1. Introdução
É abundante a produção científica publicada sobre a adaptação do estudante à universidade sob o ponto de vista de estudantes que frequentam diferentes cursos do ensino superior (Barbosa et al., 2018; Cunha et al., 2017; da Matta et al., 2017). É mais rara, no entanto, a publicação que apresente o ponto de vista do docente sobre o mesmo problema (Oliveira et al., 2014).
Investigar como o professor universitário percebe a sua influência sobre a adaptação do estudante é, no mínimo, tão relevante quanto focalizar a visão do estudante. Os estudos dedicados aos estudantes universitários, na sua maioria, contêm evidências sobre essa influência, especialmente no que diz respeito à interação professor-estudante e ao seu papel no processo de ensino-aprendizagem (Oliveira et al., 2014). Sobre este aspeto, a mudança no perfil do estudante universitário em virtude, também, dos novos processos de ingresso a partir do SISU (Ristoff, 2014) colaborou para posicionar o docente do ensino superior frente a novos desafios à sua profissão. Os desafios anteriores, por tanto, de pressão pela produção, pela atualização tecnológica e pela docência com sobrecarga horária (Amaral et al., 2017; Dalagasperina & Monteiro, 2016; Leite & Nogueira, 2017; Matos & Hobold, 2015) somam-se ao recém referido. Nesse contexto, o docente universitário leciona e participa direta e indireta mente da adaptação do estudante ao ensino superior. De que modo o professor compreende a sua influência sobre esse processo de que passam estudantes na universidade? É a esta pergunta que se pretende responder com o presente estudo.
Ainda que escassos, trabalhos anteriores colaboraram para a inves tigação no tema. Matos e Hobold (2015), por exemplo, entrevistaram docentes e estudantes universitários a fim de compreender melhor as relações entre o trabalho docente e o processo de ensino-aprendizagem no contexto do ensino superior. Os docentes afirmaram que ser professor é ser generoso, respeitoso com os estudantes, e alguém que orienta e conduz o estudante; de outro lado, os estudantes apontaram que o docente deve ser um tutor, deve direcioná-los, respeitá-los, ter experiência e foco no ensino. Há, portanto, evidência de con vergências importantes na perceção de docentes e de estudantes sobre o papel daquele sobre a adaptação deste.
Mais recentemente, Basso et al. (2019) relataram as características dos estudantes e das instituições de ensino superior que interferem na adap tação estudantil ao ensino superior, na visão dos docentes. Há um novo perfil de estudante universitário, notado pelo professor, que traz novos desafios às aulas e, consequentemente, à adaptação à instituição de ensino superior (IES). São estudantes de outras regiões brasileiras, com diversidade étnica e cultural, maioritariamente proveniente de escola pública, e que enfrentam dificuldades de ajustamento não apenas ao novo ambiente do ensino superior, mas também ao novo ambiente cultural. As IES, por sua vez, são vistas pelos docentes como detentoras de recursos valiosos para auxiliar o estudante na adaptação, como é o caso dos serviços de apoio psicopedagógico e psicológico, bem como os programas de iniciação científica. Outro aspeto citado pelos participantes do estudo de Basso et al. (2019) foi o uso das tecnologias que, apesar de apoiarem os estudantes nos seus estudos, atrapalham as aulas presenciais.
Também Veras e Ferreira (2010) e Freire e Fernandez (2015) con tribuem, em certa medida, para a construção de uma literatura que focalize na perceção do docente sobre si no processo de adaptação dos estudantes à IES. Em Veras e Ferreira (2010), quatro docentes foram individualmente observa dos enquanto lecionavam e posteriormente entrevistados. Dos depoimentos, de entre outros aspetos, destacam-se: a liberdade dada em aula depende de cada turma específica; uma aula longa com duas horas de duração necessita de momentos de foco intercalados com descontração; a elevada exigência serve para os estudantes e para o docente, com diálogo constante e responsabilidade conjunta; parece haver uma polarização entre ser um docente muito informal e ser autoritário, portanto, sem espaço para uma postura moderada. A pes quisa de Freire e Fernandez (2015) envolveu dez docentes no início do exercí cio da profissão. De entre os numerosos resultados sobre como os professores avaliam o próprio trabalho, alguns trataram da relação docente-estudante e de como o primeiro percebe a sua influência na adaptação do segundo à IES: ser exigente (de si e dos estudantes) e ser exigido, bem como ser confundido com um estudante em virtude da proximidade etária. São questões semelhantes às relatadas em Veras e Ferreira (2010).
