1. Introdução
Na contemporaneidade, a docência tem se constituído numa profissão que enfrenta desafios constantes. No bojo das questões que envolvem as práticas educativas, temos, por um lado, contextos que possibilitam o desenvolvimen to de ações que colocam professores e professoras em condições de realizar o seu trabalho de modo a não enfrentar situações tão desafiadoras, como uma classe regular, de crianças que estão numa mesma idade e supostamente no mesmo nível de aprendizagem, por outro temos situações em que a docência torna-se um elemento ainda mais complexo e desafiador, exigindo de professores e professoras maior condição de lidar com as adversidades, como é o caso de escolas da roça1 que possuem classes multisseriadas.
As classes multisseriadas possuem como característica basilar um público heterogéneo quanto à idade, o que requer dos/as docentes, além de habilidades para trabalhar com níveis formativos distintos, uma condição pedagógica de mediar a aprendizagem considerando as distintas idades e fases de desenvolvimento dos/as estudantes. Isso implica reconhecer que o/a professor/a nesse tipo de classe assume uma responsabilidade que o/a desloca a lidar com situações complexas e inerentes à criança, ao jovem e às vezes ao adulto num mesmo contexto educativo que a sala de aula gera.
Esse cenário torna-se um desafio a professores/as que estão neste tipo de atuação docente, que necessitam construir, por si só, estratégias de ensino que emergem das ações práticas que o/a professor/a cria para poder garantir a funcionalidade do sistema educativo na multissérie, tornando estas estratégias em mecanismos que possibilitem ao/à docente desenvolver o seu trabalho de modo a cumprir com as exigências desse complexo sistema educativo. É nesta senda que o/a professor/a emerge como sujeito protagonista das ações que desenvolve na escola, fazendo aflorar suas crenças, valores, conceções e atitudes frente ao desafio de ensinar na diversidade, mas também nas adversidades que a classe multisseriada impõe por sua natureza composicional.
As práticas pedagógicas de professores e professoras de classes multisseriadas vão se desvelando, de acordo com os diversos elementos que o contexto rural oferece, relacionando-se às conceções que estes/as docentes têm de educação, às identidades que construíram até ao presente momento, às inter-relações que estabelecem com os seus pares e as suas relações intersubjetivas. Todos esses elementos são responsáveis e encontram-se interconectados com as dimensões do nosso ser-no-mundo e, por sua vez, contribuem na prospeção do vir-a-ser, como poderemos compreender a partir das narrativas (auto)biográficas de professores e professoras de escolas da roça.
O ser-no-mundo da docência em classes multisseriadas requer um reconhecimento de que o/a professor/a é esse sujeito que, pela sua narrativa, é capaz de constituir-se a partir das suas subjetividades e pensamentos, trazendo à tona os sentidos que ele próprio atribui às ações educativas que executa, possibilitando um movimento compreensivo de si para si e para os outros, que congrega elementos de uma constituição identitária e de modos de ser e fazer docente reveladores de quem é esse sujeito que atua nas classes multisseriadas, que saberes e práticas desenvolve e como as desenvolve.
Neste contexto elucidativo e constitutivo do ser-na-docência em classes multisséries, as narrativas (auto)biográficas tornam-se elementos potentes, pois é a partir delas que as histórias de vida, formação e atuação profissional são produzidas, significadas e ressignificadas por aquele/a que narra, criando nesse movimento uma ação reflexiva que permite ao/a narrador/a revelar-se enquanto sujeito produtor de sua própria história (Silva & Rios, 2018).
Diante disso, as narrativas colocam-se aqui como dispositivos ri cos em possibilidades para a compreensão dos sentidos que tem o fazer docente na roça e revelam como as práticas desses docentes vão sendo produzidas, colocando-se como condições outras de formação que consideram todos os processos de nossa existência.
Com isso, todas as formas de conhecimento (re)construídas a par tir dos saberes e fazeres desses/as professores/as são válidas e importantes, compondo o movimento de formação e autoformação docente. Conforme Larrosa (2002, p. 27), “no saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento”.
É importante mencionar que este texto é um recorte da pesquisa “Conhecimento de si, Práticas pedagógicas e docência rural” realizada com professores e professoras que moram na roça e desenvolvem as suas atividades docentes em comunidades rurais do município de Várzea do Poço, situado no Território Bacia do Jacuípe no interior da Bahia.
As questões que impulsionaram o presente estudo foram as se guintes: como é que os professores de classes multisseriadas concebem a diferença em sala de aula? Como lidam com tal questão? Isso possibilitou-nos conhecer as práticas docentes destes/as professores/as, as conceções de educação e os princípios didático-metodológicos que fundamentam as suas práticas.
2. O percurso metodológico
Os/as professores/as-colaboradores/as2 da pesquisa foram motivados/as a narrar as suas práticas docentes, apresentando as suas aulas e outras atividades que desenvolvem em classes multisseriadas, enfatizando o que consideravam como um fator primordial para o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem no contexto da sua sala de aula. Deste modo, as narrativas evidenciavam o que faziam quando percebiam que os/as alunos/as estavam com dificuldades de aprendizagem, e como lidavam com as diferenças (género, etnia, cultural, socioeconómica, aprendizagens, entre outras). Estes elementos contribuíram de forma significativa para uma reflexão a respeito das especificidades da docência em classes multisseriadas.
