes da interação que se cria. Para além disso, a reflexividade do investigador, bem como a sua capacidade para prestar atenção, também podem influenciar a qualidade da narrativa (Field et al., 2012).
A realização da entrevista tem subjacente uma assimetria de papéis, em que o entrevistador coloca questões e incita o entrevistado ao diálogo, ocupando, entrevistador e entrevistado, posições diferenciadas no espaço social (Demazière, 2008). De forma a lidar com o “desequilíbrio de posições” (Demazière, 2008, p. 18), em que a investigadora podia ser percecionada pelos entrevistados como tendo um papel dominante, foi adotada uma postura compreensiva e empática. Neste sentido, as narrativas constituem espaços de pertença, tanto para o investigador como para os participantes, marcados pela responsabilidade ética, abertura, reciprocidade e cuidado (Dyson, 2020).
Durante a entrevista, entrevistador e entrevistado influenciam-se mutuamente, o que leva Ferrarotti (2010) a referir que o observador, leia-se entrevistador, se encontra implicado no campo do seu objeto e o indivíduo entrevistado, “longe de ser passivo, modifica continuamente o seu comportamento em função do comportamento do seu observador” (p. 49). Este processo de natureza circular e recíproca inviabiliza “qualquer conjuntura de conhecimento objetivo” (Ferrarotti, 2010, p. 49). Neste sentido, o conhecimento não tem o entrevistado por objeto, “mas sim a interação inextricável e recíproca” (p. 49) que se estabelece entre os dois elementos da díade que é constituída no decorrer da entrevista biográfica, isto é, entre o entrevistador e o entrevistado, que se configura nos 32 educadores de adultos. A entrevista biográfica é “uma construção narrativa ou discursiva” (Alheit & Dausien, 2018, p. 759) e constitui um “espaço de relacionamento” (Delory-Momberger, 2016, p. 143), onde a fala dos atores e a interação social ocupam um papel central. Contudo, a forma e os conteúdos da entrevista biográfica não se reproduzem do mesmo modo no tempo e no espaço, ainda que a entrevistadora e os entrevistados se mantenham.
A dimensão relacional está também presente ao nível da análise que o investigador efetua em relação aos discursos produzidos durante as entrevistas biográficas, na medida em que valoriza determinados aspetos do discurso em detrimento de outros, e dos extratos das entrevistas que são selecionados para ilustrar as categorias e as subcategorias definidas. Para a análise dos dados contribuiu o olhar do investigador, moldado pelas suas experiências de vida, expetativas e relação com o objeto de investigação, e o olhar dos educadores de adultos entrevistados, construído a partir da forma como apreendem a realidade e elaboram as suas experiências de vida, num discurso organizador de sentido para os próprios e compreensível para os outros. A complexidade da análise dos discursos e a riqueza que dela se pode extrair não é passível de uma “submissão passiva ao texto ou a seu autor” (Olesen, 2011, p. 144), uma vez que o investigador interpreta “o possível excedente de sentido do texto” (p. 144) de acordo com a sua subjetividade. O processo de análise dos dados é subsidiário das vivências da investigadora, que influenciaram, num primeiro momento, a escolha do objeto de estudo, e posteriormente a forma como a investigação empírica foi delineada e implementada, as abordagens teóricas escolhidas para orientar a interpretação dos discursos dos educadores de adultos, e das suas “reações conscientes e inconscientes . . . sentimentos e associações” (Olesen, 2011, p. 145) durante o processo de recolha e de interpretação da informação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A problematização que se apresenta resultou da reflexão e da análise, por parte da autora, relativamente à utilização da abordagem biográfica e, nomeadamente, da realização de entrevistas biográficas a educadores de adultos. Parte-se do pressuposto que o entrevistador é “um estrangeiro cuja solicitação constitui uma anomalia” (Demazière, 2008, p. 20) na vida das pessoas entrevistadas. De forma a minimizar a intromissão na organização do tempo e do espaço dos educadores de adultos, a entrevistadora/investigadora teve em atenção algumas normas de conduta, como o agendar as entrevistas num horário e local previamente indicados pelos entrevistados. Neste sentido, a entrevista biográfica é assegurada por uma sucessão de ajustamentos por parte do entrevistador e do entrevistado, que se consubstancia numa interação social caraterizada pela empatia, escuta ativa e respeito mútuo.
Na realização da entrevista, teve-se em atenção que os entrevistados, a partir de uma pergunta que funcionava como um mote de conversa, fossem discorrendo sobre as suas experiências, refletissem e organizassem a narrativa de uma forma coerente e com significado. Neste processo, a criação de sentido e significado para as experiências relatadas resulta da enunciação feita pelos educadores de adultos e da forma como o relato é recebido pelo entrevistador e é posteriormente interpretado pelos entrevistados. A dinâmica que se gera durante uma entrevista é fruto da “interação que serve de campo social à comunicação” (Ferrarotti, 2010, p. 46), inscrevendo-se “no quadro de uma reciprocidade relacional” (Ferrarotti, 2010, p. 46). A forma e o conteúdo da narrativa biográfica dependem da interação que se cria entre o entrevistador e o entrevistado.
A dimensão relacional está presente na medida em que a narrativa produzida pelo entrevistado, num dado momento, não seria de forma alguma a mesma se ocorresse num outro período temporal e num espaço diferente. Para além disso, o modo como o entrevistado se expressa e encadeia os vários elementos da sua narrativa sofrem a influência do entrevistador-interlocutor, da forma como se apresenta perante o entrevistado e introduz a temática sobre a qual se centra a entrevista, das suas caraterísticas de personalidade, valores, tensões e conflitos implícitos. Por outro lado, o conteúdo da entrevista também depende da forma como o entrevistado (re)elabora a sua experiência naquele momento.
A investigação biográfica permite compreender a complexidade e a especificidade do percurso de vida e de formação do indivíduo (Cavaco, 2015; Merrill, 2008). A narrativa biográfica, que resulta da entrevista biográfica, permite a construção de uma representação de si, confere um sentido à existência e contribui para o aparecimento de um eu mais consciente (Josso, 2007). A investigação biográfica implica uma relação de proximidade e de reciprocidade entre o investigador e os sujeitos participantes na investigação. Este processo mobiliza uma “hermenêutica da relação” (Delory-Momberger, 2012, p. 535), em que o investigador empreende também o trabalho de interpretar e contar, por sua vez, os relatos biográficos dos outros.