Outro trabalho de destaque é o de Oliveira et al. (2014), no qual es tudantes universitários foram entrevistados sobre a sua relação com os docen tes e a influência disso na sua adaptação académica. Do ponto de vista dos estudantes, o professor exige maior autonomia dos estudantes nos estudos, na comparação com o docente do ensino médio, ao mesmo tempo em que avaliam que a didática do primeiro falha, carece de estrutura, com seminários em ex cesso e a cobrança em provas de conteúdos não tratados em aula. Em termos de postura, os estudantes entendem extremamente prejudicial a si a postura docente autoritária, rígida, distante, inacessível, superior; ao mesmo tempo, destacam como positivas as posturas de recetividade, incentivo, abertura, sim patia e boa educação (Oliveira et al., 2014). São especificamente esses aspetos que o presente trabalho busca aprofundar, mas do ponto de vista do próprio docente: a sua relação com os estudantes, a sua postura e disposição, e a sua didática e estilo de ministrar aulas. Em quais pontos haverá convergências nas perceções sobre o docente e o seu papel na adaptação universitária? E diver gências?
Este estudo buscou compreender como docentes universitários avaliam a sua influência sobre a adaptação estudantil ao ensino superior. Como referido, focalizou-se nas questões da relação professor-estudante, da didática e das posturas e disposições do docente. Espera-se identificar, a exem plo de Matos e Hobold (2015), pontos em comum com os dados de Oliveira et al. (2014), Veras e Ferreira (2010) e Freire e Fernandez (2015), bem como novos insights para o desenvolvimento de capacitações para docentes em nível de atualização.
2. Método
Trata-se da continuidade do estudo conduzido por Basso et al. (2019) que bus cou analisar o papel do docente na adaptação à IES de estudantes de quatro instituições públicas e privadas de ensino superior do sul do Brasil. Enquanto o estudo referido focalizou na perceção do docente sobre características dos estudantes e das instituições, no presente trabalho discute-se como o docente percebe a sua própria influência sobre a adaptação estudantil à IES.
2.1. Participantes
A pesquisa contou com a participação de 16 docentes (oito mulheres e oito homens), com média de idade de 44,5 anos, trabalhadores em IES públicas e privadas do sul do Brasil à época da coleta de dados. Quanto ao tempo de tra balho, três possuíam de 2 a 4 anos de experiência docente, sete de 8 a 12 anos, cinco de 15 a 22 anos e um com 39 anos de trabalho como professor universi tário. As áreas do conhecimento dos entrevistados foram Administração, Di reito, Engenharia, Medicina, Odontologia e Psicologia. Os participantes foram contactados por conveniência.
2.2. Instrumentos
Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada criado para a pesquisa. O roteiro solicitava dados sociodemográficos e de trabalho docente (p. ex., “Há quantos anos tu és professor no ensino superior?”, “Há quanto tempo estás nesta instituição como professor?”), seguido de questões sobre a adaptação dos estudantes à IES, com foco no papel do professor nesse processo (p. ex., “Como tens lidado com essas dificuldades dos seus estudantes?”, “Como per cebes o papel do professor no processo de adaptação ao ensino superior do estudante universitário?”). As pesquisas de Bardagi e Hutz (2012) e de Oliveira et al. (2014) serviram de base para a construção do roteiro de questões.
2.3. Procedimentos
Recolha dos dados
Foram realizados convites pessoalmente, por e-mail ou telefone, com uma breve explicação sobre o objetivo da pesquisa. Os docentes que acei taram o convite compareceram em local, data e horário combinados (sala do professor na IES), assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias (o participante mantém uma consigo), e responderam à entre vista individualmente. A entrevista foi conduzida, gravada em suporte áudio e posteriormente transcrita pelo primeiro autor deste artigo, com formação em Psicologia e atuação profissional na área. A duração das entrevistas variou en tre 40min e 1h30min. A quantidade dos docentes seguiu o critério de satura ção de conteúdos esclarecido por Nascimento et al. (2018). A pesquisa seguiu os cuidados éticos previstos na Resolução 466/12, com aprovação do comitê de ética da IES (processo número 63696817.7.0000.5334).