Utilizámos como dispositivos de pesquisa a entrevista narrativa, realizada com três professores e duas professoras que participaram do movimento da pesquisa-formação. São docentes com formação inicial em Pedagogia, que atuam em escolas do campo da rede municipal. Têm em média entre 40 a 50 anos de idade, com média de 20 anos na docência em ensino fundamental, em classes multisseriadas. São pessoas que vivem na comunidade em que atuam e são filhos de lavradores.
Esta pesquisa está fundamentada na abordagem qualitativa e bus cou embasamento no método (auto)biográfico, por este nos oferecer condições para compreensão dos sentidos que os sujeitos produzem nos seus contextos de vida apresentados a partir das narrativas (auto)biográficas. Segundo Silva (2020)
A abordagem (auto)biográfica está diretamente relacionada, diria que fundamentada, nas bases de uma fenomenologia social, que visa produzir compreensões sobre a fala dos sujeitos, autores de suas histórias e de suas próprias experiências. Essa perspectiva tem direta relação com o método fenomenológico e o pensamento social, logo também existencial, tomados como fundamentos de uma fenomenologia social e existencial. (Silva, 2020, p. 5)
Nesse sentido, a abordagem (auto)biográfica é bastante utilizada como dispositivo para o desenvolvimento de pesquisas do tipo pesquisa-formação. Trata-se de pesquisa que, segundo Pineau (2006), se arrola partir do movimento biográfico desencadeado entre os anos de 1983 e 1985 como uma proposta que corresponsabiliza pesquisador/a e sujeitos da pesquisa num movimento de investigação que evidencia as histórias de vida e os fazeres dos envolvidos e toma-os como objeto de pesquisa. Paralelo a isso, acontece o movimento formativo centrado nas experiências (Mota, 2019).
É importante ressaltar que a pesquisa-formação coloca-se como um processo de autonomia dos sujeitos envolvidos na pesquisa, sendo um dos elementos que legitima este processo como um movimento de coletivização do/a docente que expõe as suas experiências como objeto de pesquisa e também como espaço de formação. A pesquisa-formação está articulada ao método (auto)biográfico e tem como principal objetivo o conhecer a si mesmo como um pressuposto formativo-reflexivo em que os sujeitos vivenciam três dimensões formativas: heteroformação; autoformação; ecoformação.
Tais dimensões são apresentadas por Gaston Pineau (2014, p. 97) como teoria tripolar, reiterando que “[...] os desenvolvimentos são produtos das interações entre as pessoas, o meio ambiente e a relação entre os dois, e fazem-se por sequências, etapas ou ciclos”. Com isso, enfatizamos o poder de formação que o sujeito mobiliza a partir da experiência para formar-se, sendo assim estabelecidas ligações dependentes e específicas com as perspetivas da heteroformação (ação e interação com os outros) e da ecoformação (ação e interação com o ambiente em que se encontra inserido).
O percurso metodológico da pesquisa teve forte influência das propostas de Ateliês biográficos de Delory-Momberg (2006), que se coloca como uma dinâmica intencional onde professores e professoras poderão narrar as suas trajetórias de vida-formação-profissão e apresentar um projeto de si num coletivo, com a finalidade de reflexividade formativa dos envolvidos na pesquisa.
Assim, foram organizadas as Oficinas formativas como espaço de pesquisa e formação divididas em três blocos, compondo uma carga horária de 30 horas, realizadas quinzenalmente para discussão sobre as diferenças nas classes multisseriadas, onde professores e professoras apresentaram suas práticas docentes, evidenciando como concebiam e lidavam com as diferenças em sala de aula. Este movimento culminou com a produção da memória formativa dos/as docentes envolvidos/as na pesquisa. Participaram das oficinas formativas professores e professoras de três escolas rurais da rede municipal de ensino, tendo encontros na sede do município e nas localidades em que as escolas estão situadas.
Cabe ressaltar que as narrativas (auto)biográficas contribuíram de maneira ímpar para que pudéssemos compreender como as práticas docentes são desveladas nas escolas da roça e se constituem como modos de narrar, fazer e formar-se. Tudo isso nos permitiu perceber de que maneira professores e professoras das classes multisseriadas produzem a docência nestes espaços, a partir das quotidianidades.
Neste contexto, as entrevistas narrativas possibilitaram a estes/as docentes constituírem e refazerem o percurso profissional das suas atuações nas classes multisseriadas, gerando um outro momento de reflexão e de tomada de consciência do que foi feito, como foi feito e as razões desse fazer. Narrar no contexto do método (auto)biográfico não significa apenas um contar de ações desenvolvidas, mas um reviver, reconstruir as ações que professores e professoras desenvolveram, produzindo um movimento reflexivo que os desloca a ressignificar o vivido e criar para si novos modos de entender e compreender as ações que desenvolveram no chão da escola.
A narrativa (auto)biográfica tem na sua natureza epistemológica a condição de ser formativa, pois mobiliza o sujeito a fazer escolhas, a reconfigurar as cenas que o tocam, a perceber como as ações educativas se constituíram como experiências educativas, pelo viés do que Larrosa (2002) sinaliza enquanto aquilo que acontece com o sujeito, que o toca, que o transforma, que cria condições para gerar outras experiências.
Para apresentar as discussões sobre as diferenças em classes mul tisseriadas e as práticas docentes desenvolvidas em escolas da roça, dividimos o presente texto em duas partes: a primeira apresenta as práticas docentes a partir das conceções que os/as professores/as de escolas da roça têm a respeito das diferenças na sala de aula. Nesta primeira parte, o foco e a centralidade das discussões evidenciam os modos como os docentes concebem as diferenças, revelando como pensam e o que agem diante de situações educativas em que as diferenças se apresentam como elementos a serem trabalhados nas ações educativas que cada sujeito desenvolve no contexto da sala de aula de classe multissérie.
Na segunda parte, a discussão versa sobre a educação contextuali zada como elemento metodológico que professores/as dessas escolas se embasam para desenvolverem as suas práticas docentes. Nessa parte, evidenciamos a conceção de uma educação contextualizada pelo viés das práticas educativas que os/as docentes desenvolvem, percebendo na educação contextualizada uma proposta que embasa e fundamenta as ações pedagógicas que os/as professores/as desenvolvem.
3. Práticas docentes em classes multisseriadas: o locus da diferença
As temáticas diversidade e diferença não são novas, uma vez que transversalizam a história da humanidade. Entretanto, os conceitos passam a ser considerados distintos a partir dos avanços científicos, sobretudo na área de Ciências Humanas, que ganha notoriedade no século XX e sobretudo no século XXI. Nesta senda, há uma produção académica significativa, que procura evidenciar o modo como se revela o crescente acirramento das lutas identitárias, culturais, étnicas e raciais, bem como das políticas afirmativas no Brasil e no mundo. Isso tem a ver com o reconhecimento de que a diversidade passa a significar outra coisa que não só a diferença e o direito.
Ser diferente e ser diverso ganham conotações distintas, embora a utilização indiscriminada das palavras diferença e diversidade tem provocado o efeito de possibilitar o esvaziamento político e social do que significa diferença enquanto mero reconhecimento do ser diferente. Em alguns contextos educativos, como sinalizam Candau e Anhorn (2018) o termo diferença tem sido tratado enquanto diversidade, o que gera um esvaziamento da diferença, segregando-a das questões da diversidade.
A diversidade tem se constituído no cenário educacional brasileiro enquanto uma política universalista que reflete as maneiras de contemplar o todo, ou seja, todas as formas de cultura, etnia, raça, género etc. Mas é nas diferenças que as singularidades emergem e que precisam ser reconhecidas enquanto tal. Nesse sentido, tomamos as diferenças nesse trabalho enquanto elementos que são marcados pela singularidade do ser, de sua composição identitária e de modo de agir, que fazem do sujeito um ser diverso pelas suas próprias diferenças. Não cabe, portanto, nessa conceção, conceber que a diferença é um termo universalizante, que caminha em oposição a igualdade, mas ao reconhecimento da diferença enquanto elemento da singularidade do ser que se constitui na diversidade e no combate à desigualdade.
Portanto, no contexto das bases epistemológicas e de discussão dos termos diversidade, diferença, identidade, igualdade, justiça entre outros, há uma polarização e uma constituição semântica que chega à educação como modo de analisarmos como estes conceitos adentram os sistemas e espaços educativos e impactam de modo mais incisivo nas formações de professores/as, bem como nas práticas educativas, principalmente quando elas são atravessadas palas diferenças. O impacto disso está relacionado diretamente a propostas educacionais que são criadas pelos sistemas educativos, mas sobretudo às ações do/a professor/a que é o sujeito que precisa de conviver com as diferenças na sala de aula e criar estratégias pedagógicas para lidar com tal problemática.
As propostas educacionais na contemporaneidade têm criado condições para que as orientações pedagógicas e a formação docente tomem como parâmetros orientadores as legislações educacionais, normativas e estatutos que regulamentam o funcionamento das escolas, sejam elas rurais ou não, ficando sob a responsabilidade docente o desenvolvimento de um trabalho que esteja condizente com as propostas e exigências de tais parâmetros.
O excerto da narrativa de Clóvis apresenta os princípios metodo lógicos que o orientam no desenvolvimento da sua prática docente em contextos rurais, enfatizando como são articulados os momentos de planeamento pedagógico com o coletivo de professores e como este desencadeia as ações e procedimentos a serem utilizados no dia a dia da classe multisseriada.
Grande parte do material pedagógico é construído por nós profes sores e coordenadores, onde a princípio se discute e elabora uma ficha pedagógica norteadora para que, através da mesma, possa desenvolver o trabalho por unidade. Para tanto, a metodologia a ser aplicada determina que as ações e estratégias possam ser va riadas, assim como: a partir de músicas, contos, parlendas, utiliza ção de vídeos, dramatização, confecção de brinquedos, cartazes, colagens, painéis, jogos, utilização de fantoches, dedoches e dan ças. (Clóvis, Entrevista Narrativa, 2016.)
Com a narrativa de Clóvis, podemos notar o seu embasamento nos princípios que direcionam a sua prática, percebendo a sua participação ativa nos processos de planeamento, execução e avaliação de propostas pedagógicas, que são construídas a partir de discussões e reflexões sobre as necessidades da sua classe e/ou desejos de professores e professoras em realizarem atividades que promovam o envolvimento social de estudantes e de outros sujeitos que frequentam as escolas multisseriadas, objetivando o protagonismo de todos os envolvidos na construção do conhecimento como possibilidade de intervir nas suas próprias realidades de vida.