Análise dos dados
Realizou-se uma análise qualitativa sobre as transcrições das en trevistas mediante codificação descritiva e criação de categorias. Conforme as orientações de Saldaña (2011), cada palavra, pequena frase ou trecho da trans crição, que for considerado um código, representa, de algum modo, o fenó meno sob investigação. Os códigos são aproximados em sentido semelhante, o que gera grupos chamados de categorias. O processo de análise seguiu, por tanto, uma direção indutiva. Dois autores do presente estudo realizaram a aná lise dos dados, com um terceiro autor na colaboração em caso de dúvidas e desempates.
3. Resultados
A análise qualitativa sobre os conteúdos das transcrições das entrevistas com os docentes gerou categorias organizadas em três temas, conforme os objetivos traçados: relação professor-estudante, posturas e disposições do docente, e estilo e didática docente. A seguir são apresentadas as categorias correspondentes a cada tema, com ilustrações de trechos de transcrições de entrevistas. Nos exemplos, a letra E representa entrevistado, seguida do número da transcrição.
3.1. Relação professor-estudante: docente é amigo?
É ambivalente a visão dos docentes sobre o tipo de relação a estabelecer com os estudantes. De um lado, deve ser como de um amigo; de outro, um distanci amento é visto como necessário para não perder o foco no papel de professor. Ex.: “Então é possível você desenvolver uma amizade com professores, é pos sível você ter uma atenção positiva (...). É legal com as pessoas que estão ali (...). Aí entra um dilema, ambivalência” (E1).
Docente não é amigo
Há um foco na formação profissional do estudante, com a afetivi dade legada a um segundo plano na relação. Ex.: “Uma amizade, que eu acho que não é o papel de um professor. Pode ser amigo, mas assim, capturar o aluno de outras formas, eu acho que isso empobrece, tem que ter uma postura” (E11).
Docente é amigo
A aproximação docente-estudante através da amizade facilita a adaptação à IES, ajuda na aprendizagem e no desempenho. Ex.: “Eu me relaci ono de igual (...). Eu sempre tive sucesso nisso (...). Se sendo amigo dos meus alunos eles tiveram um desempenho bem maior na mesma disciplina, (...) então por que que eu não vou continuar assim, né?” (E9).
3.2. Posturas e disposições do docente
A forma de pensar, as atitudes, disposições, posturas em geral interferem na adaptação do estudante à IES. Sete categorias representam essas questões.
Ser empático
Perceber e entender as necessidades e/ou sentimentos dos estudantes, e bus car agir ou pensar da forma como eles pensariam ou agiriam nas mesmas cir cunstâncias. A postura empática sensibiliza o docente a compreender o estudante, evita preconceitos e considera as suas dificuldades pessoais e fami liares. Ex.:
Eu consigo me identificar, (...) me coloco no lugar do aluno. Princi palmente dos alunos com dificuldade (...). Achar alguma maneira dele se sentir mais incluído, porque uma, se ele se sentir excluído, ele aí acaba largando o curso (...). Então os professores (...) são os maiores responsáveis por abraçar os alunos, principalmente no iní cio do curso (...). Eu consigo fazer eles se sentirem bem-vindos na minha aula. (E9)
Ser disponível
Ajudar o estudante nas suas dificuldades, conversar sobre temas não académi cos e eventualmente dar apoio emocional é uma postura que favorece o pro cesso de adaptação. Ex.: “Estar disponível para conversar sobre coisas que não são estritamente a matéria, mas sempre focando isso como a coisa mais im portante, eu acho que é fundamental” (E8).
Saber dialogar
É abrir um espaço através de diálogo aberto, contínuo, individual ou com a turma, posto que isso ajuda no processo de adaptação do estudante e da sua permanência na IES. Ex.:
Tento manter um diálogo, uma postura aberta, tento me interessar pela vida do aluno, me colocar na medida do possível à disposição para auxiliar (...). Alguns buscam auxílio, conversam com os profes sores (...). Outros, eles fogem, (...) como estratégia é abandonar e desistir. (E3)
Motivar os estudantes
Incentivar o estudante a perceber e desenvolver o seu próprio potencial. Ao sentirem-se mais confiantes, podem encarar melhor as atividades académicas. Ex.:
Esse aluno, a ele falta o incentivo, todos têm capacidade. (...) Aquele que luta, que quer ir atrás e tal, ele vence esta barreira e vai adiante. (...) Os outros, eles ficam meio na margem, e acaba que talvez não desenvolvam todo o potencial que têm. (E15)
Valorizar a dedicação
Os docentes reconhecem e valorizam o esforço do estudante interessado e de dicado aos estudos. A adaptação passaria pela intensidade da dedicação e do esforço, o que gera efeitos positivos na formação. Aqueles que recebem auxílio estudantil esforçam-se mais em comparação com quem não recebe esse tipo de incentivo. Ex.: “Um bom aluno tem que ser valorizado em detrimento de um aluno que não está interessado (...). Eu acho que tudo é muito dependente da vontade do indivíduo se adaptar” (E8).
Focalizar estudante e turma
É perceber o estudante, interessar-se por ele de uma forma individualizada, como também estar atento para a turma como um todo. É importante o do cente ter foco no conteúdo a ser ministrado, mas acolher o estudante e a turma de todas as formas; essas ações favorecem a sua formação pessoal e profissio nal. Ex.:
O professor não tá só focado no papel dele, do que ele tem que mi nistrar (...). Ele também tem que enxergar a turma que ele tem, o aluno que ele tem. (...) Então acho que é papel do professor esse acolher, que eu digo, de todas as formas. (E11)
Atentar para demandas psicológicas
O docente precisa estar atento e identificar demandas de saúde mental e in centivar o estudante a buscar apoio psicológico. Ex.: “Os professores identifi carem (...) quando é um caso mais alarmante (...). Um problema de depressão, de fobia social, o estudante não tá conseguindo conviver e aí acho que encami nhar pra instâncias da universidade que podem atender melhor essas deman das” (E4).
3.3. Estilo e didática docente
Os docentes entrevistados apontaram dois aspetos que também pesam sobre a adaptação do estudante à IES: de um lado, há a didática docente; de outro, o estilo pessoal do professor ao ministrar as suas aulas e lidar, de modo geral, com a disciplina e seus conteúdos. Quatro categorias melhor representam os conteúdos relacionados ao tema em tela.
Estilo pessoal
Cada docente possui o seu estilo particular de ministrar aula e de lidar com as suas atividades docentes. Os estudantes precisam compreender e saber lidar com esses estilos diferentes de professores. Ex.: “Quando o aluno chega no pri meiro ano da faculdade, ele encontra diversos professores, maneiras de ser di ferentes de ser professor” (E7).
Ensinar e orientar
O papel do professor vai além da transmissão do conhecimento, pois é cons truído junto com o estudante. Ser um bom professor é ser uma referência não só pelos conteúdos ministrados e pela qualidade de ensino, mas como orienta dor no processo de formação e preparação para o mercado de trabalho. Ex.: “Que ele possa ter o professor como uma referência, não só pelos conteúdos que ele tá ministrando, mas também por uma referência de orientação que ele tá neste processo de adaptação ou de formação” (E12).
Cultivar o grupo
Estimular a trabalhar em grupo é uma didática usada para promover a aproxi mação entre os estudantes, o que favorece diretamente a participação dos es tudantes nas atividades académicas e indiretamente a adaptação académica. Ex.:
Porque ao discutir, tu vais, te dá um clique que tu sabes se adaptar às situações e qualquer dos problemas que te surgirem (...). Hoje em dia as turmas que entram juntas, eles, eu acho que eles se liga ram de se juntar para estudar e uma coisa importante da engenha ria é tu discutir as coisas, perguntar. (E9)
Avaliação equilibrada
Na didática, existem os critérios de avaliação e o docente deverá estar atento a isso. É preciso que o mesmo tenha equilíbrio entre ser exigente e ser protetivo, porque o estudante vem do ensino médio com uma lógica de pensamento. Os critérios de avaliação devem ser individualizados, diferenciados e flexibiliza dos, em especial para estudantes com deficiência e/ou em casos de tratamento de saúde. Ex.:
Umas das maneiras que eu consegui resolver isso aqui na disciplina é dando nota (...) todos os dias, (...) se ele vier a produzir dentro de alguns critérios pré-estabelecidos, o que tiver que produzir, ele pode ganhar dez naquele dia, mas, se ele não atender, ele não pro duzir, pode ganhar zero, então, dentro de alguns critérios. (E6)
A Tabela 1 apresenta os resultados com as categorias, por tema: re lação professor-estudante, posturas e disposições do docente, e estilo e didática docente.