Embora exista uma proposta organizativa de ações que são atra vessadas pelo planeamento, está sob a responsabilidade do/a professor/a desenvolver mecanismos e estratégias para lidar com as questões que emergem na sala de aula. Há uma tendência e reconhecimento da necessidade de que as propostas sejam variadas, e que a metodologia permita ao/à professor/a construir mecanismos que possibilitem o atendimento às necessidades do/a estudante das classes multisseriadas. De algum modo, vê-se uma preocupação organizativa e uma necessidade pedagógica de garantir que a ação educativa seja estruturada a partir das especificidades dos/as estudantes e consequentemente da turma.
Para muitos/as professores/as de classe multisseriada, o fazer docente nos espaços rurais foi tomando outra reconfiguração, que atrela a valorização das identidades e modos de viver-fazer a metodologias diversificadas, que foram ressurgindo com o fazer da experiência e o processo de vida-formação dos/as docentes. Estes/as, por sua vez, têm concentrado esforços na produção da docência na roça, dando ênfase às questões do quotidiano e aos elementos da natureza, nas suas localidades, utilizando técnicas e estratégias didático-metodológicas para tornar os momentos das aulas, atrativos e significativos, criando condições e mecanismos de aprendizagem nesses contextos.
Trata-se, portanto, de uma diferença que se singulariza no contex to da escola, ao considerar-se que a classe multissérie é por natureza heterogénea, diversa e expressa ao/a professor/a o desafio de trabalhar com uma diferença que, neste caso específico, não aponta só para o sujeito, mas para a construção coletiva que se criam nas ações pedagógicas do/a professor/a em atendimento às necessidades educativas dos/as estudantes
Conforme Amiguinho (2008, p. 26),
o modo como se implicam as crianças representa fazer luz sobre a mais relevante dimensão das dinâmicas e práticas da interacção da escola com a comunidade. O seu potencial de inovação e de transformação educativa e social é grandemente determinado pela forma como a escola valoriza a condição dos alunos, encaran do-os como a comunidade dentro da escola, representando o pri meiro elo da ligação com o exterior.
As comunidades rurais e o desenvolvimento local foram redimen sionados a partir do entrecruzamento das práticas de sentidos e significados produzidas pelas/nas ações quotidianas das pessoas da roça, com as propostas e finalidades de intervenção que as escolas integram, agregando melhoria e inovação, nas mais variadas maneiras de aprendizagem e produção de saber pelos/as estudantes.
Dessa forma, os espaços das escolas da roça3 não se configuram apenas como espaços pedagógicos, pois estabelecem uma conexão política e social. Logo, o fazer docente em contextos rurais segue princípios que são regidos pelas dimensões sociais e políticas que a escola representa para as comunidades, uma vez que esta significa a constituição de um espaço de apoio para os direcionamentos de ações pedagógicas, sociais e políticas de cada localidade situada em territórios rurais. Nessa ideia há de se conceber que as diferenças são marcadores que atravessam as práticas educativas dos/as professores/as e devem considerar o sujeito enquanto ser que precisa ser atendido na sua necessidade educativa.
As práticas docentes de professores e professoras das classes mul tisseriadas consideram, para além das dimensões pedagógicas, sociais e políticas, elementos específicos das vidas das pessoas que vivem e convivem em contextos rurais como ponto contundente para o avanço académico dos/as alunos/as. Com isso, as possibilidades de compreensão dos elementos que estão relacionados com as dificuldades de aprendizagem dos/as estudantes expandem-se e favorecem a busca de estratégias diversas, que colocam como mecanismos de aprendizagem, oferecendo a tais estudantes acolhimento e segurança, direcionando os seus fazeres pedagógicos através de perspetivas que valorizem as identidades, diferenças e subjetividades, no contexto escolar. A narrativa de Rafaela apresenta esses aspetos.
Como professora, ensino a estabelecer relações com o saber. E tais relações são sempre positivas e oportunas. Por mais que já temos grandes experiências, pelo nosso tempo de profissão, o que mais nos interessa é aprendermos mais e mais. Tenho um olhar para dentro do aluno(a), é isso que eu gosto de ter. Olho para cada um, principalmente aquele com menos conhecimento, com mais difi culdade na aprendizagem, o mais quieto... alguma coisa dentro deles(as) eu vejo. [...] Ouço mais os alunos, não importa a idade, respeito os meus alunos, para ser respeitada. E o que recebo em troca é respeito, carinho, amor e confiança. (Rafaela, Entrevista Narrativa, 2016)
Rafaela dá ênfase às diferenças que encontra na sua sala de aula e toma o pressuposto de valorização de cada estudante como mote para desenvolver as suas práticas docentes calcadas nas oportunidades e potencialidades que emergem das relações produzidas na sala de aula. As diferenças não podem ser invisibilizadas, nem tão pouco desconsideradas, uma vez que o sucesso educativo se configura, pelo olhar da professora, como forma de atender os/as estudantes nas suas especificidades educativas. A diferença, no entanto, está aqui caracterizada pelo viés da criança que tem dificuldade, que não acompanha as demais, como se ela fosse a culpada pela sua própria diferença.
No entanto, na classe multisseriada a professora desenvolve uma sensibilidade que desloca a diferença do sujeito, para compreendê-la nos aspetos educativos e pedagógicos, o que mobiliza a professora a construir estratégias (como ouvir mais os/as estudantes) que os/as colocam como protagonistas do seu processo de aprendizagem, levando em consideração o ser diferente no contexto da multisseriação.
Considerando esses pressupostos, reiteramos que narrar sobre experiências com alunos/as de classes multisseriadas perpassa pelo movimento de reflexividade que acontece quando professores e professoras se propõem a produzir as escrituras de si, apresentando versões das suas histórias como forma de ressignificação das suas experiências de vida-formação-profissão. De acordo com Passeggi (2011, p. 148), “a cada nova versão da história, a experiência é ressignificada, razão estimulante para a pesquisa educacional, pois nos conduz a buscar as relações entre viver e narrar, ação e reflexão, narrativa, linguagem, reflexividade autobiográfica e consciência histórica”.
É através dessa polivalência que as narrativas (auto)biográficas têm no contexto da pesquisa educacional, que conseguimos compreender, além de outras questões, as implicações que professores e professoras da roça têm com os espaços escolares em que trabalham e com a comunidade em que estão situados, deixando evidente como se relacionam com a comunidade e como essa relação incide sobre as suas práticas docentes nestes contextos. Rafaela reitera essas implicações, dizendo:
A minha relação com a comunidade é muito boa. A minha escola é aberta à comunidade, estou sempre ouvindo e chamando a assu mirmos juntos a responsabilidade de transformar a educação da nossa escola. Além das reuniões para mostrar o que avançamos ou não, realizamos comemorações com temas que atraiam os pais à escola. E estou sendo sempre valorizada, pela maioria dos pais e comunidade. Sou uma professora lúdica. A ludicidade transforma o ensino em algo mais atrativo e motivador, fazendo da aprendi zagem um processo interessante e divertido. Essa transformação é de fundamental importância, pois interfere diretamente no resul tado do processo de aprendizagem. Estou sempre buscando novas práticas, o que contribui sempre para o desenvolvimento cogniti vo do discente. (Rafaela, Entrevista Narrativa, 2016.)
A experiência de vida-formação-profissão de professores e profes soras de classes multisseriadas está marcada pelo reconhecimento da comunidade, que reflete positivamente na estruturação do seu trabalho docente. Rafaela menciona a importância que o sentimento de valorização desencadeia no seu ser-fazer, contribuindo para o seu desenvolvimento profissional e impulsionando uma dinâmica de reconfiguração das suas práticas pedagógicas direcionadas pela compreensão que a professora tem dos mecanismos que possibilitam o desenvolvimento da aprendizagem e das estratégias metodológicas que contribuam pelo estímulo a áreas do sistema cognitivo dos/as estudantes.
Assim, a narrativa revela o lugar de compreensão da professora para os elementos organizativos que ela desenvolve na comunidade para garantir êxito na ação pedagógica. A relação com a comunidade é marcada pelo processo de aceitação que a docente revela ter, quando enfatiza que ela tem boa relação com a comunidade, apostando numa dimensão educativa em que a comunidade passa a ter papel relevante no atendimento às necessidades educativas de crianças da multisseriação. A ludicidade é um outro elemento que emerge na ação educativa, evidenciando que os modos de desenvolver o trabalho com o lúdico impacta diretamente nos resultados de aprendizagem dos/as estudantes.
A arte é o elemento através do qual a professora lida com as ques tões da diferença, evidenciando os marcadores que algumas situações revelam, como “meninos não brincam com bonecas” e coisas do género. As diferenças apresentam-se como elementos desafiadores para a docente construir estratégias pedagógicas (e a ludicidade é uma delas) que têm por objetivo promover reflexões sobre certas representações culturais que estão arraigadas nas atitudes, falas e brincadeiras dos estudantes. Noutro trecho da sua narrativa, a professora diz-nos que:
A arte contribui para o estímulo e desenvolvimento da inteligên cia, imaginação, concentração, atenção, memória, conhecimentos, habilidades, valores e posturas etc. O futebol, brincadeiras com carros e bonecas, desenvolvem habilidades na aprendizagem da construção do conhecimento, na maioria dos alunos(as) envolvi dos; produzem mudanças significativas de posturas, amenizando as desigualdades de gênero. São muitos conflitos como mulher não joga bola, homem não brinca com menina, na hora do lanche a cor rosa do prato, do copo e dos talheres é das meninas, a cor azul é do homem, só as meninas podem ajudar a mamãe em casa, quando o menino cai, não pode chorar, porque homem não chora etc. Contar história para trabalhar o imaginário do aluno. Falar que os personagens de princesa e príncipe podem ser negros(as) e brancos(as). Respeitar a maneira como os mais velhos falam e o lanche que cada aluno(a) pode comprar para levar para a escola. E outras atividades criativas [...]. (Rafaela, Entrevista Narrativa, 2016.)
Rafaela apresenta, na sua narrativa, como realiza intervenções pedagógicas para discutir as questões das diferenças de género, etnias e gerações nas suas aulas, utilizando-se dos momentos de brincadeira que propõe no decorrer das atividades. Com isso, percebemos a mediação que a professora realiza, intervindo nas inter-relações que se dão no grupo, percebendo, nos conflitos que ressurgem neste contexto, diversas condições para a construção do respeito e da responsabilidade com o outro. Identifica potencialidade para a valorização da diferença e o reconhecimento desta para a construção-desconstrução-reconstrução das nossas identidades, que, por sua vez, são responsáveis pelos processos das nossas individuações e coletivizações.
A valorização das diferenças dá-nos condições para a convivência com os nossos conflitos mais internos e o movimento de alteridade que requer uma interação, o diálogo e a negociação necessários e importantes nas relações de confronto e nas tensões existentes entre eu, os outros e o ambiente que nos envolve. Nesse contexto, concebemos o espaço escolar como o território das diferenças por entender que, neste espaço, acontece o encontro das diversas culturas e é nele que são produzidas as (não)condições de visibilidade, reconhecimento e valorização dos sujeitos, nas suas dimensões que, em muitos momentos, foram marginalizadas, invisibilizadas e excluídas nas escolas, sendo os sujeitos pressionados à evasão.