4. Discussão
Os resultados mostram um panorama interessante em relação a como os do centes do presente estudo percebem o seu papel na adaptação dos estudantes à IES. Três temas organizaram as perceções, representadas por 13 categorias. A seguir, busca-se interpretar os resultados com vistas a identificar similari dades e originalidades na comparação com a literatura disponível. Por fim, são destacados aqueles elementos considerados chave para a inserção em progra mas de tutoria voltados a docentes universitários.
4.1. Relação professor-estudante: ser amigo ou ser amigável?
Os resultados no que diz respeito à relação professor-estudante refletem uma questão muito presente na literatura. Essa relação é fundamental para o su cesso do trabalho docente, da adaptação estudantil à IES e do andamento dos estudos académicos (Araújo et al., 2016; Macedo et al., 2018; Oliveira et al., 2014; Soares et al., 2016; Souza et al., 2016; Veras & Ferreira, 2010).
Não é uníssona, no entanto, a ideia de que o docente deve ser amigo do estudante. Há evidências e/ou argumentos favoráveis à relação professor-estudante na forma de uma relação de amizade, tanto do ponto de vista do pro fessor (Aultman et al., 2009; Veras & Ferreira, 2010), como do estudante (Matos & Hobold, 2015; Oliveira et al., 2014). De outro lado, essa relação tam bém é percebida como impossibilitada de uma aproximação do nível de uma amizade (Aultman et al., 2009; Chory & Offstein, 2017).
A questão não se esgota em estipular, ou não, se é possível profes sor e estudante serem amigos. O que é preciso debater, de facto, é o nível de aproximação necessário entre professor e estudante para que esse relaciona mento seja favorável a ambos - ao trabalho de um e ao estudo do outro. Dessa forma, pode-se distanciar da noção de ser amigo para entrar na noção de ser amigável.
Ser amigável é uma característica desejável e atualmente bastante frisada no contexto das novas relações entre professor e estudante no contexto universitário. A este respeito, Chory e Offstein (2017) esclarecem que ser ami gável é entendido como “um estilo de comunicação, ao passo que uma amizade é um relacionamento mais intimista, de longo prazo. Ser amigável significa de mandar que os estudantes nos tratem pelo título e sobrenome, mas que per mite uma postura acessível e agradável” (p. 30, tradução livre).
No Brasil, é mais raro o tratamento a professores por titulação e/ou sobrenome (p. ex. chamar de Professor Silva); todavia, o entendimento de ami gável aplica-se de modo mais universal ao que é esperado atualmente de um docente universitário. Trata-se de uma postura e disposição para o diálogo, numa interação agradável e proveitosa. Nos resultados da presente pesquisa, um dos entrevistados manifesta que escolhe ser amigo dos estudantes, porque desse modo há um relacionamento de iguais. Essa igualdade, no entanto, pre cisa ser interpretada com cautela, e aplicada com critério, visto que professo res universitários novatos têm mais clara a hierarquia entre docente e estudante em termos de conhecimento específico, mas sem descartar o diálogo e a visão do estudante como um ente ativo, e não passivo (Freire & Fernandez, 2015). No presente trabalho, docentes com mais tempo de trabalho mostra ram-se contrários a referir a relação professor-estudante como uma relação de amizade. O que importa é a “habilidade de se comunicar informalmente e ter empatia com os estudantes e, assim, ser capaz de criar um ambiente de aprendizagem que encoraje o livre intercâmbio de ideias e a livre negociação de conceitos” (Martins et al., 2018, p. 108). Essas disposições aproximam-se de outro resultado encontrado no presente estudo.
4.2. Posturas e disposições do docente: como é um bom professor?
Como discutido, a alegada relação de amizade entre professor e estudante, na verdade, é uma metáfora para uma relação que envolva certos elementos que, a princípio, precisam ser ativados pelo docente. As posturas e disposições deste profissional enquadram-se nessa questão. Como visto, implícitos na questão da amizade estão as características de ser aberto, ser disponível, ser agradável no trato, ser acessível, saber dialogar. Estas duas últimas caracterís ticas constam nos resultados como aspetos que colaboram, na visão do docente, para a adaptação estudantil à IES. Outrossim, constaram outras, como ser empático, e há literatura sobre a empatia docente e a sua influência sobre os estudantes, como se verá a seguir.
A empatia é uma habilidade social importante ao trabalho do docente universitário. Segundo Vieira-Santos et al. (2018), “se o docente desenvolver um repertório de habilidades sociais adequado, presume-se que será capaz de utilizá-las de forma educativa na interação com seus estudantes, auxiliando no desenvolvimento de valores e habilidades importantes para seus futuros profissionais” (p. 4). O modelo de empatia de Davis (1994) en volve diferentes processos psicológicos, como a tomada de perspetiva, e dife rentes desfechos, como a preocupação empática e a angústia pessoal. O comportamento resultante do processo de empatia pode ser de ajuda - dese jável no contexto da empatia docente.
Numa recente revisão de estudos sobre habilidades sociais em pro fessores do ensino superior, a empatia, apesar de pouco explorada em pesquisa, foi abordada nas publicações em virtude da “importância de o pro fessor ser capaz de identificar e compreender a situação, as emoções e os motivos dos alunos” (Vieira-Santos et al., 2018, p. 7). Nesse sentido, os partici pantes da presente pesquisa estão cientes da relevância do processo de empa tia necessário ao seu trabalho e à adaptação universitária de estudantes.
Outras posturas foram elencadas pelos participantes como positi vas: motivar os estudantes e valorizar aqueles que se dedicam aos estudos. Quanto a esta última, apresenta um escopo mormente limitado, posto que pode descartar os estudantes que não se dedicam, independentemente da jus tificativa. Todavia o docente possui o seu papel na motivação em universitários - aspeto que fundamenta as duas categorias de respostas referidas. A este res peito, Gil et al. (2012) pontuam que “cabe aos docentes motivar os discentes e a estes assumirem um papel mais ativo no processo de aprendizagem, especi almente no ensino superior” (p. 58). Dessa maneira, motivar os estudantes esteve na pauta dos docentes entrevistados, embora as estratégias para pro mover essa motivação nem sempre estejam claras. Gil et al. (2012) listam estratégias que podem ser utilizadas para otimizar a motivação discente: exposição, diálogo, resolução de problemas, mapas conceituais, seminários e projetos. Essas, e outras, estratégias têm o potencial de motivar os estudantes; ao mesmo tempo, podem até motivar os próprios docentes, ao mostrar novas formas de abordar os conteúdos e de ser mais criativo no seu trabalho.
Outro conteúdo que representa como os docentes entrevistados avaliam a sua influência sobre a adaptação dos estudantes à IES é a atenção às demandas por apoio psicológico. Por apoio psicológico entende-se tanto as demandas por gestão do tempo de estudos e de autorregulação da aprendiza gem, como as questões afetivas que interferem nos estudos universitários - de entre os sinais mais comuns, a depressão, a ansiedade e o estresse (Costa et al., 2020; Santiago et al., 2021; Trigueiro et al., 2021). Se apresentar a postura de abertura e de empatia já discutidas, o docente será capaz de identificar deter minados comportamentos nos estudantes que sinalizam a possibilidade de sintomas como os referidos. Não são sinais que requerem um treinamento sofisticado, mas orientações claras podem contribuir por meio de intervenções pontuais para monitorar a saúde mental própria, de colegas e de estudantes da IES. De outro lado, cabe frisar que o professor não deve assumir o papel de psicólogo, mas ser recetivo à demanda do estudante e encaminhá-lo ao apoio psicopedagógico ou psicológico oferecido pela instituição.
4.3. Estilo e didática docente
A reflexão sobre a didática e o estilo pessoal de ministrar aulas está presente já no cotidiano laboral do docente universitário novato (Freire & Fernandez, 2015). Aliado a isso, as já detetadas mudanças no perfil do alunado do ensino superior, bem como o advento de tecnologias no âmbito do ensino (salas de aula virtuais e outros recursos) requerem do docente uma mudança no seu papel. Parece ser preciso que esse trabalhador realize “um giro significativo desde os pontos de vista pedagógico, epistemológico e psicossocial” (Mendonça et al., 2015, p. 375). Com isso, parte-se para a questão da prática reflexiva, que em muito pode colaborar nos novos desafios à docência univer sitária.
Muñoz et al. (2017) definem prática reflexiva como um processo com intenção (lecionar), consciente (atento a aspetos éticos), acolhedor às experiências subjetivas do professor, bem como uma “poderosa ferramenta que o docente possui para continuar a sua formação, a qual propicia a movi mentação de seus saberes, através da ação, e a partir da própria experiência” (p. 590). Ao mesmo tempo, essa reflexão atenta sobre a própria prática docente vem ao encontro de promover a adaptação estudantil à IES.