Com isso, os sujeitos que permaneciam no espaço escolar criavam condições de resistência a tais situações e ocupavam um entre-lugar, como meio de sobrevivência às condições impostas pelas estruturas de poder e dominação que permeiam os espaços escolares. Candau (2011, p. 252) corrobora esse pensamento, ao dizer que:
A escola tem um papel importante na perspectiva de reconhecer, valorizar e empoderar sujeitos socioculturais subalternizados e negados. E esta tarefa passa por processos de diálogo entre dife rentes conhecimentos e saberes, a utilização de pluralidade de linguagens, estratégias pedagógicas e recursos didáticos, a pro moção de dispositivos de diferenciação pedagógica e o combate a toda forma de preconceito e discriminação no contexto escolar.
É partindo desses fundamentos que ratificamos a valorização das diferenças como possibilidade que professores e professoras de classes multisseriadas têm de reconfigurar as suas visões a respeito das práticas docentes que desenvolvem, atentando para a necessidade, na contempora neidade, das escolas da roça e reposicionando as suas posturas a partir dos sentidos, simbologia e significação existentes no jeito de ser/fazer/viver na roça, que considera os diversos modos de vida nos contextos rurais. Tais posturas causam uma reconfiguração do ambiente escolar, abrangendo, além das dimensões pedagógicas, as dimensões sociais e políticas demandadas na comunidade.
4. Educação contextualizada e práticas docentes em espaços rurais
A discussão que se tem produzido no Brasil sobre a educação contextualizada parte do princípio de valorar uma educação que não se segrega das demandas e características de uma determinada região ou de situação específica de atendimento às necessidades educativas do/a estudante. Neste campo, muitos trabalhos têm sido desenvolvidos a respeito da educação contextualizada no semiárido brasileiro, como é o caso dos trabalhos de Martins (2006), que justifica nos seus estudos a importância da contextuali zação do semiárido brasileiro, enfatizando a necessidade de que as propostas educativas considerem a história e as características do lugar.
A conceção que defendemos nesse trabalho de educação contex tualizada4 considera as nossas preocupações com os/as estudantes nos contextos em que vivem, especialmente numa comunidade rural, que abarca caraterísticas culturais que precisam ser consideradas no contexto educativo, sobretudo pelas questões das diferenças e das diversidades culturais em que os/as estudantes vivem. Neste contexto, pensar a classe multisseriada, significa pensar uma educação que se constrói a partir dos princípios característicos que tem a escola da roça e consequentemente os/as estudantes e a comunidade no seu entorno.
É preciso, portanto, considerar que professores/as e estudantes revelam preocupações com a educação que se oferta num contexto de classe multissérie, mas também que essa preocupação precisa tornar-se elemento fundante de práticas educativas que estejam na base da consideração do que é contextual, logo pertinente, às necessidades educacionais da comunidade. Neste sentido, pensar numa educação contextualizada significa pensar em ações que passam a ter sentido para os/as estudantes, garantindo que a sua aprendizagem aconteça de modo significativo.
A contextualização das práticas pedagógicas possibilita, na escola da roça, sobretudo em classes multisséries, aprendizagens significativas, por meio das quais os/as estudantes percebem sentidos de estarem na escola, sobretudo porque são reconhecidos/as nas suas diferenças. Trata-se de um processo veiculador da compreensão do sentido das ações educativas que se desenvolvem na escola, logo, dos fenómenos e da vida escolar (Mota, 2019).
No nosso entendimento, contextualizar educativamente significa problematizar as práticas pedagógicas a partir das necessidades educacionais da criança, considerando aquilo que o/a estudante precisa aprender a partir da vinculação com a realidade rural, situando-os/as no contexto da sua escola e possibilitando a construção de uma aprendizagem que tenha sentido e que se fundamente pelo reconhecimento e atendimento das diferenças. Assim, acreditamos que a contextualização da educação escolar é um processo que emerge do reconhecimento da necessidade de atribuir sentido para garantir que a educação em determinadas situações, como na escola da roça tenha significado.
Embora Morin (2000) não discuta a ideia de uma contextualização da educação, comungamos da sua ideia de contextualização, pois para ele:
O conhecimento das informações ou dos dados isolados em seu contexto é insuficiente. É preciso situar as informações e os dados no seu contexto para adquirirem sentido. Para ter sentido a pala vra necessita do texto, que é o próprio contexto, e o texto necessi ta do contexto no qual se anuncia.” (Morin, 2000, p. 36).
Para nós e para Morin (2000), a palavra no contexto significa a prática educativa contextualizada à necessidade educacional dos/as estudantes, que só passa a ter sentido se levar em consideração o lugar, a situação específica em que estudantes e professores/as vivem para produzir o ensino, e consequentemente a aprendizagem.
O desenvolvimento das práticas docentes dos/as professores/as-colaboradores/as toma como princípio as conceções de uma educação contextualizada, que possibilita a valorização da realidade e motiva os/as docentes e estudantes a construírem os seus próprios conhecimentos a partir dessa realidade. As narrativas de professores/as de espaços rurais propõem uma conotação das práticas docentes que considerem os vários níveis cognitivos e impulsionem o trabalho pedagógico, a partir da realidade local. Isso fica evidenciado no excerto das narrativas de Pedro: “Eu trabalho na sala de aula com a realidade da localidade do aluno, as atividades partem do conhecimento deles, faço uma avaliação diagnóstica, a partir dessa avaliação, eu vou trabalhar as dificuldades com eles na sala de aula”. (Pedro, Entrevista Narrativa, 2016)
Renato apresenta, na sua narrativa, as marcas da experiência do cente, pois estas reposicionaram-no como um sujeito construtor e reconstrutor do seu ser-fazer, tendo como condições a ação e a reflexão, desenvolvendo as suas práticas docentes em torno das necessidades contemporâneas dos espaços rurais e agregando valor aos saberes da sua turma.
Hoje, eu tenho que descobrir o que os alunos já têm de conheci mento, ser um facilitador, um guia para um processo de transmis são de uma série de conhecimento, trabalhar com eles vários tipos de gêneros textuais, ciranda do baú, produção de texto, textos fati ados, textos com erros ortográficos, para fazer a correção, junta mente com eles, enfim, trabalhar a contextualização na sala de aula. [...] Quando meus alunos estão com dificuldade de aprendi zagem, tenho que diagnosticar, com o intuito de buscar caminhos para a melhor aprendizagem. Sempre planejando as atividades, de acordo com as dificuldades dos alunos, onde eles possam partici par da construção de seu próprio conhecimento. (Renato, Entre vista Narrativa, 2016.)
Podemos notar que as práticas docentes desenvolvidas por Rena to e Pedro compreendem um trabalho que valoriza a realidade de alunos/as de classe multisseriada, possibilitando a aquisição de habilidades que são responsáveis para uma inferência, nos seus modos de vida e existência, como uma maneira de interagir nos seus coletivos. Para isso, estes professores mobilizam variados recursos didáticos e pedagógicos, que colaborem no processo de aprendizagem, atentando às dificuldades de aprendizagem que vão surgindo, no percurso de vida-formação desses/as estudantes, e planeando as suas atividades de acordo com a necessidade apresentada em sala de aula. Isto acontece devido à experiência que Renato e Pedro trazem, por compreenderem a importância de promover práticas pedagógicas condizentes com a realidade da localidade e atender aos princípios metodológicos da educação contextualizada para a convivência com o semiárido.
É relevante mencionar que, nesse processo de narrar, fazer e for mar-se em que os professores de classes multisseriadas se encontram envolvidos, vai sendo exposta a sua capacidade de reflexividade acerca do que consideraram preponderante, nos seus percursos de vida-formação-profissão, reestruturando as suas posições e conceções a respeito do processo formativo e autoformativo que os envolveu e envolve os seus pares (alunos/as) (Mota, 2019).
Ester apresenta, nas suas narrativas, o redimensionamento que foi acontecendo nas suas práticas, ao longo da sua experiência docente, como alfabetizadora, trazendo presente, neste excerto, a importância que dá aos elementos da realidade de sua comunidade e aos espaços de aprendizagem que o contexto de sua escola apresenta como maneiras outras de buscar superar as dificuldades apresentadas por sua turma.
Gosto de estudar sempre com o que é da realidade deles, tudo fica mais interessante; [...] as aulas de campo são uma maravilha e dá bastante resultado, as vezes, vou para a quadra, embaixo de uma árvore, para fazer as atividades, eles se interessam mais, princi palmente aulas de matemática, é bem mais fácil perceber as difi culdades de aprendizagem dos alunos, assim me aproximo e procuro dar mais atenção, fazendo com que eles confiem neles mesmos. (Ester, Entrevista Narrativa, 2016)
Ester também é uma professora que valoriza os princípios de uma educação contextualizada, desenvolvendo as suas práticas a partir dos elementos dispostos no contexto rural, mencionando as contribuições que a relação entre as observações dos fatores sociais, naturais, económicos e culturais da comunidade, e as questões propostas pelo currículo, oferecem para o desenvolvimento de aulas participativas, dinâmicas, significativas e interessantes para o grupo. Com isso, observamos o quanto práticas como estas impulsionam um movimento de protagonismo, em cada aluno/a, na construção de novos saberes articulados às visões que têm a respeito da realidade local, criticando e criando maneiras outras e diversificadas de ver suas realidades.
A realidade do/a estudante emerge como elemento fundante e de base contextual para que a professora Ester desenvolva as suas ações pedagógicas. Está nessa atitude uma perspetiva de contextualizar, como defende Morin (2000), que se principia pela atribuição de sentido ao que se faz. A aula de campo é a porta de entrada para que a docente faça uma atribuição de sentidos aos conhecimentos matemáticos que os/as estudantes precisam desenvolver. No contexto do campo, está a prática de pensar a matemática pelo viés da aplicação do que se aprende a partir de pré-requisitos que os/as estudantes possuem, por considerarem as experiências do lugar, da roça, para ressignificarem aquilo que aprendem em matemática.
A própria narrativa que a professora produz revela para ela pró pria modos de compreensão sobre a contextualização que ela faz ao considerar o ambiente do/a estudante e a necessidade de produzir significado para aquilo que se ensina. Ao narrar, Ester parece compreender ainda mais o seu papel educativo na escola e na sala, sobretudo porque ela passa a refletir sobre a sua prática de ensino e como esta se configura no campo de uma contextualização.