A prática reflexiva, como se denota, contempla o estilo pessoal do professor, um dos resultados do presente estudo. Esse estilo pessoal engendra tanto as suas ações ético-políticas, como a contribuição das suas experiências subjetivas com o ensino (inclusive como estudante) e das suas escolhas meto dológicas sobre cada aula ou atividade. A postura de ensinar e orientar, no sen tido de ser mais que um professor, ser um orientador sobre a profissão para a qual se prepara o alunado, também está contemplada como desfecho positivo da prática reflexiva. Outrossim, escolhas metodológicas como a avaliação equi librada e o cultivo do grupo dependem de uma flexibilidade direcionada à diversidade dos estudantes e das suas demandas de aprendizagem.
Há atualmente uma oferta interessante de múltiplas formas de realizar a avaliação dos estudantes do ensino superior de modo criativo e ati nente ao seu novo perfil (Masetto & Gaeta, 2015; Spinardi & Both, 2018; Vagula et al., 2015). A avaliação equilibrada mencionada pelos participantes, por exemplo, requer uma revisão do modo como se avalia o estudante, “de forma a integrá-lo ao processo de aprendizagem, fornecendo contínuas informações que permitam ao estudante corrigir os erros em direção à formação esperada” (Masetto & Gaeta, 2015, p. 8).
As publicações sobre evasão universitária e sobre adaptação à IES do ponto de vista dos estudantes apontam para a didática docente como um elemento capaz de aproximar ou afastar os estudantes do ensino superior (Macedo et al., 2018; Nagai & Cardoso, 2017; Oliveira et al., 2014). A partir dessas evidências, e da autorreflexão dos participantes da presente pesquisa, cuja amostra possui amplo espectro de experiência docente, a didática e o estilo de lecionar não são menos importantes do que a relação professor-estu dante: ponto mais discutido no contexto da adaptação à IES nas publicações disponíveis.
5. Considerações finais
O objetivo principal desta investigação foi buscar entender como professores do ensino superior avaliam a sua influência sobre a adaptação estudantil à IES. Os resultados gerados foram organizados em três temas: relação professor-estudante, posturas e disposições do docente, e estilo e didática docente. As categorias distribuídas nestes temas de facto aproximam-se daquelas geradas por Oliveira et al. (2014), que examinou o ponto de vista dos estudantes sobre o mesmo aspeto. Em comum, o presente trabalho e o de Oliveira et al. (2014) possuem as vicissitudes da didática docente, estar mais aberto aos estudantes, motivá-los, cultivar uma boa relação, e ser um orientador, uma referência, e não somente um transmissor de conhecimentos. Como singular, a empatia não foi mencionada pelos participantes de Oliveira et al. (2014), mas foi tópico escolhido pelos professores da presente pesquisa.
Identificam-se limitações no estudo relatado, especificamente quanto à amostragem. O docente do ensino superior comumente é bastante exigido pela instituição, seja pública ou particular. O seu tempo fora do traba lho é escasso, o que reflete sobre convites como o de participação em trabalhos científicos a exemplo do apresentado. Assim, não foi possível obter um número equilibrado de docentes conforme tempo de prática - variável importante para a reflexão sobre a influência do professor sobre a adaptação estudantil à IES. No entanto, os resultados apresentados podem colaborar para a criação de ins trumentos mais objetivos para aplicação a um maior número de docentes para averiguar a sua perceção sobre como ele interfere no ajustamento académico dos estudantes.
A análise qualitativa contribui de diferentes formas em pesquisa. Para um tema pouco explorado como a perceção do docente sobre a sua influ ência na adaptação estudantil à IES, estudos exploratórios qualitativos são bem-vindos. Com delineamentos como o adotado, que conduz a generaliza ções, mas à geração de novas pesquisas e intervenções, é possível identificar demandas, lacunas e criar novos estudos com alcance mais amplo. Ademais, as intervenções dedicadas a docentes do ensino superior, a exemplo dos progra mas de tutoria, podem usufruir dos resultados discutidos no presente traba lho. Como exemplo, os programas de aperfeiçoamento pedagógico e ações de capacitação oferecidos a professores do magistério superior podem incluir de bates e atividades que tratem das problemáticas da relação de amizade entre estudante e docente, das posturas e disposições do docente no que diz respeito às diferenças entre habilidade e personalidade, e do estilo e da didática do cente em relação às diferenças entre habilidades pessoais e habilidades espe radas para a função no exercício do trabalho dedicado à docência.