O trabalho com as narrativas (auto)biográficas possibilita-nos pensar que os fatos acontecidos com professores e professoras da roça tomem dimensionalidades distintas, entre si, mesmo quando apresentados por sujeitos que ocupam as mesmas posições e as mesmas profissões, nas mesmas localidades e em semelhantes condições de vida-formação-profissão. O que os diferencia são exatamente as suas experiências e os saberes da experiência construídos nas suas vivências. Estes/as professores/as, como sujeitos relacionais e com subjetividades próprias, constroem diferentes identidades, agem e reagem de diferentes maneiras em situações de vida-formação-profissão. Conforme Larrosa (2002, p. 27):
Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a ex periência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna.
Reiteramos, então, que os nossos modos de narrar, fazer e formar-se produzem as nossas experiências e constituem-nos como seres da diferença que, por sua vez, nos tornam sujeitos singulares e da individuação, com particularidades específicas, contudo, sujeitos da coletividade e da pluralidade. Isso possibilita-nos viver os mesmos processos e as mesmas situações, de maneira peculiar e particular, contribuindo para a construção de saberes diferentes e, portanto, experiências singulares.
A experiência é vista como movimento impulsionador do que toca, e do que acontece com a professora, ao ela desenvolver ações e saberes que de algum modo impactam nos modos de ser e de aprender dos/as estudantes. Nesta senda, a prática educativa contextualiza-se em direção às possibilida des de garantir e proporcionar que as crianças tenham as suas necessidades educativas atendidas, considerando-se as características da própria criança, logo um sujeito da diferença, bem como as características do lugar em que ela vive e estuda. As classes multisseriadas caracterizam-se como espaços férteis para que professores/as e estudantes pratiquem uma ressignificação das ações educativas e percebam o valor da escola na comunidade, sobretudo considerando-se o seu papel social (Mota, 2019).
5. Considerações
O trabalho possibilitou-nos perceber que as diferenças ainda estão marcadas pelo viés das representações que são construídas em torno de ideias que se cristalizam socialmente, demarcando especificidades de género, brincadeiras e ações que têm a ver com os sujeitos. A diversidade aparece como marcador de uma universalização das diferenças, mas também como elemento que caracteriza especificidades de grupos que necessitam de atendimentos específicos. Assim, a ideia de uma educação contextualizada constitui-se pela necessidade de atribuir sentido a uma diferença da escola rural, da classe multissérie, como modo de ressignificar as ações educativas destes espaços, garantindo que as diferenças sejam a base para se pensar o sujeito nas suas necessidades educativas.
No decorrer da pesquisa, pudemos notar que o fazer docente em classes multisseriadas tomou novas proporções, pois outros valores foram atribuídos aos sentidos, simbologias e significados dos processos de viver e conviver em contextos rurais. Dessa forma, sendo capazes de contribuir para a formação de sujeitos afirmativos, que não se considerem inferiorizados por viverem nestes espaços, estes valores criaram possibilidades de construir-desconstruir-reconstruir as suas identidades, por perceberem condições dignas de sobrevivência na roça e de permanência nos seus próprios lugares de origem, usufruindo, ainda, dos elementos culturais, sociais, tecnológicos e económicos considerados necessários e importantes para as suas vidas e realidades.
Compreendemos, ao longo das discussões, que a profissão docente vai ganhando outros sentidos desencadeados através dos movimentos relacionados ao ser e ao fazer de professores e professoras da roça. Neste caso, a experiência passa a ser um dos elementos principais da produção da docência em classes multisseriadas, por evidenciar e considerar as necessidades e as demandas de um processo educacional que possa atender e atingir as especificidades do local, como forma de valorização da vida, nos contextos rurais, dando visibilidade aos modos de pensar, ver e viver na roça, e garantindo outro lugar para o interconhecimento produzido, a partir das relações intersubjetivas dos sujeitos e com o ambiente em que estão inseridos.
O trabalho permitiu-nos ainda compreender como as práticas do centes são desveladas nas escolas da roça e se constituem como modos de narrar, fazer e formar-se, a partir de um movimento reflexivo que se constituiu pela narrativa e pela perceção da relevância do fazer educativo considerando o contexto das ruralidades e sobretudo da natureza organizativa das classes multisseriadas.
Tudo isso nos permitiu perceber de que maneira professores e professoras das classes multisseriadas produzem a docência nestes espaços a partir das quotidianidades, que se presentificam e desafiam os/as professores/as a reinventarem-se nos contextos específicos de atuação docente, que muitas vezes são os elementos fundantes das modificações e produções pedagógicas que os/as professores/as precisam fazer para garantir o desenvolvimento de aprendizagens significativas.
Contudo, as narrativas de professores e professoras da roça foram desencadeando um movimento formativo que qualificou o desenvolvimento do processo da pesquisa-formação, como um momento que favoreceu o acontecimento da autoformação, da heteroformação e da ecoformação.
Neste sentido, foi fundante para este estudo pensar o lugar da docência neste contexto, sobretudo nos espaços rurais - cenário da pesquisa-formação. Dessa maneira, a pesquisa-formação proporcionou-nos um movimento de reflexividade a partir das narrativas desses/as professo res/as-colaboradores/as, indicando a necessidade de um maior aprofundamento sobre discussões que deem centralidade à identidade e à diferença, pois a diferença em classes multisseriadas ainda vem sendo concebida como um elemento da mesmidade e normatizador, em que professores e professoras relacionam com as condições socioeconómicas e as dificuldades de aprendizagem.